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INTRODUÇÃO


                                  I-O     TEMA

      Na série dos três diálogos que documentam a evolução de uma
teoria platónica do amor, O Banquete ocupa um lugar central e é talvez
a obra onde o conceito de amor se liga mais conscientemente a uma
experiência existencial concreta. O primeiro destes, o Lisis, não passa
ainda de uma indefinida tentativa (aparentemente frustrada) de identifi-
car philia t= eras) com o desejo do Bem I; essa tentativa só adquire
significado preciso n'O Banquete, quando, ao analisar as causas de eras
e os seus efeitos, Platão reconhece a raiz puramente humana donde
parte: o amor ao Bem não é senão uma consequência do instinto de
imortalidade que os homens vivem em maior ou menor dimensão, e
 em esperança de o satisfazer, o seu amor pelo Bem não teria qualquer
realidade.



      1 Sobre este carácter antecipatório do Lisis cf. FRIEDLÂNDER lI, pp. 101-104

e F. OLIVEIRA, Platão. Lisis, esp. 39-44.
      O ponto de referência fundamental sobre o elo de ligação entre o Lisis, o
Banquete e o Fedro é ainda La théorie platonicienne de I' amour de L. ROBIN
 1900) - sem prejuízo de outros contributos posteriores, entre os quais os de
Th. GOULD, Platonic Love (1963), de K. BÜCHNER, Eros und Sein (1965), de
 -. BRES, La psychologie de Platon, e, mais recentemente, de A.W. PRICE, Love
    Friendship in Plato and Aristotle (1989).


                                         9
Será incompleto, pois, acreditar num puro idealismo platónico; o
amor ao objecto «ideal», quer se chame Bem, quer se chame Belo, ou
 implesmente eidos (como no Fedro), supõe igualmente um jogo de
forças reais, uma tensão que reparte o homem entre o que é e o que
pretende ser e, nesse aspecto, a experiência de amor platónico é idêntica
à de tantos outros homens que lutam por uma certa espécie de transcen-
dência. O Banquete situa-se precisamente no ponto em que tal experiên-
cia se revela mais próxima dos homens, não só pela objectividade de
uma análise que os estudos de Freud vieram confirmar 2, mas igual-
mente pela valorização do elemento afectivo, melhor dizendo, erótico,
que ainda no F edro se reconhecerá essencial. A partir do F edro, é certo,
a importância do amor decai gradualmente, à medida que uma visão
intelectualista da vida se sobrepõe na filosofia platónica; mas o próprio
facto de recorrer ainda à linguagem do amor, seja mesmo como
metáfora, significa que Platão não esqueceu de todo o alcance e a
profundidade dessa experiência e que, embora transformada, ela conti-
nua, de uma forma ou outra, unida à sua filosofia 3.


  II -   O SYMPOSION E A SUA PROJECÇÃO SOCIAL E LITERÁRIA

     O Banquete de Platão, tal como o de Xenofonte (onde igualmente
Sócrates é a principal personagem), testemunha, no século IV a.c., o
desenvolvimento de um género literário, denominado «simpótico»,
cujas origens remontam talvez ao século V a.C. Uma primeira observa-
ção que se impõe é definir o que para os Atenienses significava um
symposion: esta prática compreendia, com efeito, duas partes, à seme-
lhança dos modernos banquetes - o deipnos, «jantar», e o potos,



       2 Embora, como realça F.M. CORNFORD         (<<The Doctrine of Eros in Plato's
Symposium», p. 78, secundado por Th. GOULD, op.cit., pp. 13-15), Platão parta de
pressupostos inversos aos de Freud: a sexualidade humana como tal não é a fonte de
todo o agir humano, mas apenas uma das formas de concretização de um impulso
mais vasto a que caberá, na realidade, a designação de eros - a aspiração ao Bem e à
imortalidade (vide 205a-e). O que não impede a existência de importantes pontos de
contacto entre as duas doutrinas, como aliás CORNFORD e GOULD reconhecem,
em particular no que poderia chamar-se «uma teoria de sublimação platónica». Essa
confluência está na base de vários estudos recentes de teor psicanalítico sobre a obra
platónica, de que é exemplo a obra já citada de Y. BRES.
       3 Cf. Y. BRES, op.cit., pp. 269-273.




                                          10
bebida» -, contituindo a última o symposion propriamente dito, isto
é, o momento em que os convivas se organizavam para beber e esco-
lhiam centros de interesse para ocupar o tempo. Escapa-nos, porém, na
tradução de um termo como banquete, o valor educativo e o estímulo
  ultural que presidiam a este género de reuniões e explicam desde cedo
a ua integração na literatura. Os diálogos de Platão e Xenofonte são, a
esse respeito, um documento de extraordinário interesse para nós, pois a
eles devemos sobretudo a descrição pormenorizada dos costumes e
regras a que os symposia obedeciam 4.
      Sabe-se que a passagem do jantar à bebida era acompanhada de
libações, preces e cânticos; seguidamente, fixava-se um programa,
estabelecendo-se não só o modo como beber, mas também os assuntos
que regulariam a conversação; um presidente velava pela execução do
programa - papel que neste diálogo será primeiro desempenhado por
Fedro, «o pai do assunto», e mais tarde por Alcibíades. Por outro lado,
era costume o dono da casa proporcionar aos seus hóspedes espec-
táculos variados e divertidos em que intervinham a tocadora de flauta, a
dançarina, ou mesmo uma companhia de artistas, como sucede em
Xenofonte. O ambiente geral caracterizava-se pela boa disposição e
liberdade, não raro terminando em orgia.
      Note-se que, no Banquete de Platão, a tocadora de flauta é despe-
dida após o jantar e se aceita a proposta de beber moderadamente, o que
parece não corresponder bem ao uso dos banquetes, como Alcibíades
virá demonstrar. Mas a razão é plausível: os convivas já no dia anterior
se tinham reunido e estavam, pois, saciados, tanto de bebidas como de
divertimentos, pode supor-se. As circunstâncias são, neste aspecto,
diferentes das que Xenofonte nos apresenta, e não se estranha o
ambiente ordeiro e sério em que a reunião decorre, até à aparição de
Alcibíades. Platão antecipa, nesta primeira parte do diálogo, uma ima-



      4 Sobre a função social e educativa     que os gregos atribuíam aos banquetes e
    ua associação tradicional a eros (particularmente         ao eros masculino), bem
documentada na lírica arcaica, podem ver-se as breves mas valiosas páginas consa-
_ das ao tema por W. JAEGER, Paideia, pp. 670-677. Em ROEIN, pp. XII-XVIII,
encontra-se coligida a principal informação dos autores antigos no que respeita às
normas que habitualmente regiam os banquetes. O contributo mais recente sobre os
aspectos rituais, educativos, políticos e artísticos, ligados aos symposia, bem como o
_ blema das origens e da diversidade de paradigmas temporais e geográficos, é o
conjunto de estudos reunidos em Sympotica. A Symposium on Symposion, ed. by O.
_ amA Y (1990).


                                          11
gem dos tais banquetes organizados a que se dedica grande parte dos
livros I e 11das Leis: as «normas simpóticas» (671c) são uma tentativa
de associar a alegria do thiasos dionisíaco à ordem e ao rigor apolíneo,
criando o clima próprio no qual poderão desenvolver-se os belos discur-
sos e a emulação 'para a verdade. Essa tentativa, aliás, não foi apenas
teórica; a realização de banquetes estava prevista na legislação da
Academia e sabe-se que, pelo menos alguns séculos após a morte de
Platão, ainda se comemorava com um symposion a data do seu ani-
versário -7 de Novembro 5.



       5 Tem interesse  referir que, exactamente mil e duzentos anos depois de esse
costume se ter perdido, com a retirada de Porfírio (séc, III) de Alexandria, Lourenço
de Médicis, o grande impulsionador do movimento neoplatónico da Academia Flo-
rentina, resolveu reatar a antiga tradição, promovendo, em 7 de Novembro de 1468, a
realização de um banquete, a fim de comemorar a data do nascimento (e também da
morte) de Platão. Para esse efeito, foi nomeado anfitrião Francisco Bandini, que
reuniu, em Careggi, nove convivas «platónicos», cinco dos quais, após a leitura
integral do Banquete, «representaram» as personagens do diálogo, retomando e
desenvolvendo os tópicos de cada discurso.
       Dessa reunião parece ter surgido um dos mais importantes e extensos comen-
tários à obra, o De Amare, de Marsílio Ficino, composto provavelmente entre 1470 e
 1474. Juntamente com a Theologia Platonica, do mesmo autor, e a sua versão latina
do Corpus Platonicum, o De Amare constitui um marco fundamental na história do
movimento renascentista; é sobretudo através desta obra que o neoplatonismo se
integra na cultura europeia - até aí mais ou menos marcada pela influência de
Aristóteles e seus comentadores -, operando a característica fusão do pensamento
antigo com a doutrina cristã. O grande número de edições que em toda a Europa se
fizeram no século XVI, bem como os diálogos sobre o amor e obras de teor análogo
que se lhe seguiram, de fonte indiscutivelmente ficiniana (entre elas contam-se os
Dialoghi d' Amore, de Leão Hebreu, judeu português radicado em Itália), prova bem a
larga repercussão que a obra teve e de que, entre nós, a lírica camoniana é um
exemplo significativo.
       Para um estudo sobre o neoplatonismo de Ficino, veja-se a introdução ao
Commentaire SUl' le Banquet de Platon de Marsile Ficin, por Raymond Marcel, Paris,
1956; sobre Leão Hebreu, consulte-se a obra de Joaquim de Carvalho, Leão Hebreu,
Filósofo. Para a História do Platonismo no Renascimento, e o estudo de Pina Martins
«Livros Quinhentistas sobre o Amor», Arquivos do Centro Cultural Português I
(1969). Quanto ao problema da influência (directa ou indirecta) de Marsílio Ficino na
lírica de Camões, veja-se Pina Martins, «Camões et Ia Pensée platonicienne de Ia
Renaissance», in Visages de Luís de Camões, Paris, 1972.


                                         12
A darmos crédito à tradição, que afirma ter sido O Banquete
expressamente composto para festejar a fundação da Academia, em
   ~ a. C.; 6 teremos de ver nesta obra a primeira manifestação de um
   grama cultural e educativo que sobreviveu à própria Academia.


             III -   ESTRUTURA       DRAMÁTICA        ENARRATIVA

.4.) Prólogo, apresentação de personagens e interlúdios

      Muitas vezes se tem insistido no carácter eminentemente
dramático dos diálogos platónicos: a escolha dos cenários, a caracteri-
zação de personagens, etc., tudo isso revela, de facto, em Platão uma
tendência inata para o drama, que a influência de Sócrates terá desviado
no sentido da filosofia. A este respeito, O Banquete pode considerar-se
a obra mais representativa: nela não apenas entram em jogo elementos
dramáticos, mas todo o contexto lembra em si um drama, com a sua
estruturação bem definida em prólogo, episódios (ligados por inter-
lúdios) e epílogo 7. O tema, por outro lado, presta-se a uma maior
variedade cénica do que no conjunto dos outros diálogos, decorrendo
toda a acção em volta do banquete oferecido pelo tragediógrafo Ágaton
quando saiu vencedor com a sua primeira peça (416 a. C.).


       6 O estabelecimento  desta data aproximada baseia-se em especial na interpreta-
ção de duas referências históricas contidas n'O Banquete - a alusão ao domínio dos
Iónios pelos Bárbaros (vide 182a), assegurado pela Paz do Rei, de 387/6 a. C., e à
destruição de uma cidade arcádia (certamente Mantineia) em 385 a. C. Teríamos
assim dois anacronismos abruptos relativamente à data dramática da obra (416 a.Ci),
o que não está fora da dimensão irónica que Platão cultiva nos seus diálogos (para
outros exemplos, cf. W.K.C. GUTHRIE IV, p. 52). A análise de outros aspectos de
conteúdo não deixa de pesar nesta interpretação dos dados mencionados: tanto
O Banquete como o Fédon (provavelmente os primeiros do conjunto dos diálogos
chamados do «período rnédio»), parecem reflectir, embora em formas divergentes,
um eco muito próximo da primeira viagem de Platão à Sicília (387 a.Ci); no caso do
O Banquete, a afeição apaixonada que o jovem Díon, cunhado do tirano Dionísio de
Siracusa, terá nele despertado. Para uma discussão mais alargada, veja-se BURY,
pp. LXVI-LXVIII; ROBIN, pp. VIII-XII; DOVER, Phronesis 10 (1965) 1-20.
      7 A confluência    de vários aspectos da linguagem e da realização dramática
(quer da tragédia quer da comédia) nos diálogos platónicos encontra-se modelar-
mente documentada em D. TARRANT, Journal of Classical Studies 85, pp. 82 sqq.
Na mesma linha de orientação pode citar-se, entre outros, o persuasivo ensaio de J.
RENDALL, Plato. Dramatist ofthe Life ofthe Reason.


                                         13
o prólogo põe-nos perante uma elaborada forma de apresentação,
 que faz derivar de uma conversa entre amigos o enredo dramático da
 obra. Apolodoro, um dos discípulos de Sócrates, é a principal persona-
 gem do diálogo inicial, assumindo o papel de narrador da «tal reunião»
 que tanto parece interessar os amigos, e onde Sócrates e outras persona-
 gens se teriam distinguido com os seus discursos sobre o amor. A nar-
 rativa não é, porém, directa; baseia-se numa anterior, feita por outro
 discípulo, Aristodemo, que assistira a essa mesma reunião. Esta cir-
 cunstância permite, sem quebra de verosimilhança, limitar a narração
 aos aspectos essenciais, àquilo que, no dizer de Apolodoro, «pareceu
 mais digno de menção», ao mesmo tempo que se salvaguarda a veraci-
 dade das informações recebidas com o testemunho de que o próprio
 Sócrates as confirmara. Mas não foi apenas uma necessidade artística
 de seleccionar que determinou esta original e complexa introdução à
 obra. O espaço de tempo que medeia entre a realização fictícia do
 banquete (416 a. c.) e a narrativa de Apolodoro - já próxima, tanto
 quanto podemos supô-lo, do ano em que Sócrates foi condenado
 (399 a. C.) - cria uma intencional sobreposição de planos, passado e
 presente, que condensam, no ambiente fácil e despreocupado da narra-
 tiva, a tragédia da sua condenação 8. Apolodoro, o discípulo que no
Fédon se mostra mais visivelmente afectado com a morte do Mestre 9, é
a personagem ideal para criar essa atmosfera própria e sugerir, na quase
fanática devoção que demonstra pelas «palavras da filosofia» e em
especial por Sócrates, os dois objectivos essenciais da obra: o elogio da
filosofia e a reabilitação do Mestre que dedicou toda a sua vida ao
serviço dos Atenienses, ensinando-lhes o que era a virtude.
      O prólogo reparte-se ainda por mais dois momentos, estes já
incluídos na narrativa de Aristodemo - o primeiro, compreendendo o
encontro de Aristodemo com Sócrates a caminho da casa de Ágaton, e o
segundo, os episódios que antecedem a realização dos discursos. Desse
discípulo, que Apolodoro refere como um «homem baixito, sempre
descalço», pouco mais conhecemos, além da sua apaixonada dedicação
pelo Mestre, que a narrativa do diálogo corrobora. Quanto a Sócrates,
desde o encontro com Aristodemo se desenham os principais traços da
sua caracterização: o desprezo pelo bem-estar material, os «êxtases» a


     8  Cf. FRIEDLÃNDER III, pp. 3-5.
     9  Apolodoro «chora como uma criança» e soita gritos tais que é necessário
Sócrates, já depois de ter ingerido o veneno, mandá-Ia calar (1 17d).


                                       14
que A1cibíades aludirá mais demoradamente e sobretudo a típica eiro-
 neia ou «fingimento», que os interlocutores tomam por insolência, são
 aspectos tão evidentes ao longo do diálogo que não se torna necessário
 explicá-Ios.
      O imprevisto domina todo o movimento cénico, por vezes com
 nota acentuadamente cómica. Assim, o convite endereçado por
 Sócrates a Aristodemo, a surpresa deste quando chega a casa de Ágaton
e verifica que Sócrates se deixara ficar para trás, o aparecimento deste,
já a meio do jantar, e finalmente o «processo de sabedoria» que Ágaton
lhe instàura, invocando o juízo de Dioniso (deus do vinho) - tudo isso
prepara o ambiente de fantasia e boa disposição em que os discursos
irão suceder-se. Como figuras centrais sobressaem, nesta descrição,
Ágaton e Sócrates. O confronto entre ambos tem função específica no
diálogo: no primeiro, é o ideal aristocrático que se define por excelên-
cia, um conceito de arete, «mérito», cujo valor se mede pelos aplausos
da multidão e pelo triunfo social; no segundo, é o ideal da arete autên-
tica que se impõe por si, sem necessitar do apoio do vulgo. A sentença
de Dioniso só poderá, pois, decidir-se em favor de Sócrates, e é através
de A1cibíades, já ébrio, que tal sentença se confirma (215d-e).
      O momento escolhido para apresentar as restantes personagens
(à excepção de Alcibíades) é a altura em que, terminado o jantar, os
convivas põem à discussão a norma que deverá adoptar-se na bebida.
Estas personagens, aliás históricas e bem conhecidas no meio ateniense,
são já familiares dos diálogos platónicos. Fedro, o primeiro orador,
figura no Protágoras (315c) como discípulo de Hípias, e dá o nome a
um dos principais diálogos de Platão, intervindo nele, à semelhança do
que aqui acontece, como «pai do assunto»; característico é o gosto pela
mitologia e pela retórica, e ainda o cuidado pela saúde, que n'O Ban-
quete se traduz pela fácil adesão à proposta de beber moderadamente.
Sobre Pausânias, em compensação, poucos mais dados temos, além das
referências do Protágoras e de Xenofonte (Banquete VIII, 32); sabe-se
que era erastes, «amante», do poeta Ágaton e um dos mais convictos
defensores da pederastia. Erixímaco, o médico, que Platão nomeia ao
lado de Fedro, no Protágoras, entre os ouvintes de Hípias, representa
aqui o ponto de vista da medicina; as suas intervenções demonstram
uma preocução típica de moderação, não isenta de certa pedantaria. Em
excelente contraste com ele surge Aristófanes, o «servidor de Dioniso e
Afrodite», no dizer de Sócrates; a vivacidade e ironia do comediógrafo,
que tanto visam ridicularizar os preceitos solenes de Erixímaco como a
pretensa superioridade do «amor viril» entre Ágaton e Pausânias, con-

                                   15
densam o elemento humorístico da primeira parte, aliviando a monoto-
nia dos primeiros discursos. Nada faz lembrar o antigo rancor que as
alusões do Fédon (70b-c) e sobretudo da Apologia (l8d, 19c) teste-
munham, dando Aristófanes como um dos principais responsáveis pela
condenação de Sócrates: e, se não fosse o conhecimento das obras, a sua
presença aqui nada teria de estranho para nós.

      Um aspecto moderno desta caracterização é ser o diálogo a revelar
por si as personagens, prescindindo de qualquer apresentação formal e
orientando todo o movimento cénico; o objectivo da conversa encami-
nha-se naturalmente, desde a resolução de «beber consoante a vontade»
à proposta de elogio do Amor, feita por Erixímaco em nome de Fedro.
O mesmo efeito artístico distingue os interlúdios, ou seja, as pausas que
estabelecem transição entre os discursos. O primeiro é assinalado pelo
episódio cómico dos «soluços», que obrigam Aristófanes a recorrer ao
auxílio do médico e a pedir-lhe que fale na sua vez; daí se origina uma
troca de gracejos que se continua no interlúdio seguinte e quebra a
sensação de fastio que a longa exposição de Pausânias deixara nos
ouvintes. O terceiro e o quarto interlúdios retomam o «debate sobre a
sabedoria», iniciado no prólogo entre Ágaton e Sócrates, com nítida
vantagem deste último; a oposição entre aparência e verdade desempe-
nha um papel fundamental em ambos, mas sobretudo no quarto, onde se
oferece uma crítica global dos discursos precedentes, preparando ter-
reno para uma nova perspectiva de amor, mais verdadeira, que Sócrates
virá revelar. O quinto interlúdio é o mais longo e artisticamente o mais
importante, pois introduz uma nova personagem - Alcibíades - e
com ela uma completa alteração das normas antes estabelecidas: depois
da exposição densamente abstracta de Sócrates, a vinda imprevista de
Alcibíades marca o regresso ao real, à atmosfera própria do symposion,
onde a liberdade de expressão e a «verdade» do vinho triunfam sobre
todas as convenções.
     A coroação de Ágaton, logo suplantada pela coroação de Sócrates
(o mesmo de quem, no entanto, Alcibíades se diz vítima ...), confere ao
episódio um simbolismo muito especial, que só encontra correspondên-
cia quando, mais adiante, Alcibíades se propõe substituir o elogio a
Eros pelo elogio de Sócrates. Num e noutro caso, é o triunfo da filosofia
que se representa e, num aspecto muito particular, a reabilitação de
Sócrates, sobre quem os Atenienses fizeram recair a responsabilidade
dos desastres políticos de Alcibíades.

                                   16
Os discursos

        ~Tãonos alongaremos muito na análise dos discursos, cujas princi-
_   z;  dificuldades de interpretação foram anotadas.
        O discurso de Fedro caracteriza-se pela preocupação de seguir um
       o bem definido, de que os tópicos essenciais são a natureza do deus
 E os) e os seus benefícios. As citações, a evocação e o tratamento arbi-
   , -o dos mitos são lugares-comuns da retórica do tempo, que curiosa-
       te vemos aqui associados a uma concepção de vida profundamente
      uída dos ideais homéricos: para Fedro, o Amor não representa
     nas um símbolo de antiguidade, mas ainda o estímulo mais eficaz
         conduzir os homens à virtude, inspirando-lhes a coragem de
realizar belos feitos e oferecer a vida, como nos exemplos apontados de
         te e Aquiles.
        Essa perspectiva idealista é compensada no discurso do orador
seguinte, Pausânias, que dá propriamente início a uma discussão moral
     tema com a definição de duas espécies de amor: celeste (o amor
      re) e popular (o amor vil). Reproduzindo um conceito tradicional
       círculos aristocráticos atenientes, Pausânias distingue a pederastia
   mo a forma mais nobre do amor, o «amor isento de excesso», que não
rem outro fim senão aperfeiçoar a alma do amado, educando-o no seu
   ai lato sentido 10. Alguns pontos de contacto com a doutrina plató-
  - a dos primeiros diálogos são a tal ponto sensíveis que se tomou
     sível supor, por parte de Platão, um propósito de relembrar aqui
 -elhas teorias; mas, apesar da subtileza dos raciocínios (aliás, não
- entos de paradoxos e contradições, ao gosto da época), o relativismo
   oral, a estreita subordinação às leis e às normas sociais viciam toda a
argumentação, mostrando à evidência a superficialidade dos princípios



       10 Sobre o enraizamento da pederastia na mentalidade grega e em particular nos
círculos aristocráticos, vide M.H.E. MEIER e L.R. de POGEY CASTRIES, L' his-
toire de l' amour grec e K. DOVER, Greek Homossexuality (um breve resumo, com
incidência sobretudo na linguagem erótica de Platão, encontra-se no estudo intro-
dutório deste último autor em Plato. Symposium, pp. 3-5). J. BREMMER, um dos
   tudiosos que, juntamente com DOVER, mais se tem consagrado a este tema, aduz
uma perspectiva interessante (talvez contestável) da pederastia como sobrevivência
de antigos ritos de iniciação sexual masculina, praticados pelos Indoeuropeus: vide
Arethusa 13, pp. 279-298 e a comunicação «Adolescents, Symposion and Paede-
rasty» em Sympotica, pp. 135-148.


                                         17
.-
                                                                             .




 que a regem e a profunda distância moral que separa esta noção de
 «amor pelos jovens» daquela que Platão defende, nomeadamente no
Eutidemo, e retoma no Banquete e no Fedro.
      Mantendo a mesma linha de orientação marcada por Pausânias -
 a distinção entre o bom e o mau Eras -, Erixímaco traz uma nova
 dimensão do amor como princípio que se estende a todo o Universo. É a
 medicina que serve de ponto de partida para demonstrar em tudo a
existência de um duplo Eros, concretizado ora na harmonia ora no
desequilíbrio dos elementos físicos que se opõem, e cuja conciliação se
toma possível mediante uma techne, ou seja, o conhecimento específico
de uma arte. Alcméon, com a sua teoria dos humores, Empédocles, com
a sua visão do mundo, altemadamente regido pela Amizade e pela
Discórdia, e mesmo Heraclito, apesar da inconsistente crítica que lhe é
feita, condicionam o fundamento ecléctico do discurso, onde sobressai,
no entanto, como nota original, a necessidade de uma techne e um
conceito de moderação que, para além da medicina, se alarga aos mais
vastos domínios, desde a música à adivinhação.
      Com Aristófanes, penetramos numa esfera de sonho e idealidade
onde a dynamis, «poder», do amor se liberta de todas as suas implica-
ções sociais ou cosmológicas, para encontrar na humana physis a sua
origem remota e verdadeira. Nesta «comédia em miniatura» 11 se
exprime a mais original e poética definição de amor como «saudade de
um antigo estado» que os seres actuais, reduzidos a metades, em vão
tentam refazer. O mito, pelo qual se representa a natureza humana e
suas mutações, não é apenas uma obra-prima de invenção e fantasia
                       a
cómica, mas ainda melhor prova de um raro talento para imitar estilos
e caracteres que Platão pôs ao serviço da sua arte; nada há neste discurso
que se não revele marcadamente aristofânico, desde a liberdade dos
termos e imagens, quase a tender para um obsceno típico de comédia, à
intenção satírica que transparece na paródia da evolução de sexos, e, em
especial, no pretenso elogio do «amor viril». Todavia, a flagrante
impressão de estarmos escutando o autor das comédias não apaga,
numa análise mais profunda, o que há também de genuinamente
platónico no discurso: a aparição de Hefesto, o deus ferreiro, com a sua
promessa de um «além feliz» aos verdadeiros amantes, identifica essa
saudade do todo com o místico anseio de um mundo ideal onde a alma
pré-natal existira e que, graças ao amor, poderá de novo alcançar.


     11   A expressão é de Bury, p. XXX.


                                           18
em a força dramática de Aristófanes, o discurso de Ágaton traduz
     esmo propósito de evasão ao real através do mito e da criação
     .ca. Com ele regressamos ao conceito de Eras divindade, que o
       r exalta acima dos outros deuses pela sua «beleza» e «virtude».
      umeração das qualidades físicas e morais do deus constituem o
       tivo dominante do discurso, onde não é difícil adivinhar um
    -   3 do intuito de auto-elogio: nessa «delicadeza» e «boa aparência»
  Eros, na excelência dos seus dotes poéticos, vemos insinuar-se uma
    gem idealizada do próprio Ágaton, em irónica conformidade com o
      o satírico que Aristófanes dele nos deixou nas Mulheres Que
-_ 'ebram as Tesmofárias (vide especialmente v. 192). Apesar da
   eza formal da composição e da justeza de um plano que adiante
        es louvará, as ideias revelam-se pobres de conteúdo, sem que o
    r pareça interessadó em criar mais do que uma simples sugestão de
      e imagens, artisticamente combinados, ao estilo de Górgias.

        oquarto interlúdio inicia um novo acto no drama, elevando as
        ctivas «comuns» do amor, que até aí víramos representadas, ao
     o da filosofia. Com o seu discurso, originalmente marcado pelo
      tivo da verdade, Sócrates não apenas se propõe revelar eras na sua
      deira natureza, mas ainda demonstrar como esse conhecimento se
- damenta numa procura. O diálogo com Ágaton, e do mesmo modo a
       ta conversa entra Sócrates e Diotima, não tem, pois, outra finali-
       senão definir as bases em que essa procura deverá assentar,
      ando, por outro lado, a síntese do método dialéctico e do expositi-
  . que no F edro se discute mais demoradamente 12. A noção de Eras
    o relativo a algo, como desejo de (epithymia), que tende à posse das


                 12 Fedro 27 Ic-272b. É difícil determinar a porção de sinceridade ou de jogo

            ico que cabe a este protesto de Sócrates. M. STOCKES, p. ex., consegue basear
      .4 a ua análise do discurso na intencional refutação aos argumentos aduzidos por

      - n (Pia to ,s Socratic Conversations, pp. 114-182; cf. também a valorização, em
            os de «verdade», dos cinco primeiros discursos, proposta por Y. BRES, op. cit.,
    • -45-246). Mas, apesar de tudo o que possa haver de erístico e dramático no
                   o apresentado pela «personagem» Sócrates, não é menos certo, como nota
...3L..<c.<...1-.J' rs., que todo ele anuncia «um novo tipo de comunicação filosófica» (Platon
         , die Schriftlichkeit der Philosophie, p. 257). Sobre esta mudança de orientação
             diálogos onde se expande a teoria das Formas, e o sentido construtivo das
             lusões que procura atingir, aparentemente em contraste com o carácter refutativo
       - diálogos elêncticos, vide lTRINDADE SANTOS, O paradigma identitativo na
             epção platónica do saber, pp. 216-218.


                                             19
«coisas belas e boas», vai-se fixando, através do processo dialéctico, no
 conceito de «intermediário» (ou, miticamente falando, de um daimon,
 «génio») - elo de ligação entre o humano e o divino. Essa revelação
 exprime-se, simbolicamente, através do discurso de uma lendária
profetisa, Diotima de Mantineia, o que não apenas permite a Sócrates
 salvaguardar a. habitual profissão de ignorância como ainda sugerir a
 crença numa inspiração divina, que assiste à filosofia.
      Desenvolvendo-se ao longo de uma conversa com um Sócrates
jovem, que aqui ironicamente assume o papel de discípulo, a exposição
de Diotirna orienta-se segundo o esquema antes definido por Ágaton: a
natureza de Eros e os seus efeitos sobre os homens. A realidade
contraditória de Amor anuncia-se com o mito do seu nascimento, onde
 simultaneamente Platão atinge uma das mais belas e sugestivas criações
artísticas - Eros, filho de Penia, a Pobreza, e de Poros, o deus Enge-
nho, resume em si as qualidades antitéticas que opõem os seus progeni-
tores: é por um lado pobre, o que equivale a dizer indigente e ignorante;
por outro lado é rico, herdando do pai a sabedoria e o engenho que o
levam a superar o estado natural de Pobreza, sua mãe; ainda, o facto de
ser concebido no dia do nascimento de Afrodite determina a sua
natureza essencial como um «apaixonado do Belo». Ao longo desta
personificação vemos significativamente confluir em Eros aqueles
mesmos traços satíricos que criaram em volta de Sócrates uma aura de
excentricidade, e fizeram dele uma figura digna de comédia, como
acontece nas Nuvens: a esse Eros descalço, mal pronto, dormindo ao ar
livre e ocupando todo o tempo em filosofar, não falta sequer o epíteto de
sophistes,«sofista», que ali é uma grave acusação, mas, neste contexto,
simples jogo humorístico a partir do sentido originário de sophistes
t= sophos, «sábio»).
      Com a análise dos efeitos de eros sobre os homens, retoma-se o
processo dialéctico, antes interrompido. Precisando a noção de amor,
cuja relação com o Belo e o Bem vagamente se apontara, Diotima fará
ver, na raiz desse impulso, um instinto de Imortalidade, comum à
espécie mortal, que apenas o «artifício» da geração toma possível
satisfazer. Belo e Bem, nesta mais larga definição, representam, não já
objecto de «posse», mas sim o meio em que eros actua, permitindo que
o indivíduo se perpetue, física ou espiritualmente, em outros seres.
O desenvolvimento é determinado por uma gradual aproximação de
ambos os planos, o concreto e o simbólico, subentendendo «geração
pelo corpo» e «geração pelo espírito» manifestações divergentes, e
todavia idênticas, do mesmo amor pela Imortalidade. Com a nova (e
última) definição de eros - o desejo de gerar no Belo -, atingimos o

                                   20
~~C       deste processo, ao longo do qual vemos sobressair, acima dos
1IIc::::::e.::lS comuns, que procuram pelo corpo a realização desse instinto,
"codes que são fecundos «segundo o espírito», gerando e dando à luz
"'_-'-O mais imortais»         13.

            _-ote-se, porém, que, até chegarmos aos chamados «mistérios
 1íi:::::::OiS>~ a relação do ser vivo à Imortalidade se compreende sempre
 ~:.::!1~1ll0S de participação, excluindo a possibilidade de posse: sobrevi-
 ",~:::ja pela espécie, pela fama ou pelo pensamento noutro indivíduo,
      - são mais do que formas de maior ou menor participação, sem que
 IIz~nn suficientes para tomar o homem, por si, imortal. Será preciso
 Icr;;::;:arrnos nos mistérios últimos, cuja natureza revelada Diotima ex-
.~s.çlITlente        acentua, para que a verdadeira via nos seja indicada. Em
~s::::eii:aligação com a doutrina do Fédon, da Républica e do Fedro, a
          - alta forma de Imortalidade anuncia-se aqui como resultado de uma
.1!c;a~alascensão, que orienta a alma do Belo sensível ao Belo meta-
li:.s:.:u e ao Bem, através da educação filosófica 14. Na prática de «amar
.JlIiX~[lllente os jovens» se distingue o estímulo vital deste processo
.~:::::a::an·vo,em que se recortam duas fases fundamentais: a de discípulo e
       - mestre. Ao longo delas, o filósofo vai apreendendo, pelo amor, a
         eza dos corpos, depois, a beleza das almas e dos conhecimentos,
   ..op.c-:-i·'<>ndo-se
                      a cada passo de um «belo objecto» para outro, onde lhe
        :..possível gerar e produzir novos logoi, sucessivamente profundos e
         - ecidos, pelos quais a sua ânsia de Imortalidade se firma. É a
         elação do Belo - o ser divino, simples e imutável - que culmina
           dialéctica ascendente do sensível ao inteligível. Pela sua contem-
         ~ão e posse, o filósofo não só alcança gerar a verdadeira virtude, mas
         .... assegura uma imortalidade que lhe advém como prémio do seu
            ço 15.


           - Os sucessivos deslizes e consequentes mudanças de definição são analisados
         ". GOLDSCHMIDT, Les dialogues de Platon, pp. 225-234.
           - À imagem do que sucede na República, esta dialéctica ascendente, assumida
       ::ém como processo educativo, tem um suporte não apenas ético e místico, como
                   Sobre as visíveis influências de Parménides na concepção da Forma
  'T"'_''-<I.ll.l·c,o.
        - Oca (eidos, idea) e sua relação com o conhecimento, veja-se J. TRINDADE
    - -OS, op. cit., esp. 241-255.
           " É neste fecho do discurso de Sócrates que grande número de comentadores
             a ponte para a doutrina da imortalidade pessoal, tal como os diálogos afins ao
             e a apresentam (nomeadamente o Fédon, a República e o Fedro). Mas, com
       _"BE (El pensamiento de Platon, pp. 230-231) não nos parece que tal doutrina
    • reconhecível no Banquete: a alma não é por natureza imortal, apenas «participa»


                                             21
A esta perspectiva ideal de eras como filosofia vem sobrepor-se
uma visão mais humana, que A1cibíades logo de início insinua, ao
substituir o elogio ao deus pelo elogio a Sócrates. Cómico e verdade,
sustidos pela emoção do vinho, entrelaçam-se de maneira incon-
fundível nesta confissão pessoal, onde o propósito de vingança se
revela contraditoriamente como louvor ao homem «divino» (daimo-
nios), que soube entender, na sua plena dimensão espiritual, o amor
pelos jovens. Não obstante a «desordem» das ideias, reconhece-se um
plano bem definido: todo o discurso se baseia no contraste entre o
exterior de Sileno - a sua insolência (hybris), o excesso de tempera-
mento erótico - e o interior, onde se descobre uma inata sabedoria.
Através desta caracterização, que deliberadamente contrasta um novo
perfil satírico com o que Aristófanes havia desenhado nas Nuvens,
ressaltam, como nota profundamente pessoal, o domínio de si mesmo e
a eironeia, bem patentes na cena de sedução. Essa aparência não obsta,
porém, ao fascínio de uma superioridade moral que ainda, noutro
aspecto, fazia de Sócrates um ser único entre todos. As palavras de
A1cibíades testemunham até que ponto a «missão divina», que se refere
na Apologia, foi entendida por Sócrates, insinuando o erro de se ver
nele um corruptor da juventude e o responsável pelos actos políticos
desse discípulo, que expressamente afirma não ter querido seguir os
seus conselhos.


C) Epílogo

     Põe fim à série dos discursos um novo grupo de desordeiros, que
instaura desta vez a anarquia total. Aristófanes, Ágaton e Sócrates são


da imortalidade, com tudo o que de precário essa participação subentende. O que
será, pois, esta imortalidade do filósofo? No seguimento das premissas anteriores,
será difícil discordar da sua interpretação como «uma eternidade de espírito, oposta à
imortalidade individual» (e.g. Y. BRES, op.cit., p. 272). Sem procurarmos aqui uma
justificação para o desvio óbvio de uma das doutrinas platónicas mais insistente-
mente defendidas nos diálogos afins (e poderia sê-lo tão-só o papel dramático que o
par Sócrates/Diotima     desempenha neste contexto cénico ...) convirá lembrar as
próprias dificuldades que o conceito platónico de imortalidade pessoal levanta, na
sua frágil associação à teoria da metempsicose: vide a análise de L CROMBIE, An
Examination oi Plato's Doctrines I, pp.303-325,      esp.314; cf. a discussão deste
ponto na minha Introdução ao Fédon (Coimbra, Livraria Minerva,21988, pp. 22-24,
n.l).


                                          22
os únicos que ainda de madrugada se conservam acordados. Este último
tenta convencer os outros dois convivas de que «aquele que tem a arte
de poeta cómico tem igualmente a arte de poeta trágico» 16. E final-
mente ao romper da manhã, quando aqueles adormecem, Sócrates
afasta-se, acompanhado de Aristodemo, para o Liceu, e aí inicia um dia
igual a tantos outros, comprovando essa excepcional karteria, «resis-
tência», que o discurso de Alcibíades tão nitidamente evidenciara.
      O epílogo deixa-nos pois, como tema de meditação, um novo
conceito estético de tragédia e de comédia, cujo alcance só devidamente
se compreende associando o Banquete ao Fédon: a visão cómica
do herói, no primeiro dos dramas, completa-se na visão trágica do
segundo. E assim a mimesis, «imitação», que à luz da Républica não
passa de forma degradada do conhecimento, cópia de outras cópias
(597e-599a), readquire a sua dignidade e o seu valor educativo quando,
posta ao serviço da filosofia, se unifica nas representações distintas de
uma mesma realidade superior.




        16 Segundo R. ADRADOS,      Platão põe aqui de parte o seu conceito de drama
'como mimesis, «imitação» - conceito que levaria inevitavelmente a uma condena-
 ção idêntica à da República ou à defesa da imposição de uma censura, como nas Leis.
 Na esteira de KRÜGER, o paradoxo socrático explicar-se-ia por uma progressiva
 indistinção entre género cómico e género trágico, que a comparação entre os discur-
 sos de Aristófanes e de Ágaton evidenciaria. Esta dedução não parece, contudo,
 esclarecedora. Como ROBIN (p. VIII) creio que a chave mais provável do paradoxo
 estará no confronto entre o Fédon e o Banquete, obras que de facto se interligam
 «como uma tragédia e uma comédia, mas postas em cena, uma e outra, pela Filoso-
 fia». Breve, mas penetrante, é também a observação de C. J. ROWE em Plato,
 pp. 151-152: o que distingue o homem dotado de techne (<<arte»),é a sua «capacidade
 para os opostos». Tal como o homem verdadeiro e bom (agathos) do Hipias Menor é
 o que é capaz de fazer mal e mentir, assim também o poeta que sabe representar a
 face trágica da vida deve saber representar a sua face cómica.


                                        23
FIGURAS DO DIÁLOGO


A) do Prólogo:
   APOLODORO       UM DOS COMPANHEIROS


B) da Narrativa:

    ARlSTODEMO
    SÓCRATES
    ÁGATON
    FEDRO
    PAUSÂN!AS
    EroxíMAcO
     ARlSTÓFANES
     ALCIBÍADES
APOLODORO
      Quanto às informações que vocês pretendem, julgo que estou em                     r;_
boa forma para as dar... Ainda anteontem, por acaso, vinha eu de minha
casa, em Faléron, quando um conhecido meu me avistou de costas e me
interpelou de longe, em tom de gracejo: «Olha, o homem de Faléron!
Tu aí, Apolodoro ... E se esperasses por mim?»
      Eu parei e fiquei à espera.
      E vai ele: «Para te ser franco, Apolodoro, ainda há instantes que
andava à tua procura, pois desejava que me informasses do convívio
que reuniu Agaton, Sócrates, A1cibíades e todos os outros que estive-                     b
ram presentes no festim. Que espécie de discursos sobre o amor fizeram
eles? Houve já quem me contasse - um indivíduo que tinha, por sua
vez, ouvido uma narrativa a Fénix, filho de Filipe, e me assegurou de
que tu estavas também a par. Mas o certo é que não soube dizer-me nada
de jeito! Conta-me tu, portanto, já que és a pessoa mais indicada para
transmitir as palavras do teu amigo ... Mas antes, diz-me: assististe
também ao tal convívio ou não?»
      Comentei: «Estou a ver que esse teu narrador não te disse mesmo
                                                                                          c
nada de jeito, se pensas que o tal convívio de que me pedes informação
foi há tão pouco tempo que eu pudesse ter assistido ... »
      «Foi a ideia com que fiquei», confirmou ele.        ,
      «Como, Gláucon?» l exclamei. «Não sabes que Agaton já não
mora em Atenas há muitos anos e que, por minha parte, ainda não

     I Deve tratar-se aqui, tal como sucede com Fénix, filho de Filipe,      a seguir
mencionado, de uma personagem desconhecida ou mesmo imaginária: há quem
procure, no entanto, identificá-Ia com o irmão de Platão ou com o seu tio-avô. pai de
Cármides, ambos personagens familiares nos diálogos platónicos.


                                         27
decorreram três anos desde que comecei a andar com Sócrates e me
      esforço, em cada dia, por conhecer a fundo as suas palavras e os seus
173a actos? Antes, vogava por aí ao sabor da corrente, convicto, como-
     estava, de me ocupar de coisas úteis - e era mais digno de compaixão
     que ninguém! Precisamente como tu agora, que achas toda e qualquer
      actividade preferível à filosofia ...»
            «Vamos, não troces», atalhou ele, «e diz-me lá quando é que se
     deu esse convívio.»
            Esclareci então: «Foi quando Ágaton saiu vencedor com a sua
     primeira tragédia, éramos nós ainda crianças. Mais concretamente, foi
     no dia a seguir ao das celebrações que ele promoveu com os seus
     coreutas em acção de graças pela vitória.» 2
            «Então já deve ter sido há muito tempo!», comentou Gláucon.
     «Mas quem é que te fez a narrativa? Foi mesmo Sócrates?»
b          Repliquei: «Não, por Zeus! Foi o mesmo que a contou a Fénix, um
     tal Aristodemo da tribo cidateneia, um homem baixito, sempre des-
     calço ... Esse sim, assistiu ao convívio, como apaixonado que era de
     Sócrates - e, salvo erro, dos mais fervorosos à altura! Claro que
     depois não deixei de inquirir Sócrates sobre uns quantos pormenores da
     narrativa de Aristodemo e em todos eles recebi a confirmação do que
     lhe havia escutado.»
           «Vamos», incitou ele, «porque não ma contas a mim também?
     Fora de dúvida, a estrada que leva à cidade é tão própria para falar como
     para se ouvir enquanto se caminha ...»
           E assim lá fomos nós, estrada fora, ocupados neste tema de con-
c    versa, de modo que, como dizia de início, me encontro em boa forma.
     E, se vocês me requerem para fazer essa narrativa, é mesmo dever meu
     fazê-Ia: no que me diz respeito, sempre que se proporciona ocasião para
     conversar sobre filosofia, seja eu ou outro qualquer a falar, ninguém
     imagina a alegria que sinto, para além do proveito que delas espero
     tirar! Trate-se, porém, de outro género de conversas - sobretudo essas
     que vocês, homens ricos e negociantes, costumam ter - e eis-me
     invadido por um mal-estar profundo. Mais: tenho pena de vocês e dos
     vossos amigos, convictos, como estão, de se ocuparem de algo que
d
     valha a pena quando as vossas ocupações nada valem! De mim podem


             2 Era costume em Atenas o vencedor organizar festas em acção de graças, que
      consistiam sobretudo nos epinícios ou «cantos de vitória». Por vezes eram os coreu-
      tas ou os amigos que tomavam essa iniciativa.


                                              28
também vocês achar que nasci sob uma má estrela ... e acho que julgam
certo. Mas eu a vosso respeito não acho, tenho a certeza! 3


                                 COMPANHEIRO


     Sempre o mesmo, Apolodoro! Sempre a desfazeres em ti e em toda
a gente! Até dá ideia de que, na tua opinião, todos nós, à excepção de
Sócrates, não passamos de uns infelizes - a começar em ti mesmo.
Onde terias tu arranjado esse epíteto de «temo», ainda estou para saber.
O certo é que nas tuas conversas te mostras sempre assim: agressivo
para contigo e com toda a gente, salvo Sócrates.


                                  APOLODORO


     Meu excelente amigo! É isso então que ressalta das ideias que faço                  e
a respeito de mim e dos outros? Que perdi o juízo e estou apanhado de
todo?
                                 COMPANHEIRO

      Não vale a pena, Apolodoro, estarmos agora a discutir por causa
disso ... Vamos, não fujas ao assunto e conta-nos lá que discursos é que
se fizeram.
                                  APOLODORO


     Pois bem, foram mais ou menos deste teor... Ou melhor, vou tentar                 174
fazer-vos a narrativa desde início, tal como a ouvi a Aristodemo.


                           Narrativa de Aristodemo

     Contou, pois, Aristodemo que encontrou Sócrates ainda fresco do
banho e com umas luxuosas sandálias nos pés, coisa que nele era rara.
E perguntando-lhe onde ia assim todo ataviado, respondeu-lhe ele:
     - Jantar a casa de Ágaton! Ontem escapei-me dele, durante as
comemorações da vitória, pois as multidões intimidam-me. Mas com-                       b

     3 Os amigos de Apolodoro, tanto Gláucon como aqueles a quem se dirige no

momento do diálogo, são apenas «amadores» da filosofia; os discursos filosóficos
poderão intelectualmente seduzi-Ios, mas não desviá-Ios da sua esfera de interesses,
essencialmente «prática». Entre a vida filosófica (cada vez mais tendendo para uma


                                        29
prometi-me a estar hoje presente. Por isso me ataviei assim, para
    aparecer belo em casa de um homem belo ... Quanto a ti, que dizes à
    ideia de aparecer no jantar sem convite?
         - Cá por mim - respondeu - é como mandares.
         - Acompanha-me então - decidiu Sócrates. - Vamos virar às
    avessas o provérbio e dizer que «aos jantares de um homem de bem
    aparecem os bons espontaneamente» 4. Aliás, é provável que tenha
    sido Homero a virar às avessas o provérbio e até a fazer pouco dele ...
    O facto é que, depois de apresentar Agamémnon como um homem de
    excepcional valor na guerra e Menelau como «um fraco guerreiro», põe
c   Menelau a aparecer sem convite à mesa de Agamémnon, na altura em
    que este propiciava os deuses com um festim. Foi, portanto, o homem
    sem méritos a aparecer no jantar de um homem emérito ...
         Replicou-lhe Aristodemo: - Quem sabe? Talvez o que dizes não
    se aplique a mim e seja antes, como em Homero, uma pessoa insignifi-
    cante a aparecer sem convite no festim de um homem insigne ... Se me
d   levares, vê, pois, a justificação que vais dar porque, por mim, não me
    resigno a dizer que chego sem convite: digo que sou teu convidado!
         - «Os dois, avançando um a par do outro» 5, decidiremos então o
    que convirá dizer - rematou Sócrates. - Vamos!
         Conversando mais ou menos nestes termos, puseram-se a cami-
    nho. A dado momento Sócrates, embrenhado em qualquer reflexão 6,
e   deixou-se ficar para trás e, ao ver que Aristodemo estava parado à sua


    theoria) e a vida dos negócios, nota-se um distanciamento    progressivo; e o desprezo
    de Sócrates em relação às coisas exteriores - como a riqueza, por exemplo
    (cf. 219c) -, levado ao exagero pelos Cínicos, deve ter contribuido decisivamente
    para esse distanciamento.
           4 Conhecemos     duas formas desse provérbio: «as pessoas de bem vão esponta-
    neamente aos jantares dos homens vis» e «as pessoas de bem vão espontaneamente
    aos jantares dos bons». Platão deve ter este em vista, pois imediatamente a seguir
    ironiza o uso que Homero dele faz em relação a Menelau, noutros pontos retratado
    com um «fraco guerreiro» (Ilíada XVII, 588). Note-se que no referido episódio da
    Ilíada não há qualquer malícia da parte de Homero, pois Menelau vai ter com
    Agamémnon para o consolar no momento em que este, já desanimado, pensa desistir
    da luta (II, 408 sqq.).
           A alteração ao provérbio pressupõe um jogo de palavras entre o nome de
    Ágaton e o adjectivo agathos, «bom».
           5 Verso da Ilíada (X, 224) que se tomou proverbial.

           6 Este hábito de recolhimento  ou concentração nas situações mais inesperadas
    devia ser um traço bem característico do Sócrates real, que o discurso de A1cibíades
    retoma. Aristófanes recorre igualmente a este motivo para caricaturar Sócrates nas
    Nuvens.


                                              30
espera, ordenou-lhe que fosse andando. Quando este chegou a casa de
 Ágaton, encontrou a porta aberta e, segundo referiu, aí se passou uma
 cena com o seu quê de cómico. Um dos criados que estavam lá dentro
 veio de imediato ter com ele e conduziu-o à sala onde se encontravam
 os outros convivas, que ele surpreendeu já quase no jantar. Ágaton,
 logo que o vê, exclama:
      - Em boa hora chegas, Aristodemo. para jantar connosco! Se
 vieste por outro motivo, guarda-o para depois. Ainda ontem, justa-
mente, andei à tua procura para te convidar, mas não consegui encon-
trar-te. Mas Sócrates? Como é isso arranjado que não o trazes contigo?
       Só então (contava Aristodemo) ao voltar-me para lodos os lados,
dei conta de Sócrates não vinha atrás. Disse. por fim:
      - Mas era mesmo com Sócrates que eu devia vir. pois foi ele
quem me convidou para o teu jantar!
      - Quanto a ti - replicou Ágaton -. tudo bem. ~1as ele. onde se
meteu?
      - Ainda não há instantes que vinha atrás de mim; também eu            175
estou admirado e me pergunto onde se terá metido:
      - Vamos, rapaz! - ordenou Ágaton a um
descobres Sócrates e o trazes para cá. Quanto a ti. .
tala-te aí, ao lado de Erixímaco.
      Veio então um criado lavar-lhe os pés para
Entretanto, eis que aparece o outro com a notícia de
se tinha acolhido no pátio de um dos vizinhos e
recusando-se a ir por mais que ele o chamasse.
      - Estranho, o que me contas! - comentou Ãgaron, - E tu
desistes assim da empresa? Não voltas a chamá-lo?
      - Nem pensar - interveio Aristodemo. - Deixem-no em paz.               b
É já um hábito muito dele: de vez em quando afasta-se para onde calha
e aí fica especado. Mas, pelos meus cálculos. deve estar já a chegar. Não
o perturbem, deixem-no sossegado!
      - Assim faremos então, se achas melhor -                 concordou
Ágaton. - Quanto a nós, rapazes, vamos ao nosso festim. Tragam-nos
tudo o que quiserem, uma vez que ninguém vos está a vigiar - coisa,
de resto, que eu nunca fiz ... Façam, de coma, pois, que eu e estes
amigos somos vossos convidados e sirvam-nos o jantar de modo a
merecer os nossos elogios.                                                    c
      Em seguida começaram a jantar. Sócrates, entretanto, nada de
aparecer! Ágaton ainda propôs várias vezes mandá-Ia buscar mas Aris-
todemo não deixava. Ei-lo, enfim, que aparece, não com tanto atraso
quanto era costume: de facto, estavam, quando muito, a meio de jantar.


                                   31
d
festa de ontem. Vejam lá, pois, qual será a forma mais aprazível de
bebermos.
     - Tens muita razão, Pausânias - acudiu Aristófanes -. em no
mentalizares de algum modo para uma certa tolerância na bebida: eu
também fui dos tais que ontem se encharcaram ...
      A estas intervenções seguiu-se a de Erixírnaco, filho de Acúmeno:
- Bem vindas, as vossas palavras! Só me falta consultar aqui a opinião
de um de vocês ... Ágaton, que tal te sentes de forças para beber?
     - Muito mal - respondeu ele -, também eu não me sinto com                        c
forças.
     - Que belo achado, dá ideia, não só para mim como para Aristo-
demo, Pedro e para todos estes que aqui estão, se vocês, os mais
valentes na bebida, renunciam por hoje! Nós, já não admira: fomo
sempre fracos ... Quanto a Sócrates, está fora de causa: é igualmente
bom nas duas modalidades e tanto lhe faz que adoptemos esta como
aquela regra 10. E já agora, que nenhum dos presentes parece com
grande disposição para beber em excesso, talvez não seja inoportuno
dizer-vos com franqueza o que penso sobre o hábito de embriaguês.                     d
A meu ver, aí está uma coisa que a medicina prova à evidência, ou seja,
que a embriaguês só traz malefícios às pessoas. E, por minha parte, nem
desejaria ir muito além na bebida nem o aconselharia a quem quer que
fosse, especialmente quando ainda se tem a cabeça pesada da véspera 11.
     - Não há que ver! - atalhou Pedro de Mirrinunte. - Pela parte
que me toca, costumo seguir sempre os teus conselhos, sobretudo
quando se trata de medicina. E os demais, se forem pessoas de juízo,
não deixarão hoje de fazer o mesmo.
     Ao ouvi-lo todos concordaram, é claro, em não fazer do convívio                  e
dessa noite uma competição de bebidas e em beber apenas consoante a
vontade.
     - Muito bem - comentou Erixímaco. - Uma vez que está esta-
belecido que cada um beba apenas o que quiser, sem coacções nenhu-
mas, a minha proposta seguinte é que se mande passear a tocadora de


      10 Neste passo define-se   o respectivo grau de resistência ao vinho em cada
conviva: enquanto Pausânias, Aristófanes e, sobretudo, Ágaton e Sócrates são consi-
derados «fortes» (no fim vemos que apenas estes três últimos conseguem aguentar-se
de pé), Fedro, Erixímaco e Aristodemo incluem-se entre os fracos; de facto, Fedro e
Erixímaco escapam-se, logo que o banquete ameaça degenerar em orgia, e Aristo-
demo cedo adormece, para só acordar de madrugada.
      II O pendantismo  científico é um dos traços mais evidentes na caracterização
de Erixímaco.


                                        33
flauta que entrou há momentos: ela que toque para si ou para a,
      mulheres da casa, se lhe aprouver. E quando a nós, aproveitemos
      convívio de hoje para discursos. Mas que género de discursos? Esto,
      disposto a sugerir-vos um tema, se vos interessa.
177         Toda a gente se declarou interessada e o incitou a apresentar a SD-
      sugestão. Prosseguiu então Erixímaco:
            - Começo por dizer, como na Melanipe de Eurípides: «não sã.
      minhas estas palavras» 12, mas aqui do nosso Fedro. A toda a hora ~
      momento aí está ele a encher-me os ouvidos com os seus queixumes
      «Não é impressionante, Erixímaco, como vemos por aí os poetas
b     comporem hinos em honra dos mais variados deuses, e em honra de
      Amor, um deus tão antigo e ilustre, nenhum desses poetas ilustres de
      agora lhe faz sequer um encómio? Mesmo os bons autores de prosa, se
      te dignares reparar neles, aí os tens a escrever elogios de Héracles e de
      outros deuses, como o nosso excelente Pródico 13. E isto ainda não é c
      mais extraordinário: às minhas mãos até já veio parar um livrinho de
c     um desses talentos onde o sal era exaltado até às nuvens por causa da
      sua utilidade! E outras ninharias que tais podes ver a cada momento
      enaltecidas. Nisso sim, aplicam eles todo o seu zelo; trate-se, porém de
      Amor, e verás que até ao dia de hoje ainda nenhum homem ousou
      dirigir-lhe um cântico condigno. E assim se põe de lado um deus tão
      poderoso ... » Ora, eu acho que Fedro tem razão nos seus queixumes e
      por isso, ao mesmo tempo que pretendo apaziguá-lo com este contri-
      buto, acho também que a ocasião presente é a ideal para nós, que aqui
      estamos presentes, celebrarmos o deus. Se estiverem todos de acordo.
      uma boa maneira de passar o tempo será aplicá-Ia em discursou.
d     A minha opinião, aí a têm: cada um de nós deverá apresentar um
      discurso de elogio ao Amor, o mais belo que lhe for possível, seguindo
      pela direita. O primeiro a falar será naturalmente Fedro, já que ocupa o
      primeiro lugar e já que é ele, também, o pai da ideia.
           - Ninguém vai votar contra a tua proposta, Erixímaco - apoiou
      Sócrates. - Não seria decerto eu a rejeitá-Ia, eu que faço profissão de


           12   Eurípedes escreveu duas peças com este nome. A citação pertence à Meia-
      nipe Sábia (fr. 488 Nauck).
            13 Sofista contemporâneo de Sócrates, que se distinguiu no campo da sino-

      nímia. Foi também autor de uma alegoria (resumida em Xenofonte, Mem. 2.1.21-34
      em que Héracles é posto perante a escolha do Vício ou da Virtude. A referência
      seguinte parece aplicar-se ao orador Polícrates.


                                               34
nada mais saber a não ser de amor. .. 14 Tão pouco Ágaron ou Pansânias
suponho. E muito menos Aristófanes, que consagra todo o seu tempo ao
serviço de Dioniso e de Afrodite! 15 Nem qualquer destes que tenho                   e
diante dos olhos ... E muito embora nós, os que ocupamos os último:
lugares, não fiquemos em igualdade de circunstânci
por satisfeitos se aqueles que nos precederem falarem
devem. Fedro que comece, portanto, o seu panegírico e
hora!
      Todos os outros se manifestaram de acordo com a interve
Sócrates e secundaram o seu incitamento. Com respeito ao
que cada um fez, é claro que Aristodemo não reteve todos os pormeno-
res, como também eu não retive tudo aquilo que ele me contou,
Cingindo-me, porém, ao essencial e aos oradores que me parece
mais dignos de menção, passo a referir-vos os discursos apresentado-
por cada um deles.

     Foi portanto Fedro, como digo, o primeiro a apresentar o seu
discurso, começando mais ou menos por afirmar que «o Amor era um
grande deus, um deus extraordinário aos olhos dos homens como do
deuses, por muitos e variados motivos, entre os quais avultava o da sua
origem.»
     Efectivamente - prosseguiu - as honras de que goza devem-se                     b
ao facto de se incluir entre os deuses mais antigos 16, e a prova é que não
teve pais nem há poeta ou prosador algum que fale deles. Hesíodo, por
exemplo, diz que primeiro surgiu o Caos,

                                              .......  depois
     a Terra de vasto seio, suporte inabalável de tudo e o Amor ...




      14 Para esta afirmação, cf. Lísis 204c e Pedra    257a. De facto, no BaIU[U6
Sócrates revela-se como a personificação do verdadeiro erastes, «amante».
      15 A alusão a Dionisio e a Afrodite é ambígua: Sócrates não só tem em vis

arte do comediógrafo (Dionisio é também o deus do teatro) como ainda'           .
ironicamente a sua propensão para a bebida e para os prazeres sensuais.
      16 Este ponto de vista será mais adiante contrariado por Ágaron,que vê .

mente em Eras o mais jovem dos deuses (cf. 195b). Fedro apoia-se na mi
citando, num alarde de erudição sofística, não só poetas como Hesíodo (cf. Ti
116 sqq.) e Parménides (fr. 13 Diels), mas ainda prosadores: é o caso de A,
autor do século V a. c., que escreveu várias genealogias baseadas em H '


                                        35
E com Hesíodo concorda Acusilau, que também diz que a segui:
    ao Caos vieram estes dois, a Terra e o Amor 17. Por sua vez Parménides
    ao falar da Geração, afirma:

          ... pensou primeiro no Amor antes de todas as divindades.              18



c         E assim em variadas fontes há acordo em reconhecer que o Amo:
    se conta entre as divindades mais antigas. Ora, é em virtude desse
    estatuto que dele nos provêm os maiores benefícios.
          Por minha parte, pelo menos, não posso imaginar um bem com-
    parável ao do jovem que desde cedo possui um amante digno, ou ao de
    amante que encontra um amigo igualmente digno. Mais, é essencial que
    os homens que se dispõem a viver uma vida plenamente bela se
    capacitem deste facto: nem a nobreza de parentesco, nem os cargos de
    prestígio, nem a riqueza nem qualquer outra coisa são capazes de
d   inspirar feitos tão belos como o amor. E em que me baseio para o dizer?
    Concretamente, na vergonha de cometer acções vis e na emulação que
    as acções belas suscitam. Sem estes dois requisitos não é possível c.
    qualquer Estado ou a qualquer indivíduo realizar algo de belo e gran-
    dioso. E por isso vos asseguro: todo o homem que ama, se é apanhado
    cometer qualquer vileza ou a sofrê-Ia da parte de alguém, sem se
    defender por cobardia - nem à vista de seu pai nem dos seus camara-
e   das nem de outra pessoa qualquer se sentirá tão mal como na presença
    do seu amado! E a respeito deste último observamos exactamente o
    mesmo: é sobretudo na presença do seu amante que se envergonha.
    quando supreendido em qualquer vileza.
         Assim, se houvesse processo de constituir um Estado ou um
    exército só de amantes e de amados, que organização melhor poderia
    encontrar-se? 19 Homens como estes, afeitos a repudiarem toda a espé-


           17 A citação  de Hesíodo (Teogonia 116, 117, 120) no passo assinalado tem
    levantado suspeitas sobre a autenticidade dos vs. 118-119 que Platão parece ignorar.
    bem como Aristóteles em Metafísica 984a 27; de resto, a referência ao Tártaro
    (v. 119) seria neste contexto deslocada. Mas dado que todos os mss. apresentam os
    dois versos e outros autores também os citam, parece que não há razão para duvidar
    da sua autenticidade (cf. M. L. West, Hesiod Theogony, Oxford, 1966, pp. 193-195)_
           18 Alguns autores supõem que o sujeito de «pensou» é a Geração personificada:

    Plutarco, por sua vez, fala em Afrodite (Amatores 756 sqq.). Mas pode igualmente
    pensar-se na Justiça (cf. fr. 8 Diels, vv. 13-15) que, como Simplício afirma, faz
    nascer o amor (frs. 39 e 18 Diels).
           19 A noção homérica   de are te, que se limita exclusivamente ao indivíduo, e
    alargada à esfera da polis. Atenas, com a sua multiplicidade de interesses, difícil-


                                            36
cie de vileza, a emularem entre si na honra e a exercitarem-se em pelejas                179
uns com os outros, mesmo em pequeno número, seriam, por assim
dizer, capazes de vencer o mundo inteiro! E a razão é que o amante
aceitaria mais facilmente desertar das fileiras ou largar as armas à vista
de qualquer outra pessoa do que do seu amado: na presença deste,
preferiria mil vezes morrer! Quanto a deixar para trás o seu amado e não
o socorrer em caso de perigo ... não há homem nenhum tão fraco a quem
o próprio Amor não inspire actos de bravura e não torne igual aos                         b
bravos por natureza. Em suma, o que diz Homero a respeito de alguns
heróis, que «o deus lhes insufla coragem» 20, esse dom concede-o
espontaneamente o Amor aos amantes. Mais ainda, apenas os que
amam - e refiro-me não apenas aos homens mas às mulheres tam-
bém - se dispõem a morrer por outrem.
      Justamente Alceste, a filha de Pélias 21, oferece um testemunho
claro desta afirmação a todos os Helenos. Ela foi, de facto, a única                       c
pessoa que se dispôs a morrer na vez do marido, muito embora o pai e a
mãe dele fossem ainda vivos: o amor que ela dedicava ao marido
superou em tanto a amizade dos próprios pais, que estes mais pareciam
uns estranhos em relação ao filho, aparentados, quando muito, de
nome ... E ao proceder como procedeu, o seu gesto afigurou-se de uma
tal beleza, aos olhos dos homens como até aos dos deuses, que um
privilégio limitado a bem poucos, entre tantos que avultaram pelo


mente julgaria realizável um tal programa; mas Fedro deve ter em vista as cidades
dóricas. Efectivamente, em 371 a. C. (seis anos depois da data provável da composi-
ção do Banquete), o «batalhão sagrado de Tebas» vem provar que as concepções de
Fedro não eram tão alheias ao seu tempo como poderia parecer.
       20 Citação da llíada X, 482 (cf. XV, 262). Note-se que Fedro se contradiz mais

adiante (l79d), apresentando Orfeu como exemplo do homem cobarde, «que não teve
a coragem de morrer por amor». Com este passo, compare-se o testemunho de
Alcibíades a respeito de Sócrates (220e), que se recusa a abandoná-I o ferido na
batalha e não só consegue salvar-lhe as armas mas também a vida.
      21 A lenda em que Fedro se baseia, e que foi dramatizada   por Eurípides, refere
que, chegando o momento de Admeto morrer, ApoIo pediu às Parcas a graça de lhe
prolongarem a vida, se alguém se oferecesse para tomar a sua vez. Alceste consente,
mas é ressuscitada por Héracles, que no próprio dia do funeral se acolhera em casa de
Admeto que, embora inconsolável com a morte da esposa, não quis deixar de cumprir
para com ele os deveres da hospitalidade. Em Eurípides, vemos que apesar do amor
pelo marido e pelos filhos, que doutro modo ficariam desamparados, o que move
Alceste é a consciência de que, pela glória, será recompensada pelo seu sacrifício.
Assim também Sócrates interpreta o seu gesto e o de Aquiles, atribuindo-os ao amor
da glória que é, em última análise, amor da imortalidade (vide Alceste 292, 324;
cf. Banquete 208d).


                                         37
d    número e pela beleza dos seus feitos, lho concederam os deuses a el,
     que a sua alma regressasse do Hades. E concederam-no, levados ~
     admiração que o seu gesto lhes suscitou. Tal é, pois, o apreço que
     próprios deuses manifestam pela dedicação e pela virtude que o éL
     inspira.
           Já a Orfeu, o filho de Eagro 22, mandaram-no embora do H2._
     sem conseguir o seu objectivo, e em vez de lhe entregarem, em carr
     osso, a mulher que ele tinha vindo buscar, lhe mostraram apenas _
     fantasma dela. É que lhes pareceu cobarde a sua atitude (coisa nart:
     de resto, num tocador de cítara ...), visto que não teve a coragem
     sacrificar a vida por amor, como fez Alceste, e preferiu servir-se
     artimanhas para entrar vivo na Hades. E eis a razão por que os deuse
     castigaram e lhe destinaram a morte às mãos de mulheres.
           Pelo contrário a Aquiles, o filho de Tétis, testemunharam o -;
e
     apreço enviando-o para as ilhas dos Bem-Aventurados 23, e eis porq_
     embora prevenido por sua mãe de que o esperava a morte, se mata-
     Heitor, e de que, em caso contrário, havia de regressar à sua tem.
     acabar os seus dias na velhice, optou sem hesitação por ir em socorro ~
     seu amante Pátroc1o e vingá-lo 24; ou seja, não apenas escolheu mor
180a por ele como também segui-lo na morte. Daí que os deuses, tocac
     pela mais funda admiração, o tenham honrado de uma forma :..:.
     especial, correspondendo ao elevado apreço que aquele mostrara pc
     seu amante.
          É uma tolice o que Ésquilo apregoa, ao falar de Aquiles coe
     amante de Pátroc1o ... Aquiles, cuja beleza excedia não apenas a .:



            22 Fedro altera os dados da lenda: o dom que eleva Orfeu acima dos ouc:

     homens - a música - e lhe abre as portas do Hades é, segundo ele, a causa da s.;
     desgraça; os deuses não se deixam enganar pelos seus cantos comoventes, antes vêe:
     neles uma prova de cobardia. Cf. República 399a: todos os modos musicais
     excepção do frígio e do dório, são criticados por amolecerem os espíritos. Note-s
     que no Laques 118d, só é aceite o modo dório. Depois da tentativa inútil P'~
     recuperar Eurídice, Orfeu foi despedaçado pelas mulheres da Trácia, que assim >
     vingaram do seu desprezo por elas.
            23 Outras variantes   da lenda situam Aquiles na ilha de Leuce e ainda D-
     Campos Elísios. Píndaro cita duas versões do mesmo mito: nos vv. 79-83 da _
     Olímpica diz-se que Aquiles habita nas Ilhas dos Bem-Aventurados; a IV Nemeia (,-
     49-50) localiza-o numa ilha do Ponto Euxino (Leuce). Vide Maria Helena da Roce
     Pereira, Concepções Helénicas de Felicidade no Além, Coimbra, 1955, pp. 34-35.
            24 Veja-se a profecia   de Tétis (mãe de Aquiles) em lliada IX, 410-416. ~-
     canto XVITI decide-se a escolha de Aquiles (121-126).


                                             38
Pátroclo como a de todos os outros guerreiros juntos! Sendo, de resto,
muito mais novo, conforme testemunha Homero, pois não tinha ainda
barba 25. Ora, se não restam dúvidas de que os deuses avaliam ao mais
alto grau essa forma de mérito que se associa ao amor, não é menos
certo que a admiram e apreciam ainda mais nas suas recompensas
quando é o amado que dá mostras de afeição pelo seu amante do que no                   b
caso inverso 26. Efectivamente, o amante tem em si algo de mais divino
do que o amado, é a divindade que o inspira. E por isso os deus
concederam maiores honras a Aquiles do que a Alceste. ao enviá-lo
para as ilhas dos Bem-Aventurados.
      Aí está, por minha parte, o que tenho a declarar-vos sobre o Amor:
ele é não só o mais antigo e venerável dos deuses como o que tem mais
poder para levar os homens a alcançar o mérito e a felicidade, tanto na
vida como após a morte.

      Tal foi, mais ou menos, o discurso de Fedro, de acordo com o meu                 c
narrador. Seguiram-se-lhe alguns outros de que não estava já bem
lembrado, pelo que os pôs de parte, passando a referir-me o discurso de
Pausânias. Eis as suas palavras:
     - Não me parece lá muito feliz, Fedro, essa simplicidade com
que o tema nos é lançado e se reclama de nós um panegírico do Amor!
Estaria bem, claro, se houvesse apenas um deus Amor, mas não é o
caso. E visto que não há apenas um, o caminho mais correcto é definir
previamente a qual dos Amores convém dirigir os nossos elogios. Vou                    d
assim tentar corrigir a tua falta, quero dizer: procurar, antes de mais,
definir a espécie de Amor que devemos elogiar e fazer em seguida um
elogio condigno da sua divindade 27.
     É bem conhecido de todos nós que não há Afrodite sem Amor. Se
houvesse, portanto, uma só Afrodite teríamos também um só Amor.
Mas o facto é que há duas e, como tal, necessariamente dois Amores ...
Sim, porque a existência das duas deusas nem tem discussão! Uma, a
mais antiga e que não teve mãe, é filha do Céu - e eis a Afrodite que



     25  Cf. Ésquilo, Mirmidões, fr. 228 Mette, e Iliada XI, 786.
     26  Esta distinção entre erastes, «amante», e paidika, «amado», será mais demo-
radamente debatida no discurso de Pausânias.
      27 Seguindo    as boas regras da retórica, Pausânias estabelece, como primeira
condição, a necessidade de definir o objecto do discurso; Ágaton e Sócrates farão o
mesmo (l95a, 199c; cf. infra, Fedro 237c).


                                        39
designamos também de celeste; a outra, a mais recente, é filha de =:
e      e de Dione - e eis a Afrodite a que chamamos popular 28. A se+
       exactos, portanto, impõe-se, que chamemos popular ao Amor
       acompanha esta última, e demos ao outro a designação de celeste. :
       se é certo que todos os deuses têm direito ao nosso louvor, cabe-nos
181    entanto, delimitar o âmbito específico das suas competências. É, ai:.-
       o que se passa em toda e qualquer a actividade: nenhum acto, CoIlS
       rado em si e por si mesmo, é belo ou vil, tal como as nossas ocupa;
       de agora - beber, cantar, conversar. .. -, nenhuma delas têm pc-
       mesmas qualquer beleza. O que determina essa qualidade num acte
       seu modo de realização: se o realizamos de forma bela e digna.
      resulta belo; em caso contrário, vil. Assim acontece quando amar
      nem toda a espécie de amor é bela e digna de elogios, mas apenas ao;
      que nos incita a amar com nobreza.
            Ora bem: o amor correspondente à Afrodite popular 29, cc
b     popular que é, no seu pleno sentido, deixa ao acaso as consequên:
      dos seus actos. E tal é, justamente, o amor em que se comprazerr
      pessoas vulgares: pessoas, antes de mais, a quem é indiferente apai
      narem-se por mulheres ou por rapazes; em segundo lugar, que arr__
      neles os corpos de preferência às almas e essas mesmo, só as rr.
      destituídas de inteligência que conseguem encontrar! Na verdade, tL
      o que procuram é a satisfação dos impulsos, sem se importarem cor
      que é ou deixa de ser digno. Daí que o seus actos, inteiramente dita-
      pelo acaso, possam resultar umas vezes bem e outras vezes, mal 30. E:
c     porquê: na origem desta espécie de amor está a deusa que é, de longe
      mais recente das duas e que participa, pelo nascimento, de ambos
      sexos - o feminino e o masculino. Quanto ao amor da deusa celeste -
      ela é, antes de mais, a deusa que não participa do sexo feminino rr..
      tão-só do masculino (e aí têm vocês o amor pelos jovens ...) e que ale
      disso, por ser a mais antiga e venerável, não conhece o excesso.


             28 As duas variantes da lenda sobre a origem de Afrodite reflectiam-se no eu,
      em Atenas havia um templo dedicado a cada uma delas. A Afrodite pander
      (popular) devia primitivamente ter sido considerada como divindade protectora L
      demoi e das hetairiai; porém, nos fins do século V, já tem atribuições idênticas às _
      Vénus meretrix em Roma.
             29 A Afrodite  popular representa o amor excessivo, que conduz à violêr.:
      (hybris), como foi precisamente o amor de Zeus por Dione.
            30 Com esta descrição do «amor popular» compare-se       o discurso de Lísias õ
      primeiro discurso de Sócrates no Fedro.


                                                40
nova ou velha, verá aí motivo de condenação. A causa, a meu ver, é que
      deste modo, se poupam ao esforço de persuadir os jovens, dado que nã
      são capazes de exprimir-se. Já na Iónia e em muitas outras regiões-
c     todas as que estão sob o domínio dos Bárbaros - a norma condena e
     prática. Entre os Bárbaros, nomeadamente, o regime da tirania con-
      denou-a ao mesmo descrédito a que vota também o culto da sabedoria
      a ginástica: não convém aos govemantes, suponho eu, que os seus
      súbditos acalentem pensamentos elevados e muito menos amizades
     uniões fortes como só o amor, acima de tudo, costuma inspirar. .. Es
     lição, de resto, aprenderam-na à sua custa os tiranos atenienses, pois fi
     o amor de Aritogíton por Harmódio e a amizade deste pelo amante que
     derrubaram o seu poder 33.
           Em resumo, onde as instituições condenam a afeição de um jove
d    por um amante, a situação mantém-se por defeito dos seus responsá-
     veis - tanto os govemantes, com a sua ambição, como os súbdito
     com a sua cobardia. Mas também onde a norma aprova sem reservas tal
     prática, a causa está na estreiteza de vista daqueles que a instituiram..
           Aqui em Atenas a norma vigente é de longe mais interessante.
     embora, repito, menos fácil de entender. De facto 34, se dermos crédito à
     voz corrente, que afirma que é mais honroso amar à vista de todos do
     que às ocultas, e amar em especial os que se distinguem pelo nasci-
     mento e pelo mérito, ainda quando fisicamente menos dotados; se repa-
     rarmos no estímulo extraordinário que o amante recebe de toda a gente.
e    como se a sua atitude nada tivesse de desonrosa; na glória que lhe traz
     um sucesso amoroso enquanto, por outro lado, um fracasso o despres-
     tigia; ou ainda na liberdade que a norma lhe concede, quando inicia uma
     conquista, de se gabar das suas extravagâncias, extravagâncias que
     ninguém teria a coragem de cometer, se a sua intenção e os seu
     esforços não visassem exclusivamente este fim, sob pena de incorrer
     nas mais severas críticas [da filosofia]. .. Sim, porque a supor que um
183a indivíduo, na mira de obter dinheiro, cargos ou qualquer posição de



            33 É tradicional a associação entre a pederastia, a filosofia e a ginástica, por um
      lado, e a democracia por outro. Note-se que foi uma questão de ciúmes e não um ideal
      de liberdade que levou Aristogíton e Harmódio em 514 a. C. a assassinar Hiparco.
      filho do tirano ateniense Pisístrato; Harrnódio morreu no próprio local e Aristogíton
      foi condenado à morte. Depois da queda definitiva da tirania, em 510 a. c., ambos
      foram consagrados como heróis da democracia. O incidente é relatado por Tucídides
      VI, 54, e I, 20.
            34 Longo anacoluto; a conclusão da frase está em 183e: «a partir destes factos
      não faltaria, claro, quem supusesse ... »


                                                 42
influência, se prestava a assumir junto de outro atitudes que por via de
 regra o amante tem para com o amado - a requestã-lo com súplicas e
rogos, a pronunciar juramentos solenes, a dormir à sua porta. enfim, a
 submeter-se a uma escravidão tal que nenhum escravo a aceitaria --
 lá estariam, tanto os amigos como os inimigos, para o impedir de
proceder assim: estes, a verberarem-lhe a lisonja e o servilismo: aque-
 les, a repreenderem-no e a envergonharem-se por ele. Mas no amante                     b
 todas estas extravagâncias são perdoáveis, as normas não desacreditam
 o seu procedimento, antes parecem aceitá-Ia como sinal de máxima
distinção. E o mais espantoso - pelo menos o vulgo assim o diz - é
que apenas esse logra o perdão dos deuses quando quebra os seus
                                                                                        c
juramentos, pois, como reza o ditado, «juras de amor não têm valor» ...
Por aqui se vê que tanto os deuses como os homens outorgam ao amante
liberdade plena, como aliás o confirma o norma vigente entre nós.
       A partir destes factos não faltaria, claro, quem supusesse que o
sinal máximo de distinção, no nosso Estado, é amar os jovens ou
oferecer a sua afeição a um amante... Entretanto, quando os pais
proibem os filhos de ter conversas com amantes e transmitem expressa-
mente essa ordem aos preceptores encarregados de os vigiarem 36, os
jovens da mesma idade e os camaradas não deixam de criticar se vêem
alguma coisa do género, e nem os mais velhos impedem as suas críticas                   d
nem os repreendem por falar sem razão. Vendo os factos por este
prisma, não faltaria também quem supusesse que tal hábito é aqui
encarado como sinal da máxima infâmia ...
       Ora, em meu entender, o que se passa é o seguinte: como ficou dito
de início, o amor não tem uma natureza simples, bela ou feia em si
mesma: é belo, se realizado com beleza, e feio, se realizado com vileza.
Vileza, é quando se concede uma afeição indigna a um homem indigno;
e nobreza, quando se concede uma afeição digna a um homem de bem.
E por indigno entendemos justamente esse amante popular, que prefere                    e
o amor do corpo ao amor da alma, e não guarda constância porque o


       35 Esta descrição  assemelha-se bastante, como observa Goul (Platonic Love,
Londres, 1963, p. 28), às descrições helenísticas e romanas das atitudes extravagan-
tes de um jovem que procura obter o amor de uma jovem. Compare-se este passo com
o Fedro 250a, onde Platão descreve, em termos idênticos, os efeitos do «delírio
amoroso».
       36 O preceptor  (paidagogos) era o escravo a quem os pais confiavam os filhos,
desempenhando funções idênticas às de um aio. O seu papel na educação das crianças
é salientado, e. g., no Protágoras 325c.


                                         43
objecto a que se prende não é também constante: logo ao passar a flc
     juventude, objecto da sua paixão, «evola-se e desaparece» 37, reneg.;
     as suas muitas promessas e discursos. Pelo contrário, aquele que _
     alguém pela beleza do seu carácter, esse permanece fiel pela vida -:
184a porque se funde com o que é constante. São portanto, estes, qr-
     nossas instituições visam pôr à prova, para averiguar com jus-
     aqueles a quem se deve conceder afeição e aqueles a quem se c
     recusá-Ia. E com este fito se recomenda a uns que persigam e a ot
     que se defendam, a fim de ajuizar, nesta competição, a qual das duas
     tegorias pertencem tanto o amante como o amado 38. Esta, a verdade
     razão por que se condena todo o jovem que se deixa seduzir desde 1(';
     sem dar tempo ao tempo - que, na generalidade dos casos, se afig,
     um excelente juiz; como se condena também todo aquele que se de,
     seduzir a troco de dinheiro ou de influências políticas, seja por falta
     coragem, com receio de sofrer represálias, seja por falta de es..-
b    pulos em aceitar dinheiro ou cargos políticos como recompensa. 8::
     tivamente, não é de crer que qualquer destes motivos ofereça segura=
     e estabilidade, nem tão pouco que daí possa resultar uma amiza
     nobre!
           As nossas instituições deixam, por conseguinte, um único car
     nho ao jovem que pretende dar a sua afeição a um amante dentro -
     preceitos da honra. E ei-Ios: tal como no amante uma escravic,
c    livremente assumida é olhada sem servilismo ou sombra de vile;
     assim também se deixa ao jovem uma única forma de escravic,
     voluntária e isenta de vileza - a que tem em vista exclusivamente
     virtude. Estes são de facto os preceitos que nos regem: se um indivíc.,
     consente em ficar ao serviço de outrem porque espera, por interméc
     dele, aperfeiçoar a sua sabedoria ou em qualquer outra forma de v'
     uma livre-servidão como esta não implica desonra nem servilisn.
     Por conseguinte, é necessário que estes dois preceitos se conjuguem-


             37 Cf. Ilíada II, 71. A superioridade do «amor da alma» sobre o amor ffsic;
      como se vê, uma ideia corrente nos círculos aristocráticos atenienses, que PI~
      aproveitou para tema de discussão em grande parte dos seus diálogos. Com e
      passo, compare-se, por exemplo, o primeiro discurso de Sócrates no Fedro 0'_
      Alcibiades L
             38 As duas categorias    são a do eras ouranios, «amor celeste», e do c
      pandemos, «amor popular», de que Pausânias fez menção no início do discur
      O passo seguinte refere-se às circunstâncias em que parece mal um jovem deixar-
      seduzir: o argumento invocado é que daí não pode nascer uma amizade gene
      Amizade, philia, é precisamente o sentimento que distingue o amado em relação _
      erastes, «amante».


                                              44
o que rege o amor pelos jovens e o que rege o amor pela sabedoria 39 e     d
pelas demais formas de virtude - quando o resultado em vista é digni-
ficar e dar beleza à afeição de um jovem pelo seu amante.
      Suponhamos, pois, que o amante e o amigo convergem na mesma
intenção e observam, de parte a parte, as normas respectivas: aquele
retribui a afeição que o amigo lhe concede, pondo-se ao seu serviço em
tudo o que é justo servi-Io; este, por sua vez, secunda em tudo o que é de
justiça as vontades daquele que o encaminha na sabedoria e na virtude.
E se um tem os meios de lhe incutir a sabedoria e as demais virtudes, e    e
o outro necessita de uma formação completa e de conhecimentos
variados - é quando estes dois preceitos convergem no mesmo fim, e
só nessa circunstância, que a afeição de um jovem pelo seu amante
ganha beleza e dignidade 40. De outro modo, nunca! E eis uma circuns-
tância em que nem sequer é vergonha sofrer uma traição, ao passo que
em todas as outras a vergonha tanto recai sobre o que é enganado como
sobre o que não é... Se um jovem, por exemplo, na mira de obter 185a
dinheiro, dá a sua afeição a um amante que julga rico e acaba enganado
e de mãos vazias, ao descobrir-se que o amante é pobre, a vergonha não
é por isso menor: aos olhos de todos, não há dúvida de que se revelou tal
como realmente era, capaz de entregar-se por dinheiro fosse a quem
fosse - e isso não é bonito. Na mesma ordem de ideias, se umjovem se
afeiçoa a um amante que julga virtuoso, com o único fito de se
aperfeiçoar, estimulado pela sua amizade, e acaba também enganado,         b
ao descobrir-se a vileza e falta de princípios do sujeito - eis, todavia,
uma traição que lhe dará prestígio! 41 Porque também ele, aos olhos de


        39 Philosophia,  que traduzimos por «amor da sabedoria», tem aqui o valor
 aproximado de sophia e não significa um sistema de vida como se define, e. g., em
República VI, 498a.
       40 Para o valor tradicional deste conceito, compare-se a observação de Marrou
em Histoire de I'Éducation dans I'Antiquité, Paris, 61965, pp. 67-68: «para um
Grego ... a paideia realiza-se pela paiderastia», não podendo nem a família nem a
escola constituir os quadros tradicionais da educação. Mais adiante, continua o
mesmo autor: «A educação, paideia, reside essencialmente nas relações profundas e
estreitas que uniam pessoalmente um jovem espírito a outro mais velho, que era
simultaneamente o seu modelo, o seu guia e iniciador.»
       41 O que há de contraditório   nesta noção não é, como supõem alguns autores
(cf. R. G. Bury, The Symposion of Plato, Cambridge, repr. 1969 - daqui em diante
citado só como Bury), que se ponha a possibilidade de o amante quebrar os seus
juramentos. Pausânias pensa, certamente, no «amante popular» de quem semelhante
comportamento não se estranha; o que se toma paradoxal é que o autor qualifique de
prestigiante uma circunstância que, aos olhos da multidão, passaria sempre por
desonrosa, quaisquer que fossem as intenções ...


                                        45
todos, deu provas do que realmente era, mostrando que todo
      interesse, fosse por quem fosse, estava na virtude e no desejo _
      aperfeiçoar. E aí está o que excede em beleza tudo o mais. Porque
      sombra de dúvida, toda a beleza reside aí: numa afeição que se cc-
      em vista da virtude!
            Este é, portanto, o Amor da deusa celeste; o Amor também ce
      de tanta valia quer na vida do Estado quer na vida privada, pois ::
c     força que impele tanto a amante como o amado a porem na virtuc-
      o seu zelo. As outras espécies de amor pertencem à outra de.,
      popular. E é tudo, Pedro - concluiu - o que, assim de mome;
      me oferece dizer em honra do Amor.

            Chegando Pausânias à pausa (como vêem, também eu aprenc,
      os mestres a arte das isologias ...) 42, era a vez, declarou Aristoder;
      Aristófanes fazer o seu discurso. Aconteceu, porém, que, fosse -;
      comido demais, fosse por qualquer outro motivo, começou de f:::-
d     com um ataque de soluços. E como não estava em condiçóe
      discursar, dirigiu-se então ao médico, que se encontrava justame;
      leito a seguir:
            - Não tens outro remédio, Erixímaco! Ou me fazes para; :
      soluços ou falas na minha vez, até que me passem ...
            Respondeu-lhe este: - Até ambas as coisas! Para já, ofere;
      para falar na tua vez, e tu falarás na minha quando esse ataque te r-
      Entretanto, enquanto faço o meu discurso, retém a respiração ---
      largos momentos: pode ser que os soluços se dignem assim para:
e     não for ainda dessa, gargareja com água; e se mesmo assim persistr
      então agarra numa dessas coisas com que se pode esfregar o L-
      provoca um espirro. Se fizeres isto uma ou duas vezes, eles paran:: _
      por mais fortes que sejam ...
            - Não atrases mais o teu discurso - interrompeu Aristófaze
      Por minha parte, vou já fazer o que me aconselhas.

           Começou então Erixímaco: -            Inevitavelmente, já que Paus--
186a apesar de um tão belo começo, não soube concluir o seu discurso ;:
      devia, entendo eu que me compete a mim procurar-lhe um de:,.-='=


            42 Alusão irónica ao estilo de Pausânias;   é característico do seu discz-
     emprego de jogos de palavras, como Apolodoro diz ter aprendido, além ~
     figuras de retórica ensinadas pelos sofistas (paronomásias, aliterações, COrI"Q-;>:--
     cias rítmicas de frases e períodos).


                                               46
adequado. Que o Amor seja de duas espécies, eis uma distinção, a meu
ver, bem feita. Todavia, longe de limitar-se às almas dos homens e ter
por objecto a beleza humana, há uma imensidade de outras coisas que o
motivam e outros seres onde se manifesta - nos corpos de todos os
seres vivos, nas plantas nascidas da terra e, a bem dizer, em tudo o que
existe! 43 Esta observação devo-a, creio, ao exercício da minha arte, a              b
medicina. É ela que me mostra até que ponto este deus é grande e
admirável e como o seu poder se estende a tudo, quer no âmbito do
humano quer no do divino. Vou, pois, iniciar o meu discurso a partir da
medicina para que também eu preste as honras à minha arte.
      É um facto que a natureza dos corpos encerra este duplo Amor, já
que a saúde e a doença são, reconhecidamente, dois estados não só
diversos como dissemelhantes. E o que é dissemelhante ama e aspira ao
que é dissemelhante. Temos, assim, um amor específico do estado de
saúde e outro, do estado de doença 44. Ora bem, esse princípio que
Pausânias ainda há pouco enunciava, que é belo afeiçoar-se aos homens
de bem e aos desregrados, vergonhoso, se aplica também à realidade                   c
dos corpos: é belo, e deve-se até cultivar a afeição pelos elementos bons
e sãos de cada corpo (e a isto se chama praticar medicina) enquanto
pelos maus, pelos que provocam doença, é vergonha fazê-Ia, e há
mesmo o dever de hostilizá-Ios, se se pretende agir como um profis-
sional.
      Efectivamente, a medicina, para falar em termos genéricos, não
consiste senão na ciência dos fenómenos de amor do corpo relativos à
repleção e à vacuidade. Quem neles saiba distinguir o bom do mau
amor, esse é o médico por excelência 45. E bem assim, aquele que opera               d
mudanças no sentido de substituir um amor por outro e que sabe como
inspirar amor entre elementos que o não possuem e por natureza o
reclamam ou, em caso inverso, estirpá-lo onde ele esteja implantado-
esse será o bom prático; dele se espera, justamente, que esteja habi-


       43 Erixímaco segue, neste ponto, as doutrinas pitagóricas, e em especial de
Empédocles, sobre a constituição do universo, altemadamente regido pelo princípio
da discórdia (Neikos) - o mau Eros - e pelo da amizade (Philotes) - o bom Eros.
Cf. Empédocles, fr. 17 Diels, vv. 19-20,28-29.
       44 Do ponto de vista médico, o estado de saúde corresponde  ao bom Eros e o
estado de doença ao mau Eros; a definição de saúde como harmonia de humores
físicos pertence às escolas ocidentais de medicina, representadas sobretudo por
Alcméon, de Crotona.
       45 Como observa Bury, neste passo há uma distinção implícita entre medicina

como pura ciência, episteme, e medicina como arte, techne. O mesmo acontecerá
adiante, quando se falar na música (I 87c-d).


                                       47
litado a criar amizade entre os elementos mais hostis do corpo e .:
     a amarem-se entre si. Ora acontece que os elementos mais hosti
     que se opõem de modo absoluto, como o frio e o quente, o ame..-
e    doce, o seco e o húmido, e assim por diante; e foi exactamente ~
     ciência de implantar entre eles o amor e a concórdia que c
     antepassado Asclépio (asseveram-nos os nossos poetas e eu a.
     piamente!) se tomou o fundador da nossa arte 46.
           Assim a medicina, como digo, pertence inteiramente ao é.
187a deste deus, tal como acontece com a ginástica e a agricultura. Q_
     música, é evidente a qualquer pessoa, mesmo numa análise supe
     que se rege pelos mesmos princípios das artes que citei - come
     Heraclito pretenda dizer, embora os termos em que se exprime c
     longe de serem claros: «O que é Uno», diz ele, «discorda e co~
     consigo mesmo, tal como a harmonia do arco e da lira». Claro c.
     tem pés nem cabeça afirmar que uma harmonia «discorda» c .
     consiste de elementos discordantes ... 47 Porém, talvez a sua in:
b    fosse dizer que ela resulta, isso sim, de elementos inicialmente L
     dantes - o agudo e o grave - que depois entraram em acordo g:_
     arte da música. Está visto que enquanto o agudo e o grave estiver-
     discordância não há lugar para qualquer harmonia, dado que harrr;
     consonância e esta, por sua vez, uma espécie de acordo. Ora, um ::.
     proveniente de partes que discordam e enquanto discordam é co.,
     não pode haver! Como, por sua vez, toda a parte discordante qi.-
     chega a acordo é insusceptível de harmonização. E o mesmo vale:
     ritmo, pois também ele se constitui a partir de elementos inicial=-
     discordantes - o rápido e o lento - que posteriormente chega-
c    acordo.

             46 Homero já se refere a Asclépio     (filho de Apoio e de uma morta:
      citando-o simplesmente como «médico ilustre»; só mais tarde se generalizo,
      culto e foi reconhecido como divindade protectora da medicina. O santuár:
      famoso de Asclépio era em Epidauro, onde acorriam milhares de doentes L
      rança de se curarem. O Plutos de Aristófanes faz uma excelente e pormen.':
      descrição satírica das cerimónias realizadas no templo, a fim de obter a c-
      doentes - neste caso, Pluto, o deus cego (vv. 656-741).
             47 Erixímaco deturpa em dois aspectos a afirmação de Heraclito (fr. 51 =.

      primeiro, restringindo-a à música - na verdade, a oposição do arco e da lira
      senão uma imagem do que se passa no universo; segundo (o que é mais grave
      aceitando a ideia de luta e de oposição simultânea, que constitui precisan.e
      fundamento da concepção heraclitiana do universo. Para um confronto mais ~
      norizado entre o sentido do fr. 51 de Heraclito e a interpretação que lhe dá Brix+
      veja-se Guthrie, A History of Greek Philosophy, Cambridge, 1965, vol. lI, p~
      -442.


                                                48
Ora, à imagem do que atrás vimos com a medicina, também aqui a
concórdia entre todos estes elementos é obra de uma arte, a da música,
que implanta o amor entre eles e os leva a conciliarem-se entre si. Pelo
que também a música vem a ser, no âmbito da harmonia e do ritmo,
uma ciência de fenómenos de amor.
      Claro que distingui-los na estrutura em si da harmonia e do ritmo
não levanta problemas de maior, pois não é a esse nível que o duplo
Amor se manifesta. Mas quando há necessidade de utilizar a harmonia e      d
o ritmo em proveito dos homens, seja para criar (chama-se a isso
composição), seja para interpretar correctamente melodias e ritmos já
criados (o que tem o nome de educação musical), então sim, surgem
problemas que só um bom prático sabe resolver. E eis-nos chegados ao
ponto de partida: é aos homens comedidos, até mesmo para fomentar
comedimento naqueles que o não possuam, que importa dar a nossa
afeição e assegurar o seu amor - e esse é o amor nobre, o amor celeste,    e
filho da Musa Urânia. Quanto ao da Musa Polírnnia, o amor popular,
importa aplicá-Io com cautela aos elementos a que se aplica, de modo a
colher daí o fruto do prazer sem implantar excessos de qualquer
ordem ... 48 Precisamente, na nossa profissão, uma das principais tarefas
é tirar partido dos apetites que se ligam à arte da culinária, por forma a
colher deles o prazer sem risco de doença 49. E assim, tanto na música
como na medicina como nas demais artes, quer da esfera do humano
quer na do divino, importa salvaguardar, na medida do possível, estes
dois Amores, pois ambos existem!
      E passemos agora à sucessão das estações do ano, dado que este 188a
duplo Amor também nelas intervém largamente. Se acaso reina o Amor
comedido entre os elementos de que há pouco falava - o quente e o
frio, o seco e o húmido -, se eles se conjugam numa mistura harmo-
niosa e equilibrada, eis que se proporciona aos homens, tal como aos
animais e às plantas, um ano de abundância e de bem-estar, sem riscos
de qualquer dano. Porém, se prevalece o Amor tirânico no suceder das
~stações, os estragos e os danos são inúmeros. É então que as pestes       b
encontram terreno favorável, bem como muitas outras e variadas doen-


      48 O desejo   de manter continuidade em relação ao discurso de Pausânias
explica    que Erixímaco tenha escolhido os nomes destas duas musas, Urânia e
Polímnia, para simbolizar, como Pausânias fizera em relação ao amor, uma oposição
entre a música que eleva o espírito, de natureza sagrada, e aquela que se destina a
agradar à multidão.
      49 Para uma crítica a este conceito  de medicina, vide Górgias 500d-50Ib;
confronte-se esta pretensa moderação, sophrosyne, com Fédon 68e-69a.
O banquete - Platão
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O banquete - Platão

  • 1. INTRODUÇÃO I-O TEMA Na série dos três diálogos que documentam a evolução de uma teoria platónica do amor, O Banquete ocupa um lugar central e é talvez a obra onde o conceito de amor se liga mais conscientemente a uma experiência existencial concreta. O primeiro destes, o Lisis, não passa ainda de uma indefinida tentativa (aparentemente frustrada) de identifi- car philia t= eras) com o desejo do Bem I; essa tentativa só adquire significado preciso n'O Banquete, quando, ao analisar as causas de eras e os seus efeitos, Platão reconhece a raiz puramente humana donde parte: o amor ao Bem não é senão uma consequência do instinto de imortalidade que os homens vivem em maior ou menor dimensão, e em esperança de o satisfazer, o seu amor pelo Bem não teria qualquer realidade. 1 Sobre este carácter antecipatório do Lisis cf. FRIEDLÂNDER lI, pp. 101-104 e F. OLIVEIRA, Platão. Lisis, esp. 39-44. O ponto de referência fundamental sobre o elo de ligação entre o Lisis, o Banquete e o Fedro é ainda La théorie platonicienne de I' amour de L. ROBIN 1900) - sem prejuízo de outros contributos posteriores, entre os quais os de Th. GOULD, Platonic Love (1963), de K. BÜCHNER, Eros und Sein (1965), de -. BRES, La psychologie de Platon, e, mais recentemente, de A.W. PRICE, Love Friendship in Plato and Aristotle (1989). 9
  • 2. Será incompleto, pois, acreditar num puro idealismo platónico; o amor ao objecto «ideal», quer se chame Bem, quer se chame Belo, ou implesmente eidos (como no Fedro), supõe igualmente um jogo de forças reais, uma tensão que reparte o homem entre o que é e o que pretende ser e, nesse aspecto, a experiência de amor platónico é idêntica à de tantos outros homens que lutam por uma certa espécie de transcen- dência. O Banquete situa-se precisamente no ponto em que tal experiên- cia se revela mais próxima dos homens, não só pela objectividade de uma análise que os estudos de Freud vieram confirmar 2, mas igual- mente pela valorização do elemento afectivo, melhor dizendo, erótico, que ainda no F edro se reconhecerá essencial. A partir do F edro, é certo, a importância do amor decai gradualmente, à medida que uma visão intelectualista da vida se sobrepõe na filosofia platónica; mas o próprio facto de recorrer ainda à linguagem do amor, seja mesmo como metáfora, significa que Platão não esqueceu de todo o alcance e a profundidade dessa experiência e que, embora transformada, ela conti- nua, de uma forma ou outra, unida à sua filosofia 3. II - O SYMPOSION E A SUA PROJECÇÃO SOCIAL E LITERÁRIA O Banquete de Platão, tal como o de Xenofonte (onde igualmente Sócrates é a principal personagem), testemunha, no século IV a.c., o desenvolvimento de um género literário, denominado «simpótico», cujas origens remontam talvez ao século V a.C. Uma primeira observa- ção que se impõe é definir o que para os Atenienses significava um symposion: esta prática compreendia, com efeito, duas partes, à seme- lhança dos modernos banquetes - o deipnos, «jantar», e o potos, 2 Embora, como realça F.M. CORNFORD (<<The Doctrine of Eros in Plato's Symposium», p. 78, secundado por Th. GOULD, op.cit., pp. 13-15), Platão parta de pressupostos inversos aos de Freud: a sexualidade humana como tal não é a fonte de todo o agir humano, mas apenas uma das formas de concretização de um impulso mais vasto a que caberá, na realidade, a designação de eros - a aspiração ao Bem e à imortalidade (vide 205a-e). O que não impede a existência de importantes pontos de contacto entre as duas doutrinas, como aliás CORNFORD e GOULD reconhecem, em particular no que poderia chamar-se «uma teoria de sublimação platónica». Essa confluência está na base de vários estudos recentes de teor psicanalítico sobre a obra platónica, de que é exemplo a obra já citada de Y. BRES. 3 Cf. Y. BRES, op.cit., pp. 269-273. 10
  • 3. bebida» -, contituindo a última o symposion propriamente dito, isto é, o momento em que os convivas se organizavam para beber e esco- lhiam centros de interesse para ocupar o tempo. Escapa-nos, porém, na tradução de um termo como banquete, o valor educativo e o estímulo ultural que presidiam a este género de reuniões e explicam desde cedo a ua integração na literatura. Os diálogos de Platão e Xenofonte são, a esse respeito, um documento de extraordinário interesse para nós, pois a eles devemos sobretudo a descrição pormenorizada dos costumes e regras a que os symposia obedeciam 4. Sabe-se que a passagem do jantar à bebida era acompanhada de libações, preces e cânticos; seguidamente, fixava-se um programa, estabelecendo-se não só o modo como beber, mas também os assuntos que regulariam a conversação; um presidente velava pela execução do programa - papel que neste diálogo será primeiro desempenhado por Fedro, «o pai do assunto», e mais tarde por Alcibíades. Por outro lado, era costume o dono da casa proporcionar aos seus hóspedes espec- táculos variados e divertidos em que intervinham a tocadora de flauta, a dançarina, ou mesmo uma companhia de artistas, como sucede em Xenofonte. O ambiente geral caracterizava-se pela boa disposição e liberdade, não raro terminando em orgia. Note-se que, no Banquete de Platão, a tocadora de flauta é despe- dida após o jantar e se aceita a proposta de beber moderadamente, o que parece não corresponder bem ao uso dos banquetes, como Alcibíades virá demonstrar. Mas a razão é plausível: os convivas já no dia anterior se tinham reunido e estavam, pois, saciados, tanto de bebidas como de divertimentos, pode supor-se. As circunstâncias são, neste aspecto, diferentes das que Xenofonte nos apresenta, e não se estranha o ambiente ordeiro e sério em que a reunião decorre, até à aparição de Alcibíades. Platão antecipa, nesta primeira parte do diálogo, uma ima- 4 Sobre a função social e educativa que os gregos atribuíam aos banquetes e ua associação tradicional a eros (particularmente ao eros masculino), bem documentada na lírica arcaica, podem ver-se as breves mas valiosas páginas consa- _ das ao tema por W. JAEGER, Paideia, pp. 670-677. Em ROEIN, pp. XII-XVIII, encontra-se coligida a principal informação dos autores antigos no que respeita às normas que habitualmente regiam os banquetes. O contributo mais recente sobre os aspectos rituais, educativos, políticos e artísticos, ligados aos symposia, bem como o _ blema das origens e da diversidade de paradigmas temporais e geográficos, é o conjunto de estudos reunidos em Sympotica. A Symposium on Symposion, ed. by O. _ amA Y (1990). 11
  • 4. gem dos tais banquetes organizados a que se dedica grande parte dos livros I e 11das Leis: as «normas simpóticas» (671c) são uma tentativa de associar a alegria do thiasos dionisíaco à ordem e ao rigor apolíneo, criando o clima próprio no qual poderão desenvolver-se os belos discur- sos e a emulação 'para a verdade. Essa tentativa, aliás, não foi apenas teórica; a realização de banquetes estava prevista na legislação da Academia e sabe-se que, pelo menos alguns séculos após a morte de Platão, ainda se comemorava com um symposion a data do seu ani- versário -7 de Novembro 5. 5 Tem interesse referir que, exactamente mil e duzentos anos depois de esse costume se ter perdido, com a retirada de Porfírio (séc, III) de Alexandria, Lourenço de Médicis, o grande impulsionador do movimento neoplatónico da Academia Flo- rentina, resolveu reatar a antiga tradição, promovendo, em 7 de Novembro de 1468, a realização de um banquete, a fim de comemorar a data do nascimento (e também da morte) de Platão. Para esse efeito, foi nomeado anfitrião Francisco Bandini, que reuniu, em Careggi, nove convivas «platónicos», cinco dos quais, após a leitura integral do Banquete, «representaram» as personagens do diálogo, retomando e desenvolvendo os tópicos de cada discurso. Dessa reunião parece ter surgido um dos mais importantes e extensos comen- tários à obra, o De Amare, de Marsílio Ficino, composto provavelmente entre 1470 e 1474. Juntamente com a Theologia Platonica, do mesmo autor, e a sua versão latina do Corpus Platonicum, o De Amare constitui um marco fundamental na história do movimento renascentista; é sobretudo através desta obra que o neoplatonismo se integra na cultura europeia - até aí mais ou menos marcada pela influência de Aristóteles e seus comentadores -, operando a característica fusão do pensamento antigo com a doutrina cristã. O grande número de edições que em toda a Europa se fizeram no século XVI, bem como os diálogos sobre o amor e obras de teor análogo que se lhe seguiram, de fonte indiscutivelmente ficiniana (entre elas contam-se os Dialoghi d' Amore, de Leão Hebreu, judeu português radicado em Itália), prova bem a larga repercussão que a obra teve e de que, entre nós, a lírica camoniana é um exemplo significativo. Para um estudo sobre o neoplatonismo de Ficino, veja-se a introdução ao Commentaire SUl' le Banquet de Platon de Marsile Ficin, por Raymond Marcel, Paris, 1956; sobre Leão Hebreu, consulte-se a obra de Joaquim de Carvalho, Leão Hebreu, Filósofo. Para a História do Platonismo no Renascimento, e o estudo de Pina Martins «Livros Quinhentistas sobre o Amor», Arquivos do Centro Cultural Português I (1969). Quanto ao problema da influência (directa ou indirecta) de Marsílio Ficino na lírica de Camões, veja-se Pina Martins, «Camões et Ia Pensée platonicienne de Ia Renaissance», in Visages de Luís de Camões, Paris, 1972. 12
  • 5. A darmos crédito à tradição, que afirma ter sido O Banquete expressamente composto para festejar a fundação da Academia, em ~ a. C.; 6 teremos de ver nesta obra a primeira manifestação de um grama cultural e educativo que sobreviveu à própria Academia. III - ESTRUTURA DRAMÁTICA ENARRATIVA .4.) Prólogo, apresentação de personagens e interlúdios Muitas vezes se tem insistido no carácter eminentemente dramático dos diálogos platónicos: a escolha dos cenários, a caracteri- zação de personagens, etc., tudo isso revela, de facto, em Platão uma tendência inata para o drama, que a influência de Sócrates terá desviado no sentido da filosofia. A este respeito, O Banquete pode considerar-se a obra mais representativa: nela não apenas entram em jogo elementos dramáticos, mas todo o contexto lembra em si um drama, com a sua estruturação bem definida em prólogo, episódios (ligados por inter- lúdios) e epílogo 7. O tema, por outro lado, presta-se a uma maior variedade cénica do que no conjunto dos outros diálogos, decorrendo toda a acção em volta do banquete oferecido pelo tragediógrafo Ágaton quando saiu vencedor com a sua primeira peça (416 a. C.). 6 O estabelecimento desta data aproximada baseia-se em especial na interpreta- ção de duas referências históricas contidas n'O Banquete - a alusão ao domínio dos Iónios pelos Bárbaros (vide 182a), assegurado pela Paz do Rei, de 387/6 a. C., e à destruição de uma cidade arcádia (certamente Mantineia) em 385 a. C. Teríamos assim dois anacronismos abruptos relativamente à data dramática da obra (416 a.Ci), o que não está fora da dimensão irónica que Platão cultiva nos seus diálogos (para outros exemplos, cf. W.K.C. GUTHRIE IV, p. 52). A análise de outros aspectos de conteúdo não deixa de pesar nesta interpretação dos dados mencionados: tanto O Banquete como o Fédon (provavelmente os primeiros do conjunto dos diálogos chamados do «período rnédio»), parecem reflectir, embora em formas divergentes, um eco muito próximo da primeira viagem de Platão à Sicília (387 a.Ci); no caso do O Banquete, a afeição apaixonada que o jovem Díon, cunhado do tirano Dionísio de Siracusa, terá nele despertado. Para uma discussão mais alargada, veja-se BURY, pp. LXVI-LXVIII; ROBIN, pp. VIII-XII; DOVER, Phronesis 10 (1965) 1-20. 7 A confluência de vários aspectos da linguagem e da realização dramática (quer da tragédia quer da comédia) nos diálogos platónicos encontra-se modelar- mente documentada em D. TARRANT, Journal of Classical Studies 85, pp. 82 sqq. Na mesma linha de orientação pode citar-se, entre outros, o persuasivo ensaio de J. RENDALL, Plato. Dramatist ofthe Life ofthe Reason. 13
  • 6. o prólogo põe-nos perante uma elaborada forma de apresentação, que faz derivar de uma conversa entre amigos o enredo dramático da obra. Apolodoro, um dos discípulos de Sócrates, é a principal persona- gem do diálogo inicial, assumindo o papel de narrador da «tal reunião» que tanto parece interessar os amigos, e onde Sócrates e outras persona- gens se teriam distinguido com os seus discursos sobre o amor. A nar- rativa não é, porém, directa; baseia-se numa anterior, feita por outro discípulo, Aristodemo, que assistira a essa mesma reunião. Esta cir- cunstância permite, sem quebra de verosimilhança, limitar a narração aos aspectos essenciais, àquilo que, no dizer de Apolodoro, «pareceu mais digno de menção», ao mesmo tempo que se salvaguarda a veraci- dade das informações recebidas com o testemunho de que o próprio Sócrates as confirmara. Mas não foi apenas uma necessidade artística de seleccionar que determinou esta original e complexa introdução à obra. O espaço de tempo que medeia entre a realização fictícia do banquete (416 a. c.) e a narrativa de Apolodoro - já próxima, tanto quanto podemos supô-lo, do ano em que Sócrates foi condenado (399 a. C.) - cria uma intencional sobreposição de planos, passado e presente, que condensam, no ambiente fácil e despreocupado da narra- tiva, a tragédia da sua condenação 8. Apolodoro, o discípulo que no Fédon se mostra mais visivelmente afectado com a morte do Mestre 9, é a personagem ideal para criar essa atmosfera própria e sugerir, na quase fanática devoção que demonstra pelas «palavras da filosofia» e em especial por Sócrates, os dois objectivos essenciais da obra: o elogio da filosofia e a reabilitação do Mestre que dedicou toda a sua vida ao serviço dos Atenienses, ensinando-lhes o que era a virtude. O prólogo reparte-se ainda por mais dois momentos, estes já incluídos na narrativa de Aristodemo - o primeiro, compreendendo o encontro de Aristodemo com Sócrates a caminho da casa de Ágaton, e o segundo, os episódios que antecedem a realização dos discursos. Desse discípulo, que Apolodoro refere como um «homem baixito, sempre descalço», pouco mais conhecemos, além da sua apaixonada dedicação pelo Mestre, que a narrativa do diálogo corrobora. Quanto a Sócrates, desde o encontro com Aristodemo se desenham os principais traços da sua caracterização: o desprezo pelo bem-estar material, os «êxtases» a 8 Cf. FRIEDLÃNDER III, pp. 3-5. 9 Apolodoro «chora como uma criança» e soita gritos tais que é necessário Sócrates, já depois de ter ingerido o veneno, mandá-Ia calar (1 17d). 14
  • 7. que A1cibíades aludirá mais demoradamente e sobretudo a típica eiro- neia ou «fingimento», que os interlocutores tomam por insolência, são aspectos tão evidentes ao longo do diálogo que não se torna necessário explicá-Ios. O imprevisto domina todo o movimento cénico, por vezes com nota acentuadamente cómica. Assim, o convite endereçado por Sócrates a Aristodemo, a surpresa deste quando chega a casa de Ágaton e verifica que Sócrates se deixara ficar para trás, o aparecimento deste, já a meio do jantar, e finalmente o «processo de sabedoria» que Ágaton lhe instàura, invocando o juízo de Dioniso (deus do vinho) - tudo isso prepara o ambiente de fantasia e boa disposição em que os discursos irão suceder-se. Como figuras centrais sobressaem, nesta descrição, Ágaton e Sócrates. O confronto entre ambos tem função específica no diálogo: no primeiro, é o ideal aristocrático que se define por excelên- cia, um conceito de arete, «mérito», cujo valor se mede pelos aplausos da multidão e pelo triunfo social; no segundo, é o ideal da arete autên- tica que se impõe por si, sem necessitar do apoio do vulgo. A sentença de Dioniso só poderá, pois, decidir-se em favor de Sócrates, e é através de A1cibíades, já ébrio, que tal sentença se confirma (215d-e). O momento escolhido para apresentar as restantes personagens (à excepção de Alcibíades) é a altura em que, terminado o jantar, os convivas põem à discussão a norma que deverá adoptar-se na bebida. Estas personagens, aliás históricas e bem conhecidas no meio ateniense, são já familiares dos diálogos platónicos. Fedro, o primeiro orador, figura no Protágoras (315c) como discípulo de Hípias, e dá o nome a um dos principais diálogos de Platão, intervindo nele, à semelhança do que aqui acontece, como «pai do assunto»; característico é o gosto pela mitologia e pela retórica, e ainda o cuidado pela saúde, que n'O Ban- quete se traduz pela fácil adesão à proposta de beber moderadamente. Sobre Pausânias, em compensação, poucos mais dados temos, além das referências do Protágoras e de Xenofonte (Banquete VIII, 32); sabe-se que era erastes, «amante», do poeta Ágaton e um dos mais convictos defensores da pederastia. Erixímaco, o médico, que Platão nomeia ao lado de Fedro, no Protágoras, entre os ouvintes de Hípias, representa aqui o ponto de vista da medicina; as suas intervenções demonstram uma preocução típica de moderação, não isenta de certa pedantaria. Em excelente contraste com ele surge Aristófanes, o «servidor de Dioniso e Afrodite», no dizer de Sócrates; a vivacidade e ironia do comediógrafo, que tanto visam ridicularizar os preceitos solenes de Erixímaco como a pretensa superioridade do «amor viril» entre Ágaton e Pausânias, con- 15
  • 8. densam o elemento humorístico da primeira parte, aliviando a monoto- nia dos primeiros discursos. Nada faz lembrar o antigo rancor que as alusões do Fédon (70b-c) e sobretudo da Apologia (l8d, 19c) teste- munham, dando Aristófanes como um dos principais responsáveis pela condenação de Sócrates: e, se não fosse o conhecimento das obras, a sua presença aqui nada teria de estranho para nós. Um aspecto moderno desta caracterização é ser o diálogo a revelar por si as personagens, prescindindo de qualquer apresentação formal e orientando todo o movimento cénico; o objectivo da conversa encami- nha-se naturalmente, desde a resolução de «beber consoante a vontade» à proposta de elogio do Amor, feita por Erixímaco em nome de Fedro. O mesmo efeito artístico distingue os interlúdios, ou seja, as pausas que estabelecem transição entre os discursos. O primeiro é assinalado pelo episódio cómico dos «soluços», que obrigam Aristófanes a recorrer ao auxílio do médico e a pedir-lhe que fale na sua vez; daí se origina uma troca de gracejos que se continua no interlúdio seguinte e quebra a sensação de fastio que a longa exposição de Pausânias deixara nos ouvintes. O terceiro e o quarto interlúdios retomam o «debate sobre a sabedoria», iniciado no prólogo entre Ágaton e Sócrates, com nítida vantagem deste último; a oposição entre aparência e verdade desempe- nha um papel fundamental em ambos, mas sobretudo no quarto, onde se oferece uma crítica global dos discursos precedentes, preparando ter- reno para uma nova perspectiva de amor, mais verdadeira, que Sócrates virá revelar. O quinto interlúdio é o mais longo e artisticamente o mais importante, pois introduz uma nova personagem - Alcibíades - e com ela uma completa alteração das normas antes estabelecidas: depois da exposição densamente abstracta de Sócrates, a vinda imprevista de Alcibíades marca o regresso ao real, à atmosfera própria do symposion, onde a liberdade de expressão e a «verdade» do vinho triunfam sobre todas as convenções. A coroação de Ágaton, logo suplantada pela coroação de Sócrates (o mesmo de quem, no entanto, Alcibíades se diz vítima ...), confere ao episódio um simbolismo muito especial, que só encontra correspondên- cia quando, mais adiante, Alcibíades se propõe substituir o elogio a Eros pelo elogio de Sócrates. Num e noutro caso, é o triunfo da filosofia que se representa e, num aspecto muito particular, a reabilitação de Sócrates, sobre quem os Atenienses fizeram recair a responsabilidade dos desastres políticos de Alcibíades. 16
  • 9. Os discursos ~Tãonos alongaremos muito na análise dos discursos, cujas princi- _ z; dificuldades de interpretação foram anotadas. O discurso de Fedro caracteriza-se pela preocupação de seguir um o bem definido, de que os tópicos essenciais são a natureza do deus E os) e os seus benefícios. As citações, a evocação e o tratamento arbi- , -o dos mitos são lugares-comuns da retórica do tempo, que curiosa- te vemos aqui associados a uma concepção de vida profundamente uída dos ideais homéricos: para Fedro, o Amor não representa nas um símbolo de antiguidade, mas ainda o estímulo mais eficaz conduzir os homens à virtude, inspirando-lhes a coragem de realizar belos feitos e oferecer a vida, como nos exemplos apontados de te e Aquiles. Essa perspectiva idealista é compensada no discurso do orador seguinte, Pausânias, que dá propriamente início a uma discussão moral tema com a definição de duas espécies de amor: celeste (o amor re) e popular (o amor vil). Reproduzindo um conceito tradicional círculos aristocráticos atenientes, Pausânias distingue a pederastia mo a forma mais nobre do amor, o «amor isento de excesso», que não rem outro fim senão aperfeiçoar a alma do amado, educando-o no seu ai lato sentido 10. Alguns pontos de contacto com a doutrina plató- - a dos primeiros diálogos são a tal ponto sensíveis que se tomou sível supor, por parte de Platão, um propósito de relembrar aqui -elhas teorias; mas, apesar da subtileza dos raciocínios (aliás, não - entos de paradoxos e contradições, ao gosto da época), o relativismo oral, a estreita subordinação às leis e às normas sociais viciam toda a argumentação, mostrando à evidência a superficialidade dos princípios 10 Sobre o enraizamento da pederastia na mentalidade grega e em particular nos círculos aristocráticos, vide M.H.E. MEIER e L.R. de POGEY CASTRIES, L' his- toire de l' amour grec e K. DOVER, Greek Homossexuality (um breve resumo, com incidência sobretudo na linguagem erótica de Platão, encontra-se no estudo intro- dutório deste último autor em Plato. Symposium, pp. 3-5). J. BREMMER, um dos tudiosos que, juntamente com DOVER, mais se tem consagrado a este tema, aduz uma perspectiva interessante (talvez contestável) da pederastia como sobrevivência de antigos ritos de iniciação sexual masculina, praticados pelos Indoeuropeus: vide Arethusa 13, pp. 279-298 e a comunicação «Adolescents, Symposion and Paede- rasty» em Sympotica, pp. 135-148. 17
  • 10. .- . que a regem e a profunda distância moral que separa esta noção de «amor pelos jovens» daquela que Platão defende, nomeadamente no Eutidemo, e retoma no Banquete e no Fedro. Mantendo a mesma linha de orientação marcada por Pausânias - a distinção entre o bom e o mau Eras -, Erixímaco traz uma nova dimensão do amor como princípio que se estende a todo o Universo. É a medicina que serve de ponto de partida para demonstrar em tudo a existência de um duplo Eros, concretizado ora na harmonia ora no desequilíbrio dos elementos físicos que se opõem, e cuja conciliação se toma possível mediante uma techne, ou seja, o conhecimento específico de uma arte. Alcméon, com a sua teoria dos humores, Empédocles, com a sua visão do mundo, altemadamente regido pela Amizade e pela Discórdia, e mesmo Heraclito, apesar da inconsistente crítica que lhe é feita, condicionam o fundamento ecléctico do discurso, onde sobressai, no entanto, como nota original, a necessidade de uma techne e um conceito de moderação que, para além da medicina, se alarga aos mais vastos domínios, desde a música à adivinhação. Com Aristófanes, penetramos numa esfera de sonho e idealidade onde a dynamis, «poder», do amor se liberta de todas as suas implica- ções sociais ou cosmológicas, para encontrar na humana physis a sua origem remota e verdadeira. Nesta «comédia em miniatura» 11 se exprime a mais original e poética definição de amor como «saudade de um antigo estado» que os seres actuais, reduzidos a metades, em vão tentam refazer. O mito, pelo qual se representa a natureza humana e suas mutações, não é apenas uma obra-prima de invenção e fantasia a cómica, mas ainda melhor prova de um raro talento para imitar estilos e caracteres que Platão pôs ao serviço da sua arte; nada há neste discurso que se não revele marcadamente aristofânico, desde a liberdade dos termos e imagens, quase a tender para um obsceno típico de comédia, à intenção satírica que transparece na paródia da evolução de sexos, e, em especial, no pretenso elogio do «amor viril». Todavia, a flagrante impressão de estarmos escutando o autor das comédias não apaga, numa análise mais profunda, o que há também de genuinamente platónico no discurso: a aparição de Hefesto, o deus ferreiro, com a sua promessa de um «além feliz» aos verdadeiros amantes, identifica essa saudade do todo com o místico anseio de um mundo ideal onde a alma pré-natal existira e que, graças ao amor, poderá de novo alcançar. 11 A expressão é de Bury, p. XXX. 18
  • 11. em a força dramática de Aristófanes, o discurso de Ágaton traduz esmo propósito de evasão ao real através do mito e da criação .ca. Com ele regressamos ao conceito de Eras divindade, que o r exalta acima dos outros deuses pela sua «beleza» e «virtude». umeração das qualidades físicas e morais do deus constituem o tivo dominante do discurso, onde não é difícil adivinhar um - 3 do intuito de auto-elogio: nessa «delicadeza» e «boa aparência» Eros, na excelência dos seus dotes poéticos, vemos insinuar-se uma gem idealizada do próprio Ágaton, em irónica conformidade com o o satírico que Aristófanes dele nos deixou nas Mulheres Que -_ 'ebram as Tesmofárias (vide especialmente v. 192). Apesar da eza formal da composição e da justeza de um plano que adiante es louvará, as ideias revelam-se pobres de conteúdo, sem que o r pareça interessadó em criar mais do que uma simples sugestão de e imagens, artisticamente combinados, ao estilo de Górgias. oquarto interlúdio inicia um novo acto no drama, elevando as ctivas «comuns» do amor, que até aí víramos representadas, ao o da filosofia. Com o seu discurso, originalmente marcado pelo tivo da verdade, Sócrates não apenas se propõe revelar eras na sua deira natureza, mas ainda demonstrar como esse conhecimento se - damenta numa procura. O diálogo com Ágaton, e do mesmo modo a ta conversa entra Sócrates e Diotima, não tem, pois, outra finali- senão definir as bases em que essa procura deverá assentar, ando, por outro lado, a síntese do método dialéctico e do expositi- . que no F edro se discute mais demoradamente 12. A noção de Eras o relativo a algo, como desejo de (epithymia), que tende à posse das 12 Fedro 27 Ic-272b. É difícil determinar a porção de sinceridade ou de jogo ico que cabe a este protesto de Sócrates. M. STOCKES, p. ex., consegue basear .4 a ua análise do discurso na intencional refutação aos argumentos aduzidos por - n (Pia to ,s Socratic Conversations, pp. 114-182; cf. também a valorização, em os de «verdade», dos cinco primeiros discursos, proposta por Y. BRES, op. cit., • -45-246). Mas, apesar de tudo o que possa haver de erístico e dramático no o apresentado pela «personagem» Sócrates, não é menos certo, como nota ...3L..<c.<...1-.J' rs., que todo ele anuncia «um novo tipo de comunicação filosófica» (Platon , die Schriftlichkeit der Philosophie, p. 257). Sobre esta mudança de orientação diálogos onde se expande a teoria das Formas, e o sentido construtivo das lusões que procura atingir, aparentemente em contraste com o carácter refutativo - diálogos elêncticos, vide lTRINDADE SANTOS, O paradigma identitativo na epção platónica do saber, pp. 216-218. 19
  • 12. «coisas belas e boas», vai-se fixando, através do processo dialéctico, no conceito de «intermediário» (ou, miticamente falando, de um daimon, «génio») - elo de ligação entre o humano e o divino. Essa revelação exprime-se, simbolicamente, através do discurso de uma lendária profetisa, Diotima de Mantineia, o que não apenas permite a Sócrates salvaguardar a. habitual profissão de ignorância como ainda sugerir a crença numa inspiração divina, que assiste à filosofia. Desenvolvendo-se ao longo de uma conversa com um Sócrates jovem, que aqui ironicamente assume o papel de discípulo, a exposição de Diotirna orienta-se segundo o esquema antes definido por Ágaton: a natureza de Eros e os seus efeitos sobre os homens. A realidade contraditória de Amor anuncia-se com o mito do seu nascimento, onde simultaneamente Platão atinge uma das mais belas e sugestivas criações artísticas - Eros, filho de Penia, a Pobreza, e de Poros, o deus Enge- nho, resume em si as qualidades antitéticas que opõem os seus progeni- tores: é por um lado pobre, o que equivale a dizer indigente e ignorante; por outro lado é rico, herdando do pai a sabedoria e o engenho que o levam a superar o estado natural de Pobreza, sua mãe; ainda, o facto de ser concebido no dia do nascimento de Afrodite determina a sua natureza essencial como um «apaixonado do Belo». Ao longo desta personificação vemos significativamente confluir em Eros aqueles mesmos traços satíricos que criaram em volta de Sócrates uma aura de excentricidade, e fizeram dele uma figura digna de comédia, como acontece nas Nuvens: a esse Eros descalço, mal pronto, dormindo ao ar livre e ocupando todo o tempo em filosofar, não falta sequer o epíteto de sophistes,«sofista», que ali é uma grave acusação, mas, neste contexto, simples jogo humorístico a partir do sentido originário de sophistes t= sophos, «sábio»). Com a análise dos efeitos de eros sobre os homens, retoma-se o processo dialéctico, antes interrompido. Precisando a noção de amor, cuja relação com o Belo e o Bem vagamente se apontara, Diotima fará ver, na raiz desse impulso, um instinto de Imortalidade, comum à espécie mortal, que apenas o «artifício» da geração toma possível satisfazer. Belo e Bem, nesta mais larga definição, representam, não já objecto de «posse», mas sim o meio em que eros actua, permitindo que o indivíduo se perpetue, física ou espiritualmente, em outros seres. O desenvolvimento é determinado por uma gradual aproximação de ambos os planos, o concreto e o simbólico, subentendendo «geração pelo corpo» e «geração pelo espírito» manifestações divergentes, e todavia idênticas, do mesmo amor pela Imortalidade. Com a nova (e última) definição de eros - o desejo de gerar no Belo -, atingimos o 20
  • 13. ~~C deste processo, ao longo do qual vemos sobressair, acima dos 1IIc::::::e.::lS comuns, que procuram pelo corpo a realização desse instinto, "codes que são fecundos «segundo o espírito», gerando e dando à luz "'_-'-O mais imortais» 13. _-ote-se, porém, que, até chegarmos aos chamados «mistérios 1íi:::::::OiS>~ a relação do ser vivo à Imortalidade se compreende sempre ~:.::!1~1ll0S de participação, excluindo a possibilidade de posse: sobrevi- ",~:::ja pela espécie, pela fama ou pelo pensamento noutro indivíduo, - são mais do que formas de maior ou menor participação, sem que IIz~nn suficientes para tomar o homem, por si, imortal. Será preciso Icr;;::;:arrnos nos mistérios últimos, cuja natureza revelada Diotima ex- .~s.çlITlente acentua, para que a verdadeira via nos seja indicada. Em ~s::::eii:aligação com a doutrina do Fédon, da Républica e do Fedro, a - alta forma de Imortalidade anuncia-se aqui como resultado de uma .1!c;a~alascensão, que orienta a alma do Belo sensível ao Belo meta- li:.s:.:u e ao Bem, através da educação filosófica 14. Na prática de «amar .JlIiX~[lllente os jovens» se distingue o estímulo vital deste processo .~:::::a::an·vo,em que se recortam duas fases fundamentais: a de discípulo e - mestre. Ao longo delas, o filósofo vai apreendendo, pelo amor, a eza dos corpos, depois, a beleza das almas e dos conhecimentos, ..op.c-:-i·'<>ndo-se a cada passo de um «belo objecto» para outro, onde lhe :..possível gerar e produzir novos logoi, sucessivamente profundos e - ecidos, pelos quais a sua ânsia de Imortalidade se firma. É a elação do Belo - o ser divino, simples e imutável - que culmina dialéctica ascendente do sensível ao inteligível. Pela sua contem- ~ão e posse, o filósofo não só alcança gerar a verdadeira virtude, mas .... assegura uma imortalidade que lhe advém como prémio do seu ço 15. - Os sucessivos deslizes e consequentes mudanças de definição são analisados ". GOLDSCHMIDT, Les dialogues de Platon, pp. 225-234. - À imagem do que sucede na República, esta dialéctica ascendente, assumida ::ém como processo educativo, tem um suporte não apenas ético e místico, como Sobre as visíveis influências de Parménides na concepção da Forma 'T"'_''-<I.ll.l·c,o. - Oca (eidos, idea) e sua relação com o conhecimento, veja-se J. TRINDADE - -OS, op. cit., esp. 241-255. " É neste fecho do discurso de Sócrates que grande número de comentadores a ponte para a doutrina da imortalidade pessoal, tal como os diálogos afins ao e a apresentam (nomeadamente o Fédon, a República e o Fedro). Mas, com _"BE (El pensamiento de Platon, pp. 230-231) não nos parece que tal doutrina • reconhecível no Banquete: a alma não é por natureza imortal, apenas «participa» 21
  • 14. A esta perspectiva ideal de eras como filosofia vem sobrepor-se uma visão mais humana, que A1cibíades logo de início insinua, ao substituir o elogio ao deus pelo elogio a Sócrates. Cómico e verdade, sustidos pela emoção do vinho, entrelaçam-se de maneira incon- fundível nesta confissão pessoal, onde o propósito de vingança se revela contraditoriamente como louvor ao homem «divino» (daimo- nios), que soube entender, na sua plena dimensão espiritual, o amor pelos jovens. Não obstante a «desordem» das ideias, reconhece-se um plano bem definido: todo o discurso se baseia no contraste entre o exterior de Sileno - a sua insolência (hybris), o excesso de tempera- mento erótico - e o interior, onde se descobre uma inata sabedoria. Através desta caracterização, que deliberadamente contrasta um novo perfil satírico com o que Aristófanes havia desenhado nas Nuvens, ressaltam, como nota profundamente pessoal, o domínio de si mesmo e a eironeia, bem patentes na cena de sedução. Essa aparência não obsta, porém, ao fascínio de uma superioridade moral que ainda, noutro aspecto, fazia de Sócrates um ser único entre todos. As palavras de A1cibíades testemunham até que ponto a «missão divina», que se refere na Apologia, foi entendida por Sócrates, insinuando o erro de se ver nele um corruptor da juventude e o responsável pelos actos políticos desse discípulo, que expressamente afirma não ter querido seguir os seus conselhos. C) Epílogo Põe fim à série dos discursos um novo grupo de desordeiros, que instaura desta vez a anarquia total. Aristófanes, Ágaton e Sócrates são da imortalidade, com tudo o que de precário essa participação subentende. O que será, pois, esta imortalidade do filósofo? No seguimento das premissas anteriores, será difícil discordar da sua interpretação como «uma eternidade de espírito, oposta à imortalidade individual» (e.g. Y. BRES, op.cit., p. 272). Sem procurarmos aqui uma justificação para o desvio óbvio de uma das doutrinas platónicas mais insistente- mente defendidas nos diálogos afins (e poderia sê-lo tão-só o papel dramático que o par Sócrates/Diotima desempenha neste contexto cénico ...) convirá lembrar as próprias dificuldades que o conceito platónico de imortalidade pessoal levanta, na sua frágil associação à teoria da metempsicose: vide a análise de L CROMBIE, An Examination oi Plato's Doctrines I, pp.303-325, esp.314; cf. a discussão deste ponto na minha Introdução ao Fédon (Coimbra, Livraria Minerva,21988, pp. 22-24, n.l). 22
  • 15. os únicos que ainda de madrugada se conservam acordados. Este último tenta convencer os outros dois convivas de que «aquele que tem a arte de poeta cómico tem igualmente a arte de poeta trágico» 16. E final- mente ao romper da manhã, quando aqueles adormecem, Sócrates afasta-se, acompanhado de Aristodemo, para o Liceu, e aí inicia um dia igual a tantos outros, comprovando essa excepcional karteria, «resis- tência», que o discurso de Alcibíades tão nitidamente evidenciara. O epílogo deixa-nos pois, como tema de meditação, um novo conceito estético de tragédia e de comédia, cujo alcance só devidamente se compreende associando o Banquete ao Fédon: a visão cómica do herói, no primeiro dos dramas, completa-se na visão trágica do segundo. E assim a mimesis, «imitação», que à luz da Républica não passa de forma degradada do conhecimento, cópia de outras cópias (597e-599a), readquire a sua dignidade e o seu valor educativo quando, posta ao serviço da filosofia, se unifica nas representações distintas de uma mesma realidade superior. 16 Segundo R. ADRADOS, Platão põe aqui de parte o seu conceito de drama 'como mimesis, «imitação» - conceito que levaria inevitavelmente a uma condena- ção idêntica à da República ou à defesa da imposição de uma censura, como nas Leis. Na esteira de KRÜGER, o paradoxo socrático explicar-se-ia por uma progressiva indistinção entre género cómico e género trágico, que a comparação entre os discur- sos de Aristófanes e de Ágaton evidenciaria. Esta dedução não parece, contudo, esclarecedora. Como ROBIN (p. VIII) creio que a chave mais provável do paradoxo estará no confronto entre o Fédon e o Banquete, obras que de facto se interligam «como uma tragédia e uma comédia, mas postas em cena, uma e outra, pela Filoso- fia». Breve, mas penetrante, é também a observação de C. J. ROWE em Plato, pp. 151-152: o que distingue o homem dotado de techne (<<arte»),é a sua «capacidade para os opostos». Tal como o homem verdadeiro e bom (agathos) do Hipias Menor é o que é capaz de fazer mal e mentir, assim também o poeta que sabe representar a face trágica da vida deve saber representar a sua face cómica. 23
  • 16. FIGURAS DO DIÁLOGO A) do Prólogo: APOLODORO UM DOS COMPANHEIROS B) da Narrativa: ARlSTODEMO SÓCRATES ÁGATON FEDRO PAUSÂN!AS EroxíMAcO ARlSTÓFANES ALCIBÍADES
  • 17. APOLODORO Quanto às informações que vocês pretendem, julgo que estou em r;_ boa forma para as dar... Ainda anteontem, por acaso, vinha eu de minha casa, em Faléron, quando um conhecido meu me avistou de costas e me interpelou de longe, em tom de gracejo: «Olha, o homem de Faléron! Tu aí, Apolodoro ... E se esperasses por mim?» Eu parei e fiquei à espera. E vai ele: «Para te ser franco, Apolodoro, ainda há instantes que andava à tua procura, pois desejava que me informasses do convívio que reuniu Agaton, Sócrates, A1cibíades e todos os outros que estive- b ram presentes no festim. Que espécie de discursos sobre o amor fizeram eles? Houve já quem me contasse - um indivíduo que tinha, por sua vez, ouvido uma narrativa a Fénix, filho de Filipe, e me assegurou de que tu estavas também a par. Mas o certo é que não soube dizer-me nada de jeito! Conta-me tu, portanto, já que és a pessoa mais indicada para transmitir as palavras do teu amigo ... Mas antes, diz-me: assististe também ao tal convívio ou não?» Comentei: «Estou a ver que esse teu narrador não te disse mesmo c nada de jeito, se pensas que o tal convívio de que me pedes informação foi há tão pouco tempo que eu pudesse ter assistido ... » «Foi a ideia com que fiquei», confirmou ele. , «Como, Gláucon?» l exclamei. «Não sabes que Agaton já não mora em Atenas há muitos anos e que, por minha parte, ainda não I Deve tratar-se aqui, tal como sucede com Fénix, filho de Filipe, a seguir mencionado, de uma personagem desconhecida ou mesmo imaginária: há quem procure, no entanto, identificá-Ia com o irmão de Platão ou com o seu tio-avô. pai de Cármides, ambos personagens familiares nos diálogos platónicos. 27
  • 18. decorreram três anos desde que comecei a andar com Sócrates e me esforço, em cada dia, por conhecer a fundo as suas palavras e os seus 173a actos? Antes, vogava por aí ao sabor da corrente, convicto, como- estava, de me ocupar de coisas úteis - e era mais digno de compaixão que ninguém! Precisamente como tu agora, que achas toda e qualquer actividade preferível à filosofia ...» «Vamos, não troces», atalhou ele, «e diz-me lá quando é que se deu esse convívio.» Esclareci então: «Foi quando Ágaton saiu vencedor com a sua primeira tragédia, éramos nós ainda crianças. Mais concretamente, foi no dia a seguir ao das celebrações que ele promoveu com os seus coreutas em acção de graças pela vitória.» 2 «Então já deve ter sido há muito tempo!», comentou Gláucon. «Mas quem é que te fez a narrativa? Foi mesmo Sócrates?» b Repliquei: «Não, por Zeus! Foi o mesmo que a contou a Fénix, um tal Aristodemo da tribo cidateneia, um homem baixito, sempre des- calço ... Esse sim, assistiu ao convívio, como apaixonado que era de Sócrates - e, salvo erro, dos mais fervorosos à altura! Claro que depois não deixei de inquirir Sócrates sobre uns quantos pormenores da narrativa de Aristodemo e em todos eles recebi a confirmação do que lhe havia escutado.» «Vamos», incitou ele, «porque não ma contas a mim também? Fora de dúvida, a estrada que leva à cidade é tão própria para falar como para se ouvir enquanto se caminha ...» E assim lá fomos nós, estrada fora, ocupados neste tema de con- c versa, de modo que, como dizia de início, me encontro em boa forma. E, se vocês me requerem para fazer essa narrativa, é mesmo dever meu fazê-Ia: no que me diz respeito, sempre que se proporciona ocasião para conversar sobre filosofia, seja eu ou outro qualquer a falar, ninguém imagina a alegria que sinto, para além do proveito que delas espero tirar! Trate-se, porém, de outro género de conversas - sobretudo essas que vocês, homens ricos e negociantes, costumam ter - e eis-me invadido por um mal-estar profundo. Mais: tenho pena de vocês e dos vossos amigos, convictos, como estão, de se ocuparem de algo que d valha a pena quando as vossas ocupações nada valem! De mim podem 2 Era costume em Atenas o vencedor organizar festas em acção de graças, que consistiam sobretudo nos epinícios ou «cantos de vitória». Por vezes eram os coreu- tas ou os amigos que tomavam essa iniciativa. 28
  • 19. também vocês achar que nasci sob uma má estrela ... e acho que julgam certo. Mas eu a vosso respeito não acho, tenho a certeza! 3 COMPANHEIRO Sempre o mesmo, Apolodoro! Sempre a desfazeres em ti e em toda a gente! Até dá ideia de que, na tua opinião, todos nós, à excepção de Sócrates, não passamos de uns infelizes - a começar em ti mesmo. Onde terias tu arranjado esse epíteto de «temo», ainda estou para saber. O certo é que nas tuas conversas te mostras sempre assim: agressivo para contigo e com toda a gente, salvo Sócrates. APOLODORO Meu excelente amigo! É isso então que ressalta das ideias que faço e a respeito de mim e dos outros? Que perdi o juízo e estou apanhado de todo? COMPANHEIRO Não vale a pena, Apolodoro, estarmos agora a discutir por causa disso ... Vamos, não fujas ao assunto e conta-nos lá que discursos é que se fizeram. APOLODORO Pois bem, foram mais ou menos deste teor... Ou melhor, vou tentar 174 fazer-vos a narrativa desde início, tal como a ouvi a Aristodemo. Narrativa de Aristodemo Contou, pois, Aristodemo que encontrou Sócrates ainda fresco do banho e com umas luxuosas sandálias nos pés, coisa que nele era rara. E perguntando-lhe onde ia assim todo ataviado, respondeu-lhe ele: - Jantar a casa de Ágaton! Ontem escapei-me dele, durante as comemorações da vitória, pois as multidões intimidam-me. Mas com- b 3 Os amigos de Apolodoro, tanto Gláucon como aqueles a quem se dirige no momento do diálogo, são apenas «amadores» da filosofia; os discursos filosóficos poderão intelectualmente seduzi-Ios, mas não desviá-Ios da sua esfera de interesses, essencialmente «prática». Entre a vida filosófica (cada vez mais tendendo para uma 29
  • 20. prometi-me a estar hoje presente. Por isso me ataviei assim, para aparecer belo em casa de um homem belo ... Quanto a ti, que dizes à ideia de aparecer no jantar sem convite? - Cá por mim - respondeu - é como mandares. - Acompanha-me então - decidiu Sócrates. - Vamos virar às avessas o provérbio e dizer que «aos jantares de um homem de bem aparecem os bons espontaneamente» 4. Aliás, é provável que tenha sido Homero a virar às avessas o provérbio e até a fazer pouco dele ... O facto é que, depois de apresentar Agamémnon como um homem de excepcional valor na guerra e Menelau como «um fraco guerreiro», põe c Menelau a aparecer sem convite à mesa de Agamémnon, na altura em que este propiciava os deuses com um festim. Foi, portanto, o homem sem méritos a aparecer no jantar de um homem emérito ... Replicou-lhe Aristodemo: - Quem sabe? Talvez o que dizes não se aplique a mim e seja antes, como em Homero, uma pessoa insignifi- cante a aparecer sem convite no festim de um homem insigne ... Se me d levares, vê, pois, a justificação que vais dar porque, por mim, não me resigno a dizer que chego sem convite: digo que sou teu convidado! - «Os dois, avançando um a par do outro» 5, decidiremos então o que convirá dizer - rematou Sócrates. - Vamos! Conversando mais ou menos nestes termos, puseram-se a cami- nho. A dado momento Sócrates, embrenhado em qualquer reflexão 6, e deixou-se ficar para trás e, ao ver que Aristodemo estava parado à sua theoria) e a vida dos negócios, nota-se um distanciamento progressivo; e o desprezo de Sócrates em relação às coisas exteriores - como a riqueza, por exemplo (cf. 219c) -, levado ao exagero pelos Cínicos, deve ter contribuido decisivamente para esse distanciamento. 4 Conhecemos duas formas desse provérbio: «as pessoas de bem vão esponta- neamente aos jantares dos homens vis» e «as pessoas de bem vão espontaneamente aos jantares dos bons». Platão deve ter este em vista, pois imediatamente a seguir ironiza o uso que Homero dele faz em relação a Menelau, noutros pontos retratado com um «fraco guerreiro» (Ilíada XVII, 588). Note-se que no referido episódio da Ilíada não há qualquer malícia da parte de Homero, pois Menelau vai ter com Agamémnon para o consolar no momento em que este, já desanimado, pensa desistir da luta (II, 408 sqq.). A alteração ao provérbio pressupõe um jogo de palavras entre o nome de Ágaton e o adjectivo agathos, «bom». 5 Verso da Ilíada (X, 224) que se tomou proverbial. 6 Este hábito de recolhimento ou concentração nas situações mais inesperadas devia ser um traço bem característico do Sócrates real, que o discurso de A1cibíades retoma. Aristófanes recorre igualmente a este motivo para caricaturar Sócrates nas Nuvens. 30
  • 21. espera, ordenou-lhe que fosse andando. Quando este chegou a casa de Ágaton, encontrou a porta aberta e, segundo referiu, aí se passou uma cena com o seu quê de cómico. Um dos criados que estavam lá dentro veio de imediato ter com ele e conduziu-o à sala onde se encontravam os outros convivas, que ele surpreendeu já quase no jantar. Ágaton, logo que o vê, exclama: - Em boa hora chegas, Aristodemo. para jantar connosco! Se vieste por outro motivo, guarda-o para depois. Ainda ontem, justa- mente, andei à tua procura para te convidar, mas não consegui encon- trar-te. Mas Sócrates? Como é isso arranjado que não o trazes contigo? Só então (contava Aristodemo) ao voltar-me para lodos os lados, dei conta de Sócrates não vinha atrás. Disse. por fim: - Mas era mesmo com Sócrates que eu devia vir. pois foi ele quem me convidou para o teu jantar! - Quanto a ti - replicou Ágaton -. tudo bem. ~1as ele. onde se meteu? - Ainda não há instantes que vinha atrás de mim; também eu 175 estou admirado e me pergunto onde se terá metido: - Vamos, rapaz! - ordenou Ágaton a um descobres Sócrates e o trazes para cá. Quanto a ti. . tala-te aí, ao lado de Erixímaco. Veio então um criado lavar-lhe os pés para Entretanto, eis que aparece o outro com a notícia de se tinha acolhido no pátio de um dos vizinhos e recusando-se a ir por mais que ele o chamasse. - Estranho, o que me contas! - comentou Ãgaron, - E tu desistes assim da empresa? Não voltas a chamá-lo? - Nem pensar - interveio Aristodemo. - Deixem-no em paz. b É já um hábito muito dele: de vez em quando afasta-se para onde calha e aí fica especado. Mas, pelos meus cálculos. deve estar já a chegar. Não o perturbem, deixem-no sossegado! - Assim faremos então, se achas melhor - concordou Ágaton. - Quanto a nós, rapazes, vamos ao nosso festim. Tragam-nos tudo o que quiserem, uma vez que ninguém vos está a vigiar - coisa, de resto, que eu nunca fiz ... Façam, de coma, pois, que eu e estes amigos somos vossos convidados e sirvam-nos o jantar de modo a merecer os nossos elogios. c Em seguida começaram a jantar. Sócrates, entretanto, nada de aparecer! Ágaton ainda propôs várias vezes mandá-Ia buscar mas Aris- todemo não deixava. Ei-lo, enfim, que aparece, não com tanto atraso quanto era costume: de facto, estavam, quando muito, a meio de jantar. 31
  • 22. d
  • 23. festa de ontem. Vejam lá, pois, qual será a forma mais aprazível de bebermos. - Tens muita razão, Pausânias - acudiu Aristófanes -. em no mentalizares de algum modo para uma certa tolerância na bebida: eu também fui dos tais que ontem se encharcaram ... A estas intervenções seguiu-se a de Erixírnaco, filho de Acúmeno: - Bem vindas, as vossas palavras! Só me falta consultar aqui a opinião de um de vocês ... Ágaton, que tal te sentes de forças para beber? - Muito mal - respondeu ele -, também eu não me sinto com c forças. - Que belo achado, dá ideia, não só para mim como para Aristo- demo, Pedro e para todos estes que aqui estão, se vocês, os mais valentes na bebida, renunciam por hoje! Nós, já não admira: fomo sempre fracos ... Quanto a Sócrates, está fora de causa: é igualmente bom nas duas modalidades e tanto lhe faz que adoptemos esta como aquela regra 10. E já agora, que nenhum dos presentes parece com grande disposição para beber em excesso, talvez não seja inoportuno dizer-vos com franqueza o que penso sobre o hábito de embriaguês. d A meu ver, aí está uma coisa que a medicina prova à evidência, ou seja, que a embriaguês só traz malefícios às pessoas. E, por minha parte, nem desejaria ir muito além na bebida nem o aconselharia a quem quer que fosse, especialmente quando ainda se tem a cabeça pesada da véspera 11. - Não há que ver! - atalhou Pedro de Mirrinunte. - Pela parte que me toca, costumo seguir sempre os teus conselhos, sobretudo quando se trata de medicina. E os demais, se forem pessoas de juízo, não deixarão hoje de fazer o mesmo. Ao ouvi-lo todos concordaram, é claro, em não fazer do convívio e dessa noite uma competição de bebidas e em beber apenas consoante a vontade. - Muito bem - comentou Erixímaco. - Uma vez que está esta- belecido que cada um beba apenas o que quiser, sem coacções nenhu- mas, a minha proposta seguinte é que se mande passear a tocadora de 10 Neste passo define-se o respectivo grau de resistência ao vinho em cada conviva: enquanto Pausânias, Aristófanes e, sobretudo, Ágaton e Sócrates são consi- derados «fortes» (no fim vemos que apenas estes três últimos conseguem aguentar-se de pé), Fedro, Erixímaco e Aristodemo incluem-se entre os fracos; de facto, Fedro e Erixímaco escapam-se, logo que o banquete ameaça degenerar em orgia, e Aristo- demo cedo adormece, para só acordar de madrugada. II O pendantismo científico é um dos traços mais evidentes na caracterização de Erixímaco. 33
  • 24. flauta que entrou há momentos: ela que toque para si ou para a, mulheres da casa, se lhe aprouver. E quando a nós, aproveitemos convívio de hoje para discursos. Mas que género de discursos? Esto, disposto a sugerir-vos um tema, se vos interessa. 177 Toda a gente se declarou interessada e o incitou a apresentar a SD- sugestão. Prosseguiu então Erixímaco: - Começo por dizer, como na Melanipe de Eurípides: «não sã. minhas estas palavras» 12, mas aqui do nosso Fedro. A toda a hora ~ momento aí está ele a encher-me os ouvidos com os seus queixumes «Não é impressionante, Erixímaco, como vemos por aí os poetas b comporem hinos em honra dos mais variados deuses, e em honra de Amor, um deus tão antigo e ilustre, nenhum desses poetas ilustres de agora lhe faz sequer um encómio? Mesmo os bons autores de prosa, se te dignares reparar neles, aí os tens a escrever elogios de Héracles e de outros deuses, como o nosso excelente Pródico 13. E isto ainda não é c mais extraordinário: às minhas mãos até já veio parar um livrinho de c um desses talentos onde o sal era exaltado até às nuvens por causa da sua utilidade! E outras ninharias que tais podes ver a cada momento enaltecidas. Nisso sim, aplicam eles todo o seu zelo; trate-se, porém de Amor, e verás que até ao dia de hoje ainda nenhum homem ousou dirigir-lhe um cântico condigno. E assim se põe de lado um deus tão poderoso ... » Ora, eu acho que Fedro tem razão nos seus queixumes e por isso, ao mesmo tempo que pretendo apaziguá-lo com este contri- buto, acho também que a ocasião presente é a ideal para nós, que aqui estamos presentes, celebrarmos o deus. Se estiverem todos de acordo. uma boa maneira de passar o tempo será aplicá-Ia em discursou. d A minha opinião, aí a têm: cada um de nós deverá apresentar um discurso de elogio ao Amor, o mais belo que lhe for possível, seguindo pela direita. O primeiro a falar será naturalmente Fedro, já que ocupa o primeiro lugar e já que é ele, também, o pai da ideia. - Ninguém vai votar contra a tua proposta, Erixímaco - apoiou Sócrates. - Não seria decerto eu a rejeitá-Ia, eu que faço profissão de 12 Eurípedes escreveu duas peças com este nome. A citação pertence à Meia- nipe Sábia (fr. 488 Nauck). 13 Sofista contemporâneo de Sócrates, que se distinguiu no campo da sino- nímia. Foi também autor de uma alegoria (resumida em Xenofonte, Mem. 2.1.21-34 em que Héracles é posto perante a escolha do Vício ou da Virtude. A referência seguinte parece aplicar-se ao orador Polícrates. 34
  • 25. nada mais saber a não ser de amor. .. 14 Tão pouco Ágaron ou Pansânias suponho. E muito menos Aristófanes, que consagra todo o seu tempo ao serviço de Dioniso e de Afrodite! 15 Nem qualquer destes que tenho e diante dos olhos ... E muito embora nós, os que ocupamos os último: lugares, não fiquemos em igualdade de circunstânci por satisfeitos se aqueles que nos precederem falarem devem. Fedro que comece, portanto, o seu panegírico e hora! Todos os outros se manifestaram de acordo com a interve Sócrates e secundaram o seu incitamento. Com respeito ao que cada um fez, é claro que Aristodemo não reteve todos os pormeno- res, como também eu não retive tudo aquilo que ele me contou, Cingindo-me, porém, ao essencial e aos oradores que me parece mais dignos de menção, passo a referir-vos os discursos apresentado- por cada um deles. Foi portanto Fedro, como digo, o primeiro a apresentar o seu discurso, começando mais ou menos por afirmar que «o Amor era um grande deus, um deus extraordinário aos olhos dos homens como do deuses, por muitos e variados motivos, entre os quais avultava o da sua origem.» Efectivamente - prosseguiu - as honras de que goza devem-se b ao facto de se incluir entre os deuses mais antigos 16, e a prova é que não teve pais nem há poeta ou prosador algum que fale deles. Hesíodo, por exemplo, diz que primeiro surgiu o Caos, ....... depois a Terra de vasto seio, suporte inabalável de tudo e o Amor ... 14 Para esta afirmação, cf. Lísis 204c e Pedra 257a. De facto, no BaIU[U6 Sócrates revela-se como a personificação do verdadeiro erastes, «amante». 15 A alusão a Dionisio e a Afrodite é ambígua: Sócrates não só tem em vis arte do comediógrafo (Dionisio é também o deus do teatro) como ainda' . ironicamente a sua propensão para a bebida e para os prazeres sensuais. 16 Este ponto de vista será mais adiante contrariado por Ágaron,que vê . mente em Eras o mais jovem dos deuses (cf. 195b). Fedro apoia-se na mi citando, num alarde de erudição sofística, não só poetas como Hesíodo (cf. Ti 116 sqq.) e Parménides (fr. 13 Diels), mas ainda prosadores: é o caso de A, autor do século V a. c., que escreveu várias genealogias baseadas em H ' 35
  • 26. E com Hesíodo concorda Acusilau, que também diz que a segui: ao Caos vieram estes dois, a Terra e o Amor 17. Por sua vez Parménides ao falar da Geração, afirma: ... pensou primeiro no Amor antes de todas as divindades. 18 c E assim em variadas fontes há acordo em reconhecer que o Amo: se conta entre as divindades mais antigas. Ora, é em virtude desse estatuto que dele nos provêm os maiores benefícios. Por minha parte, pelo menos, não posso imaginar um bem com- parável ao do jovem que desde cedo possui um amante digno, ou ao de amante que encontra um amigo igualmente digno. Mais, é essencial que os homens que se dispõem a viver uma vida plenamente bela se capacitem deste facto: nem a nobreza de parentesco, nem os cargos de prestígio, nem a riqueza nem qualquer outra coisa são capazes de d inspirar feitos tão belos como o amor. E em que me baseio para o dizer? Concretamente, na vergonha de cometer acções vis e na emulação que as acções belas suscitam. Sem estes dois requisitos não é possível c. qualquer Estado ou a qualquer indivíduo realizar algo de belo e gran- dioso. E por isso vos asseguro: todo o homem que ama, se é apanhado cometer qualquer vileza ou a sofrê-Ia da parte de alguém, sem se defender por cobardia - nem à vista de seu pai nem dos seus camara- e das nem de outra pessoa qualquer se sentirá tão mal como na presença do seu amado! E a respeito deste último observamos exactamente o mesmo: é sobretudo na presença do seu amante que se envergonha. quando supreendido em qualquer vileza. Assim, se houvesse processo de constituir um Estado ou um exército só de amantes e de amados, que organização melhor poderia encontrar-se? 19 Homens como estes, afeitos a repudiarem toda a espé- 17 A citação de Hesíodo (Teogonia 116, 117, 120) no passo assinalado tem levantado suspeitas sobre a autenticidade dos vs. 118-119 que Platão parece ignorar. bem como Aristóteles em Metafísica 984a 27; de resto, a referência ao Tártaro (v. 119) seria neste contexto deslocada. Mas dado que todos os mss. apresentam os dois versos e outros autores também os citam, parece que não há razão para duvidar da sua autenticidade (cf. M. L. West, Hesiod Theogony, Oxford, 1966, pp. 193-195)_ 18 Alguns autores supõem que o sujeito de «pensou» é a Geração personificada: Plutarco, por sua vez, fala em Afrodite (Amatores 756 sqq.). Mas pode igualmente pensar-se na Justiça (cf. fr. 8 Diels, vv. 13-15) que, como Simplício afirma, faz nascer o amor (frs. 39 e 18 Diels). 19 A noção homérica de are te, que se limita exclusivamente ao indivíduo, e alargada à esfera da polis. Atenas, com a sua multiplicidade de interesses, difícil- 36
  • 27. cie de vileza, a emularem entre si na honra e a exercitarem-se em pelejas 179 uns com os outros, mesmo em pequeno número, seriam, por assim dizer, capazes de vencer o mundo inteiro! E a razão é que o amante aceitaria mais facilmente desertar das fileiras ou largar as armas à vista de qualquer outra pessoa do que do seu amado: na presença deste, preferiria mil vezes morrer! Quanto a deixar para trás o seu amado e não o socorrer em caso de perigo ... não há homem nenhum tão fraco a quem o próprio Amor não inspire actos de bravura e não torne igual aos b bravos por natureza. Em suma, o que diz Homero a respeito de alguns heróis, que «o deus lhes insufla coragem» 20, esse dom concede-o espontaneamente o Amor aos amantes. Mais ainda, apenas os que amam - e refiro-me não apenas aos homens mas às mulheres tam- bém - se dispõem a morrer por outrem. Justamente Alceste, a filha de Pélias 21, oferece um testemunho claro desta afirmação a todos os Helenos. Ela foi, de facto, a única c pessoa que se dispôs a morrer na vez do marido, muito embora o pai e a mãe dele fossem ainda vivos: o amor que ela dedicava ao marido superou em tanto a amizade dos próprios pais, que estes mais pareciam uns estranhos em relação ao filho, aparentados, quando muito, de nome ... E ao proceder como procedeu, o seu gesto afigurou-se de uma tal beleza, aos olhos dos homens como até aos dos deuses, que um privilégio limitado a bem poucos, entre tantos que avultaram pelo mente julgaria realizável um tal programa; mas Fedro deve ter em vista as cidades dóricas. Efectivamente, em 371 a. C. (seis anos depois da data provável da composi- ção do Banquete), o «batalhão sagrado de Tebas» vem provar que as concepções de Fedro não eram tão alheias ao seu tempo como poderia parecer. 20 Citação da llíada X, 482 (cf. XV, 262). Note-se que Fedro se contradiz mais adiante (l79d), apresentando Orfeu como exemplo do homem cobarde, «que não teve a coragem de morrer por amor». Com este passo, compare-se o testemunho de Alcibíades a respeito de Sócrates (220e), que se recusa a abandoná-I o ferido na batalha e não só consegue salvar-lhe as armas mas também a vida. 21 A lenda em que Fedro se baseia, e que foi dramatizada por Eurípides, refere que, chegando o momento de Admeto morrer, ApoIo pediu às Parcas a graça de lhe prolongarem a vida, se alguém se oferecesse para tomar a sua vez. Alceste consente, mas é ressuscitada por Héracles, que no próprio dia do funeral se acolhera em casa de Admeto que, embora inconsolável com a morte da esposa, não quis deixar de cumprir para com ele os deveres da hospitalidade. Em Eurípides, vemos que apesar do amor pelo marido e pelos filhos, que doutro modo ficariam desamparados, o que move Alceste é a consciência de que, pela glória, será recompensada pelo seu sacrifício. Assim também Sócrates interpreta o seu gesto e o de Aquiles, atribuindo-os ao amor da glória que é, em última análise, amor da imortalidade (vide Alceste 292, 324; cf. Banquete 208d). 37
  • 28. d número e pela beleza dos seus feitos, lho concederam os deuses a el, que a sua alma regressasse do Hades. E concederam-no, levados ~ admiração que o seu gesto lhes suscitou. Tal é, pois, o apreço que próprios deuses manifestam pela dedicação e pela virtude que o éL inspira. Já a Orfeu, o filho de Eagro 22, mandaram-no embora do H2._ sem conseguir o seu objectivo, e em vez de lhe entregarem, em carr osso, a mulher que ele tinha vindo buscar, lhe mostraram apenas _ fantasma dela. É que lhes pareceu cobarde a sua atitude (coisa nart: de resto, num tocador de cítara ...), visto que não teve a coragem sacrificar a vida por amor, como fez Alceste, e preferiu servir-se artimanhas para entrar vivo na Hades. E eis a razão por que os deuse castigaram e lhe destinaram a morte às mãos de mulheres. Pelo contrário a Aquiles, o filho de Tétis, testemunharam o -; e apreço enviando-o para as ilhas dos Bem-Aventurados 23, e eis porq_ embora prevenido por sua mãe de que o esperava a morte, se mata- Heitor, e de que, em caso contrário, havia de regressar à sua tem. acabar os seus dias na velhice, optou sem hesitação por ir em socorro ~ seu amante Pátroc1o e vingá-lo 24; ou seja, não apenas escolheu mor 180a por ele como também segui-lo na morte. Daí que os deuses, tocac pela mais funda admiração, o tenham honrado de uma forma :..:. especial, correspondendo ao elevado apreço que aquele mostrara pc seu amante. É uma tolice o que Ésquilo apregoa, ao falar de Aquiles coe amante de Pátroc1o ... Aquiles, cuja beleza excedia não apenas a .: 22 Fedro altera os dados da lenda: o dom que eleva Orfeu acima dos ouc: homens - a música - e lhe abre as portas do Hades é, segundo ele, a causa da s.; desgraça; os deuses não se deixam enganar pelos seus cantos comoventes, antes vêe: neles uma prova de cobardia. Cf. República 399a: todos os modos musicais excepção do frígio e do dório, são criticados por amolecerem os espíritos. Note-s que no Laques 118d, só é aceite o modo dório. Depois da tentativa inútil P'~ recuperar Eurídice, Orfeu foi despedaçado pelas mulheres da Trácia, que assim > vingaram do seu desprezo por elas. 23 Outras variantes da lenda situam Aquiles na ilha de Leuce e ainda D- Campos Elísios. Píndaro cita duas versões do mesmo mito: nos vv. 79-83 da _ Olímpica diz-se que Aquiles habita nas Ilhas dos Bem-Aventurados; a IV Nemeia (,- 49-50) localiza-o numa ilha do Ponto Euxino (Leuce). Vide Maria Helena da Roce Pereira, Concepções Helénicas de Felicidade no Além, Coimbra, 1955, pp. 34-35. 24 Veja-se a profecia de Tétis (mãe de Aquiles) em lliada IX, 410-416. ~- canto XVITI decide-se a escolha de Aquiles (121-126). 38
  • 29. Pátroclo como a de todos os outros guerreiros juntos! Sendo, de resto, muito mais novo, conforme testemunha Homero, pois não tinha ainda barba 25. Ora, se não restam dúvidas de que os deuses avaliam ao mais alto grau essa forma de mérito que se associa ao amor, não é menos certo que a admiram e apreciam ainda mais nas suas recompensas quando é o amado que dá mostras de afeição pelo seu amante do que no b caso inverso 26. Efectivamente, o amante tem em si algo de mais divino do que o amado, é a divindade que o inspira. E por isso os deus concederam maiores honras a Aquiles do que a Alceste. ao enviá-lo para as ilhas dos Bem-Aventurados. Aí está, por minha parte, o que tenho a declarar-vos sobre o Amor: ele é não só o mais antigo e venerável dos deuses como o que tem mais poder para levar os homens a alcançar o mérito e a felicidade, tanto na vida como após a morte. Tal foi, mais ou menos, o discurso de Fedro, de acordo com o meu c narrador. Seguiram-se-lhe alguns outros de que não estava já bem lembrado, pelo que os pôs de parte, passando a referir-me o discurso de Pausânias. Eis as suas palavras: - Não me parece lá muito feliz, Fedro, essa simplicidade com que o tema nos é lançado e se reclama de nós um panegírico do Amor! Estaria bem, claro, se houvesse apenas um deus Amor, mas não é o caso. E visto que não há apenas um, o caminho mais correcto é definir previamente a qual dos Amores convém dirigir os nossos elogios. Vou d assim tentar corrigir a tua falta, quero dizer: procurar, antes de mais, definir a espécie de Amor que devemos elogiar e fazer em seguida um elogio condigno da sua divindade 27. É bem conhecido de todos nós que não há Afrodite sem Amor. Se houvesse, portanto, uma só Afrodite teríamos também um só Amor. Mas o facto é que há duas e, como tal, necessariamente dois Amores ... Sim, porque a existência das duas deusas nem tem discussão! Uma, a mais antiga e que não teve mãe, é filha do Céu - e eis a Afrodite que 25 Cf. Ésquilo, Mirmidões, fr. 228 Mette, e Iliada XI, 786. 26 Esta distinção entre erastes, «amante», e paidika, «amado», será mais demo- radamente debatida no discurso de Pausânias. 27 Seguindo as boas regras da retórica, Pausânias estabelece, como primeira condição, a necessidade de definir o objecto do discurso; Ágaton e Sócrates farão o mesmo (l95a, 199c; cf. infra, Fedro 237c). 39
  • 30. designamos também de celeste; a outra, a mais recente, é filha de =: e e de Dione - e eis a Afrodite a que chamamos popular 28. A se+ exactos, portanto, impõe-se, que chamemos popular ao Amor acompanha esta última, e demos ao outro a designação de celeste. : se é certo que todos os deuses têm direito ao nosso louvor, cabe-nos 181 entanto, delimitar o âmbito específico das suas competências. É, ai:.- o que se passa em toda e qualquer a actividade: nenhum acto, CoIlS rado em si e por si mesmo, é belo ou vil, tal como as nossas ocupa; de agora - beber, cantar, conversar. .. -, nenhuma delas têm pc- mesmas qualquer beleza. O que determina essa qualidade num acte seu modo de realização: se o realizamos de forma bela e digna. resulta belo; em caso contrário, vil. Assim acontece quando amar nem toda a espécie de amor é bela e digna de elogios, mas apenas ao; que nos incita a amar com nobreza. Ora bem: o amor correspondente à Afrodite popular 29, cc b popular que é, no seu pleno sentido, deixa ao acaso as consequên: dos seus actos. E tal é, justamente, o amor em que se comprazerr pessoas vulgares: pessoas, antes de mais, a quem é indiferente apai narem-se por mulheres ou por rapazes; em segundo lugar, que arr__ neles os corpos de preferência às almas e essas mesmo, só as rr. destituídas de inteligência que conseguem encontrar! Na verdade, tL o que procuram é a satisfação dos impulsos, sem se importarem cor que é ou deixa de ser digno. Daí que o seus actos, inteiramente dita- pelo acaso, possam resultar umas vezes bem e outras vezes, mal 30. E: c porquê: na origem desta espécie de amor está a deusa que é, de longe mais recente das duas e que participa, pelo nascimento, de ambos sexos - o feminino e o masculino. Quanto ao amor da deusa celeste - ela é, antes de mais, a deusa que não participa do sexo feminino rr.. tão-só do masculino (e aí têm vocês o amor pelos jovens ...) e que ale disso, por ser a mais antiga e venerável, não conhece o excesso. 28 As duas variantes da lenda sobre a origem de Afrodite reflectiam-se no eu, em Atenas havia um templo dedicado a cada uma delas. A Afrodite pander (popular) devia primitivamente ter sido considerada como divindade protectora L demoi e das hetairiai; porém, nos fins do século V, já tem atribuições idênticas às _ Vénus meretrix em Roma. 29 A Afrodite popular representa o amor excessivo, que conduz à violêr.: (hybris), como foi precisamente o amor de Zeus por Dione. 30 Com esta descrição do «amor popular» compare-se o discurso de Lísias õ primeiro discurso de Sócrates no Fedro. 40
  • 31. nova ou velha, verá aí motivo de condenação. A causa, a meu ver, é que deste modo, se poupam ao esforço de persuadir os jovens, dado que nã são capazes de exprimir-se. Já na Iónia e em muitas outras regiões- c todas as que estão sob o domínio dos Bárbaros - a norma condena e prática. Entre os Bárbaros, nomeadamente, o regime da tirania con- denou-a ao mesmo descrédito a que vota também o culto da sabedoria a ginástica: não convém aos govemantes, suponho eu, que os seus súbditos acalentem pensamentos elevados e muito menos amizades uniões fortes como só o amor, acima de tudo, costuma inspirar. .. Es lição, de resto, aprenderam-na à sua custa os tiranos atenienses, pois fi o amor de Aritogíton por Harmódio e a amizade deste pelo amante que derrubaram o seu poder 33. Em resumo, onde as instituições condenam a afeição de um jove d por um amante, a situação mantém-se por defeito dos seus responsá- veis - tanto os govemantes, com a sua ambição, como os súbdito com a sua cobardia. Mas também onde a norma aprova sem reservas tal prática, a causa está na estreiteza de vista daqueles que a instituiram.. Aqui em Atenas a norma vigente é de longe mais interessante. embora, repito, menos fácil de entender. De facto 34, se dermos crédito à voz corrente, que afirma que é mais honroso amar à vista de todos do que às ocultas, e amar em especial os que se distinguem pelo nasci- mento e pelo mérito, ainda quando fisicamente menos dotados; se repa- rarmos no estímulo extraordinário que o amante recebe de toda a gente. e como se a sua atitude nada tivesse de desonrosa; na glória que lhe traz um sucesso amoroso enquanto, por outro lado, um fracasso o despres- tigia; ou ainda na liberdade que a norma lhe concede, quando inicia uma conquista, de se gabar das suas extravagâncias, extravagâncias que ninguém teria a coragem de cometer, se a sua intenção e os seu esforços não visassem exclusivamente este fim, sob pena de incorrer nas mais severas críticas [da filosofia]. .. Sim, porque a supor que um 183a indivíduo, na mira de obter dinheiro, cargos ou qualquer posição de 33 É tradicional a associação entre a pederastia, a filosofia e a ginástica, por um lado, e a democracia por outro. Note-se que foi uma questão de ciúmes e não um ideal de liberdade que levou Aristogíton e Harmódio em 514 a. C. a assassinar Hiparco. filho do tirano ateniense Pisístrato; Harrnódio morreu no próprio local e Aristogíton foi condenado à morte. Depois da queda definitiva da tirania, em 510 a. c., ambos foram consagrados como heróis da democracia. O incidente é relatado por Tucídides VI, 54, e I, 20. 34 Longo anacoluto; a conclusão da frase está em 183e: «a partir destes factos não faltaria, claro, quem supusesse ... » 42
  • 32. influência, se prestava a assumir junto de outro atitudes que por via de regra o amante tem para com o amado - a requestã-lo com súplicas e rogos, a pronunciar juramentos solenes, a dormir à sua porta. enfim, a submeter-se a uma escravidão tal que nenhum escravo a aceitaria -- lá estariam, tanto os amigos como os inimigos, para o impedir de proceder assim: estes, a verberarem-lhe a lisonja e o servilismo: aque- les, a repreenderem-no e a envergonharem-se por ele. Mas no amante b todas estas extravagâncias são perdoáveis, as normas não desacreditam o seu procedimento, antes parecem aceitá-Ia como sinal de máxima distinção. E o mais espantoso - pelo menos o vulgo assim o diz - é que apenas esse logra o perdão dos deuses quando quebra os seus c juramentos, pois, como reza o ditado, «juras de amor não têm valor» ... Por aqui se vê que tanto os deuses como os homens outorgam ao amante liberdade plena, como aliás o confirma o norma vigente entre nós. A partir destes factos não faltaria, claro, quem supusesse que o sinal máximo de distinção, no nosso Estado, é amar os jovens ou oferecer a sua afeição a um amante... Entretanto, quando os pais proibem os filhos de ter conversas com amantes e transmitem expressa- mente essa ordem aos preceptores encarregados de os vigiarem 36, os jovens da mesma idade e os camaradas não deixam de criticar se vêem alguma coisa do género, e nem os mais velhos impedem as suas críticas d nem os repreendem por falar sem razão. Vendo os factos por este prisma, não faltaria também quem supusesse que tal hábito é aqui encarado como sinal da máxima infâmia ... Ora, em meu entender, o que se passa é o seguinte: como ficou dito de início, o amor não tem uma natureza simples, bela ou feia em si mesma: é belo, se realizado com beleza, e feio, se realizado com vileza. Vileza, é quando se concede uma afeição indigna a um homem indigno; e nobreza, quando se concede uma afeição digna a um homem de bem. E por indigno entendemos justamente esse amante popular, que prefere e o amor do corpo ao amor da alma, e não guarda constância porque o 35 Esta descrição assemelha-se bastante, como observa Goul (Platonic Love, Londres, 1963, p. 28), às descrições helenísticas e romanas das atitudes extravagan- tes de um jovem que procura obter o amor de uma jovem. Compare-se este passo com o Fedro 250a, onde Platão descreve, em termos idênticos, os efeitos do «delírio amoroso». 36 O preceptor (paidagogos) era o escravo a quem os pais confiavam os filhos, desempenhando funções idênticas às de um aio. O seu papel na educação das crianças é salientado, e. g., no Protágoras 325c. 43
  • 33. objecto a que se prende não é também constante: logo ao passar a flc juventude, objecto da sua paixão, «evola-se e desaparece» 37, reneg.; as suas muitas promessas e discursos. Pelo contrário, aquele que _ alguém pela beleza do seu carácter, esse permanece fiel pela vida -: 184a porque se funde com o que é constante. São portanto, estes, qr- nossas instituições visam pôr à prova, para averiguar com jus- aqueles a quem se deve conceder afeição e aqueles a quem se c recusá-Ia. E com este fito se recomenda a uns que persigam e a ot que se defendam, a fim de ajuizar, nesta competição, a qual das duas tegorias pertencem tanto o amante como o amado 38. Esta, a verdade razão por que se condena todo o jovem que se deixa seduzir desde 1('; sem dar tempo ao tempo - que, na generalidade dos casos, se afig, um excelente juiz; como se condena também todo aquele que se de, seduzir a troco de dinheiro ou de influências políticas, seja por falta coragem, com receio de sofrer represálias, seja por falta de es..- b pulos em aceitar dinheiro ou cargos políticos como recompensa. 8:: tivamente, não é de crer que qualquer destes motivos ofereça segura= e estabilidade, nem tão pouco que daí possa resultar uma amiza nobre! As nossas instituições deixam, por conseguinte, um único car nho ao jovem que pretende dar a sua afeição a um amante dentro - preceitos da honra. E ei-Ios: tal como no amante uma escravic, c livremente assumida é olhada sem servilismo ou sombra de vile; assim também se deixa ao jovem uma única forma de escravic, voluntária e isenta de vileza - a que tem em vista exclusivamente virtude. Estes são de facto os preceitos que nos regem: se um indivíc., consente em ficar ao serviço de outrem porque espera, por interméc dele, aperfeiçoar a sua sabedoria ou em qualquer outra forma de v' uma livre-servidão como esta não implica desonra nem servilisn. Por conseguinte, é necessário que estes dois preceitos se conjuguem- 37 Cf. Ilíada II, 71. A superioridade do «amor da alma» sobre o amor ffsic; como se vê, uma ideia corrente nos círculos aristocráticos atenienses, que PI~ aproveitou para tema de discussão em grande parte dos seus diálogos. Com e passo, compare-se, por exemplo, o primeiro discurso de Sócrates no Fedro 0'_ Alcibiades L 38 As duas categorias são a do eras ouranios, «amor celeste», e do c pandemos, «amor popular», de que Pausânias fez menção no início do discur O passo seguinte refere-se às circunstâncias em que parece mal um jovem deixar- seduzir: o argumento invocado é que daí não pode nascer uma amizade gene Amizade, philia, é precisamente o sentimento que distingue o amado em relação _ erastes, «amante». 44
  • 34. o que rege o amor pelos jovens e o que rege o amor pela sabedoria 39 e d pelas demais formas de virtude - quando o resultado em vista é digni- ficar e dar beleza à afeição de um jovem pelo seu amante. Suponhamos, pois, que o amante e o amigo convergem na mesma intenção e observam, de parte a parte, as normas respectivas: aquele retribui a afeição que o amigo lhe concede, pondo-se ao seu serviço em tudo o que é justo servi-Io; este, por sua vez, secunda em tudo o que é de justiça as vontades daquele que o encaminha na sabedoria e na virtude. E se um tem os meios de lhe incutir a sabedoria e as demais virtudes, e e o outro necessita de uma formação completa e de conhecimentos variados - é quando estes dois preceitos convergem no mesmo fim, e só nessa circunstância, que a afeição de um jovem pelo seu amante ganha beleza e dignidade 40. De outro modo, nunca! E eis uma circuns- tância em que nem sequer é vergonha sofrer uma traição, ao passo que em todas as outras a vergonha tanto recai sobre o que é enganado como sobre o que não é... Se um jovem, por exemplo, na mira de obter 185a dinheiro, dá a sua afeição a um amante que julga rico e acaba enganado e de mãos vazias, ao descobrir-se que o amante é pobre, a vergonha não é por isso menor: aos olhos de todos, não há dúvida de que se revelou tal como realmente era, capaz de entregar-se por dinheiro fosse a quem fosse - e isso não é bonito. Na mesma ordem de ideias, se umjovem se afeiçoa a um amante que julga virtuoso, com o único fito de se aperfeiçoar, estimulado pela sua amizade, e acaba também enganado, b ao descobrir-se a vileza e falta de princípios do sujeito - eis, todavia, uma traição que lhe dará prestígio! 41 Porque também ele, aos olhos de 39 Philosophia, que traduzimos por «amor da sabedoria», tem aqui o valor aproximado de sophia e não significa um sistema de vida como se define, e. g., em República VI, 498a. 40 Para o valor tradicional deste conceito, compare-se a observação de Marrou em Histoire de I'Éducation dans I'Antiquité, Paris, 61965, pp. 67-68: «para um Grego ... a paideia realiza-se pela paiderastia», não podendo nem a família nem a escola constituir os quadros tradicionais da educação. Mais adiante, continua o mesmo autor: «A educação, paideia, reside essencialmente nas relações profundas e estreitas que uniam pessoalmente um jovem espírito a outro mais velho, que era simultaneamente o seu modelo, o seu guia e iniciador.» 41 O que há de contraditório nesta noção não é, como supõem alguns autores (cf. R. G. Bury, The Symposion of Plato, Cambridge, repr. 1969 - daqui em diante citado só como Bury), que se ponha a possibilidade de o amante quebrar os seus juramentos. Pausânias pensa, certamente, no «amante popular» de quem semelhante comportamento não se estranha; o que se toma paradoxal é que o autor qualifique de prestigiante uma circunstância que, aos olhos da multidão, passaria sempre por desonrosa, quaisquer que fossem as intenções ... 45
  • 35. todos, deu provas do que realmente era, mostrando que todo interesse, fosse por quem fosse, estava na virtude e no desejo _ aperfeiçoar. E aí está o que excede em beleza tudo o mais. Porque sombra de dúvida, toda a beleza reside aí: numa afeição que se cc- em vista da virtude! Este é, portanto, o Amor da deusa celeste; o Amor também ce de tanta valia quer na vida do Estado quer na vida privada, pois :: c força que impele tanto a amante como o amado a porem na virtuc- o seu zelo. As outras espécies de amor pertencem à outra de., popular. E é tudo, Pedro - concluiu - o que, assim de mome; me oferece dizer em honra do Amor. Chegando Pausânias à pausa (como vêem, também eu aprenc, os mestres a arte das isologias ...) 42, era a vez, declarou Aristoder; Aristófanes fazer o seu discurso. Aconteceu, porém, que, fosse -; comido demais, fosse por qualquer outro motivo, começou de f:::- d com um ataque de soluços. E como não estava em condiçóe discursar, dirigiu-se então ao médico, que se encontrava justame; leito a seguir: - Não tens outro remédio, Erixímaco! Ou me fazes para; : soluços ou falas na minha vez, até que me passem ... Respondeu-lhe este: - Até ambas as coisas! Para já, ofere; para falar na tua vez, e tu falarás na minha quando esse ataque te r- Entretanto, enquanto faço o meu discurso, retém a respiração --- largos momentos: pode ser que os soluços se dignem assim para: e não for ainda dessa, gargareja com água; e se mesmo assim persistr então agarra numa dessas coisas com que se pode esfregar o L- provoca um espirro. Se fizeres isto uma ou duas vezes, eles paran:: _ por mais fortes que sejam ... - Não atrases mais o teu discurso - interrompeu Aristófaze Por minha parte, vou já fazer o que me aconselhas. Começou então Erixímaco: - Inevitavelmente, já que Paus-- 186a apesar de um tão belo começo, não soube concluir o seu discurso ;: devia, entendo eu que me compete a mim procurar-lhe um de:,.-='= 42 Alusão irónica ao estilo de Pausânias; é característico do seu discz- emprego de jogos de palavras, como Apolodoro diz ter aprendido, além ~ figuras de retórica ensinadas pelos sofistas (paronomásias, aliterações, COrI"Q-;>:-- cias rítmicas de frases e períodos). 46
  • 36. adequado. Que o Amor seja de duas espécies, eis uma distinção, a meu ver, bem feita. Todavia, longe de limitar-se às almas dos homens e ter por objecto a beleza humana, há uma imensidade de outras coisas que o motivam e outros seres onde se manifesta - nos corpos de todos os seres vivos, nas plantas nascidas da terra e, a bem dizer, em tudo o que existe! 43 Esta observação devo-a, creio, ao exercício da minha arte, a b medicina. É ela que me mostra até que ponto este deus é grande e admirável e como o seu poder se estende a tudo, quer no âmbito do humano quer no do divino. Vou, pois, iniciar o meu discurso a partir da medicina para que também eu preste as honras à minha arte. É um facto que a natureza dos corpos encerra este duplo Amor, já que a saúde e a doença são, reconhecidamente, dois estados não só diversos como dissemelhantes. E o que é dissemelhante ama e aspira ao que é dissemelhante. Temos, assim, um amor específico do estado de saúde e outro, do estado de doença 44. Ora bem, esse princípio que Pausânias ainda há pouco enunciava, que é belo afeiçoar-se aos homens de bem e aos desregrados, vergonhoso, se aplica também à realidade c dos corpos: é belo, e deve-se até cultivar a afeição pelos elementos bons e sãos de cada corpo (e a isto se chama praticar medicina) enquanto pelos maus, pelos que provocam doença, é vergonha fazê-Ia, e há mesmo o dever de hostilizá-Ios, se se pretende agir como um profis- sional. Efectivamente, a medicina, para falar em termos genéricos, não consiste senão na ciência dos fenómenos de amor do corpo relativos à repleção e à vacuidade. Quem neles saiba distinguir o bom do mau amor, esse é o médico por excelência 45. E bem assim, aquele que opera d mudanças no sentido de substituir um amor por outro e que sabe como inspirar amor entre elementos que o não possuem e por natureza o reclamam ou, em caso inverso, estirpá-lo onde ele esteja implantado- esse será o bom prático; dele se espera, justamente, que esteja habi- 43 Erixímaco segue, neste ponto, as doutrinas pitagóricas, e em especial de Empédocles, sobre a constituição do universo, altemadamente regido pelo princípio da discórdia (Neikos) - o mau Eros - e pelo da amizade (Philotes) - o bom Eros. Cf. Empédocles, fr. 17 Diels, vv. 19-20,28-29. 44 Do ponto de vista médico, o estado de saúde corresponde ao bom Eros e o estado de doença ao mau Eros; a definição de saúde como harmonia de humores físicos pertence às escolas ocidentais de medicina, representadas sobretudo por Alcméon, de Crotona. 45 Como observa Bury, neste passo há uma distinção implícita entre medicina como pura ciência, episteme, e medicina como arte, techne. O mesmo acontecerá adiante, quando se falar na música (I 87c-d). 47
  • 37. litado a criar amizade entre os elementos mais hostis do corpo e .: a amarem-se entre si. Ora acontece que os elementos mais hosti que se opõem de modo absoluto, como o frio e o quente, o ame..- e doce, o seco e o húmido, e assim por diante; e foi exactamente ~ ciência de implantar entre eles o amor e a concórdia que c antepassado Asclépio (asseveram-nos os nossos poetas e eu a. piamente!) se tomou o fundador da nossa arte 46. Assim a medicina, como digo, pertence inteiramente ao é. 187a deste deus, tal como acontece com a ginástica e a agricultura. Q_ música, é evidente a qualquer pessoa, mesmo numa análise supe que se rege pelos mesmos princípios das artes que citei - come Heraclito pretenda dizer, embora os termos em que se exprime c longe de serem claros: «O que é Uno», diz ele, «discorda e co~ consigo mesmo, tal como a harmonia do arco e da lira». Claro c. tem pés nem cabeça afirmar que uma harmonia «discorda» c . consiste de elementos discordantes ... 47 Porém, talvez a sua in: b fosse dizer que ela resulta, isso sim, de elementos inicialmente L dantes - o agudo e o grave - que depois entraram em acordo g:_ arte da música. Está visto que enquanto o agudo e o grave estiver- discordância não há lugar para qualquer harmonia, dado que harrr; consonância e esta, por sua vez, uma espécie de acordo. Ora, um ::. proveniente de partes que discordam e enquanto discordam é co., não pode haver! Como, por sua vez, toda a parte discordante qi.- chega a acordo é insusceptível de harmonização. E o mesmo vale: ritmo, pois também ele se constitui a partir de elementos inicial=- discordantes - o rápido e o lento - que posteriormente chega- c acordo. 46 Homero já se refere a Asclépio (filho de Apoio e de uma morta: citando-o simplesmente como «médico ilustre»; só mais tarde se generalizo, culto e foi reconhecido como divindade protectora da medicina. O santuár: famoso de Asclépio era em Epidauro, onde acorriam milhares de doentes L rança de se curarem. O Plutos de Aristófanes faz uma excelente e pormen.': descrição satírica das cerimónias realizadas no templo, a fim de obter a c- doentes - neste caso, Pluto, o deus cego (vv. 656-741). 47 Erixímaco deturpa em dois aspectos a afirmação de Heraclito (fr. 51 =. primeiro, restringindo-a à música - na verdade, a oposição do arco e da lira senão uma imagem do que se passa no universo; segundo (o que é mais grave aceitando a ideia de luta e de oposição simultânea, que constitui precisan.e fundamento da concepção heraclitiana do universo. Para um confronto mais ~ norizado entre o sentido do fr. 51 de Heraclito e a interpretação que lhe dá Brix+ veja-se Guthrie, A History of Greek Philosophy, Cambridge, 1965, vol. lI, p~ -442. 48
  • 38. Ora, à imagem do que atrás vimos com a medicina, também aqui a concórdia entre todos estes elementos é obra de uma arte, a da música, que implanta o amor entre eles e os leva a conciliarem-se entre si. Pelo que também a música vem a ser, no âmbito da harmonia e do ritmo, uma ciência de fenómenos de amor. Claro que distingui-los na estrutura em si da harmonia e do ritmo não levanta problemas de maior, pois não é a esse nível que o duplo Amor se manifesta. Mas quando há necessidade de utilizar a harmonia e d o ritmo em proveito dos homens, seja para criar (chama-se a isso composição), seja para interpretar correctamente melodias e ritmos já criados (o que tem o nome de educação musical), então sim, surgem problemas que só um bom prático sabe resolver. E eis-nos chegados ao ponto de partida: é aos homens comedidos, até mesmo para fomentar comedimento naqueles que o não possuam, que importa dar a nossa afeição e assegurar o seu amor - e esse é o amor nobre, o amor celeste, e filho da Musa Urânia. Quanto ao da Musa Polírnnia, o amor popular, importa aplicá-Io com cautela aos elementos a que se aplica, de modo a colher daí o fruto do prazer sem implantar excessos de qualquer ordem ... 48 Precisamente, na nossa profissão, uma das principais tarefas é tirar partido dos apetites que se ligam à arte da culinária, por forma a colher deles o prazer sem risco de doença 49. E assim, tanto na música como na medicina como nas demais artes, quer da esfera do humano quer na do divino, importa salvaguardar, na medida do possível, estes dois Amores, pois ambos existem! E passemos agora à sucessão das estações do ano, dado que este 188a duplo Amor também nelas intervém largamente. Se acaso reina o Amor comedido entre os elementos de que há pouco falava - o quente e o frio, o seco e o húmido -, se eles se conjugam numa mistura harmo- niosa e equilibrada, eis que se proporciona aos homens, tal como aos animais e às plantas, um ano de abundância e de bem-estar, sem riscos de qualquer dano. Porém, se prevalece o Amor tirânico no suceder das ~stações, os estragos e os danos são inúmeros. É então que as pestes b encontram terreno favorável, bem como muitas outras e variadas doen- 48 O desejo de manter continuidade em relação ao discurso de Pausânias explica que Erixímaco tenha escolhido os nomes destas duas musas, Urânia e Polímnia, para simbolizar, como Pausânias fizera em relação ao amor, uma oposição entre a música que eleva o espírito, de natureza sagrada, e aquela que se destina a agradar à multidão. 49 Para uma crítica a este conceito de medicina, vide Górgias 500d-50Ib; confronte-se esta pretensa moderação, sophrosyne, com Fédon 68e-69a.