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8• REVISTA O GLOBO• 8 DE ABRIL DE 2012




                                          a conta...
                                                     Dois cafés e

                                                                                               por Mauro Ventura


                                         C                                                  ...com Claudio Leite
                                                   laudio Leite era o maior cirurgião
                                                   infantil do país. Palavras do
                                                   neurocirurgião Paulo Niemeyer
                                         Filho. Claudio perdeu a conta das vidas
                                                                                            REVISTA O GLOBO: Como o senhor começou a beber?            operou. Teve época em que parei, a mão tremia
                                         que salvou. Integrou as três maiores               CLAUDIO LEITE: Tomando um uisquinho à noite,               muito, estava completamente doido. Em 1978,
                                         associações pediátricas do mundo. Criou            para relaxar e descontrair. O alcoólatra se                tive um infarto. Não quis ficar internado, porque
                                         uma técnica de entubação traqueal de               justifica: “Hoje trabalhei muito, mereço.” Bebia           não poderia beber. Fui para casa e bebia uma
                                                                                            moderadamente. Mas o alcoolismo é uma doen-                garrafa e meia de uísque por dia, infartado.
                                         recém-nascidos e desenvolveu cuidados
                                                                                            ça de progressão lenta. Entre beber porque quer            Como isso se refletia na sua família?
                                         pioneiros no pré e no pós-operatório. “Em          e porque precisa há um espaço muito grande de
                                         uma época em que operar recém-                                                                                Nenhuma outra doença tem a capacidade de
                                                                                            tempo. E há a negação. Dificilmente o alcoólatra
                                                                                                                                                       destruir a família como o alcoolismo. Minha
                                         nascidos e devolvê-los aos pais era                admite que está bebendo demais. Passei anos
                                                                                                                                                       mulher já quase não falava comigo. Há dez anos
                                         praticamente um milagre, ele, com seus             bebendo sem controle e sem consciência dessa
                                                                                                                                                       não dormíamos juntos, porque ela não aguen-
                                                                                            doença gravíssima, que mata mais do que o
                                         anestesistas e assistentes, apresentava                                                                       tava meu bafo. A angústia e o sofrimento eram
                                                                                            câncer e a Aids. O álcool é aceito pela sociedade,
                                         resultados surpreendentes”, diz Rosa                                                                          brutais. Eu tinha mania de arma, fiz tiro ao alvo.
                                                                                            identificado à beleza e ao sucesso, mas há mais
                                                                                                                                                       Um dia meu filho tirou tudo de casa, porque eu
                                         Célia, criadora do Pró-Criança Cardíaca.           de 60 doenças secundárias associadas a ele.
                                                                                                                                                       já estava com intenção de dar um tiro na cabeça.
                                         Por trás do sucesso, reconhecido no                Por que o senhor precisava beber?                          Diziam: “Claudio é mulherengo, adora mulher.”
                                         Brasil e no exterior, escondia-se uma              Essa ideia de que você bebe porque tem um                  Não. Você adora a mulher que não fica dizendo:
                                         doença que só a família sabia: o                   sofrimento muito grande é coisa do passado.                “Não beba.” Por isso eu ia para motel e ficava
                                                                                            Por séculos, o alcoólatra era aquele morador de            dois, três dias com prostituta, para beber.
                                         alcoolismo. No dia 25, às 19h, ele lança           rua, cheio de apelidos pejorativos, como pé de
                                         na livraria Timbre o livro “Alcoolismo — A         cana e pudim de cachaça. Acreditava-se que era             Como foi o processo de recuperação?
                                         doença da negação” (Editora Lacre). Aos            vício, defeito de caráter, falta de força de von-          Minha família já tinha feito várias tentativas para
                                                                                            tade ou loucura. Mas é uma dependência quí-                eu ir ao AA, mas eu, médico, agnóstico, or-
                                         83 anos, mais de 20 como alcoólatra,                                                                          gulhoso e prepotente, me julgava acima de tudo.
                                                                                            mica que afeta os componentes físico, mental e
                                         Claudio está há 14 sóbrio, desde que               espiritual. Espiritualidade não é religiosidade, é         E o alcoólatra, nessa fase, tem um egocentrismo
                                         entrou no Alcoólicos Anônimos (AA).                uma força interna que nos mantém bem com                   brutal, só pensa nele. Eu não queria entender
                                         “Durante anos sofri e me destruí, destruí          nós mesmos. E há uma herança genética. Eu                  que é uma doença que nos faz iguais. No AA,
                                                                                            tinha avô, tio, irmão, primo alcoólatras.                  você vê juiz ao lado de rapaz de 17 anos que
                                         minha família, minha profissão e cheguei                                                                      roubou carro para o tráfico. Eu vivia trancado
                                         à solidão extrema e à completa                     Como o senhor conciliava a medicina e o álcool?            no quarto, sem tomar banho, bebendo vodca.
                                         desmoralização. Estou me expondo muito             Procurava não beber na véspera de cirurgia.                Até que meu filho disse: “Papai, vou te dar uma
                                                                                            Meu amor pela Medicina era tão grande que                  última chance. Tome um banho e venha co-
                                         com o livro, mas o benefício que ele pode          suplantava a vontade de beber. Nunca entrei                migo.” Não sei por que obedeci. Era dia 11 de
                                         trazer para quem é alcoólatra e ainda não          num centro cirúrgico bêbado. Um dia, com o                 novembro de 1997. Tinha 68 anos e estou sóbrio
                                         se identificou com a doença compensa a             paciente já na mesa de cirurgia, liguei para meu           desde então. Tenho uma gratidão eterna pelo
                                         quebra do anonimato.”                              assistente e disse que não tinha condições. Ele            AA. Perdi muito tempo bebendo minha vida.
                                                                                        Blog do colunista: oglobo.globo.com/rio/ancelmo/dizventura   Twitter: twitter.com/dizventura   Email:mventura@oglobo.com.br

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A luta de um cirurgião contra o alcoolismo

  • 1. O Guito Moreto 8• REVISTA O GLOBO• 8 DE ABRIL DE 2012 a conta... Dois cafés e por Mauro Ventura C ...com Claudio Leite laudio Leite era o maior cirurgião infantil do país. Palavras do neurocirurgião Paulo Niemeyer Filho. Claudio perdeu a conta das vidas REVISTA O GLOBO: Como o senhor começou a beber? operou. Teve época em que parei, a mão tremia que salvou. Integrou as três maiores CLAUDIO LEITE: Tomando um uisquinho à noite, muito, estava completamente doido. Em 1978, associações pediátricas do mundo. Criou para relaxar e descontrair. O alcoólatra se tive um infarto. Não quis ficar internado, porque uma técnica de entubação traqueal de justifica: “Hoje trabalhei muito, mereço.” Bebia não poderia beber. Fui para casa e bebia uma moderadamente. Mas o alcoolismo é uma doen- garrafa e meia de uísque por dia, infartado. recém-nascidos e desenvolveu cuidados ça de progressão lenta. Entre beber porque quer Como isso se refletia na sua família? pioneiros no pré e no pós-operatório. “Em e porque precisa há um espaço muito grande de uma época em que operar recém- Nenhuma outra doença tem a capacidade de tempo. E há a negação. Dificilmente o alcoólatra destruir a família como o alcoolismo. Minha nascidos e devolvê-los aos pais era admite que está bebendo demais. Passei anos mulher já quase não falava comigo. Há dez anos praticamente um milagre, ele, com seus bebendo sem controle e sem consciência dessa não dormíamos juntos, porque ela não aguen- doença gravíssima, que mata mais do que o anestesistas e assistentes, apresentava tava meu bafo. A angústia e o sofrimento eram câncer e a Aids. O álcool é aceito pela sociedade, resultados surpreendentes”, diz Rosa brutais. Eu tinha mania de arma, fiz tiro ao alvo. identificado à beleza e ao sucesso, mas há mais Um dia meu filho tirou tudo de casa, porque eu Célia, criadora do Pró-Criança Cardíaca. de 60 doenças secundárias associadas a ele. já estava com intenção de dar um tiro na cabeça. Por trás do sucesso, reconhecido no Por que o senhor precisava beber? Diziam: “Claudio é mulherengo, adora mulher.” Brasil e no exterior, escondia-se uma Essa ideia de que você bebe porque tem um Não. Você adora a mulher que não fica dizendo: doença que só a família sabia: o sofrimento muito grande é coisa do passado. “Não beba.” Por isso eu ia para motel e ficava Por séculos, o alcoólatra era aquele morador de dois, três dias com prostituta, para beber. alcoolismo. No dia 25, às 19h, ele lança rua, cheio de apelidos pejorativos, como pé de na livraria Timbre o livro “Alcoolismo — A cana e pudim de cachaça. Acreditava-se que era Como foi o processo de recuperação? doença da negação” (Editora Lacre). Aos vício, defeito de caráter, falta de força de von- Minha família já tinha feito várias tentativas para tade ou loucura. Mas é uma dependência quí- eu ir ao AA, mas eu, médico, agnóstico, or- 83 anos, mais de 20 como alcoólatra, gulhoso e prepotente, me julgava acima de tudo. mica que afeta os componentes físico, mental e Claudio está há 14 sóbrio, desde que espiritual. Espiritualidade não é religiosidade, é E o alcoólatra, nessa fase, tem um egocentrismo entrou no Alcoólicos Anônimos (AA). uma força interna que nos mantém bem com brutal, só pensa nele. Eu não queria entender “Durante anos sofri e me destruí, destruí nós mesmos. E há uma herança genética. Eu que é uma doença que nos faz iguais. No AA, tinha avô, tio, irmão, primo alcoólatras. você vê juiz ao lado de rapaz de 17 anos que minha família, minha profissão e cheguei roubou carro para o tráfico. Eu vivia trancado à solidão extrema e à completa Como o senhor conciliava a medicina e o álcool? no quarto, sem tomar banho, bebendo vodca. desmoralização. Estou me expondo muito Procurava não beber na véspera de cirurgia. Até que meu filho disse: “Papai, vou te dar uma Meu amor pela Medicina era tão grande que última chance. Tome um banho e venha co- com o livro, mas o benefício que ele pode suplantava a vontade de beber. Nunca entrei migo.” Não sei por que obedeci. Era dia 11 de trazer para quem é alcoólatra e ainda não num centro cirúrgico bêbado. Um dia, com o novembro de 1997. Tinha 68 anos e estou sóbrio se identificou com a doença compensa a paciente já na mesa de cirurgia, liguei para meu desde então. Tenho uma gratidão eterna pelo quebra do anonimato.” assistente e disse que não tinha condições. Ele AA. Perdi muito tempo bebendo minha vida. Blog do colunista: oglobo.globo.com/rio/ancelmo/dizventura Twitter: twitter.com/dizventura Email:mventura@oglobo.com.br