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CONCURSO PARA O MINISTÉRIO PÚBLICO FEDERAL:
                           UM TESTEMUNHO1

                                                        Bruno Costa Magalhães2


Campinas, 07 de abril de 2011.




                      Gente, boa tarde! Então vamos começar?
                      Hoje teremos a última palestra do nosso ciclo de
palestras para os estagiários e servidores – última e décima sétima palestra do
nosso ciclo, que foi muito bem-sucedido. Ele começou de propósito com um
tema sobre o Ministério Público. E termina também de propósito com um tema
sobre o Ministério Público, mas agora sob o enfoque do concurso. Por quê?
Porque é claro que o estágio de vocês aqui – e de um modo geral qualquer
estágio – é um convite ao estagiário. Você faz estágio em um escritório, você
faz estágio em uma empresa, e ali há uma espécie de namoro. A empresa se
mostra para o estagiário, e o estagiário se mostra para a empresa, para uma
futura relação. Há ali uma espécie de conhecimento mútuo, e há uma proposta,
claro, do órgão, da empresa, para que o estagiário, se cativado pela instituição
em que ele fez estágio, ingresse naquele sistema agora como uma peça
fundamental, como uma peça realmente mais perene.
                      No nosso caso aqui não há a contratação. Por melhor
que vocês sejam aqui, não vai adiantar nada! Vocês não poderão entrar no
órgão porque foram bons aqui. Vocês terão de prestar um concurso público,
difícil – um dos mais difíceis do país, na verdade –, para, aí sim, ingressar no
MPF como membros mesmo. Então há de haver um salto maior. Mas não deixa
de ser verdade que aqui vocês estão conhecendo o MPF e mais ou menos
tentando ver se é o seu caminho, se não é o caminho de vocês e, enfim, não
sendo esse o caminho, qual será o caminho de vocês no Direito de um modo
geral.
                      É claro que existe um caminho possível entre vocês hoje



                                       1
e o MPF daqui para a frente, daqui a alguns anos. Esse caminho existe. Basta
que vocês consigam visualizá-lo, ver quais são os possíveis percalços no
caminho – que há pedras, é claro que há. Se a sua aprovação está, digamos,
em uma montanha, é claro que vai haver tempestades, vai haver noites
sombrias, vai haver situações muito difíceis pelas quais você terá de passar,
até chegar nessa meta final que é o concurso do MPF. É um concurso muito
difícil. E você às vezes se verá de fato como Dante Alighieri se viu no meio da
vida, na selva tenebrosa, e perdeu a estrada. E aí? Para onde é que eu vou?
Isso aí é muito real!
                        Nesse caminho que você trilha, em relação a qualquer
coisa na vida – e o concurso do MPF para mim foi muito isso –, nesse caminho
que eu trilhei, eu me via perdido em selvas tenebrosas e não sabia muito bem
para onde ir. Mas eu logo me achei e vocês vão entender como é que isso
aconteceu na minha vida.
                        O que eu posso fazer por vocês é isso. Eu não posso
fazer como Virgílio fez com Dante: conduzi-los pelas mãos até o final do
concurso. Mas eu posso mostrar o que eu fiz, mostrar como eu fui conduzido,
por quem, e como eu cheguei até aqui. Talvez vocês, ouvindo isso aqui,
consigam adaptar para o caso de vocês e consigam iluminar o caminho de
vocês nesse sentido.
                        Eu vou dizer hoje muita coisa que já se passou há oito,
dez anos na minha vida. Enfim, também é um modo de prestar contas com o
meu passado. Eu nunca falei sobre isso assim nesses termos; eu sempre
comento uma coisa ou outra, mas eu nunca sentei para rever como foram
esses três ou quatro anos da minha vida, entre 1999 e 2003. Já se passaram de
oito a doze anos – a gente até assusta, porque já se passaram muitos anos, não
é? Mas é uma forma também de voltar atrás e, enfim, colocar um ponto final.
Eu não pretendo dar aulas de auto-ajuda, não pretendo dar aulas em cursinhos
preparatórios. Pretendo realmente só mostrar como é que eu fiz isso aqui – e
talvez isso ajude vocês.
                        O tema foi sugerido, se não me engano, pelo estagiário
Rogério, não é? O Rogério sugeriu esse tema: Como passar no concurso de
procurador da República. Então a ideia também é a de suprir essa carência que
vocês, claro, sentem. Como é que foi isso? Eu sentia isso também! Quando eu
estava prestando concurso, eu queria saber como é que aquele cara passou. E
eu quase nunca tive acesso direto, para perguntar: Vem cá, como é que você
passou? O que você fez? Eu quase nunca tive essa chance de perguntar para as
pessoas que tinham passado.
                        Então eu vou contar um pouco como foi a minha vida
nesse aspecto, no que importa a essa minha aprovação nos concursos públicos.
                        Eu sou o filho mais velho dos meus pais. Meu pai se


                                       2
formou em Direito, um pouco mais tarde que o normal, e é advogado; minha
mãe trabalhou durante muito tempo no Tribunal de Justiça de Minas Gerais; e
eu mais ou menos cresci nesse ambiente de Direito. Eu não me lembro de
nenhuma fase, nenhuma época em que realmente tive que decidir fazer Direito.
Eu não tive nenhum tipo de dúvida existencial. Eu de fato não sei dizer quando
foi que eu decidi fazer Direito. Eu sei que chegou o terceiro ano, às vésperas do
vestibular, e era isso mesmo, entendeu? Eu de fato não consigo perceber
quando foi que eu decidi fazer Direito.
                       Ontem mesmo eu vi, com a minha esposa, o filme Hobin
Hood, com o Russell Crowe, e teve uma cena que me lembrou isso. No filme ele
acaba encontrando uma espada, e nela está escrito Rise and rise again, until
lambs became lions, ou seja Lute, lute e levante-se, até que os cordeiros se
transformem em leões. É claro que é uma frase de inspiração bíblica – embora
não seja bíblica. Na Bíblia, Cristo é o Cordeiro e ele virá no fim dos tempos
como o Leão de Judá. Mas o que importa é que, no filme, o Russell Crowe vê
essa frase e ele não sabe ainda por quê, mas ele se sente inspirado a lutar – eu
não vou contar o filme inteiro –, a entrar na luta ali, de início contra o rei, e
depois a favor do rei. E ele passou o filme inspirado por aquela frase, e
tentando entender o porquê. Ele não consegue entender muito bem. E lá pelas
tantas, mais para o final do filme – eu posso contar porque não é o segredo do
filme, esse filme não tem o segredo, mas por quem não viu eu sinto muito, eu
vou contar porque faz parte da palestra! –, quando ele está já às beiras da luta,
ele descobre, por um rapaz que conheceu o pai dele, que na sua própria
infância ele vira essa frase pela primeira vez com o próprio pai. Então aquilo
ficou ali no fundo, no inconsciente dele, e quando ele reviu aquela frase, ele
não lembrava de onde era, mas serviu para que ele se inspirasse, serviu para
dar forças a ele, não é? Talvez haja alguma coisa assim na minha vida, alguma
relação com o meu pai de que eu ainda não consegui juntar o elo. Mas eu de
fato não sei o que foi que me fez dizer: Eu vou fazer Direito, eu vou fazer isso
aí. Eu sei que foi acontecendo, e eu cheguei ao vestibular e marquei Direito,
não teve outra situação.
                       No colégio, eu nunca fui um aluno muito excepcional.
Também não era muito medíocre. Sempre fui mediano. Eu me lembro que na 8ª
série do ensino fundamental eu caí um pouco de nível. Eu tinha notas muito
boas em Inglês, Geografia, História, Matemática, e eu caí um pouco de nível. Eu
não sei o que aconteceu, eu não me lembro muito bem o que aconteceu, eu
peguei recuperação em algumas matérias, mas consegui passar. Eu me lembro
que eu fiquei mais mediano ainda. Passava despercebido mesmo, não era
nenhum daqueles primeiros da sala, de jeito nenhum.
                       E isso foi importante para mim. Por quê? Porque eu
nunca foi exaltado pelos colegas de sala. Tem sempre aqueles melhores da


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turma, não é? – Esse aí vai passar em Medicina na UFMG, Esse aí vai passar em
Direito, Aquele outro é o foda, Esse aí estuda demais, Aquele lá sabe tudo de
Física – eu nunca fui desses. Eu sempre estava ali – sei lá – como a média.
                       E eu me lembro que no vestibular – lá em Belo
Horizonte, na época, havia quatro faculdades de Direito (hoje devem ter mais
de dez), que eram a UFMG, a Milton Campos, a PUC e a Fumec – eu não tentei a
Milton Campos; eu tentei a Federal, a PUC e a Fumec. Eu não sei por que, mas
eu coloquei na cabeça que eu faria a PUC. Eu falei: Olha, eu quero passar na
PUC, que era uma das particulares, e eu achava que era mais viável passar na
PUC; eu achava que não era capaz de ir para a Federal. Eu não tinha essa
ambição. E na minha turma também já estava certo quem ia passar e onde, o
pessoal já tinha feito um mapa do território – lotearam as vagas das faculdades
públicas!
                       E eu me lembro que eu prestei o vestibular da Federal,
passei na primeira etapa, fiz um cursinho para a prova subjetiva – cursinho que
foi muito importante para mim3. E eu fui para Guarapari, a praia dos mineiros
no Espírito Santo, em janeiro. Eu fiz a prova e fui para lá com o meu pai, meus
irmãos, e com algumas amigas de sala. O resultado saiu em janeiro. Eu me
lembro que eu passei a noite em claro, em alguma festa – não me lembro bem –
e amanheci no dia seguinte para comprar o jornal Estado de Minas com a lista
de quem havia passado na Federal. E estava lá o meu nome na lista de
aprovados. Passei na Federal! Falei: Caramba! Fiquei maravilhado. Meu pai não
entendeu nada, minhas colegas de turma ficaram muito assustadas com aquilo
e eu fiquei muito feliz, lógico! Passei na Federal, não esperava! Era uma
faculdade pública, a melhor de Minas e tal. E isso me serviu muito porque me
ensinou a primeira lição: Descobri o meu próprio valor. Não aceitei o consenso
geral a esse respeito – que abre essa listinha aí que eu distribuí antes de
começar a palestra. Eu descobri na verdade que há duas realidades: há o
consenso geral das pessoas a seu respeito e a há a sua realidade mesmo,
aquilo que você é de verdade.
                       Eu acho que eu tenho uma resistência para isso; não sou
tão influenciável assim pelo meio – na verdade, sou um pouco, ninguém está
livre disso, não é? Tem gente que é isenta, passa de liso, nada influencia aquela
pessoa para o mal – e às vezes nem para o bem.
                       Mas eu me lembro disso. Eu vi o meu nome na lista e
olhava para aquelas pessoas que já haviam loteado as vagas na Federal e me
perguntava: Cade vocês? O que aconteceu com vocês? E concluí que aquilo
tudo que eu ouvia e sentia era pura ilusão! Não adianta você se exaltar antes
do tempo. Isso aí é pura ilusão mesmo! A       hora do vamos ver é a hora da
realidade.
                       Isso foi muito importante para mim. De fato, eu estudei


                                        4
no Colégio Batista Mineiro, e das turmas daquele ano apenas três pessoas
passaram em Direito na Federal. Alguns outros passaram na PUC, na Fumec e
na Milton Campos.
                       Aquilo foi um choque positivo para mim. E eu assustei,
falei: Caramba, eu sou capaz de fazer alguma coisa, não é? Eu não tinha baixa
auto-estima – não se trata disso. Mas no consenso ali eu não estava no top ten.
Eu estava lá no meio. Então foi importante descobrir essa capacidade de vencer
os desafios. É claro que eu fiz a prova para passar. Eu não fui ali cumprir tabela.
Mas eu não tinha muita esperança de passar. O meu negócio era a PUC-Minas
mesmo, eu já estava com isso na cabeça. Mas acabou dando certo.
                       Uma coisa também interessante. Eu sou o primeiro filho,
o primeiro neto, o primeiro bisneto e o primeiro sobrinho da família – quando
acontece isso o pessoal cria muita expectativa em cima da gente4. Eu não sei
se algum de vocês é primeiro filho, primeiro neto, mas isso aí é muito
complicado: todo mundo quer que você seja o cara da família, não é? Isso foi
muito ruim para mim, eu me lembro que eu sentia muita pressão na infância. E
isso, com o tempo, sumiu, desapareceu. Eu fui ficando jovem, adolescente, e
tudo aquilo sumiu. Enfim, ninguém esperava nada de mim, eu era uma pessoa
normal, e a vida corre para a frente, não é? E esse mecanismo criou um certo
desajuste saudável entre o que eu esperava de mim e o que os outros
esperavam de mim. E isso foi muito importante: eu não media os meus desafios
pelo que os outros esperavam de mim – e sim eu fui colocando as minhas
próprias metas. Mas a Federal foi mesmo um susto, não foi uma meta que eu
me coloquei conscientemente e venci. Foi de fato meio que um atropelo.
                       Sobre essa situação, eu disse que eu tenho uma certa
resistência ao meio. Há pessoas que não têm essa resistência. É importante
que vocês saibam disso. Vocês têm que ter uma capacidade de resistir ao meio.
A quem não tem muita noção de como é que isso funciona – eu também não
tinha muita noção, eu tive consciência disso há pouco tempo atrás, quando eu
fui fazendo a análise e percebendo a situação –, há um artigo interessante do
sociólogo francês Claude-Lévi Strauss chamado O feiticeiro e sua magia, que
está em um dos livros dele – Antropologia Estrutural5. Ele fez um estudo com
sociedades selvagens e analisou como uma maldição, pelo chefe da tribo, pode
chegar inclusive a matar uma pessoa. Uma pessoa que é amaldiçoada pela
tribo, pelo grupo – não é algo assim sobrenatural, não é magia no sentido
misterioso da coisa; ele vai contando como é que a coisa funciona –, vai
perdendo os laços sociais dela de tal forma que ela degenera completamente, a
psique dela se degenera e ela vira um pária naquele local ali, naquela
sociedade – é claro que é um ambiente fechado –, e ela acaba morrendo
mesmo, ela se afasta da tribo para morrer. Tudo isso por efeito da sociedade, do
grupo mesmo. A morte daquela pessoa não veio do Céu, foi efeito do grupo


                                        5
dela. O pajé do grupo, digamos assim, lançou a maldição, espalhou aquilo e
aquilo vai virando verdade mesmo, as pessoas vão agindo de acordo com
aquilo.
                       Então você conseguir se dissociar da opinião do meio,
em alguma medida, é muito importante. Primeiro porque você pode estar sendo
rebaixado de modo indevido. As pessoas podem não ver a sua própria luz, e
você tende a não vê-la também. Você está com ela mas não consegue percebê-
la, não tem acesso a ela. E o contrário também é verdade: você pode estar
sendo exaltado de modo indevido. O colocam no trono, e na hora do vamos ver
você cai, já era. Então é importante essa dissociação, em alguma medida, da
opinião geral.
                       Você tem sempre que escutar, é claro, pois pode ter ali
uma dica importante para você. Você pode se achar o cara, e às vezes você não
é o cara. É bom você ouvir a opinião das pessoas; você tem que ouvir os outros
para saber disso, mas não vá apenas na linha do que dizem para você; tente
também ver o que você tem de potencial, não é? Eu não tenho um método para
isso, mas vocês têm que olhar para dentro, se colocar nos desafios mesmo, e ir
para a briga, vencer, perder e ver onde é que está a verdade. Se você ficar
apenas nesses consensos sociais, você irá se ferrar. Eles são poeira mesmo, são
pó, é apenas ilusão. Eles podem ter alguma pista da realidade, mas enquanto
opiniões são apenas pó, não são a realidade.
                       Eu passei na Federal, e comecei a fazer o curso de
Direito. Entrei no segundo semestre. E eu comecei o curso com o pé esquerdo.
Por quê? Na Federal – eu não sei se hoje ainda é assim –, havia o Ciclo Básico. O
que é isso? No primeiro semestre juntavam-se as turmas de ciências humanas –
enfim, em uma mesma turma havia alunos de Direito, de Sociologia, de
Ciências Políticas, de tudo que é tipo de ciências humanas –, para fazer o
mesmo curso, o mesmo semestre. Tínhamos aulas de Filosofia, de Política, de
Economia. É um ótimo ambiente! É bem legal mesmo! Tem gente de tudo o que
é espécie lá na Fafich. E tínhamos aulas de Direito também.
                       E eu me lembro que cheguei na primeira aula de Direito,
na aula de ICD – Introdução à Ciência do Direito, e eu já cheguei na segunda
aula, e atrasado. Eu não me lembro bem como foi, mas acho que me trocaram
de turma, da A para a B, e a turma B já havia tido uma aula anterior a que eu
não tinha ido. E eu cheguei no meio da segunda aula e eu vi os meus colegas
de sala falando grego. Eles falavam de propedêutica filosófica, de epistemologia
jurídica. Eu entrei naquela sala e fiquei meio deslocado. Eu não estava
entendendo nada! Eu saí daquele semestre sem entender quase nada de
Direito! Eu me lembro de dois ensinamentos básicos que eu guardei da época:
a Norma Fundamental, do Hans Kelsen; e me lembro de uma frase, sobre a
norma jurídica, também do Kelsen, que a professora6 repetia sempre, que dizia


                                       6
que eficácia é condição de validade. Eu só sei disso – aliás, hoje eu sei um
pouco mais, mas eu só sabia isso na época. E foi um susto para mim. Eu era um
peixe fora d´água, eu não estava entendendo nada, eram termos que não
tinham muita ligação com o meu dia-a-dia, e eu fiquei um pouco perdido.
                      No segundo semestre, para piorar as coisas, houve uma
greve na Federal, de uns três ou quatro meses. E eu ficava em casa, sem fazer
muita coisa. Eu ainda não estava engajado no curso, não estava no DCE – eu
nunca fui disso. Fiquei em casa, sem ter o que fazer. E eu volvei a um hábito
antigo meu – dos 15 aos 20 anos eu tive bandas de música –, eu voltei a tocar
com as minhas bandas.
                      Eu tive uma banda de cover dos Beatles7, e outra de pop
rock nacional – e eu voltei a tocar com eles. Só que essas bandas não tinham
muito show na época. Era difícil arrumar show para tocar Beatles. Difícil
demais! Em especial porque Beagá tem as duas melhores bandas de cover dos
Beatles do Brasil, que são a Sgt. Pepper´s e a Hocus Pocus – são bandas ótimas.
Inclusive eu ia muito aos shows deles8. Então com as minhas bandas não tinha
muita apresentação, era praticamente só diversão mesmo. E durante a greve
eu queria alguma coisa mais aninada. Então – eu vou ter que confessar aqui –
eu entrei em uma banda de pagode! É triste! Eu resisti muito! Um amigo meu
me convidou – se é que isso é convite que se faça a um amigo – e eu resisti
muito a princípio; falei: Cara, eu sou um cara honesto, eu não vou entrar nisso
aí! Mas a banda tinha shows todo final de semana, eu estava em greve na
faculdade, a banda ali, todo mundo tocando, aquela coisa toda, aquela festa,
muita gente bonita e tal. Eu falei: Eu vou entrar, não custa nada! Eu comecei a
tocar pagode – isso é triste mas eu comecei a tocar! Mas eu conto isso por quê?
Porque isso fez parte do meu aprendizado da humildade.
                      Nessa época eu comecei a prestar concurso de nível
médio. Meu pai foi um cara muito sofrido, muito pobre. De fato ele passou um
perrengue desgraçado. E nunca me deu muita facilidade na vida. Ele conseguiu
ser um bom advogado e me deu boas condições – por exemplo, naquela época
eu já tinha ido duas vezes para fora do país, para os Estados Unidos –, mas era
um cara que tinha muita consciência de dinheiro, e começou a apertar o
orçamento, e eu comecei a ver que era hora de eu ganhar o meu dinheiro.
Então eu comecei a prestar concurso público.
                      O primeiro concurso que eu fiz foi um da BHTrans, que é
o órgão de trânsito de Beagá – é como se fosse a Emdec aqui de Campinas, um
órgão municipal. E eu me recordo que para esse concurso – eu nunca tinha feito
concurso na vida – eu fiz matrícula em um cursinho de Beagá chamado Orvile
Carneiro, para aprender gramática e algumas noções de Direito, que caíam
nesse concurso. E eu sei que alguns caras da banda de pagode também fizeram
esse concurso. E, na época, a coisa já inverteu: se no vestibular eu estava


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muito humilde, aí eu já estava arrogante. Por quê? Porque eu estava na Federal,
não é? É como se fosse a USP aqui em São Paulo, entenderam? Era a melhor
faculdade de Minas Gerais. E eu cheguei para fazer o concurso, que era um
concurso de nível médio, ou seja, pessoas que nem faziam Direito estavam
prestando o concurso também – os pagodeiros estavam lá fazendo o concurso!
                       Eu prestei o concurso e achei que tinha ido muito bem.
Aí eu conferi o gabarito e vi que eu tinha ido muito mal. Eu fui muito mal
mesmo! Eu não me lembro quantas questões tinha. Mas, digamos, em vinte
questões de gramática eu acertei três. Eu olhei aquilo e falei: Não pode ser!
Tem algum equívoco aqui, não é? Não pode ser! É claro que eu fiz mais de três!
É lógico! Eu sou o cara!
                       Mas eu conferi o gabarito oficial e de fato era isso
mesmo! Quando eu conferi a lista de aprovados, eu vi que tinha alguns caras,
não da banda, mas que estavam ali, que eram amigos da banda, que tinham
passado, que sequer faziam o curso de Direito, e que passaram no concurso –
sei lá, talvez porque tinham mais tempo de estudo e tal. E aquilo foi um choque
negativo, vocês percebem, não é? Eu fui humilhado ali. Eu falei: Caramba, eu
não sei nada de gramática! Eu não sei nada, nada, nada! Um absurdo isso! Que
fracasso completo! Aí eu assimilei a segunda lição: Com humildade, aceitei as
minhas deficiências e trabalhei sobre elas. Eu vi que eu não sabia nada de
português, de gramática, tinha uma noção muito precária mesmo. E eu resolvi
estudar gramática. Mas não foi fácil. Eu prestei outros concursos ainda, de nível
médio. Eu prestei para o TRE-MG e para o TCE-MG, no mesmo esquema: caía
gramática e noções de Direito. Para esses dois concursos eu também fiz
cursinho e, no TRE-MG, tomei ferro, e, no TCE-MG, tomei ferro de novo. Não
consegui aprender gramática.
                       E aí saiu um outro concurso, que era para Oficial do
Ministério Público de Minas Gerais, um cargo de segundo grau também. Nessa
época eu já fazia estágio – depois eu voltarei a falar sobre os estágios – e
prestei esse concurso, que tinha dezoito vagas. Eu me lembro que o sócio do
meu pai – nessa época eu saía da faculdade ao final da manhã e ia ao escritório
do meu pai, almoçar com ele; ele não morava em casa e eu estava próximo
dele na hora do almoço. Foi muito bom nessa época, eu estava mais próximo
dele e a gente conversava muito –, o sócio dele, como eu ia dizendo, muito
cético, muito sarcástico, olhou aquilo e falou: Concurso, dezoito vagas,
Ministério Público? Rapaz, desiste! Uma vaga é para a filha do procurador de
justiça, a outra vaga é para a amante dele, a outra para a outra filha, a outra
para a mulher... Você não tem chance nisso aí! Pode esquecer! Concurso
público é difícil, você não vai conseguir passar nisso aí! Dezoito vagas é muito
pouco! Eu olhava para aquele cara e dizia para mim mesmo: Caramba! O
mundo só nos joga para baixo! O cara só quer me desanimar!


                                       8
Naquela época eu descobri que eu não ia aprender nada
em cursinhos. Eu fiz três cursinhos para aprender gramática e não aprendi
quase nada. Mas também eu era muito desatento, não é? Eu falei: Eu vou ter
que aprender sozinho. Vou ter que pegar as provas antigas e vou ter que
aprender. O que eu fiz? Eu comprei três gramáticas, que eu vi que eram as mais
legais: a do Domingos Paschoal Cegalla, uma azul do Hildebrando A. de André e
uma do Pasquale com o Ulisses Infante. Eu comprei as três e as li mesmo. Ali eu
estava empenhado; ali eu comecei a me empenhar de verdade nos estudos –
porque eu queria passar no concurso. Eu tinha uma certa pressão em casa, eu
estava gastando o dinheiro do meu pai, e ele falando: Espera aí, não é assim!
Eu falei: Eu vou ter que ganhar dinheiro.
                        E eu comecei a ler e li muita gramática, li muito mesmo,
fiz centenas de exercícios de gramática. E eu de fato estava pronto para o
concurso, que tinha – não me lembro bem – quarenta ou cinquenta questões de
gramática, e eu errei apenas quatro; quase fechei a prova mesmo. Mas eu não
passei entre as dezoito vagas. Passei na 21ª vaga. Me chamaram poucas
semanas depois. Eu fui chamado e entrei nesse cargo no qual eu fiquei por dois
anos e meio. Foi um cargo que me foi muito importante durante o curso –
quando entrei nele eu estava no 5º período da faculdade. Mas eu já volto a esse
cargo, que foi o meu primeiro emprego, para contar como foi.
                        Eu fiz quatro estágios. O meu primeiro estágio eu fiz na
6ª Vara Cível de Contagem – um município próximo de Beagá –, com o juiz de
direito Estevão Lucchesi de Carvalho, que foi colega de faculdade do meu pai.
Era um estágio voluntário, a princípio, mas ele quis me pagar do bolso dele um
salário mínimo, que estava em R$120,00 – dava para comprar alguns livros e
pagar a passagem até Contagem. Eu pegava o 1116 na Avenida Olegário
Maciel, no centro de Beagá, gastava quase uma hora até Contagem e voltava à
tarde. Era uma função muito interessante! Eu digitava as atas de audiência
para o juiz e fazia relatórios de sentença. E – aliás, engraçado – eu já ficava à
direita do juiz – o juiz aqui, as partes ali na frente. Eu fiquei ali uns seis meses e
isso foi muito bom para mim, porque foi ali que eu decidi de fato o que eu
queria ser na vida: eu olhava para o juiz e achava um cara normal, eu olhava
para o advogado e achava um cara normal, mas quando eu olhava para o
promotor de justiça, que estava à esquerda, eu falava: É esse cara que eu vou
ser! Eu não sei o que era! Era uma vara cível e de família, onde o promotor
quase não faz nada, só dá parecer. Mas eu olhava para ele e falava: É essa cara
aí que eu vou ser! Eu olhava e ficava extasiado com o negócio. Vocação é isso:
você vê o negócio e fala: É isso! – tem uma ressonância mesmo. Eu fiquei ali
seis meses. E esse promotor de justiça, chamado Wagner Lúcio Teixeira Leão,
nem sabe que foi ele quem me inspirou. Ele nem sabe disso, mas foi ele que
me inspirou, quando eu o via naquela função – ele na verdade foi usado para


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isso, ele foi usado por Deus como instrumento dessa minha inspiração, não é?
Daquele ponto em diante eu falei: Eu vou ser isso aí. Eu não tinha nenhuma
dúvida de que eu queria ser esse cara aí, de que eu me sentaria ali naquela
cadeira mais cedo ou mais tarde.
                        O segundo estágio que eu fiz – eu já havia saído do
primeiro – foi na Biblioteca da PGJ-MG, também voluntário (esse foi voluntário
mesmo). Foi um colega de sala9 – que já estagiava lá – quem me arrumou esse
estágio; lá eu fazia contrarrazões em recursos criminais perante o Tribunal de
Justiça. Foi um estágio muito interessante. Foi lá que eu descobri o concurso de
Oficial do Ministério Público; foi de lá que eu fiz o concurso e passei.
                        Os dois estágios seguintes eu já os fiz trabalhando no
Ministério Público. Eu trabalhei um bom tempo lá de 7h às 13h – eu tinha uma
carga horária diária de seis horas. E à tarde eu fiz estágio – foram poucos
meses, pois era muito cansativo – por três meses na DAJ (Divisão de Assistência
Judiciária) da UFMG, onde eu assistia aos carentes, entrava com ações para
eles. Foi uma época curta, mas eu de fato advoguei, fazia audiências com os
monitores, em casos de família, causas de imóveis, brigas de vizinhos,
consumidor. Foi um estágio muito bom esse da DAJ, também voluntário.
                        Por fim, fiz um estágio no MPF, um estágio também
curto. Fiz a prova para estagiário, passei, e fiquei ali uns quatro meses – pois
estava muito cansativo, não estava rendendo muito. Então eu preferi manter o
meu trabalho de seis horas, que também era muito interessante, era voltado
para a área jurídica, a fazer o estágio ali. Estava muito pouco produtivo, na
verdade; não era como o estágio de vocês aqui hoje, pois aqui tem muito
trabalho, e lá tinha muito pouco trabalho – pelo menos para mim na condição
de estagiário. E eu saí. Então eu fiz esses quatro estágios.
                        Voltando ao meu emprego no MP: nele eu fiquei dois
anos e meio, e ele foi muito importante para mim. Por quê? Porque lá eu de fato
comecei a ver mais de perto os profissionais – e isso já é o tema da terceira
lição: Convivi com pessoas que chegaram ao objetivo que eu buscava. Eu
comecei a ver promotores de justiça que estavam atuando mesmo. E lá tinha
um grande negócio, que era o seguinte: eu estava na Promotoria da Infância e
da Juventude de Belo Horizonte, para onde iam muitos dos promotores de
justiça recém-aprovados no concurso. Eles faziam um pequeno estágio de
alguns meses lá, antes de assumirem as próprias comarcas, em algum fim-do-
mundo de Minas Gerais10. Eles passavam um tempo ali. Então eu via esse
pessoal recém-aprovado. Era muito interessante isso aí. O pessoal tinha
acabado de passar, e eu sentia que eles tinha saído do forno mesmo. Eu via no
rosto deles aquela surpresa, aquele maravilhamento, aquela coisa gostosa de
acabei de passar e estou aqui fazendo o que eu quero. Era muito gostoso ver
isso neles... Eu também tinha muito contato com os promotores mais


                                         10
experientes11, eu os via fazendo a coisa na prática, eu via que eles tinham
família, que eram pessoas normais. Eu tive muito essa noção de como é ser
promotor de justiça ali mesmo.
                       Na Promotoria da Infância eu fazia todos os ofícios e
reduzia a termo as declarações das pessoas que eram atendidas, quando era o
caso. Por uma época eu inclusive cheguei a atender aos menores infratores. Se
o adolescente é flagrado em algum ato infracional ele é levado à delegacia; se é
no mesmo dia de manhã, ótimo; se não, ele dorme na delegacia e é levado no
dia seguinte ao MP. Para quê? Para que o promotor converse com ele. Há essa
conversa antes, esse diálogo, essa oitiva do adolescente infrator, para que se
decida se se vai representá-lo (no caso, a denúncia se chama representação),
ou se vai haver a remissão, que é um perdão – há também essa possibilidade,
de se perdoar o menor infrator. E eu fui escalado para acompanhar o promotor
nessa época12; eu fiquei alguns meses fazendo isso. E foi ali que eu vi que a
coisa era séria, porque eu tinha que ter postura de promotor – eu não era
promotor ainda , mas eu tinha que ter postura –, tinha que ter cara séria, tinha
que dar um sermãozinho ali no cara, não é?
                       Era muito triste o que eu via ali todos os dias. Eu via
jovens de 14, 15 anos, já no tráfico de drogas, roubando, pichando, às vezes já
até matando, todos eles ali na minha frente. O promotor ao meu lado,
conversando com alguns deles, e eu falando com alguns outros. É muita miséria
humana! Ali de fato eu vi o que significa esse cargo, ou pelo menos o que
significava naquele contexto da infância e da juventude: é uma luz que aquele
adolescente ainda tem – se é que ainda há alguma salvação pelas mãos
humanas ali – para ouvir alguma coisa e tentar mudar de caminho. E eu me
lembro que eu ficava bastante emocionado com a situação praticamente
irreversível de alguns jovens e ficava muito chocado com aquela miséria
humana. Não que eu vivesse isolado do mundo; eu não fui aquele cara que
viveu isolado do mundo13, mas eu não tinha muita proximidade com aquela
miséria ali – e isso foi muito importante para mim também.
                       Por isso é que eu falo: é bom conviver com quem passou
no concurso, com quem é aquilo que você quer ser. Isso é muito interessante
porque tem coisas que não tem como você explicar por palavras.
                       Vocês vejam que Platão disse que havia uma parte de
sua filosofia – a parte mais importante – que ele nunca iria escrever, porque ele
não iria conseguir explicar por meio de um texto escrito – e nem a fala mesma,
por si só, era suficiente. Só a presença dele, perante os alunos dele, é que era
capaz de passar esse conhecimento. Por exemplo, imaginem como é aprender
marcenaria ou culinária pelos livros; e aprender marcenaria e culinária vendo
alguém fazendo – vendo o marceneiro cortando a tábua, batendo os pregos, e
vendo a cozinheira cozinhando o alimento. É só olhando para a coisa que você


                                       11
vai aprender o que é aquela atividade, como é que se faz aquilo, o que há por
trás daquele ser humano fazendo aquilo. Se você fizer apenas pelos livros, você
pode até aprender, mas você provavelmente não terá acesso àquela substância
humana em atividade.
                       E foi naquele trabalho, no qual eu fiquei por dois anos e
meio, que eu consegui captar isso – a essência do que é ser promotor de
justiça. Eu decidir antes – mas foi ali que eu me animei muito a ser esse cara.
Foi ali que eu vi que era possível ser – eu via pessoas normais, seres humanos
normais que se empenharam e passaram no concurso. Eu vi os desafios que
tinham ali para ser desenvolvidos e isso foi muito bom. Foi ali que eu consegui
realmente imaginar o que é isso. Muitas vezes falta isso na gente: nós
queremos uma coisa mas não temos a noção do que é aquela coisa. Você tem
apenas o símbolo. O que é o promotor? É o cara que denuncia. Mas você não
tem noção do que é um ser humano ser promotor de justiça, você não tem essa
noção clara. É importante você perceber isso nas pessoas que já estão lá.
                       Eu me lembro também nessa época em que eu já estava
estudando para concurso, eu tive acesso a um texto, escrito pelo Damásio de
Jesus, que eu encontrei pela internet, chamado Para ser juiz de direito, que me
foi muito importante. É um texto curto, de umas quatro ou cinco folhas, no qual
ele conta o período de faculdade dele, em Bauru; e como foram os estudos
dele. E ele conta que enquanto os amigos dele, ou outras pessoas, estavam se
divertindo à noite e tal, ele ficava trancado no quarto à noite lendo os tratados
de Basileu Garcia, o grande penalista, enfurnado nos livros, se deliciando com
as teorias e com aquela coisa toda. E ele queria ser juiz de direito. E ele colocou
no porta do armário do quarto dele – não sei se com estilete –, ele escreveu lá:
Serei juiz. Caramba! Eu olhei aquele negócio e falei: Que força tem esse cara!
Serei juiz! Ele não falou assim: Se tudo der certo, de repente, no futuro... Ele
falou: Serei juiz. Se fechou ali e estudou até ser juiz mesmo – aliás, eu não me
lembro se ele chegou a ser juiz ou se foi apenas do MP, mas, enfim, ele é super
bem-sucedido. E eu li aquele texto umas três ou quatro vezes e falei: Caramba!
Que força incrível esse cara tem! Serei juiz e dane-se o mundo! Serei juiz e
acabou! O mundo pode cair – eu serei juiz! Isso foi muito importante para mim.
Eu vi ali uma força muito grande que eu tinha em mim – e eu só não tinha
achado ainda. Mas ela estava dentro de mim. Eu ia ser promotor de justiça
mesmo, eu ia ser esse cara.
                       Essa terceira sugestão da lista que vocês tem nas mãos
foi o que eu fiz nesse meu emprego, com essa convivência, com a observação
mesmo dos profissionais. Você não vai vencer se você não compreender o que
é aquilo, se você não conseguir assimilar aquelas qualidades em você. Você já
tem que ter aquilo de algum modo em você. Tem que ter coragem,
perseverança, força de vontade. E vai ter que ir incorporando aos poucos, e não


                                        12
há forma melhor de fazer isso do que assimilar isso dos outros, não é? Isso é
uma grande dádiva de Deus, os outros estão aí para nos ensinar mesmo. É uma
troca muito importante com aqueles que venceram. E eu tive isso, graças a
Deus, nesse meu primeiro emprego.
                      Eu me lembro inclusive que eu era tão a fim de passar
em concurso que eu até escrevia cartas para as pessoas. Eu me lembro, por
exemplo, que eu fiquei sabendo que alguém passou para juiz de direito e foi
para tal cidade. E eu conhecia a pessoa por ouvir dizer, porque era amigo de
um amigo, e eu mandava carta para essa pessoa e falava: Vem cá, como é que
você passou? Como é que você fez? Me explica aí... Ninguém nunca respondeu,
não é? Mas eu precisava saber como é que era aquilo, como é que se fazia
aquele negócio. Havia alguns segredos que eu ainda não sabia e precisava
saber. E foi tendo essas pessoas por perto – eu nunca perguntei: Vem cá, me
ensina? – que eu comecei a observar mesmo.
                      Eu me lembro que eu olhava muito os livros dos
promotores de justiça lá da Promotoria da Infância e da Juventude – com a
permissão deles –, e via os grifos, os comentários e via: Poxa, esse cara
estudou mesmo, esse cara pegou no pesado, ele fez por onde. E eu fui
assimilando essas qualidades em mim. Eu já tinha um pouco disso e fui
assimilando mais e mais.
                      E porque é importante você ir imaginando essas coisas?
Eu me lembro inclusive que, às vezes, eu pegava algumas manifestações que
eu fazia para os meus chefes – isso até hoje era segredo, mas eu vou contar
para vocês aqui –, pegava algum rascunho e eu imprimia lá, e em vez de
colocar o nome deles eu punha o meu nome: Bruno Costa Magalhães, promotor
de justiça – e eu assinava! Eu era um mero oficial do Ministério Público mas eu
assinava como promotor de justiça; e eu ficava olhando aquela folha nas
minhas mãos assim e falava: Caramba, bonito pra caramba esse negócio! E eu
olhava aquilo e sentia uma ressonância com o que estava dentro de mim – É
isso mesmo! Bateu! A minha assinatura que vocês conhecem hoje, um pouco
esquisita, veio daquela época. Eu falei: Eu tenho que assinar como um
promotor... E inventei uma assinatura igual a de promotor mesmo, toda cheia
de confusão e tal.
                      Enfim, você tem que imaginar você no cargo. Se você
não consegue imaginar, meu amigo, você não vai entrar no negócio. Se é uma
coisa distante, ela vai continuar distante para você. Será sempre um sonho e
você não vai conseguir chegar até ele. Você tem que imaginar a situação. E é
curioso, ninguém sabia desse fato até hoje, vocês são os primeiros a saber.
                      E por que isso? Porque nossa vontade é muito variável.
Vocês sabem que vontade não é como desejo, não é? Há diferença entre desejo
e vontade. Desejo é um mero querer. O desejo é muito fraco. Por quê? Porque o


                                      13
desejo está voltado apenas para o aspecto bom da coisa – Eu desejo um bolo
de chocolate, Eu desejo ganhar dinheiro –, você só deseja a parte boa das
coisas. Só que na vida as coisas vêm com todas as facetas, com os aspectos
bons e com os aspectos ruins. O desejo é fraco por isso: porque ele só deseja o
que é bom, o que é agradável. E aqui, nesta Terra aqui, em tudo há um misto
de coisas boas e de coisas ruins, na mesma situação – não tem jeito. A vontade
só é forte quando você abrange também o sacrifício, abrange também o lado
ruim das coisas. Porque tudo tem um lado ruim, tudo tem um sacrifício, não
tem jeito.
                      A vontade é forte por isso: ela deseja também o
caminho, ela deseja caminhar, tropeçar; a vontade aspira a tudo isso; ela aspira
ao lado ruim também da carreira – porque existe o lado ruim da carreira, a
gente sofre muito também, há sofrimento, há desafios, tem dia em que você
fica muito frustrado. A vontade abrange isso também, e por isso ela é forte: ela
abrange tudo. Ela já compreendeu o objeto, ela entendeu o que você quer e vai
fundo. Com a vontade firme você se trabalha por completo: aquele aspecto seu
que quer a coisa boa e aquele que a princípio não queria a coisa ruim – queria
fugir dela – estão no mesmo diapasão, estão na mesma toada, você está
completo na direção do objeto.
                      Por isso é interessante você ter uma vontade firme,
conhecer o lado ruim e querer também ele – claro, querer que ele seja o menos
ruim possível, mas também querer o lado ruim da carreira, querer o desafio,
querer perder noites de sono, querer se ferrar mesmo. É estudar demais – isso
faz parte também.
                      Há um poema interessante do Carlos Drummond de
Andrade, chamado A máquina do mundo, no qual ele fala um pouco disso aí.
Ele fala de um ser humano que sempre desejou as coisas, mas quando chega a
hora ele não consegue dar o passo seguinte, ele não consegue abraçar a coisa.
                      É um poema que começa com ele caminhando em uma
estrada de Minas, no fim da tarde. Segundo o poema deixa transparecer, ele
sempre foi desejoso de conhecimento, ele sempre quis saber os mistérios do
mundo, ele sempre quis saber como é que funcionam as coisas, sempre quis ter
acesso a esse mistério do mundo. E ele está lá, caminhando na estrada de
Minas, e aparece a máquina do mundo – que é o símbolo disso tudo para ele;
ela simboliza e mostra para ele naquele momento, num relance, tudo o que ele
sempre quis, e o chama: Vem cá!. Ele fala no poema: me chamou para seu
reino augusto. E nessa hora a vontade dele vacila. Ele quis tanto aquilo, mas
naquela hora ele meio que vacila, não é? Nós temos isso em nós. Nós temos
dentro da gente uma força que briga contra a gente. Freud dizia que nós temos
o Eros e o Thanatos, o princípio do prazer e o princípio da morte. É uma luta
interna. Você acha que quer uma coisa, mas há algo em você que luta contra


                                      14
você.
                       E o Drummond, nesse momento em que a máquina do
mundo apareceu para ele, ele vacila mesmo, e fala – eu gosto muito desse
poema e eu sei ele de cor –: e como se outro ser, não mais aquele / habitante
de mim há tantos anos, / passasse a comandar minha vontade. Ou seja, ele
queria tanto, mas na hora H, age nele um outro agente – é claro que era ele,
não é?, mas simbolicamente é outro ser, porque ele não estava reconhecendo
aquilo. Passasse a comandar minha vontade – não é ele mais que age –
vontade / que, já de si volúvel, se cerrava / semelhante a essas flores reticentes
/ em si mesmas abertas e fechadas. Ou seja, nem para lá nem para cá – ele
quer mas não quer. Como se um dom tardio já não fora apetecível. Ou seja, ele
queria naquela hora lá atrás, depois ele já não estava querendo muito, não é?
(…) já não fora apetecível / antes despiciendo – quer dizer, agora já não é tão
importante assim.
                       Aí   ele   fala:   baixei   os   olhos,   incurioso,   lasso   /
desdenhando colher a coisa oferta / que se abria gratuita a meu engenho. Ou
seja, estava lá de graça e ele já não queria mais.
                       Isso é para mostrar que nossa vontade nem sempre é
firme – ela quer mas não quer: a gente quer mas não quer. A gente às vezes
fala que quer, mas quando abre o edital do concurso, a gente fala: Ah, não sei,
não é a minha hora.
                       Eu já me cansei de ver isso. Muitos amigos meus querem
passar no concurso, mas quando abre o edital eu digo: Cara, está aberto o
concurso, vai lá, pô, eu te ajudo, eu te passo a indicação dos livros e tal. E
respondem: Ah, não sei, de repente... A vontade não está firme, entendeu? Se
oferecessem para a pessoa o cargo, talvez ela aceitasse, mas o concurso ela
não quer fazer.
                       Então a vontade tem que ser forte, firme, e a imaginação
conta muito para isso. A imaginação o ajuda a colocar suas forças na direção da
coisa. Você está inteiro naquela direção. Não há nenhuma parte de você que
está contra você, você quer tudo, quer estudar, fazer, passar, quer sofrer o
negócio mesmo, e quer chegar lá e vencer. Você não quer só ganhar o dinheiro,
você não quer só estar ali, com a pompa e as honras do cargo; você quer todo o
trajeto, você quer tudo – isso é a vontade! O desejo é muito fraco. Então é bom
ver se vocês apenas desejam o concurso ou se vocês querem – têm vontade –
realmente. É isso o que está na quarta lição: Fortaleci minha vontade:
certifiquei-me da minha vocação e trabalhei sobre a minha imaginação.
                       Muitas pessoas, com muita legitimidade, já tem família –
então, por exemplo, o cara quer ser juiz de direito, mas ele já está casado e
tem três filhos jovens. É difícil, não é? Imaginem que ele está lá em Minas
Gerais, que é um estado muito grande. No concurso ele pode ir lá para Manga,


                                          15
que é um município no extremo Norte do estado. Ele vai pensar, vai olhar para
a mulher dele, que já tem emprego na cidade em que eles moram, vai olhar
para os filhos que já estão estudando. Tudo aquilo vai enfraquecer um pouco a
vontade dele, não é? Claro! Ele tem que levar em conta aquilo. Ele não está
errado em levar em conta isso, pois são fatores que são ele agora, fazem parte
da vida dele. Ele não pode largar tudo. Mas, às vezes, pessoas jovens, que têm
apenas uma mochila nas costas, que não têm nem um passarinho para cuidar,
ficam vacilantes: Eu não sei, estou com medo, de repente, eu posso fracassar,
vão saber que eu não passei... Tudo isso conta contra a gente!
                        Então é importante que vocês consigam algum modo de
fortalecer a vontade de vocês, para ter essa vontade firme em direção a essa
meta – seja qual for ela. Os desafios virão e você será forte o suficiente para
sequer perceber as barreiras. Você passará pelos desafios fácil, fácil, porque a
vontade está firme ali. Os vetores da sua alma estão todos em uma só direção.
                        Às vezes você não sabe se você quer ser juiz, promotor
de justiça ou AGU. Tudo bem, mas você terá que ter alguma coisa que te force a
estudar. Você não pode ficar muito vacilante entre as situações. Ah, eu não sei
se eu quero ser médico, engenheiro ou juiz de direito. Pô, você vai se ferrar,
porque não tem como unir as três coisas em uma só. É difícil! Você tem que ter
algumas metas que o integrem em uma só unidade. E foi isso o que eu
consegui fazer: eu só queria o Ministério Público.
                        Decidido a passar no concurso, eu comecei a ver como
eu iria estudar. Eu pegava as provas antigas, os editais, os programas e vi que
era muita matéria, era muita coisa! É matéria que não acaba mais! E eu
comecei a comparar os programas com os manuais clássicos, que estavam na
moda da época. Eu comecei a ver que havia muita afinidade entre os
programas e os grandes manuais. E eu vi que nas grandes matérias, nas
matérias básicas, eu iria ter que pegar os manuais e iria ter que ler tudo, de
cabo a rabo mesmo.
                        Esse processo foi muito solitário. Eu tinha amigos na
época, mas esse como-fazer, esse como-estudar, de fato fui eu quem foi
descobrindo. É isso o que eu registrei na quinta lição que vocês tem nas mãos:
Encontrei o meu próprio método e montei minha própria bibliografia.
                        Eu fui lendo, ouvindo pessoas, mas foi muito pouco o
que eu absorvi dos outros. Eu fui montando o meu próprio método. Eu peguei o
programa do concurso do MPMG – que era o que eu queria mesmo na época –,
fui lendo os manuais e comparando com os programas.
                        O meu método foi um pouco exótico e deu muito
trabalho – mas foi por isso que eu passei, não é? Não teve jeito. As matérias
básicas: Direito Constitucional, Direito Administrativo, Direito Tributário, Direito
Processual Civil, Direito Processual Penal, Direito Civil e Direito Penal, eu fui


                                        16
pegando os grandes manuais e fui fazendo o seguinte: por exemplo, em
Constitucional, eu peguei o livro do José Afonso da Silva, que já era grande à
época, em 2001-2002, e eu li ele todo. E eu grifava – mas não as palavras ou
expressões mais importantes, mas sim as frases mais importantes – de modo a
fazer um resumo que combinasse uma frase com a outra. Eu fiz isso aí por quê?
Porque eu já imaginava que eu teria que complementar isso depois. Olha, deu
muito trabalho, viu! Foram três anos.
                       Eu pegava esse livro, já com as frases grifadas, ditava
aquilo em voz alta e gravava aquele resumo inteiro em algumas fitas cassete. E
aí vocês percebem que a matéria inteira já passou duas vezes pela cabeça:
uma para fazer o resumo e a outra para ler para a fita. Depois, o que eu fazia?
Eu ouvia a fita e ia digitando o resumo no computador. E eu tinha ali no final um
resumo de cerca de cem páginas, ou um pouco menos, do livro inteiro. Mas era
um resumo muito harmônico, porque não eram apenas tópicos, eram frases
que tinham uma fluência.
                       Na segunda etapa de uma mesma matéria, eu pegava
um outro livro – no caso foi o do Alexandre de Moraes –, eu peguei o livro do
Moraes, com o resumo do lado, já impresso, e eu lia o livro inteiro e
complementava as opiniões do José Afonso com as opiniões do Moraes. E eu ia
meio que cotejando ali, na margem da folha, o que não tinha no José Afonso da
Silva.
                       Depois – deu muito trabalho, foi exaustivo, mas valeu a
pena –, eu digitava esse complemento no resumo inicial, e na terceira fase, se
fosse uma matéria importante – por exemplo, com Direito Civil eu não fiz essa
terceira fase porque eram seis ou sete disciplinas (Parte Geral, Obrigações,
Contratos, Direitos Reais, Família e Sucessões) –, como Direito Constitucional ou
Direito Penal, por exemplo, eu fazia mais uma etapa: eu pegava temas
específicos que não tinham naqueles manuais, porque eram coisas mais
recentes ou específicas mesmo, e colocava ainda naquele resumo, e o
complementava ainda mais. No fim eu não chegava a ler o resumo de novo; e
nem era necessário, não é? Eu já tinha feito tudo aquilo.
                       Naquele processo de estudo eu depurei a matéria cerca
de quatro ou cinco vezes. Aquilo ficou na cabeça e estava aqui na ponta da
língua mesmo. Isso foi importante não só para saber a matéria, mas para ter a
segurança de que eu sabia. Eu sabia o seguinte: Olha, a banca pode vir com
'gracinha' para cima de mim, mas eu não tenho culpa, porque eu li tudo. A
banca pode inventar o que for – tem gente aí que inventa umas coisas que
ninguém nunca viu; eu vou falar mais à frente das provas abertas.
                       Há surpresas, sim, nas provas, tem coisa de que você
nunca ouviu falar. Você leu tudo mas você não sabe o que é aquilo. Mas eu
sabia o seguinte: eu li mais do que quase tudo mundo, eu li muito mesmo. Não


                                        17
vai ter muita surpresa para mim na prova. Enfim, eu já ia para a prova seguro
daquilo, eu via a matéria quatro ou cinco vezes. Por exemplo: de Direito Penal
eu li uns quatro ou cinco livros; de Processo Penal eu li os quatro volumes do
Tourinho Filho duas vezes, eu li o Capez, li o Pacelli duas vezes, li o Paulo Rangel
– lendo e anotando, lendo e resumindo. E esse processo exaustivo chegava
nesses resumos que eu fazia – que tinham, cada um, cerca de duzentas
páginas. Ao todo foram milhares de páginas escritas.
                        Com matérias específicas eu fazia algo parecido, mas
não tão complexo assim. Eu também lia e fazia uma espécie de resumo de
tópicos: em Direito Ambiental, em Direito do Consumidor, eu não lia todo o
livro, mas eu pegava os tópicos importantes e, principalmente, olhava as
provas antigas. Um dos itens aqui fala sobre isso; é a sexta lição: Fiz o
reconhecimento do território (concursos públicos em geral) e sondei o exército
adversário (as provas e a banca examinadora).
                        Você tem que saber o que é que já caiu nas provas, qual
é a tradição do concurso. Embora a prova possa mudar de feição, embora a
banca possa mudar radicalmente, você tem que ter noção do que se enfrenta
em um concurso, para você não ter surpresas.
                        Eu desconfio que grande parte dos brancos que se têm
nas provas – o tão temível branco – vêm dessas surpresas que nós não
esperávamos. A gente chega lá na hora da prova e tem alguma coisa assim
inesperada que bate e caramba! e não-sei-o-quê e você se esquece. Quanto
melhor e mais bem preparado você for para a prova, com mais conhecimento
incorporado e com mais bagagem14, tanto melhor, porque menos surpresas
você terá.
                        E por que ler as provas antigas? Porque se você estudar
sem ver as provas antigas você estará lendo para qualquer fim, menos para o
concurso. Você tem que ler para aquele fim, para preencher a prova objetiva,
para escrever na prova subjetiva, para fazer aquela prova. Você pode ser um
erudito no Direito e não saber fazer a prova; pode saber tudo, fazer discursos
jurídicos e não-sei-o-quê, e não hora da prova você não sabe fazê-la, porque
você nunca viu uma prova. Você chega lá e precisará de alguns macetes que
você nunca viu.
                        Você tem que ler as provas antigas daquele concurso e
ver qual é a tradição, o que costumam fazer ali, o que costumam cobrar, o que
pedem, qual é a nuance da matéria que você tem que saber mais, qual enfoque
você tem que dar naquela matéria. E às vezes as provas antigas mostram
muito isso – e isso é muito importante.
                        Eu me lembro que eu li nessa época um livro de um tal
de Sun Tzu, chamado A arte da guerra, que hoje está muito famoso, mas na
época não era tão famoso assim. Alguns colegas meus riam da minha cara e


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falavam: Mas que bobeira esse livro, um livro bobão, escrito por um guerreiro
da antiguidade na China. O livro é um manual de guerra chinês, e há uma frase
no livro em que ele fala: Se você quer ir para a guerra, você tem que conhecer
o território e o inimigo. Não tem outro jeito. Você entrará no território, o
território pode lhe ferrar, você não sabe por onde passar, e o seu inimigo pode
ser mais forte que você, você não sabe qual é a fraqueza dele.
                       Há uma passagem nos Evangelhos15 que fala sobre isso;
é uma parábola em que Cristo fala sobre isso aí, para você olhar como é que
está o seu exército. Se você estiver mal, manda alguém lá para fazer um acordo
com o inimigo, senão você vai se ferrar. Você não está pronto para a briga
ainda, não é? É claro que ele está falando de outra coisa, sob o aspecto
espiritual, mas você pode ver também por esse aspecto prático. Esse livro me
mostrou isso: eu tinha que saber qual era o território em que eu ia entrar, saber
o que é um concurso público, saber quais são as fases, como é que se
comporta em uma sala de prova, o que eu vou encontrar lá, como é aquele
ambiente, como são as provas.
                       Eu nunca simulei fazer as provas em casa – sentar e
fazer a prova em quatro horas –, mas eu sempre li muitas provas e sempre
estava muito ambientado a elas. E mais: eu via gente que havia passado no
concurso e eu sabia em qual ele havia passado e sabia que aquele cara havia
feito aquela prova ali. Eu conseguia – não sei como é isso – ver uma realidade
muito forte naquela situação e falava: Olha, alguém passou por isso aqui e eu
vou passar também! Não é impossível!
                       Eu me lembro que também nessa época caiu nas minhas
mãos o livro do William Douglas chamado Como passar em provas e concursos,
que hoje está famoso também. Eu não o li por inteiro, mas li boa parte dele, e
tem coisas muito legais ali, muito interessantes. Ele fala: Olha, faça a análise
de sua família, onde você mora. A sua família pode jogar contra você, a seu
favor, ou pode ser neutra. Você tem que ver onde você mora, se a sua família
é, nesse ponto, sua parceira ou não. Eu me lembro que em casa, quando eu
estava prestando concursos de nível médio, eu às vezes me trancava no
banheiro de empregada para estudar! Era difícil! Eu tinha quatro irmãos em
casa, menores do que eu – dos quais dois eram crianças na época –, brincando
em casa, gritando e tal. E eu às vezes não tinha ambiente em casa para
estudar, e eu me trancava no banheiro de empregada! Vejam que tragédia! Mas
era necessário, não tinha jeito. Às vezes você tem que estar em silêncio para
estudar. Eu não consigo concentrar com barulho. Então você tem que fazer a
análise do seu ambiente, como é que você o trabalhará.
                       Se você tem uma namorada ou um namorado que cobra
muito a presença de vocês, que não entendem o seu estudo, é difícil também.
Eu não tive esse problema, graças a Deus! Os meus amigos e a minha


                                       19
namorada me compreendiam e estavam comigo na época no mesmo barco.
Mas é difícil! Eu sei de casos em que a pessoa não consegue compreender – Pô,
você vai estudar sábado à noite? Como é que é isso? Que absurdo! Então você
acha mais importante o estudo que eu? Poxa, às vezes o pior é que é mesmo –
às vezes é mais importante o estudo do que aquela amizade ou do que aquela
namorada. Às vezes é isso mesmo. Você terá que abrir mão de algumas coisas,
não tem jeito. Se for de fato amor, a pessoa terá que entendê-lo, não é? Agora,
se for possessão, não tem jeito, você terá que largar. É isso mesmo!
                       O livro do William Douglas foi importante para mim,
porque me deu dicas pontuais, de método de estudo, de horário de estudo, ver
o ambiente em que você mora, onde você trabalha – e isso é muito importante.
                       Eu até conheci o William Douglas depois. Eu fiz algumas
audiências com ele em Niterói, RJ. Ele é juiz federal lá. Eu trabalhava em Volta
Redonda, RJ, fui fazer uma audiência em Niterói e falei com ele: Olha, cara, eu li
o seu livro, hein! Ele disse: É mesmo? Que legal! Então conta isso aí para as
pessoas... Me ajude a divulgar! Eu falei que não ele precisava, porque o livro
estava vendendo muito. Ele disse: Claro que preciso! Se até a Coca-cola faz
propaganda, como é que eu não vou fazer!? Divulga aí para a gente, ajude a
vender! A propósito, ele é um cara muito cristão. Em toda audiência, depois dos
trabalhos, ele pergunta aos réus e às testemunhas se são religiosos e, então,
ele dá uma Bíblia à pessoa, e acaba conversando um pouco com alguns deles,
fazendo um saudável apostolado. Todo mundo que vai lá ganha uma Bíblia dele
– desde que aceite, é claro.
                       Então, quer dizer: eu criei o meu método, mas é claro
que eu peguei dicas de outras pessoas, não é? O William Douglas é um cara
que tinha dicas muito boas para dar e foi importante para mim.
                       Quanto à bibliografia, o pessoal pergunta muito: O que
eu devo ler? Olha, eu nunca perguntei isso a ninguém! Eu fui achando o meu
caminho. É claro que eu pegava as dicas – eu sentia o que estava no ar. O que
você está lendo? Como é esse livro aí? Eu nunca fiz cursinhos preparatórios – e
essa é a nona lição, que eu explicarei melhor mais à frente –, mas eu sabia o
que estavam dizendo ali. Eu tinha amigos que faziam cursinho e com eles eu
conversava, pegava dicas. Então eu fui montando a minha lista de livros, eu fui
comprando os livros, fui folheando, vendo se determinado livro era ou não era
completo, pegava o programa, comparava, e eu mesmo montava a minha lista
de livros e os comprava com base nisso aí.
                       Eu não tenho como dizer hoje para vocês o que eu li
porque já se passaram oito ou nove anos, e a coisa mudou muito. As minhas
dicas hoje talvez não sirvam para vocês. Mas eu aconselho: vocês têm que
estar antenados no que está acontecendo no mercado editorial e ver se o livro
é bom para você. Às vezes é um livro fantástico, mas você não consegue digeri-


                                       20
lo – ele é ruim para você. Você lê e não consegue entender. Às vezes o seu
gênio não bate com o do autor, não é?
                       Uma outra coisa: eu tive muitos amigos nessa época da
faculdade – não muitos, mas dois ou três 16 – , que respiravam esse mesmo
ambiente que eu – e essa é a sétima lição: Tive amigos com os quais trocava
ideias. A minha impressão – eu não sei se estou certo nisso – é que as mulheres
têm mais dificuldade nisso aí, de ter amizade nesse ponto. Para os homens é
mais fácil, o homem senta junto e quer discutir mesmo, ele quer brigar pelo
Direito, você está errado e tal. Eu tive isso e foi muito bom para mim. Eu tive
bons amigos nessa época com os quais eu me sentava, discutia Direito, falava
dos concursos. É importante você ter o feed back do outro, do cara que está
próximo de você. Não é bom você se isolar por completo do mundo. Você terá
que perder algumas coisas, mas se isolar é ruim também. E a amizade é aquilo
que falava Santo Agostinho: é você querer as mesmas coisas e odiar as
mesmas coisas17. Ou seja, você está olhando na mesma direção da pessoa. A
amizade, como disse Platão, leva para o alto mesmo, ela te levanta, desde que
tenha essa comunhão de propósitos.
                       Então é bom você saber que você terá que se isolar um
pouco do mundo, mas também é importante saber que é preciso ter vínculos
com pessoas que tenham comunhão de interesses com você. Se é um amigo
que o joga para baixo, largue-o porque isso não serve para nada. Se a pessoa
fica criticando você o tempo todo, fica disputando maldosamente com você,
tem inveja, se a pessoa quer outra coisa, isso não vai adiantar: ela vai tirar suas
energias e vai lhe fazer mal. Então ter amizades boas, condizentes com o seu
estado, é muito importante.
                       Uma outra coisa, que já é a oitava lição: Preenchi o meu
tempo com coisas úteis e saudáveis. Não temi a solidão. Em resumo: não
percam tempo! Se vocês querem esse concurso, ou um concurso difícil que
seja, qualquer um que seja difícil, vocês não podem perder tempo. Perder
tempo, por exemplo, com um churrasco no sábado à tarte inteira. Isso aí é
impossível, não tem jeito! Eu me lembro que nesses três anos – é claro que
houve altos e baixos –, houve um período crítico que eu efetivamente não tinha
muita diversão pública – eu ia no máximo ao um cinema no final-de-semana, lia
algum livro não-jurídico, mas em regra era só Direito mesmo. Eu trabalhava de
manhã, de 7h às 13h, quando fiz estágio era geralmente de 14h às 18h, e ia
para a faculdade à noite, de 19h às 22h. E estudava nos buracos entre uma
atividade e outra, no ônibus, em casa à noite, no estágio.
                       Eu me lembro que fiz estágio no MPF e, nos quatro
meses, eu li os dois livros inteiros de Direito Penal – Parte Especial do Mirabete,
no estágio. Tinha pouco trabalho – eu não enrolava no estágio, não era isso,
mas tinha pouco trabalho mesmo. A minha dupla no estágio, o Marcus Vinícius –


                                        21
o Marquito é hoje baterista e está na AGU – lia Guerra e paz, do Tolstói. Ele
ficava lá e eu acho que ele fez bem – é um bom livro também. Mas, enfim, a
gente tinha esse tempo livre no estágio. E no trabalho também, eu fazia o meu
trabalho e no tempo livre eu estudava. Não tinha jeito, era o tempo que
sobrava. O estágio estava muito cansativo e eu acabei saindo dele. Então eu
tinha a tarde livre para estudar.
                       Foram três anos de muito estudo. A todo momento eu
estudava mesmo. Não tinha hora livre. Às vezes até no domingo. Eu tinha
namorada, claro, estava com ela muitas vezes, mas diversões, baladas, isso aí
ficou muito para depois. Se o convite fosse para ir a um bar para falar sobre
Direito eu até iria, mas se fosse para conversar sobre outros assuntos eu não
estava disponível – eu estava ali direcionado mesmo para o concurso.
                       Eu estava tão aclimatado com os estudos pro concurso
que, algumas vezes, quando eu já estava na cama para dormir – naquela hora
em que você ainda não dormiu mas também já não está totalmente acordado –,
eu ficava pensando em algum assunto que eu tinha visto naquele dia. E me
dava um certo desespero de não saber qual era a posição de tal ou qual
doutrinador a respeito! É claro que nessas horas em tinha de levantar da cama
e ir procurar nos livros algum alívio para aquela situação. Só depois de ler sobre
o tema é que eu conseguia cair no sono... Eu não ia conseguir esperar o dia
seguinte!
                       E aí aconteceu o seguinte: eu me formei na Federal, mas
antes de me formar abriu concurso para a AGU, que foi o concurso de 2001-
2002, e eu fiz esse concurso antes de formar. E – caramba! – eu passei nesse
concurso antes de me formar mesmo. E eu fiquei na seguinte situação: a posse
estava marcada para o mês de agosto de 2002. E houve uma segunda greve
durante o meu curso, na Federal. Então, a minha turma se formaria em outubro
de 2002 e a posse na AGU seria em julho ou agosto – não estava muito certa a
data ainda. E eu estava sem o diploma, eu estava em pleno 10º período, e
fiquei desesperado. Caramba! Se não fosse a greve estaria tudo certo. O que eu
fiz? Eu tinha oito disciplinas naquele período e eu teria que cumpri-las em
tempo record. Eu falei com todos os professores, muitos deles foram muito
solícitos comigo18. Eu fiz muitos trabalhos adiantados, fiz algumas provas
adiantadas e consegui me formar a tempo. Um dos professores, muito
sistemático, me segurou até os últimos dias. Ele falou que poderia, sim, me
passar alguns trabalhos adiantados. Mas chegou nos últimos dias, nas vésperas
da posse, do dia D, ele falou: Olha, Bruno, tem um problema aí: você tem a
pontuação, não é? Mas você não tem a frequência mínima ainda, você tem que
ter a frequência de 75%. E você só a terá em setembro. Eu pensei: E aí? Como
é que vai ser isso aí? Aí em conversei muito com ele, pedi muito. E aí ele
conseguiu achar uma espécie de alínea f do parágrafo único do artigo 36,


                                       22
digamos assim, de uma norma da universidade, que permitia fazer um trabalho
para suprir a frequência. Aí eu fiz mais trabalhos ainda e consegui colar grau no
dia 30 de julho de 2002 e tomei posse na AGU na segunda-feira seguinte, dia 02
de agosto. Foi muito complicada essa época para mim!
                       Eu também tive uma briga com a OAB – não vale a pena
contá-la inteira aqui –, para me dar a carteira da ordem. Eles queriam me
processar porque eu estava exercendo a AGU sem a inscrição na OAB. Mas eu
já havia passado no exame de ordem, o meu caso não era julgado na OAB de
modo algum, o pessoal ficava discutindo firulas jurídicas19. Eles quase
mandaram o meu caso para o Ministério Público, por um suposto exercício ilegal
da profissão, porque eu estava na AGU sem carteira da OAB. Foi uma época
muito tumultuada mesmo – e tudo isso aconteceu enquanto eu estava
estudando para concurso.
                       Eu fiquei na AGU por um ano e meio 20 – nesse tempo eu
prestei um concurso para o MPMG e não passei. Isso foi muito traumático para
mim! Eu já estava afiadíssimo, mas eu não passei na prova subjetiva – e aquilo
para mim foi o meu mundo caiu. Eu fiquei realmente muito frustrado. Eu me
lembro que eu pegava o livro para estudar em casa, olhava para ele e não
entendia nada, as letras estavam todas embaralhadas. E ficava assim: Como é
que eu vou recomeçar? Ó mundo, ó céus! Foi muito difícil. Mas depois de duas
semanas eu consegui voltar ao ritmo normal.
                       Esse concurso de Minas é muito famoso porque tem
algumas surpresas muito chatas. Em um deles, que ficou muito famoso, foram
aprovados apenas cinco candidatos – dos milhares que fizeram apenas cinco
passaram no final. Havia dezenas de vagas e apenas cinco caras passaram. É
claro que houve algum exagero nessa seleção. E algumas provas cobram coisas
que a gente nunca viu na vida. Nessa prova que eu não passei, por exemplo –
não foi por isso que eu não passei; eu não passei porque não estava pronto
mesmo –, na prova de Direito Civil, o membro da banca narrou um caso de
conflito de vizinhança e perguntou, na maior cara de pau, o que é supressio ou
Verwirkung – algo como: Diga como se aplica a teoria da supressio ou
Verwirkung nesse caso21. Supressio! Ninguém nunca tinha ouvido falar dela na
vida! Que diabo é isso? É de comer? É claro que você vai chutar alguma coisa
ali, terá que embromar, mas com alguma razoabilidade. Você não pode chutar
completamente, não é? Mas por essas e por outras eu fiquei muito frustrado
com a prova, não passei, mas bola para a frente. Logo abriu outro concurso e
foi nesse que eu passei.
                       Foram dois concursos quase simultâneos: o do MPMG e o
do MPF. A prova oral dos dois foi na mesma semana. Eu fui a Brasília, dois
colegas meus também estavam fazendo os dois concursos e os três passamos
nos dois. Fiz esses dois concursos e estava muito preparado, estava sabendo


                                       23
muito mesmo. Mas há sempre o imprevisível, você sempre terá de contar com
alguma coisa que você não saberá, com alguma surpresa, com algum membro
de alguma banca que pode ser um cara esquisito, um cara que quer mostrar
conhecimento, que quer mostrar como ele é diferente, que perguntará coisas
que não estão propriamente ali no programa.
                       Mas o que é importante contar do concurso? As provas
objetivas são muito simples, não é necessário explicar como é, não há muita
surpresa. Na prova aberta do MPMG acontecem muitas surpresas, essas
perguntas que ninguém sabe do que se trata. Por exemplo, perguntaram em
uma época lá – não foi no meu concurso – na prova de Processo Penal: o que é
o princípio da suficiência da ação penal? Suficiência da ação penal? Ninguém
nunca tinha visto aquilo. Depois eu vim a saber que aquilo estava em um livro
de perguntas e respostas de Processo Penal de algum autor não sei de onde.
Quer dizer: para quê isso, não é? Eu soube depois que tinha alguma coisa a ver
com os efeitos da sentença condenatória penal na área cível. Como é que o
candidato iria descobrir isso? Quer dizer: tem coisas que podem vir de surpresa,
mas não é uma surpresa só para você, mas para todo mundo. É muito
agradável na hora da prova você ver que tem lá uma surpresa dessas, olhar
para o lado e ver que todo mundo está ferrado junto, todo mundo está no
mesmo barco, ninguém sabe aquilo, ninguém nunca viu aquilo, só o cara da
banca mesmo.
                       Por exemplo, esse caso da supressio, depois eu vim a
saber, estava citado em um único, singular e miserável acórdão do Superior
Tribunal de Justiça – STJ. E aí o ministro do STJ citou um autor português. Poxa,
como é que é isso? Não tinha como saber isso aí! É aquela questão para ferrar
mesmo. Se uma questão assim cai na prova objetiva, menos mal. Porque ali é
um número maior de questões, você pode errar aquela e você pode suprir por
outras questões. Agora, na prova subjetiva é mais difícil, pois são três ou quatro
questões, e se você zerou uma dessas, é difícil, não é?
                       Na prova aberta do MPF eu tive também uma surpresa,
mas essa surpresa foi muito boa, muito agradável. Isso de fato foi um presente
de Deus para mim – alguns chamam de sorte, outros chamam de Deus. Na
prova de Direito Penal e Processo Penal, caiu uma questão sobre um assunto
que não era muito falado na época. Era um tema que estava começando a ser
discutido na época. Hoje já há emenda constitucional sobre isso – que é o tema
da federalização dos crimes contra os direitos humanos. Estava lá na minha
prova aberta do MPF e eu tinha estudado esse tema – eu não me lembro se ele
estava explicitamente no programa –, por sorte ou por Deus, semanas atrás,
em um relatório daquela organização internacional Human Right´s Watch, um
relatório dela sobre o Brasil – eu não sei como é que eu descobri esse texto aí,
mas eu acabei achando ele pela internet, não sei como é que isso me caiu às


                                       24
mãos. Mas eu o li e ele falava do situação policial e jurídica do Brasil à época. É
uma ONG internacional que vem aqui fazer uma análise, e estava lá o relatório
dizendo sobre as prisões do Brasil, aquela coisa horrorosa e tal. E uma das
sugestões desse relatório era federalizar os crimes contra os direitos humanos,
ou seja, em algumas situações excepcionais passar os processos relativos a
esses crimes para a área federal. Por quê? Porque há uma suposição de que
porque se trata de uma justiça menos capilarizada, ela está mais distante do
fato, é mais imparcial e menos sujeita a pressões locais. Então tinha esse item
lá no relatório – que falava também de uma Proposta de Emenda Constitucional
– PEC que estava no Congresso Nacional sobre esse assunto. E na hora da prova
eu fui agraciado com essa benção, de cair essa questão, que valia 40 pontos
em 100. E a minha nota nessa questão foi essencial para eu passar. Eu tirei 50
na prova, em cima da risca – o mínimo necessário na prova subjetiva era 50
pontos. Eu tirei 35 nessa questão – foi uma das notas mais altas nessa questão
– e eu tirei zero em duas outras. Havia essa questão maior que valia 40 pontos,
que era a mais extensa, e havia três outras de 20 pontos. Eu zerei duas outras
e tirei 15 na terceira – ou zerei uma delas e tirei 5 e 10 nas outras, não me
lembro bem, mas eu zerei uma delas. Então se não fosse essa questão eu não
tinha passado, não tinha jeito, era ferro mesmo.
                       Então tem sempre o imprevisível, não tem jeito, você
tem que contar com isso aí. Tem que ter algum jogo de cintura, você tem que
estar antenado nos temas que estão surgindo mais ou menos por aí. Não dá
para ficar só nos manuais, mas também não dá para ficar só nesses temas,
porque se você não tem a base você não vai dissertar sobre a coisa. Você tem
que efetivamente saber os fundamentos. O conhecimento é como uma
pirâmide: se você só tem o topo ela não tem fundamento, ela cairá fatalmente.
Então é essencial ficar nessas duas situações, na base (com os manuais) e nas
situações especiais, nos temas novos e tal.
                       Eu tenho algumas coisas interessantes para contar das
duas provas orais. Eu sempre quis saber como era uma prova oral, e ninguém
nunca me contou isso. Eu às vezes assistia a algumas provas orais do MPMG,
mas era muito de longe, porque os candidatos ficavam fechados em uma
espécie de curralzinho em uma grande sala no último andar, e a plateia era
muito distante. Eu conseguia ver mais ou menos como era uma prova oral, mas
eu nunca soube dos detalhes, como era o ambiente mais próximo, como era o
nervosismo dos candidatos. Foi só fazendo mesmo que eu vi. Aliás eu fiz uma
prova oral antes, mas foi para o concurso de estagiário da DAJ, mas é como se
fosse um ensaio, não era o jogo mesmo. Ali eu iria entrar no jogo mesmo.
                       A prova oral não é algo para assustar. Eu tinha receio de
ficar nervoso, porque eu sou um pouco gago. Eu tinha medo de ficar muito
nervoso na hora da prova oral. Porque o cara da banca fica geralmente mais


                                        25
alto que você, a cadeira dele já é uma cadeira de autoridade. E você está ali,
miserável e pedindo clemência. E eu tinha algum receio disso aí.
                       Em Minas há também a prova de tribuna. É uma prova
em que você vai a uma tribuna, fica de pé, todo mundo te vendo e te
examinando, e você fala sobre um tema sorteado no mesmo dia. Há uma lista
prévia de temas – por exemplo, Direito Penal tem quatro ou cinco temas. Mas
sorteiam no dia o tema sobre o qual você falará. Então sorteiam algum tema,
por exemplo, sorteiam um tema de Direito Constitucional ou de Direito do
Consumidor, e você tem algumas horas para elaborar o seu texto e ir para a
tribuna falar durante cinco minutos. Você dissertará oralmente sobre o tema e
mostrará sua habilidade verbal. É um concurso onde os aprovados farão júris,
discursos em palanque na praça principal da cidade. Então é importante você
ter algum tipo de traquejo verbal.
                       A prova oral do MPMG foi muito divertida, muito legal
mesmo. Os candidatos acabam tendo muita afinidade, acabam criando laços de
amizade na hora da prova oral. Eu me lembro que às portas da prova oral o
pessoal que saía da prova comentava, por exemplo, o que tinham perguntado
em algumas das provas. Quem chegou a esse ponto do concurso não tem muita
rivalidade, ali é todo mundo junto. A gente sabe que se alguém não passar não
foi porque o outro passou, mas porque eles quiseram reprovar a pessoa. Ali no
caso não tinha um número limitante de vagas – havia menos candidatos que
vagas. Então não tinha uma rivalidade. Por isso lá fora da sala estava um clima
muito ameno.
                       Eu me lembro que a prova de Direito Civil era com o
representante da OAB. Em Processo Penal, por exemplo, o que corria ali nos
bastidores era que o membro da banca tinha uma listinha de umas quinze
perguntas e ele não saía muito disso. Então o pessoal já sabia que ele ia
perguntar mais ou menos aquilo ali. Por exemplo: Quais são os cinco princípios
da ação penal, segundo Mirabete? Então o pessoal ficava mais ou menos
preparado, sabendo qual era a resposta. A gente ia mais ou menos pronto. É
claro que havia algumas surpresas na hora. Por exemplo, para vocês terem
ideia, ele tinha vários manuais sobre a mesa dele (Mirabete, Pacelli, enfim, os
mais famosos, uns dez manuais), ele pedia para você escolher um dos manuais
que ele tinha na mesa, e abrir em uma página, onde você quisesse. Eu escolhi o
livro do Eugênio Pacelli e caiu lá em uma página que fazia referência à Lei nº
6.368/76 – (antiga) Lei de Entorpecentes. E então ele me contou um caso:
imagine que você passou no concurso, foi para a sua comarca, e chegou às
suas mãos um inquérito policial por tráfico de drogas – isso é ele me contando
o caso, para depois me perguntar –, você denunciou o sujeito, o processo
correu tranquilamente, sem nenhuma nulidade, o juiz, na sentença, condenou o
sujeito, a pena foi justa, mas você quer recorrer da sentença. Me diga aí qual é


                                      26
o motivo que você tem para recorrer da sentença. O que você poderia alegar? A
questão não foi muito bem colocada – vocês percebem. Ele foi narrando um
caso e me perguntou o que eu poderia alegar. Me veio uma luz na hora – não
havia nenhum indício ali, nada. Na época havia uma discussão que não era
muito forte ainda, sobre o regime de cumprimento de pena dos condenados por
tráfico de drogas. Mas na hora da arguição, o examinador não havia falado
nada sobre regime de cumprimento da pena, nada disso. Mas na hora eu pensei
que a resposta estava clara. Por quê? O Supremo Tribunal Federal – STF estava
dizendo na época que se na sentença condenatória constasse expressamente
regime inicialmente fechado, o réu poderia progredir; se na sentença constasse
regime integralmente fechado, não poderia progredir. E o MPMG, claro, é MP,
com sangue no olho, quer ver o réu preso até o final. Eu falei: É claro, doutor,
eu iria recorrer – aí eu expliquei para ele o que eu havia imaginado, e de fato
era isso o que ele queria ouvir – eu iria recorrer para que na sentença
constasse regime integralmente fechado, porque segundo o STF... Quer dizer,
essa questão foi uma surpresa, eu não sabia que ele iria perguntar isso, é
lógico, mas eu já tinha lido muito sobre o assunto, eu estava antenado nas
discussões, e eu pude responder o que ele estava esperando. Houve também
outras questões mais ou menos complexas que essa. Em geral cada banca te
segura por um tempo que varia entre dez e quinze minutos.
                       Em   outra   banca,   a   de   Processo   Civil,   foi   muito
interessante. A cara também me contou um caso: imagine que você foi
aprovado no concurso, chegou na comarca e você entrou com uma ação civil
pública ambiental, mas o Ministério Público não tem dinheiro para pagar a
perícia. A perícia, no caso, é cara. Você está alegando, então tem que provar. Aí
ele perguntou como eu iria resolver a questão, como eu iria pagar a perícia.
Como eu iria dar conta disso aí. Resolva isso aí para mim. Ele perguntou: Que
solução você dará? Eu falei tudo o que eu pude imaginar, mas eu não acertei.
Eu falei: tem o fundo de direitos difusos, previsto na legislação, que tem
dinheiro disponível. Ele falou: Pode esquecer! Não está disponível. No meu
exemplo o fundo está sem dinheiro. Eu falei: Olha, o Estado pode pagar e,
depois, o réu, se perder a ação, deverá ressarcir. É uma opção, eu brigaria por
isso aí. Ele disse que não era por aí também não. Enfim, eu inventei mais
algumas saídas lá e não consegui achar a solução. Aí ele viu que eu não ia
resolver a questão e passou para a próxima. É claro que eu não fui reprovado
por isso, mas a minha pontuação não foi excelente. Aí vejam que curioso: anos
depois, eu estava com a minha esposa no carro – ainda não era minha esposa
na época – eu estava em Volta Redonda, e eu me lembro que na época havia
uma discussão sobre a inversão do ônus da prova, como ocorre no Direito do
Consumidor, para essa situação. Ou seja, inverter o ônus da prova, mas aqui no
aspecto processual e financeiro. Pelos princípios ambientais você fará com que


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aquele infrator – ainda que o seja de modo presumido – adiante o valor da
perícia – você inverterá o ônus. É você quem alega mas é ele quem vai pagar –
inverter o ônus da prova financeiramente para que ele pague. O cara queria
que eu dissesse isso; ele queria ouvir isso de mim. Mas eu, no carro com a
minha esposa, pensando em outra coisa, não sei o que deu na hora: Caramba,
é isso o que ele queria ouvir! Isso aconteceu anos depois, eu não estava
falando com ela sobre Direito, aquele assunto estava ali no fundo da
consciência, e foi ali que eu, lembrando da prova oral, anos depois, cinco ou
seis anos depois, falei: Ah tá, era isso o que você queria ouvir, não é? Agora eu
já sei! É interessante: nem sempre você tem a resposta; às vezes ela chegará
anos depois. Você tem que juntar os dados. Eu não juntei A com B – na época,
no fundo eu não sabia dessa teoria, eu não sabia mesmo. Eu não imaginava
que fosse isso aí. Eu soube depois da teoria, e depois ainda eu juntei A com B.
Então nem sempre você vai saber tudo, nem sempre você vai conseguir ter
controle de tudo, não tem jeito.
                       Uma outra coisa interessante nessa prova oral do MPMG
foi o seguinte. Tinha lá um sujeito da banca examinadora com um livro de
doutrina, era um resumo, desses resumões que estão famosos hoje, e a gente
achava aquilo muito engraçado. Por quê? É um membro da banca, poxa. É o
cara que sabe, é o cara, não é? É o cara que sabe o negócio. E está lá com um
resumão do lado dele, exibindo orgulhosamente aquele resumo. Enquanto
outros estão lá com tratados, compêndios, ele estava lá com um resumão!
Esquisito isso aí, não é? E a gente não sabia como reagir a isso aí. Porque você
pensa: será que ele está querendo enganar a gente? Ele quer falar que sabe
pouco – é um senhor mais antigo na carreira –, para enganar a gente, para a
gente relaxar e para ele então enfiar a faca? Ou será que ele de fato é modesto
e humilde e vai se sentir ferido por uma resposta mais bem dada? Também tem
isso, não é? O cara que é muito humilde, domina apenas o feijão com arroz, se
você quiser falar bonito com ele, ele vai te cortar! Ele é quem manda ali! Então
isso foi um mistério para a gente. A gente não sabia que reação ter perante ele.
Valia mais a pena ficar no feijão com arroz ali e não pisar muito fora.
                       Em uma outra banca a pessoa tinha um caderno
brochura, com perguntas escritas à caneta, e ela perguntava, como se fosse um
ditado mesmo: O que você tem a dizer sobre isso? E olhava assim para você,
por cima do caderno, e você tinha que responder. Fale sobre a classificação de
não-sei-quem. E aí ela olhava assim e você falava: Segundo não-sei-quem... Era
muito engraçado! Era muito singelo aquilo, não tinha nenhuma maldade
naquele negócio.
                       Em uma outra banca eu já fiquei um pouco intimidado.
Cada banca era composta por duas pessoas. Nessa banca, um deles tinha a
cara de mais bravo, de inquisidor, e o outro era mais amigável. Houve


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perguntas sobre Direito Econômico, Direito do Consumidor – era uma banca de
legislação especial. Eu sei que eu fui respondendo e a prova acabou durando
um pouco mais que as outras. Eu fui ficando à vontade com eles, fui relaxando
e fui baixando na cadeira. Quando eu menos percebi eu já estava bem à
vontade. Aí o mais amigável olhou para mim – eu não percebi que eu estava à
vontade – e disse: Por favor, o senhor queira se recompor na cadeira . Eu logo
percebi, voltei à postura formal, e pedi desculpas. Eu fiquei muito sem graça
por perceber aquele estado meu. Eu estava muito à vontade ali, eu estava
sabendo as questões, e eu relaxei mesmo, eu estava relaxado ali, como quem
está em casa conversando com amigos. E aquilo me grilou tanto, eu fiquei a
semana inteira, até o resultado final, me perguntando: Será que aquele cara vai
me ferrar? Será que ele vai me tirar do concurso por isso? Porque, de fato, é
uma postura meio esquisita, não é? Você está ali na banca, de terno, naquele
ambiente formal, e, poxa, relaxado como quem está achando tudo muito bom.
Eu realmente fiquei com muito medo disso, de não passar por isso. Mas no final
das contas eles me aprovaram e não tive nenhum problema com isso.
                       No Ministério Público Federal a prova oral é mais ou
menos assim também. É uma sala, onde cada banca ocupa uma mesa, e você
fica circulando de mesa em mesa e vai passando por todos os carrascos e
tomando tapas, não é? Eu não posso dizer que é mais tranquila e nem que é
mais difícil. É uma prova tranquila também. Não tem muitas surpresas. E lá, em
especial, é mais previsível. Por quê? O nosso edital do MPF vem por tópicos.
Então cada disciplina tem 20 ou 25 tópicos e cada tópico tem três itens. Na
hora da prova oral eles sorteiam um dos itens – eu não me lembro se é um dos
números, com três itens, ou se é uma das alíneas – sorteiam um tema e você
terá ou que dissertar oralmente sobre aquele tema ou terá que responder a
perguntas sobre ele.
                       Eu me lembro que o subprocurador membro da banca de
Direito Civil e Processo Civil sorteou um tema de registro civil e um outro de
ações possessórias e ele me mandou falar sobre isso: Ah, então fale sobre o
que você sabe sobre isso aí. Sobre o tema das ações possessórias eu sabia – eu
tinha lido muito sobre isso. Eu li em Direito Civil e em Processo Civil. Eu sabia
tudo, não é? Sabia das três ações, dos graus de ataque à posse, tudo na
cabeça. Mas na hora não saíam os nomes das ações! Eu me esqueci deles na
hora da prova! Eu expliquei para ele: Olha, eu sei quais são as ações... –
expliquei com muita calma – … sei que elas variam de acordo com o ataque à
posse: em uma delas o ataque não aconteceu ainda, em outra o ataque já
aconteceu, mas não se completou, e na outra a posse já está perdida, mas eu
me esqueci os nomes, mas são essas aí que o senhor bem sabe... Apesar disso
eu passei bem nessa matéria, mas o branco às vezes vem mesmo.
                       É uma hora muito solene. Vocês sabem que o prédio da


                                       29
PGR parece um disco voador, é muito bonito, não é? E eu estava lá dentro
daquele negócio ali, é um negócio muito bonito. E eu estava li naquele lugar
maravilhoso, eu estava na prova oral do MPF, no primeiro concurso que eu fiz
para a PGR. É uma situação que geralmente deixa as pessoas um pouco mais
nervosas, mais tensas, não é? Então a última coisa de que eu me lembraria ali
seria o nome das ações possessórias. Eu não me lembrei mesmo!
                       O outro cara da banca – era a banca de Direito
Financeiro e Tributário – fez uma pergunta sem pé nem cabeça: Vem cá, como é
a importação de peças de aeronave? Que tributos incidem sobre a importação
desse produto? Eu não tinha a menor noção de como era isso aí. Eu respondi
como eu achei que tinha que responder, mas eu não tinha nem noção se eu
tinha acertado ou não. E ele fez também outras perguntas que eu soube
responder. Mas tem sempre o folclore das provas orais, e não tem como
escapar dele.
                       Em geral é isso: você tem que manter a calma, tem que
dominar um pouco os temas. No MPF você tem que saber que pode cair para
você um tema que será pura surpresa. Há vários itens ali e na sua prova oral
pode ser aquele, entendeu? Você tem que dominar mais ou menos a coisa. No
meu concurso foi interessante porque os candidatos que foram para a prova
oral conseguimos nos reunir por e-mail, e nós dividimos o programa inteiro do
concurso entre os candidatos – éramos um pouco mais de noventa pessoas –, e
cada um ficou com três tópicos para resumir e mandar para o grupo. Então nós
conseguimos fazer várias apostilas com um resumo de todos os tópicos. Porque
era mesmo uma surpresa. Poderia cair para você ali um item que você nunca
viu na vida. Vocês podem ver o programa do 25º Concurso, que está disponível
aí, e verão coisas ali que, meu amigo, é difícil! Você nunca mais os verá na
vida! Só nesse concurso mesmo. Então isso foi importante para a gente saber
bem sobre temas sobre os quais nós não tínhamos muita ideia, para você ir
com alguma coisa para falar, alguma nuance, alguma classificação, algum
indício de conhecimento sobre aquele tema.
                       Mas diante de tudo isso aí, eu ainda olho para trás –
como eu falei, já se passaram oito, nove anos, de tudo isso aí, em alguns casos
mais de dez anos – e fica sempre alguma coisa que faltou entender. Eu ainda
não entendo muito bem o que é que de fato me tirou daquela situação, um
menino normal ali, pô, e num concurso com vinte mil candidatos, passam
noventa e eu estou ali entre eles! É claro que eu estudei muito, ralei demais, foi
muito difícil, mas ainda falta alguma coisa que eu não sei explicar, sabe? Faltam
alguns elos. É engraçado pensar sobre isso! Parece que foi algo que Deus me
deu de graça! Ele me mostrou o caminho, e eu o fui seguindo, mas chegou uma
hora em que eu não sabia o que fazer – talvez nem soubesse que tinha algo a
fazer –, uma hora em que eu não dominava a situação, uma hora em que eu


                                       30
não sabia o que estava acontecendo mesmo, e foi ele quem me levou.
                       Porque, olha, essa mania de controle que nós temos –
alguns têm mais, outros têm menos –, mania de controlar, mania de saber tudo
– claro, o concurseiro tem que ter essa mania de controle, ele tem que saber
tudo mesmo, e um pouco mais –, isso é só uma meta, é só um anseio, você
nunca chegará a esse conhecimento absoluto. Não tem jeito. E mais: algumas
coisas nesse trajeto são imprevisíveis, não é? Há situações que podem te
surpreender no meio do caminho: você pode se apaixonar, você pode se casar!
E aí, como é que fica o seu programa que estava em andamento? Você pode ter
que mudar de cidade, em razão do emprego. Você pode desistir e querer outro
concurso, e aí terá que pegar o programa e adaptá-lo. Tudo isso pode acontecer.
E nesse meu trajeto houve algumas mudanças, e eu de fato fico me
perguntando de onde veio essa força. Coisas imprevisíveis que eu não estava
preparado para superar, que eu não sabia como superar, mas que eu nem
percebi e passei por aquilo tranquilamente – hoje, olhando para trás, eu vejo
que passei por muitas dificuldades da vida sem sequer percebê-las, certamente
porque Deus estava do meu lado, me levando pelas mãos. E essa é décima
lição: Diante do imprevisível, contei com Deus.
                       Eu fico pensando às vezes: é como aquela criança que
passa o dia brincando, fazendo o dever de casa, e dorme na sala, com os pais,
vendo televisão. Ela, inocente, não foi para a cama. Quem carrega ela para a
cama é o pai, não é? A mãe prepara a cama dela e o pai pega ela no colo e a
leva para a cama – e ela nem percebe, ela nem sabe, ela nem viu isso aí, não
é? O pai dela dá conta de tudo, tranca a porta da casa, confere o gás, coloca o
despertador; a mãe passa a roupa dela, prepara o café da manhã – e esses
cuidados nem passaram pela cabeça dessa criança! Ela nem sabe que a vida, a
saúde, a segurança e o conforto dela dependem desse pai e dessa mãe – tudo o
que ela fez foi brincar, fazer o para casa e dormir na sala. Aí ela acorda no dia
seguinte, restabelecida, descansada e pronta para o novo dia, para novos
desafios, brincadeiras e aprendizado.
                       E quando eu penso nisso tudo eu vejo que é como se eu
fosse essa criança que cumpriu o seu papel, fez o seu dever de casa, brincou
um pouco, se divertiu – isso foi divertido mesmo, eu olho para trás e acho muita
graça –, mas chegou o momento em que eu dormi na sala mesmo, eu não tinha
noção do que estava acontecendo nesse fundo muitas vezes incontrolável das
nossas vidas, eu não tinha controle da situação – eu não estou dizendo que
houve desespero, não é isso! Mas tem coisas que você não vai controlar, não é?
Não é você que vai resolver aquilo. Você é incapaz mesmo, você não está
pronto para aquilo e muitas vezes você sequer sabe que tem um problema ali
para você resolver.
                       É como se eu fosse essa pessoa, essa criança que


                                        31
dormiu ali na sala e de fato tinha uma cama pronta para ela dormir, e é Deus
quem pega você nos braços e te leva para a cama, foi Ele quem me deu a
segurança. Na época eu não era religioso (eu me converti à Igreja Católica há
pouco tempo; eu fui batizado quando criança mas fiquei longe da Igreja por
muito tempo), mas eu sempre rezei em casa. E eu olho para trás e sinto isso:
que foi Ele quem me pegou pelas mãos, me pôs na cama, para descansar
mesmo, e cuidou de tudo o que era necessário enquanto eu estava ali meio
adormecido, enfim, foi Ele quem coroou mesmo essa vitória, me colocou ali,
onde eu descansei – e eu já acordei adulto, no susto, descansado, e pronto para
a batalha, para esse desafio que é o Ministério Público.
                       A mensagem que eu tenho a dar para vocês a esse
respeito é essa: façam o que vocês têm de fazer mesmo, mas não adianta:
haverá alguma coisa ali que você não conseguirá suprir – e às vezes você nem
saberá o que é! Às vezes é isso, um artigo que cai nas suas mãos na hora certa,
na véspera da prova! Poxa, não foi você que foi atrás, o artigo chegou às suas
mãos! Você tem que reconhecer isso aí! Você não é gênio a ponto de descobrir
o que vai cair na prova. Caiu nas suas mãos, foi um presente. Está lá na sua
mão um artigo da Human Rigth´s Watch, e aí? Como é que é isso aí?
                       No concurso do MPMG eu não me lembro de nenhum
fato surpreendente – é claro que houve ação divina, lógico, mas não tem
nenhum fato surpreendente. No MPF houve. Realmente se não fosse esse artigo
eu não tinha passado, não tinha passado mesmo.
                       Então é isso. É preciso contar com essa válvula de
escape para o transcendente, que é Deus, que é o Infinito, o Insuperável. Você
vai ter que ter isso aí com você. Você não vai conseguir passar sozinho, tem
que ter os amigos, tem que ter família, se possível a seu favor – às vezes não é
possível, não é? Se não for possível, você se mantenha um pouquinho ali, e às
vezes fuja da família para estudar. Isso também funciona. Mas é importante
saber qual é a sua parte e qual é a parte de Deus – porque Ele tem a parte dele
também.
                       Então, pessoal, essa é a minha história.
                       Com essa exposição a gente encerra o nosso Ciclo de
Palestras e eu fico à disposição para perguntas, outras questões que vocês
tenham, algum comentário, alguma dúvida sobre essa minha trajetória. Eu
queria agradecer muito à Lúcia, por estar todos os dias aqui com a gente, e
fazer parte desse Ciclo de Palestras – e também à Lígia, minha estagiária, que
está fazendo e digitando os resumos das palestras. Eu espero que esse ciclo se
repita no próximo semestre. Eu não estarei aqui no próximo semestre, pois eu
farei uma permuta com um colega de Minas Gerais, mas eu espero que esse
espaço aqui se multiplique, pois ele foi muito importante. Esse espaço aberto,
esse diálogo com os estagiários e com os servidores é muito importante. A


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  • 2. e o MPF daqui para a frente, daqui a alguns anos. Esse caminho existe. Basta que vocês consigam visualizá-lo, ver quais são os possíveis percalços no caminho – que há pedras, é claro que há. Se a sua aprovação está, digamos, em uma montanha, é claro que vai haver tempestades, vai haver noites sombrias, vai haver situações muito difíceis pelas quais você terá de passar, até chegar nessa meta final que é o concurso do MPF. É um concurso muito difícil. E você às vezes se verá de fato como Dante Alighieri se viu no meio da vida, na selva tenebrosa, e perdeu a estrada. E aí? Para onde é que eu vou? Isso aí é muito real! Nesse caminho que você trilha, em relação a qualquer coisa na vida – e o concurso do MPF para mim foi muito isso –, nesse caminho que eu trilhei, eu me via perdido em selvas tenebrosas e não sabia muito bem para onde ir. Mas eu logo me achei e vocês vão entender como é que isso aconteceu na minha vida. O que eu posso fazer por vocês é isso. Eu não posso fazer como Virgílio fez com Dante: conduzi-los pelas mãos até o final do concurso. Mas eu posso mostrar o que eu fiz, mostrar como eu fui conduzido, por quem, e como eu cheguei até aqui. Talvez vocês, ouvindo isso aqui, consigam adaptar para o caso de vocês e consigam iluminar o caminho de vocês nesse sentido. Eu vou dizer hoje muita coisa que já se passou há oito, dez anos na minha vida. Enfim, também é um modo de prestar contas com o meu passado. Eu nunca falei sobre isso assim nesses termos; eu sempre comento uma coisa ou outra, mas eu nunca sentei para rever como foram esses três ou quatro anos da minha vida, entre 1999 e 2003. Já se passaram de oito a doze anos – a gente até assusta, porque já se passaram muitos anos, não é? Mas é uma forma também de voltar atrás e, enfim, colocar um ponto final. Eu não pretendo dar aulas de auto-ajuda, não pretendo dar aulas em cursinhos preparatórios. Pretendo realmente só mostrar como é que eu fiz isso aqui – e talvez isso ajude vocês. O tema foi sugerido, se não me engano, pelo estagiário Rogério, não é? O Rogério sugeriu esse tema: Como passar no concurso de procurador da República. Então a ideia também é a de suprir essa carência que vocês, claro, sentem. Como é que foi isso? Eu sentia isso também! Quando eu estava prestando concurso, eu queria saber como é que aquele cara passou. E eu quase nunca tive acesso direto, para perguntar: Vem cá, como é que você passou? O que você fez? Eu quase nunca tive essa chance de perguntar para as pessoas que tinham passado. Então eu vou contar um pouco como foi a minha vida nesse aspecto, no que importa a essa minha aprovação nos concursos públicos. Eu sou o filho mais velho dos meus pais. Meu pai se 2
  • 3. formou em Direito, um pouco mais tarde que o normal, e é advogado; minha mãe trabalhou durante muito tempo no Tribunal de Justiça de Minas Gerais; e eu mais ou menos cresci nesse ambiente de Direito. Eu não me lembro de nenhuma fase, nenhuma época em que realmente tive que decidir fazer Direito. Eu não tive nenhum tipo de dúvida existencial. Eu de fato não sei dizer quando foi que eu decidi fazer Direito. Eu sei que chegou o terceiro ano, às vésperas do vestibular, e era isso mesmo, entendeu? Eu de fato não consigo perceber quando foi que eu decidi fazer Direito. Ontem mesmo eu vi, com a minha esposa, o filme Hobin Hood, com o Russell Crowe, e teve uma cena que me lembrou isso. No filme ele acaba encontrando uma espada, e nela está escrito Rise and rise again, until lambs became lions, ou seja Lute, lute e levante-se, até que os cordeiros se transformem em leões. É claro que é uma frase de inspiração bíblica – embora não seja bíblica. Na Bíblia, Cristo é o Cordeiro e ele virá no fim dos tempos como o Leão de Judá. Mas o que importa é que, no filme, o Russell Crowe vê essa frase e ele não sabe ainda por quê, mas ele se sente inspirado a lutar – eu não vou contar o filme inteiro –, a entrar na luta ali, de início contra o rei, e depois a favor do rei. E ele passou o filme inspirado por aquela frase, e tentando entender o porquê. Ele não consegue entender muito bem. E lá pelas tantas, mais para o final do filme – eu posso contar porque não é o segredo do filme, esse filme não tem o segredo, mas por quem não viu eu sinto muito, eu vou contar porque faz parte da palestra! –, quando ele está já às beiras da luta, ele descobre, por um rapaz que conheceu o pai dele, que na sua própria infância ele vira essa frase pela primeira vez com o próprio pai. Então aquilo ficou ali no fundo, no inconsciente dele, e quando ele reviu aquela frase, ele não lembrava de onde era, mas serviu para que ele se inspirasse, serviu para dar forças a ele, não é? Talvez haja alguma coisa assim na minha vida, alguma relação com o meu pai de que eu ainda não consegui juntar o elo. Mas eu de fato não sei o que foi que me fez dizer: Eu vou fazer Direito, eu vou fazer isso aí. Eu sei que foi acontecendo, e eu cheguei ao vestibular e marquei Direito, não teve outra situação. No colégio, eu nunca fui um aluno muito excepcional. Também não era muito medíocre. Sempre fui mediano. Eu me lembro que na 8ª série do ensino fundamental eu caí um pouco de nível. Eu tinha notas muito boas em Inglês, Geografia, História, Matemática, e eu caí um pouco de nível. Eu não sei o que aconteceu, eu não me lembro muito bem o que aconteceu, eu peguei recuperação em algumas matérias, mas consegui passar. Eu me lembro que eu fiquei mais mediano ainda. Passava despercebido mesmo, não era nenhum daqueles primeiros da sala, de jeito nenhum. E isso foi importante para mim. Por quê? Porque eu nunca foi exaltado pelos colegas de sala. Tem sempre aqueles melhores da 3
  • 4. turma, não é? – Esse aí vai passar em Medicina na UFMG, Esse aí vai passar em Direito, Aquele outro é o foda, Esse aí estuda demais, Aquele lá sabe tudo de Física – eu nunca fui desses. Eu sempre estava ali – sei lá – como a média. E eu me lembro que no vestibular – lá em Belo Horizonte, na época, havia quatro faculdades de Direito (hoje devem ter mais de dez), que eram a UFMG, a Milton Campos, a PUC e a Fumec – eu não tentei a Milton Campos; eu tentei a Federal, a PUC e a Fumec. Eu não sei por que, mas eu coloquei na cabeça que eu faria a PUC. Eu falei: Olha, eu quero passar na PUC, que era uma das particulares, e eu achava que era mais viável passar na PUC; eu achava que não era capaz de ir para a Federal. Eu não tinha essa ambição. E na minha turma também já estava certo quem ia passar e onde, o pessoal já tinha feito um mapa do território – lotearam as vagas das faculdades públicas! E eu me lembro que eu prestei o vestibular da Federal, passei na primeira etapa, fiz um cursinho para a prova subjetiva – cursinho que foi muito importante para mim3. E eu fui para Guarapari, a praia dos mineiros no Espírito Santo, em janeiro. Eu fiz a prova e fui para lá com o meu pai, meus irmãos, e com algumas amigas de sala. O resultado saiu em janeiro. Eu me lembro que eu passei a noite em claro, em alguma festa – não me lembro bem – e amanheci no dia seguinte para comprar o jornal Estado de Minas com a lista de quem havia passado na Federal. E estava lá o meu nome na lista de aprovados. Passei na Federal! Falei: Caramba! Fiquei maravilhado. Meu pai não entendeu nada, minhas colegas de turma ficaram muito assustadas com aquilo e eu fiquei muito feliz, lógico! Passei na Federal, não esperava! Era uma faculdade pública, a melhor de Minas e tal. E isso me serviu muito porque me ensinou a primeira lição: Descobri o meu próprio valor. Não aceitei o consenso geral a esse respeito – que abre essa listinha aí que eu distribuí antes de começar a palestra. Eu descobri na verdade que há duas realidades: há o consenso geral das pessoas a seu respeito e a há a sua realidade mesmo, aquilo que você é de verdade. Eu acho que eu tenho uma resistência para isso; não sou tão influenciável assim pelo meio – na verdade, sou um pouco, ninguém está livre disso, não é? Tem gente que é isenta, passa de liso, nada influencia aquela pessoa para o mal – e às vezes nem para o bem. Mas eu me lembro disso. Eu vi o meu nome na lista e olhava para aquelas pessoas que já haviam loteado as vagas na Federal e me perguntava: Cade vocês? O que aconteceu com vocês? E concluí que aquilo tudo que eu ouvia e sentia era pura ilusão! Não adianta você se exaltar antes do tempo. Isso aí é pura ilusão mesmo! A hora do vamos ver é a hora da realidade. Isso foi muito importante para mim. De fato, eu estudei 4
  • 5. no Colégio Batista Mineiro, e das turmas daquele ano apenas três pessoas passaram em Direito na Federal. Alguns outros passaram na PUC, na Fumec e na Milton Campos. Aquilo foi um choque positivo para mim. E eu assustei, falei: Caramba, eu sou capaz de fazer alguma coisa, não é? Eu não tinha baixa auto-estima – não se trata disso. Mas no consenso ali eu não estava no top ten. Eu estava lá no meio. Então foi importante descobrir essa capacidade de vencer os desafios. É claro que eu fiz a prova para passar. Eu não fui ali cumprir tabela. Mas eu não tinha muita esperança de passar. O meu negócio era a PUC-Minas mesmo, eu já estava com isso na cabeça. Mas acabou dando certo. Uma coisa também interessante. Eu sou o primeiro filho, o primeiro neto, o primeiro bisneto e o primeiro sobrinho da família – quando acontece isso o pessoal cria muita expectativa em cima da gente4. Eu não sei se algum de vocês é primeiro filho, primeiro neto, mas isso aí é muito complicado: todo mundo quer que você seja o cara da família, não é? Isso foi muito ruim para mim, eu me lembro que eu sentia muita pressão na infância. E isso, com o tempo, sumiu, desapareceu. Eu fui ficando jovem, adolescente, e tudo aquilo sumiu. Enfim, ninguém esperava nada de mim, eu era uma pessoa normal, e a vida corre para a frente, não é? E esse mecanismo criou um certo desajuste saudável entre o que eu esperava de mim e o que os outros esperavam de mim. E isso foi muito importante: eu não media os meus desafios pelo que os outros esperavam de mim – e sim eu fui colocando as minhas próprias metas. Mas a Federal foi mesmo um susto, não foi uma meta que eu me coloquei conscientemente e venci. Foi de fato meio que um atropelo. Sobre essa situação, eu disse que eu tenho uma certa resistência ao meio. Há pessoas que não têm essa resistência. É importante que vocês saibam disso. Vocês têm que ter uma capacidade de resistir ao meio. A quem não tem muita noção de como é que isso funciona – eu também não tinha muita noção, eu tive consciência disso há pouco tempo atrás, quando eu fui fazendo a análise e percebendo a situação –, há um artigo interessante do sociólogo francês Claude-Lévi Strauss chamado O feiticeiro e sua magia, que está em um dos livros dele – Antropologia Estrutural5. Ele fez um estudo com sociedades selvagens e analisou como uma maldição, pelo chefe da tribo, pode chegar inclusive a matar uma pessoa. Uma pessoa que é amaldiçoada pela tribo, pelo grupo – não é algo assim sobrenatural, não é magia no sentido misterioso da coisa; ele vai contando como é que a coisa funciona –, vai perdendo os laços sociais dela de tal forma que ela degenera completamente, a psique dela se degenera e ela vira um pária naquele local ali, naquela sociedade – é claro que é um ambiente fechado –, e ela acaba morrendo mesmo, ela se afasta da tribo para morrer. Tudo isso por efeito da sociedade, do grupo mesmo. A morte daquela pessoa não veio do Céu, foi efeito do grupo 5
  • 6. dela. O pajé do grupo, digamos assim, lançou a maldição, espalhou aquilo e aquilo vai virando verdade mesmo, as pessoas vão agindo de acordo com aquilo. Então você conseguir se dissociar da opinião do meio, em alguma medida, é muito importante. Primeiro porque você pode estar sendo rebaixado de modo indevido. As pessoas podem não ver a sua própria luz, e você tende a não vê-la também. Você está com ela mas não consegue percebê- la, não tem acesso a ela. E o contrário também é verdade: você pode estar sendo exaltado de modo indevido. O colocam no trono, e na hora do vamos ver você cai, já era. Então é importante essa dissociação, em alguma medida, da opinião geral. Você tem sempre que escutar, é claro, pois pode ter ali uma dica importante para você. Você pode se achar o cara, e às vezes você não é o cara. É bom você ouvir a opinião das pessoas; você tem que ouvir os outros para saber disso, mas não vá apenas na linha do que dizem para você; tente também ver o que você tem de potencial, não é? Eu não tenho um método para isso, mas vocês têm que olhar para dentro, se colocar nos desafios mesmo, e ir para a briga, vencer, perder e ver onde é que está a verdade. Se você ficar apenas nesses consensos sociais, você irá se ferrar. Eles são poeira mesmo, são pó, é apenas ilusão. Eles podem ter alguma pista da realidade, mas enquanto opiniões são apenas pó, não são a realidade. Eu passei na Federal, e comecei a fazer o curso de Direito. Entrei no segundo semestre. E eu comecei o curso com o pé esquerdo. Por quê? Na Federal – eu não sei se hoje ainda é assim –, havia o Ciclo Básico. O que é isso? No primeiro semestre juntavam-se as turmas de ciências humanas – enfim, em uma mesma turma havia alunos de Direito, de Sociologia, de Ciências Políticas, de tudo que é tipo de ciências humanas –, para fazer o mesmo curso, o mesmo semestre. Tínhamos aulas de Filosofia, de Política, de Economia. É um ótimo ambiente! É bem legal mesmo! Tem gente de tudo o que é espécie lá na Fafich. E tínhamos aulas de Direito também. E eu me lembro que cheguei na primeira aula de Direito, na aula de ICD – Introdução à Ciência do Direito, e eu já cheguei na segunda aula, e atrasado. Eu não me lembro bem como foi, mas acho que me trocaram de turma, da A para a B, e a turma B já havia tido uma aula anterior a que eu não tinha ido. E eu cheguei no meio da segunda aula e eu vi os meus colegas de sala falando grego. Eles falavam de propedêutica filosófica, de epistemologia jurídica. Eu entrei naquela sala e fiquei meio deslocado. Eu não estava entendendo nada! Eu saí daquele semestre sem entender quase nada de Direito! Eu me lembro de dois ensinamentos básicos que eu guardei da época: a Norma Fundamental, do Hans Kelsen; e me lembro de uma frase, sobre a norma jurídica, também do Kelsen, que a professora6 repetia sempre, que dizia 6
  • 7. que eficácia é condição de validade. Eu só sei disso – aliás, hoje eu sei um pouco mais, mas eu só sabia isso na época. E foi um susto para mim. Eu era um peixe fora d´água, eu não estava entendendo nada, eram termos que não tinham muita ligação com o meu dia-a-dia, e eu fiquei um pouco perdido. No segundo semestre, para piorar as coisas, houve uma greve na Federal, de uns três ou quatro meses. E eu ficava em casa, sem fazer muita coisa. Eu ainda não estava engajado no curso, não estava no DCE – eu nunca fui disso. Fiquei em casa, sem ter o que fazer. E eu volvei a um hábito antigo meu – dos 15 aos 20 anos eu tive bandas de música –, eu voltei a tocar com as minhas bandas. Eu tive uma banda de cover dos Beatles7, e outra de pop rock nacional – e eu voltei a tocar com eles. Só que essas bandas não tinham muito show na época. Era difícil arrumar show para tocar Beatles. Difícil demais! Em especial porque Beagá tem as duas melhores bandas de cover dos Beatles do Brasil, que são a Sgt. Pepper´s e a Hocus Pocus – são bandas ótimas. Inclusive eu ia muito aos shows deles8. Então com as minhas bandas não tinha muita apresentação, era praticamente só diversão mesmo. E durante a greve eu queria alguma coisa mais aninada. Então – eu vou ter que confessar aqui – eu entrei em uma banda de pagode! É triste! Eu resisti muito! Um amigo meu me convidou – se é que isso é convite que se faça a um amigo – e eu resisti muito a princípio; falei: Cara, eu sou um cara honesto, eu não vou entrar nisso aí! Mas a banda tinha shows todo final de semana, eu estava em greve na faculdade, a banda ali, todo mundo tocando, aquela coisa toda, aquela festa, muita gente bonita e tal. Eu falei: Eu vou entrar, não custa nada! Eu comecei a tocar pagode – isso é triste mas eu comecei a tocar! Mas eu conto isso por quê? Porque isso fez parte do meu aprendizado da humildade. Nessa época eu comecei a prestar concurso de nível médio. Meu pai foi um cara muito sofrido, muito pobre. De fato ele passou um perrengue desgraçado. E nunca me deu muita facilidade na vida. Ele conseguiu ser um bom advogado e me deu boas condições – por exemplo, naquela época eu já tinha ido duas vezes para fora do país, para os Estados Unidos –, mas era um cara que tinha muita consciência de dinheiro, e começou a apertar o orçamento, e eu comecei a ver que era hora de eu ganhar o meu dinheiro. Então eu comecei a prestar concurso público. O primeiro concurso que eu fiz foi um da BHTrans, que é o órgão de trânsito de Beagá – é como se fosse a Emdec aqui de Campinas, um órgão municipal. E eu me recordo que para esse concurso – eu nunca tinha feito concurso na vida – eu fiz matrícula em um cursinho de Beagá chamado Orvile Carneiro, para aprender gramática e algumas noções de Direito, que caíam nesse concurso. E eu sei que alguns caras da banda de pagode também fizeram esse concurso. E, na época, a coisa já inverteu: se no vestibular eu estava 7
  • 8. muito humilde, aí eu já estava arrogante. Por quê? Porque eu estava na Federal, não é? É como se fosse a USP aqui em São Paulo, entenderam? Era a melhor faculdade de Minas Gerais. E eu cheguei para fazer o concurso, que era um concurso de nível médio, ou seja, pessoas que nem faziam Direito estavam prestando o concurso também – os pagodeiros estavam lá fazendo o concurso! Eu prestei o concurso e achei que tinha ido muito bem. Aí eu conferi o gabarito e vi que eu tinha ido muito mal. Eu fui muito mal mesmo! Eu não me lembro quantas questões tinha. Mas, digamos, em vinte questões de gramática eu acertei três. Eu olhei aquilo e falei: Não pode ser! Tem algum equívoco aqui, não é? Não pode ser! É claro que eu fiz mais de três! É lógico! Eu sou o cara! Mas eu conferi o gabarito oficial e de fato era isso mesmo! Quando eu conferi a lista de aprovados, eu vi que tinha alguns caras, não da banda, mas que estavam ali, que eram amigos da banda, que tinham passado, que sequer faziam o curso de Direito, e que passaram no concurso – sei lá, talvez porque tinham mais tempo de estudo e tal. E aquilo foi um choque negativo, vocês percebem, não é? Eu fui humilhado ali. Eu falei: Caramba, eu não sei nada de gramática! Eu não sei nada, nada, nada! Um absurdo isso! Que fracasso completo! Aí eu assimilei a segunda lição: Com humildade, aceitei as minhas deficiências e trabalhei sobre elas. Eu vi que eu não sabia nada de português, de gramática, tinha uma noção muito precária mesmo. E eu resolvi estudar gramática. Mas não foi fácil. Eu prestei outros concursos ainda, de nível médio. Eu prestei para o TRE-MG e para o TCE-MG, no mesmo esquema: caía gramática e noções de Direito. Para esses dois concursos eu também fiz cursinho e, no TRE-MG, tomei ferro, e, no TCE-MG, tomei ferro de novo. Não consegui aprender gramática. E aí saiu um outro concurso, que era para Oficial do Ministério Público de Minas Gerais, um cargo de segundo grau também. Nessa época eu já fazia estágio – depois eu voltarei a falar sobre os estágios – e prestei esse concurso, que tinha dezoito vagas. Eu me lembro que o sócio do meu pai – nessa época eu saía da faculdade ao final da manhã e ia ao escritório do meu pai, almoçar com ele; ele não morava em casa e eu estava próximo dele na hora do almoço. Foi muito bom nessa época, eu estava mais próximo dele e a gente conversava muito –, o sócio dele, como eu ia dizendo, muito cético, muito sarcástico, olhou aquilo e falou: Concurso, dezoito vagas, Ministério Público? Rapaz, desiste! Uma vaga é para a filha do procurador de justiça, a outra vaga é para a amante dele, a outra para a outra filha, a outra para a mulher... Você não tem chance nisso aí! Pode esquecer! Concurso público é difícil, você não vai conseguir passar nisso aí! Dezoito vagas é muito pouco! Eu olhava para aquele cara e dizia para mim mesmo: Caramba! O mundo só nos joga para baixo! O cara só quer me desanimar! 8
  • 9. Naquela época eu descobri que eu não ia aprender nada em cursinhos. Eu fiz três cursinhos para aprender gramática e não aprendi quase nada. Mas também eu era muito desatento, não é? Eu falei: Eu vou ter que aprender sozinho. Vou ter que pegar as provas antigas e vou ter que aprender. O que eu fiz? Eu comprei três gramáticas, que eu vi que eram as mais legais: a do Domingos Paschoal Cegalla, uma azul do Hildebrando A. de André e uma do Pasquale com o Ulisses Infante. Eu comprei as três e as li mesmo. Ali eu estava empenhado; ali eu comecei a me empenhar de verdade nos estudos – porque eu queria passar no concurso. Eu tinha uma certa pressão em casa, eu estava gastando o dinheiro do meu pai, e ele falando: Espera aí, não é assim! Eu falei: Eu vou ter que ganhar dinheiro. E eu comecei a ler e li muita gramática, li muito mesmo, fiz centenas de exercícios de gramática. E eu de fato estava pronto para o concurso, que tinha – não me lembro bem – quarenta ou cinquenta questões de gramática, e eu errei apenas quatro; quase fechei a prova mesmo. Mas eu não passei entre as dezoito vagas. Passei na 21ª vaga. Me chamaram poucas semanas depois. Eu fui chamado e entrei nesse cargo no qual eu fiquei por dois anos e meio. Foi um cargo que me foi muito importante durante o curso – quando entrei nele eu estava no 5º período da faculdade. Mas eu já volto a esse cargo, que foi o meu primeiro emprego, para contar como foi. Eu fiz quatro estágios. O meu primeiro estágio eu fiz na 6ª Vara Cível de Contagem – um município próximo de Beagá –, com o juiz de direito Estevão Lucchesi de Carvalho, que foi colega de faculdade do meu pai. Era um estágio voluntário, a princípio, mas ele quis me pagar do bolso dele um salário mínimo, que estava em R$120,00 – dava para comprar alguns livros e pagar a passagem até Contagem. Eu pegava o 1116 na Avenida Olegário Maciel, no centro de Beagá, gastava quase uma hora até Contagem e voltava à tarde. Era uma função muito interessante! Eu digitava as atas de audiência para o juiz e fazia relatórios de sentença. E – aliás, engraçado – eu já ficava à direita do juiz – o juiz aqui, as partes ali na frente. Eu fiquei ali uns seis meses e isso foi muito bom para mim, porque foi ali que eu decidi de fato o que eu queria ser na vida: eu olhava para o juiz e achava um cara normal, eu olhava para o advogado e achava um cara normal, mas quando eu olhava para o promotor de justiça, que estava à esquerda, eu falava: É esse cara que eu vou ser! Eu não sei o que era! Era uma vara cível e de família, onde o promotor quase não faz nada, só dá parecer. Mas eu olhava para ele e falava: É essa cara aí que eu vou ser! Eu olhava e ficava extasiado com o negócio. Vocação é isso: você vê o negócio e fala: É isso! – tem uma ressonância mesmo. Eu fiquei ali seis meses. E esse promotor de justiça, chamado Wagner Lúcio Teixeira Leão, nem sabe que foi ele quem me inspirou. Ele nem sabe disso, mas foi ele que me inspirou, quando eu o via naquela função – ele na verdade foi usado para 9
  • 10. isso, ele foi usado por Deus como instrumento dessa minha inspiração, não é? Daquele ponto em diante eu falei: Eu vou ser isso aí. Eu não tinha nenhuma dúvida de que eu queria ser esse cara aí, de que eu me sentaria ali naquela cadeira mais cedo ou mais tarde. O segundo estágio que eu fiz – eu já havia saído do primeiro – foi na Biblioteca da PGJ-MG, também voluntário (esse foi voluntário mesmo). Foi um colega de sala9 – que já estagiava lá – quem me arrumou esse estágio; lá eu fazia contrarrazões em recursos criminais perante o Tribunal de Justiça. Foi um estágio muito interessante. Foi lá que eu descobri o concurso de Oficial do Ministério Público; foi de lá que eu fiz o concurso e passei. Os dois estágios seguintes eu já os fiz trabalhando no Ministério Público. Eu trabalhei um bom tempo lá de 7h às 13h – eu tinha uma carga horária diária de seis horas. E à tarde eu fiz estágio – foram poucos meses, pois era muito cansativo – por três meses na DAJ (Divisão de Assistência Judiciária) da UFMG, onde eu assistia aos carentes, entrava com ações para eles. Foi uma época curta, mas eu de fato advoguei, fazia audiências com os monitores, em casos de família, causas de imóveis, brigas de vizinhos, consumidor. Foi um estágio muito bom esse da DAJ, também voluntário. Por fim, fiz um estágio no MPF, um estágio também curto. Fiz a prova para estagiário, passei, e fiquei ali uns quatro meses – pois estava muito cansativo, não estava rendendo muito. Então eu preferi manter o meu trabalho de seis horas, que também era muito interessante, era voltado para a área jurídica, a fazer o estágio ali. Estava muito pouco produtivo, na verdade; não era como o estágio de vocês aqui hoje, pois aqui tem muito trabalho, e lá tinha muito pouco trabalho – pelo menos para mim na condição de estagiário. E eu saí. Então eu fiz esses quatro estágios. Voltando ao meu emprego no MP: nele eu fiquei dois anos e meio, e ele foi muito importante para mim. Por quê? Porque lá eu de fato comecei a ver mais de perto os profissionais – e isso já é o tema da terceira lição: Convivi com pessoas que chegaram ao objetivo que eu buscava. Eu comecei a ver promotores de justiça que estavam atuando mesmo. E lá tinha um grande negócio, que era o seguinte: eu estava na Promotoria da Infância e da Juventude de Belo Horizonte, para onde iam muitos dos promotores de justiça recém-aprovados no concurso. Eles faziam um pequeno estágio de alguns meses lá, antes de assumirem as próprias comarcas, em algum fim-do- mundo de Minas Gerais10. Eles passavam um tempo ali. Então eu via esse pessoal recém-aprovado. Era muito interessante isso aí. O pessoal tinha acabado de passar, e eu sentia que eles tinha saído do forno mesmo. Eu via no rosto deles aquela surpresa, aquele maravilhamento, aquela coisa gostosa de acabei de passar e estou aqui fazendo o que eu quero. Era muito gostoso ver isso neles... Eu também tinha muito contato com os promotores mais 10
  • 11. experientes11, eu os via fazendo a coisa na prática, eu via que eles tinham família, que eram pessoas normais. Eu tive muito essa noção de como é ser promotor de justiça ali mesmo. Na Promotoria da Infância eu fazia todos os ofícios e reduzia a termo as declarações das pessoas que eram atendidas, quando era o caso. Por uma época eu inclusive cheguei a atender aos menores infratores. Se o adolescente é flagrado em algum ato infracional ele é levado à delegacia; se é no mesmo dia de manhã, ótimo; se não, ele dorme na delegacia e é levado no dia seguinte ao MP. Para quê? Para que o promotor converse com ele. Há essa conversa antes, esse diálogo, essa oitiva do adolescente infrator, para que se decida se se vai representá-lo (no caso, a denúncia se chama representação), ou se vai haver a remissão, que é um perdão – há também essa possibilidade, de se perdoar o menor infrator. E eu fui escalado para acompanhar o promotor nessa época12; eu fiquei alguns meses fazendo isso. E foi ali que eu vi que a coisa era séria, porque eu tinha que ter postura de promotor – eu não era promotor ainda , mas eu tinha que ter postura –, tinha que ter cara séria, tinha que dar um sermãozinho ali no cara, não é? Era muito triste o que eu via ali todos os dias. Eu via jovens de 14, 15 anos, já no tráfico de drogas, roubando, pichando, às vezes já até matando, todos eles ali na minha frente. O promotor ao meu lado, conversando com alguns deles, e eu falando com alguns outros. É muita miséria humana! Ali de fato eu vi o que significa esse cargo, ou pelo menos o que significava naquele contexto da infância e da juventude: é uma luz que aquele adolescente ainda tem – se é que ainda há alguma salvação pelas mãos humanas ali – para ouvir alguma coisa e tentar mudar de caminho. E eu me lembro que eu ficava bastante emocionado com a situação praticamente irreversível de alguns jovens e ficava muito chocado com aquela miséria humana. Não que eu vivesse isolado do mundo; eu não fui aquele cara que viveu isolado do mundo13, mas eu não tinha muita proximidade com aquela miséria ali – e isso foi muito importante para mim também. Por isso é que eu falo: é bom conviver com quem passou no concurso, com quem é aquilo que você quer ser. Isso é muito interessante porque tem coisas que não tem como você explicar por palavras. Vocês vejam que Platão disse que havia uma parte de sua filosofia – a parte mais importante – que ele nunca iria escrever, porque ele não iria conseguir explicar por meio de um texto escrito – e nem a fala mesma, por si só, era suficiente. Só a presença dele, perante os alunos dele, é que era capaz de passar esse conhecimento. Por exemplo, imaginem como é aprender marcenaria ou culinária pelos livros; e aprender marcenaria e culinária vendo alguém fazendo – vendo o marceneiro cortando a tábua, batendo os pregos, e vendo a cozinheira cozinhando o alimento. É só olhando para a coisa que você 11
  • 12. vai aprender o que é aquela atividade, como é que se faz aquilo, o que há por trás daquele ser humano fazendo aquilo. Se você fizer apenas pelos livros, você pode até aprender, mas você provavelmente não terá acesso àquela substância humana em atividade. E foi naquele trabalho, no qual eu fiquei por dois anos e meio, que eu consegui captar isso – a essência do que é ser promotor de justiça. Eu decidir antes – mas foi ali que eu me animei muito a ser esse cara. Foi ali que eu vi que era possível ser – eu via pessoas normais, seres humanos normais que se empenharam e passaram no concurso. Eu vi os desafios que tinham ali para ser desenvolvidos e isso foi muito bom. Foi ali que eu consegui realmente imaginar o que é isso. Muitas vezes falta isso na gente: nós queremos uma coisa mas não temos a noção do que é aquela coisa. Você tem apenas o símbolo. O que é o promotor? É o cara que denuncia. Mas você não tem noção do que é um ser humano ser promotor de justiça, você não tem essa noção clara. É importante você perceber isso nas pessoas que já estão lá. Eu me lembro também nessa época em que eu já estava estudando para concurso, eu tive acesso a um texto, escrito pelo Damásio de Jesus, que eu encontrei pela internet, chamado Para ser juiz de direito, que me foi muito importante. É um texto curto, de umas quatro ou cinco folhas, no qual ele conta o período de faculdade dele, em Bauru; e como foram os estudos dele. E ele conta que enquanto os amigos dele, ou outras pessoas, estavam se divertindo à noite e tal, ele ficava trancado no quarto à noite lendo os tratados de Basileu Garcia, o grande penalista, enfurnado nos livros, se deliciando com as teorias e com aquela coisa toda. E ele queria ser juiz de direito. E ele colocou no porta do armário do quarto dele – não sei se com estilete –, ele escreveu lá: Serei juiz. Caramba! Eu olhei aquele negócio e falei: Que força tem esse cara! Serei juiz! Ele não falou assim: Se tudo der certo, de repente, no futuro... Ele falou: Serei juiz. Se fechou ali e estudou até ser juiz mesmo – aliás, eu não me lembro se ele chegou a ser juiz ou se foi apenas do MP, mas, enfim, ele é super bem-sucedido. E eu li aquele texto umas três ou quatro vezes e falei: Caramba! Que força incrível esse cara tem! Serei juiz e dane-se o mundo! Serei juiz e acabou! O mundo pode cair – eu serei juiz! Isso foi muito importante para mim. Eu vi ali uma força muito grande que eu tinha em mim – e eu só não tinha achado ainda. Mas ela estava dentro de mim. Eu ia ser promotor de justiça mesmo, eu ia ser esse cara. Essa terceira sugestão da lista que vocês tem nas mãos foi o que eu fiz nesse meu emprego, com essa convivência, com a observação mesmo dos profissionais. Você não vai vencer se você não compreender o que é aquilo, se você não conseguir assimilar aquelas qualidades em você. Você já tem que ter aquilo de algum modo em você. Tem que ter coragem, perseverança, força de vontade. E vai ter que ir incorporando aos poucos, e não 12
  • 13. há forma melhor de fazer isso do que assimilar isso dos outros, não é? Isso é uma grande dádiva de Deus, os outros estão aí para nos ensinar mesmo. É uma troca muito importante com aqueles que venceram. E eu tive isso, graças a Deus, nesse meu primeiro emprego. Eu me lembro inclusive que eu era tão a fim de passar em concurso que eu até escrevia cartas para as pessoas. Eu me lembro, por exemplo, que eu fiquei sabendo que alguém passou para juiz de direito e foi para tal cidade. E eu conhecia a pessoa por ouvir dizer, porque era amigo de um amigo, e eu mandava carta para essa pessoa e falava: Vem cá, como é que você passou? Como é que você fez? Me explica aí... Ninguém nunca respondeu, não é? Mas eu precisava saber como é que era aquilo, como é que se fazia aquele negócio. Havia alguns segredos que eu ainda não sabia e precisava saber. E foi tendo essas pessoas por perto – eu nunca perguntei: Vem cá, me ensina? – que eu comecei a observar mesmo. Eu me lembro que eu olhava muito os livros dos promotores de justiça lá da Promotoria da Infância e da Juventude – com a permissão deles –, e via os grifos, os comentários e via: Poxa, esse cara estudou mesmo, esse cara pegou no pesado, ele fez por onde. E eu fui assimilando essas qualidades em mim. Eu já tinha um pouco disso e fui assimilando mais e mais. E porque é importante você ir imaginando essas coisas? Eu me lembro inclusive que, às vezes, eu pegava algumas manifestações que eu fazia para os meus chefes – isso até hoje era segredo, mas eu vou contar para vocês aqui –, pegava algum rascunho e eu imprimia lá, e em vez de colocar o nome deles eu punha o meu nome: Bruno Costa Magalhães, promotor de justiça – e eu assinava! Eu era um mero oficial do Ministério Público mas eu assinava como promotor de justiça; e eu ficava olhando aquela folha nas minhas mãos assim e falava: Caramba, bonito pra caramba esse negócio! E eu olhava aquilo e sentia uma ressonância com o que estava dentro de mim – É isso mesmo! Bateu! A minha assinatura que vocês conhecem hoje, um pouco esquisita, veio daquela época. Eu falei: Eu tenho que assinar como um promotor... E inventei uma assinatura igual a de promotor mesmo, toda cheia de confusão e tal. Enfim, você tem que imaginar você no cargo. Se você não consegue imaginar, meu amigo, você não vai entrar no negócio. Se é uma coisa distante, ela vai continuar distante para você. Será sempre um sonho e você não vai conseguir chegar até ele. Você tem que imaginar a situação. E é curioso, ninguém sabia desse fato até hoje, vocês são os primeiros a saber. E por que isso? Porque nossa vontade é muito variável. Vocês sabem que vontade não é como desejo, não é? Há diferença entre desejo e vontade. Desejo é um mero querer. O desejo é muito fraco. Por quê? Porque o 13
  • 14. desejo está voltado apenas para o aspecto bom da coisa – Eu desejo um bolo de chocolate, Eu desejo ganhar dinheiro –, você só deseja a parte boa das coisas. Só que na vida as coisas vêm com todas as facetas, com os aspectos bons e com os aspectos ruins. O desejo é fraco por isso: porque ele só deseja o que é bom, o que é agradável. E aqui, nesta Terra aqui, em tudo há um misto de coisas boas e de coisas ruins, na mesma situação – não tem jeito. A vontade só é forte quando você abrange também o sacrifício, abrange também o lado ruim das coisas. Porque tudo tem um lado ruim, tudo tem um sacrifício, não tem jeito. A vontade é forte por isso: ela deseja também o caminho, ela deseja caminhar, tropeçar; a vontade aspira a tudo isso; ela aspira ao lado ruim também da carreira – porque existe o lado ruim da carreira, a gente sofre muito também, há sofrimento, há desafios, tem dia em que você fica muito frustrado. A vontade abrange isso também, e por isso ela é forte: ela abrange tudo. Ela já compreendeu o objeto, ela entendeu o que você quer e vai fundo. Com a vontade firme você se trabalha por completo: aquele aspecto seu que quer a coisa boa e aquele que a princípio não queria a coisa ruim – queria fugir dela – estão no mesmo diapasão, estão na mesma toada, você está completo na direção do objeto. Por isso é interessante você ter uma vontade firme, conhecer o lado ruim e querer também ele – claro, querer que ele seja o menos ruim possível, mas também querer o lado ruim da carreira, querer o desafio, querer perder noites de sono, querer se ferrar mesmo. É estudar demais – isso faz parte também. Há um poema interessante do Carlos Drummond de Andrade, chamado A máquina do mundo, no qual ele fala um pouco disso aí. Ele fala de um ser humano que sempre desejou as coisas, mas quando chega a hora ele não consegue dar o passo seguinte, ele não consegue abraçar a coisa. É um poema que começa com ele caminhando em uma estrada de Minas, no fim da tarde. Segundo o poema deixa transparecer, ele sempre foi desejoso de conhecimento, ele sempre quis saber os mistérios do mundo, ele sempre quis saber como é que funcionam as coisas, sempre quis ter acesso a esse mistério do mundo. E ele está lá, caminhando na estrada de Minas, e aparece a máquina do mundo – que é o símbolo disso tudo para ele; ela simboliza e mostra para ele naquele momento, num relance, tudo o que ele sempre quis, e o chama: Vem cá!. Ele fala no poema: me chamou para seu reino augusto. E nessa hora a vontade dele vacila. Ele quis tanto aquilo, mas naquela hora ele meio que vacila, não é? Nós temos isso em nós. Nós temos dentro da gente uma força que briga contra a gente. Freud dizia que nós temos o Eros e o Thanatos, o princípio do prazer e o princípio da morte. É uma luta interna. Você acha que quer uma coisa, mas há algo em você que luta contra 14
  • 15. você. E o Drummond, nesse momento em que a máquina do mundo apareceu para ele, ele vacila mesmo, e fala – eu gosto muito desse poema e eu sei ele de cor –: e como se outro ser, não mais aquele / habitante de mim há tantos anos, / passasse a comandar minha vontade. Ou seja, ele queria tanto, mas na hora H, age nele um outro agente – é claro que era ele, não é?, mas simbolicamente é outro ser, porque ele não estava reconhecendo aquilo. Passasse a comandar minha vontade – não é ele mais que age – vontade / que, já de si volúvel, se cerrava / semelhante a essas flores reticentes / em si mesmas abertas e fechadas. Ou seja, nem para lá nem para cá – ele quer mas não quer. Como se um dom tardio já não fora apetecível. Ou seja, ele queria naquela hora lá atrás, depois ele já não estava querendo muito, não é? (…) já não fora apetecível / antes despiciendo – quer dizer, agora já não é tão importante assim. Aí ele fala: baixei os olhos, incurioso, lasso / desdenhando colher a coisa oferta / que se abria gratuita a meu engenho. Ou seja, estava lá de graça e ele já não queria mais. Isso é para mostrar que nossa vontade nem sempre é firme – ela quer mas não quer: a gente quer mas não quer. A gente às vezes fala que quer, mas quando abre o edital do concurso, a gente fala: Ah, não sei, não é a minha hora. Eu já me cansei de ver isso. Muitos amigos meus querem passar no concurso, mas quando abre o edital eu digo: Cara, está aberto o concurso, vai lá, pô, eu te ajudo, eu te passo a indicação dos livros e tal. E respondem: Ah, não sei, de repente... A vontade não está firme, entendeu? Se oferecessem para a pessoa o cargo, talvez ela aceitasse, mas o concurso ela não quer fazer. Então a vontade tem que ser forte, firme, e a imaginação conta muito para isso. A imaginação o ajuda a colocar suas forças na direção da coisa. Você está inteiro naquela direção. Não há nenhuma parte de você que está contra você, você quer tudo, quer estudar, fazer, passar, quer sofrer o negócio mesmo, e quer chegar lá e vencer. Você não quer só ganhar o dinheiro, você não quer só estar ali, com a pompa e as honras do cargo; você quer todo o trajeto, você quer tudo – isso é a vontade! O desejo é muito fraco. Então é bom ver se vocês apenas desejam o concurso ou se vocês querem – têm vontade – realmente. É isso o que está na quarta lição: Fortaleci minha vontade: certifiquei-me da minha vocação e trabalhei sobre a minha imaginação. Muitas pessoas, com muita legitimidade, já tem família – então, por exemplo, o cara quer ser juiz de direito, mas ele já está casado e tem três filhos jovens. É difícil, não é? Imaginem que ele está lá em Minas Gerais, que é um estado muito grande. No concurso ele pode ir lá para Manga, 15
  • 16. que é um município no extremo Norte do estado. Ele vai pensar, vai olhar para a mulher dele, que já tem emprego na cidade em que eles moram, vai olhar para os filhos que já estão estudando. Tudo aquilo vai enfraquecer um pouco a vontade dele, não é? Claro! Ele tem que levar em conta aquilo. Ele não está errado em levar em conta isso, pois são fatores que são ele agora, fazem parte da vida dele. Ele não pode largar tudo. Mas, às vezes, pessoas jovens, que têm apenas uma mochila nas costas, que não têm nem um passarinho para cuidar, ficam vacilantes: Eu não sei, estou com medo, de repente, eu posso fracassar, vão saber que eu não passei... Tudo isso conta contra a gente! Então é importante que vocês consigam algum modo de fortalecer a vontade de vocês, para ter essa vontade firme em direção a essa meta – seja qual for ela. Os desafios virão e você será forte o suficiente para sequer perceber as barreiras. Você passará pelos desafios fácil, fácil, porque a vontade está firme ali. Os vetores da sua alma estão todos em uma só direção. Às vezes você não sabe se você quer ser juiz, promotor de justiça ou AGU. Tudo bem, mas você terá que ter alguma coisa que te force a estudar. Você não pode ficar muito vacilante entre as situações. Ah, eu não sei se eu quero ser médico, engenheiro ou juiz de direito. Pô, você vai se ferrar, porque não tem como unir as três coisas em uma só. É difícil! Você tem que ter algumas metas que o integrem em uma só unidade. E foi isso o que eu consegui fazer: eu só queria o Ministério Público. Decidido a passar no concurso, eu comecei a ver como eu iria estudar. Eu pegava as provas antigas, os editais, os programas e vi que era muita matéria, era muita coisa! É matéria que não acaba mais! E eu comecei a comparar os programas com os manuais clássicos, que estavam na moda da época. Eu comecei a ver que havia muita afinidade entre os programas e os grandes manuais. E eu vi que nas grandes matérias, nas matérias básicas, eu iria ter que pegar os manuais e iria ter que ler tudo, de cabo a rabo mesmo. Esse processo foi muito solitário. Eu tinha amigos na época, mas esse como-fazer, esse como-estudar, de fato fui eu quem foi descobrindo. É isso o que eu registrei na quinta lição que vocês tem nas mãos: Encontrei o meu próprio método e montei minha própria bibliografia. Eu fui lendo, ouvindo pessoas, mas foi muito pouco o que eu absorvi dos outros. Eu fui montando o meu próprio método. Eu peguei o programa do concurso do MPMG – que era o que eu queria mesmo na época –, fui lendo os manuais e comparando com os programas. O meu método foi um pouco exótico e deu muito trabalho – mas foi por isso que eu passei, não é? Não teve jeito. As matérias básicas: Direito Constitucional, Direito Administrativo, Direito Tributário, Direito Processual Civil, Direito Processual Penal, Direito Civil e Direito Penal, eu fui 16
  • 17. pegando os grandes manuais e fui fazendo o seguinte: por exemplo, em Constitucional, eu peguei o livro do José Afonso da Silva, que já era grande à época, em 2001-2002, e eu li ele todo. E eu grifava – mas não as palavras ou expressões mais importantes, mas sim as frases mais importantes – de modo a fazer um resumo que combinasse uma frase com a outra. Eu fiz isso aí por quê? Porque eu já imaginava que eu teria que complementar isso depois. Olha, deu muito trabalho, viu! Foram três anos. Eu pegava esse livro, já com as frases grifadas, ditava aquilo em voz alta e gravava aquele resumo inteiro em algumas fitas cassete. E aí vocês percebem que a matéria inteira já passou duas vezes pela cabeça: uma para fazer o resumo e a outra para ler para a fita. Depois, o que eu fazia? Eu ouvia a fita e ia digitando o resumo no computador. E eu tinha ali no final um resumo de cerca de cem páginas, ou um pouco menos, do livro inteiro. Mas era um resumo muito harmônico, porque não eram apenas tópicos, eram frases que tinham uma fluência. Na segunda etapa de uma mesma matéria, eu pegava um outro livro – no caso foi o do Alexandre de Moraes –, eu peguei o livro do Moraes, com o resumo do lado, já impresso, e eu lia o livro inteiro e complementava as opiniões do José Afonso com as opiniões do Moraes. E eu ia meio que cotejando ali, na margem da folha, o que não tinha no José Afonso da Silva. Depois – deu muito trabalho, foi exaustivo, mas valeu a pena –, eu digitava esse complemento no resumo inicial, e na terceira fase, se fosse uma matéria importante – por exemplo, com Direito Civil eu não fiz essa terceira fase porque eram seis ou sete disciplinas (Parte Geral, Obrigações, Contratos, Direitos Reais, Família e Sucessões) –, como Direito Constitucional ou Direito Penal, por exemplo, eu fazia mais uma etapa: eu pegava temas específicos que não tinham naqueles manuais, porque eram coisas mais recentes ou específicas mesmo, e colocava ainda naquele resumo, e o complementava ainda mais. No fim eu não chegava a ler o resumo de novo; e nem era necessário, não é? Eu já tinha feito tudo aquilo. Naquele processo de estudo eu depurei a matéria cerca de quatro ou cinco vezes. Aquilo ficou na cabeça e estava aqui na ponta da língua mesmo. Isso foi importante não só para saber a matéria, mas para ter a segurança de que eu sabia. Eu sabia o seguinte: Olha, a banca pode vir com 'gracinha' para cima de mim, mas eu não tenho culpa, porque eu li tudo. A banca pode inventar o que for – tem gente aí que inventa umas coisas que ninguém nunca viu; eu vou falar mais à frente das provas abertas. Há surpresas, sim, nas provas, tem coisa de que você nunca ouviu falar. Você leu tudo mas você não sabe o que é aquilo. Mas eu sabia o seguinte: eu li mais do que quase tudo mundo, eu li muito mesmo. Não 17
  • 18. vai ter muita surpresa para mim na prova. Enfim, eu já ia para a prova seguro daquilo, eu via a matéria quatro ou cinco vezes. Por exemplo: de Direito Penal eu li uns quatro ou cinco livros; de Processo Penal eu li os quatro volumes do Tourinho Filho duas vezes, eu li o Capez, li o Pacelli duas vezes, li o Paulo Rangel – lendo e anotando, lendo e resumindo. E esse processo exaustivo chegava nesses resumos que eu fazia – que tinham, cada um, cerca de duzentas páginas. Ao todo foram milhares de páginas escritas. Com matérias específicas eu fazia algo parecido, mas não tão complexo assim. Eu também lia e fazia uma espécie de resumo de tópicos: em Direito Ambiental, em Direito do Consumidor, eu não lia todo o livro, mas eu pegava os tópicos importantes e, principalmente, olhava as provas antigas. Um dos itens aqui fala sobre isso; é a sexta lição: Fiz o reconhecimento do território (concursos públicos em geral) e sondei o exército adversário (as provas e a banca examinadora). Você tem que saber o que é que já caiu nas provas, qual é a tradição do concurso. Embora a prova possa mudar de feição, embora a banca possa mudar radicalmente, você tem que ter noção do que se enfrenta em um concurso, para você não ter surpresas. Eu desconfio que grande parte dos brancos que se têm nas provas – o tão temível branco – vêm dessas surpresas que nós não esperávamos. A gente chega lá na hora da prova e tem alguma coisa assim inesperada que bate e caramba! e não-sei-o-quê e você se esquece. Quanto melhor e mais bem preparado você for para a prova, com mais conhecimento incorporado e com mais bagagem14, tanto melhor, porque menos surpresas você terá. E por que ler as provas antigas? Porque se você estudar sem ver as provas antigas você estará lendo para qualquer fim, menos para o concurso. Você tem que ler para aquele fim, para preencher a prova objetiva, para escrever na prova subjetiva, para fazer aquela prova. Você pode ser um erudito no Direito e não saber fazer a prova; pode saber tudo, fazer discursos jurídicos e não-sei-o-quê, e não hora da prova você não sabe fazê-la, porque você nunca viu uma prova. Você chega lá e precisará de alguns macetes que você nunca viu. Você tem que ler as provas antigas daquele concurso e ver qual é a tradição, o que costumam fazer ali, o que costumam cobrar, o que pedem, qual é a nuance da matéria que você tem que saber mais, qual enfoque você tem que dar naquela matéria. E às vezes as provas antigas mostram muito isso – e isso é muito importante. Eu me lembro que eu li nessa época um livro de um tal de Sun Tzu, chamado A arte da guerra, que hoje está muito famoso, mas na época não era tão famoso assim. Alguns colegas meus riam da minha cara e 18
  • 19. falavam: Mas que bobeira esse livro, um livro bobão, escrito por um guerreiro da antiguidade na China. O livro é um manual de guerra chinês, e há uma frase no livro em que ele fala: Se você quer ir para a guerra, você tem que conhecer o território e o inimigo. Não tem outro jeito. Você entrará no território, o território pode lhe ferrar, você não sabe por onde passar, e o seu inimigo pode ser mais forte que você, você não sabe qual é a fraqueza dele. Há uma passagem nos Evangelhos15 que fala sobre isso; é uma parábola em que Cristo fala sobre isso aí, para você olhar como é que está o seu exército. Se você estiver mal, manda alguém lá para fazer um acordo com o inimigo, senão você vai se ferrar. Você não está pronto para a briga ainda, não é? É claro que ele está falando de outra coisa, sob o aspecto espiritual, mas você pode ver também por esse aspecto prático. Esse livro me mostrou isso: eu tinha que saber qual era o território em que eu ia entrar, saber o que é um concurso público, saber quais são as fases, como é que se comporta em uma sala de prova, o que eu vou encontrar lá, como é aquele ambiente, como são as provas. Eu nunca simulei fazer as provas em casa – sentar e fazer a prova em quatro horas –, mas eu sempre li muitas provas e sempre estava muito ambientado a elas. E mais: eu via gente que havia passado no concurso e eu sabia em qual ele havia passado e sabia que aquele cara havia feito aquela prova ali. Eu conseguia – não sei como é isso – ver uma realidade muito forte naquela situação e falava: Olha, alguém passou por isso aqui e eu vou passar também! Não é impossível! Eu me lembro que também nessa época caiu nas minhas mãos o livro do William Douglas chamado Como passar em provas e concursos, que hoje está famoso também. Eu não o li por inteiro, mas li boa parte dele, e tem coisas muito legais ali, muito interessantes. Ele fala: Olha, faça a análise de sua família, onde você mora. A sua família pode jogar contra você, a seu favor, ou pode ser neutra. Você tem que ver onde você mora, se a sua família é, nesse ponto, sua parceira ou não. Eu me lembro que em casa, quando eu estava prestando concursos de nível médio, eu às vezes me trancava no banheiro de empregada para estudar! Era difícil! Eu tinha quatro irmãos em casa, menores do que eu – dos quais dois eram crianças na época –, brincando em casa, gritando e tal. E eu às vezes não tinha ambiente em casa para estudar, e eu me trancava no banheiro de empregada! Vejam que tragédia! Mas era necessário, não tinha jeito. Às vezes você tem que estar em silêncio para estudar. Eu não consigo concentrar com barulho. Então você tem que fazer a análise do seu ambiente, como é que você o trabalhará. Se você tem uma namorada ou um namorado que cobra muito a presença de vocês, que não entendem o seu estudo, é difícil também. Eu não tive esse problema, graças a Deus! Os meus amigos e a minha 19
  • 20. namorada me compreendiam e estavam comigo na época no mesmo barco. Mas é difícil! Eu sei de casos em que a pessoa não consegue compreender – Pô, você vai estudar sábado à noite? Como é que é isso? Que absurdo! Então você acha mais importante o estudo que eu? Poxa, às vezes o pior é que é mesmo – às vezes é mais importante o estudo do que aquela amizade ou do que aquela namorada. Às vezes é isso mesmo. Você terá que abrir mão de algumas coisas, não tem jeito. Se for de fato amor, a pessoa terá que entendê-lo, não é? Agora, se for possessão, não tem jeito, você terá que largar. É isso mesmo! O livro do William Douglas foi importante para mim, porque me deu dicas pontuais, de método de estudo, de horário de estudo, ver o ambiente em que você mora, onde você trabalha – e isso é muito importante. Eu até conheci o William Douglas depois. Eu fiz algumas audiências com ele em Niterói, RJ. Ele é juiz federal lá. Eu trabalhava em Volta Redonda, RJ, fui fazer uma audiência em Niterói e falei com ele: Olha, cara, eu li o seu livro, hein! Ele disse: É mesmo? Que legal! Então conta isso aí para as pessoas... Me ajude a divulgar! Eu falei que não ele precisava, porque o livro estava vendendo muito. Ele disse: Claro que preciso! Se até a Coca-cola faz propaganda, como é que eu não vou fazer!? Divulga aí para a gente, ajude a vender! A propósito, ele é um cara muito cristão. Em toda audiência, depois dos trabalhos, ele pergunta aos réus e às testemunhas se são religiosos e, então, ele dá uma Bíblia à pessoa, e acaba conversando um pouco com alguns deles, fazendo um saudável apostolado. Todo mundo que vai lá ganha uma Bíblia dele – desde que aceite, é claro. Então, quer dizer: eu criei o meu método, mas é claro que eu peguei dicas de outras pessoas, não é? O William Douglas é um cara que tinha dicas muito boas para dar e foi importante para mim. Quanto à bibliografia, o pessoal pergunta muito: O que eu devo ler? Olha, eu nunca perguntei isso a ninguém! Eu fui achando o meu caminho. É claro que eu pegava as dicas – eu sentia o que estava no ar. O que você está lendo? Como é esse livro aí? Eu nunca fiz cursinhos preparatórios – e essa é a nona lição, que eu explicarei melhor mais à frente –, mas eu sabia o que estavam dizendo ali. Eu tinha amigos que faziam cursinho e com eles eu conversava, pegava dicas. Então eu fui montando a minha lista de livros, eu fui comprando os livros, fui folheando, vendo se determinado livro era ou não era completo, pegava o programa, comparava, e eu mesmo montava a minha lista de livros e os comprava com base nisso aí. Eu não tenho como dizer hoje para vocês o que eu li porque já se passaram oito ou nove anos, e a coisa mudou muito. As minhas dicas hoje talvez não sirvam para vocês. Mas eu aconselho: vocês têm que estar antenados no que está acontecendo no mercado editorial e ver se o livro é bom para você. Às vezes é um livro fantástico, mas você não consegue digeri- 20
  • 21. lo – ele é ruim para você. Você lê e não consegue entender. Às vezes o seu gênio não bate com o do autor, não é? Uma outra coisa: eu tive muitos amigos nessa época da faculdade – não muitos, mas dois ou três 16 – , que respiravam esse mesmo ambiente que eu – e essa é a sétima lição: Tive amigos com os quais trocava ideias. A minha impressão – eu não sei se estou certo nisso – é que as mulheres têm mais dificuldade nisso aí, de ter amizade nesse ponto. Para os homens é mais fácil, o homem senta junto e quer discutir mesmo, ele quer brigar pelo Direito, você está errado e tal. Eu tive isso e foi muito bom para mim. Eu tive bons amigos nessa época com os quais eu me sentava, discutia Direito, falava dos concursos. É importante você ter o feed back do outro, do cara que está próximo de você. Não é bom você se isolar por completo do mundo. Você terá que perder algumas coisas, mas se isolar é ruim também. E a amizade é aquilo que falava Santo Agostinho: é você querer as mesmas coisas e odiar as mesmas coisas17. Ou seja, você está olhando na mesma direção da pessoa. A amizade, como disse Platão, leva para o alto mesmo, ela te levanta, desde que tenha essa comunhão de propósitos. Então é bom você saber que você terá que se isolar um pouco do mundo, mas também é importante saber que é preciso ter vínculos com pessoas que tenham comunhão de interesses com você. Se é um amigo que o joga para baixo, largue-o porque isso não serve para nada. Se a pessoa fica criticando você o tempo todo, fica disputando maldosamente com você, tem inveja, se a pessoa quer outra coisa, isso não vai adiantar: ela vai tirar suas energias e vai lhe fazer mal. Então ter amizades boas, condizentes com o seu estado, é muito importante. Uma outra coisa, que já é a oitava lição: Preenchi o meu tempo com coisas úteis e saudáveis. Não temi a solidão. Em resumo: não percam tempo! Se vocês querem esse concurso, ou um concurso difícil que seja, qualquer um que seja difícil, vocês não podem perder tempo. Perder tempo, por exemplo, com um churrasco no sábado à tarte inteira. Isso aí é impossível, não tem jeito! Eu me lembro que nesses três anos – é claro que houve altos e baixos –, houve um período crítico que eu efetivamente não tinha muita diversão pública – eu ia no máximo ao um cinema no final-de-semana, lia algum livro não-jurídico, mas em regra era só Direito mesmo. Eu trabalhava de manhã, de 7h às 13h, quando fiz estágio era geralmente de 14h às 18h, e ia para a faculdade à noite, de 19h às 22h. E estudava nos buracos entre uma atividade e outra, no ônibus, em casa à noite, no estágio. Eu me lembro que fiz estágio no MPF e, nos quatro meses, eu li os dois livros inteiros de Direito Penal – Parte Especial do Mirabete, no estágio. Tinha pouco trabalho – eu não enrolava no estágio, não era isso, mas tinha pouco trabalho mesmo. A minha dupla no estágio, o Marcus Vinícius – 21
  • 22. o Marquito é hoje baterista e está na AGU – lia Guerra e paz, do Tolstói. Ele ficava lá e eu acho que ele fez bem – é um bom livro também. Mas, enfim, a gente tinha esse tempo livre no estágio. E no trabalho também, eu fazia o meu trabalho e no tempo livre eu estudava. Não tinha jeito, era o tempo que sobrava. O estágio estava muito cansativo e eu acabei saindo dele. Então eu tinha a tarde livre para estudar. Foram três anos de muito estudo. A todo momento eu estudava mesmo. Não tinha hora livre. Às vezes até no domingo. Eu tinha namorada, claro, estava com ela muitas vezes, mas diversões, baladas, isso aí ficou muito para depois. Se o convite fosse para ir a um bar para falar sobre Direito eu até iria, mas se fosse para conversar sobre outros assuntos eu não estava disponível – eu estava ali direcionado mesmo para o concurso. Eu estava tão aclimatado com os estudos pro concurso que, algumas vezes, quando eu já estava na cama para dormir – naquela hora em que você ainda não dormiu mas também já não está totalmente acordado –, eu ficava pensando em algum assunto que eu tinha visto naquele dia. E me dava um certo desespero de não saber qual era a posição de tal ou qual doutrinador a respeito! É claro que nessas horas em tinha de levantar da cama e ir procurar nos livros algum alívio para aquela situação. Só depois de ler sobre o tema é que eu conseguia cair no sono... Eu não ia conseguir esperar o dia seguinte! E aí aconteceu o seguinte: eu me formei na Federal, mas antes de me formar abriu concurso para a AGU, que foi o concurso de 2001- 2002, e eu fiz esse concurso antes de formar. E – caramba! – eu passei nesse concurso antes de me formar mesmo. E eu fiquei na seguinte situação: a posse estava marcada para o mês de agosto de 2002. E houve uma segunda greve durante o meu curso, na Federal. Então, a minha turma se formaria em outubro de 2002 e a posse na AGU seria em julho ou agosto – não estava muito certa a data ainda. E eu estava sem o diploma, eu estava em pleno 10º período, e fiquei desesperado. Caramba! Se não fosse a greve estaria tudo certo. O que eu fiz? Eu tinha oito disciplinas naquele período e eu teria que cumpri-las em tempo record. Eu falei com todos os professores, muitos deles foram muito solícitos comigo18. Eu fiz muitos trabalhos adiantados, fiz algumas provas adiantadas e consegui me formar a tempo. Um dos professores, muito sistemático, me segurou até os últimos dias. Ele falou que poderia, sim, me passar alguns trabalhos adiantados. Mas chegou nos últimos dias, nas vésperas da posse, do dia D, ele falou: Olha, Bruno, tem um problema aí: você tem a pontuação, não é? Mas você não tem a frequência mínima ainda, você tem que ter a frequência de 75%. E você só a terá em setembro. Eu pensei: E aí? Como é que vai ser isso aí? Aí em conversei muito com ele, pedi muito. E aí ele conseguiu achar uma espécie de alínea f do parágrafo único do artigo 36, 22
  • 23. digamos assim, de uma norma da universidade, que permitia fazer um trabalho para suprir a frequência. Aí eu fiz mais trabalhos ainda e consegui colar grau no dia 30 de julho de 2002 e tomei posse na AGU na segunda-feira seguinte, dia 02 de agosto. Foi muito complicada essa época para mim! Eu também tive uma briga com a OAB – não vale a pena contá-la inteira aqui –, para me dar a carteira da ordem. Eles queriam me processar porque eu estava exercendo a AGU sem a inscrição na OAB. Mas eu já havia passado no exame de ordem, o meu caso não era julgado na OAB de modo algum, o pessoal ficava discutindo firulas jurídicas19. Eles quase mandaram o meu caso para o Ministério Público, por um suposto exercício ilegal da profissão, porque eu estava na AGU sem carteira da OAB. Foi uma época muito tumultuada mesmo – e tudo isso aconteceu enquanto eu estava estudando para concurso. Eu fiquei na AGU por um ano e meio 20 – nesse tempo eu prestei um concurso para o MPMG e não passei. Isso foi muito traumático para mim! Eu já estava afiadíssimo, mas eu não passei na prova subjetiva – e aquilo para mim foi o meu mundo caiu. Eu fiquei realmente muito frustrado. Eu me lembro que eu pegava o livro para estudar em casa, olhava para ele e não entendia nada, as letras estavam todas embaralhadas. E ficava assim: Como é que eu vou recomeçar? Ó mundo, ó céus! Foi muito difícil. Mas depois de duas semanas eu consegui voltar ao ritmo normal. Esse concurso de Minas é muito famoso porque tem algumas surpresas muito chatas. Em um deles, que ficou muito famoso, foram aprovados apenas cinco candidatos – dos milhares que fizeram apenas cinco passaram no final. Havia dezenas de vagas e apenas cinco caras passaram. É claro que houve algum exagero nessa seleção. E algumas provas cobram coisas que a gente nunca viu na vida. Nessa prova que eu não passei, por exemplo – não foi por isso que eu não passei; eu não passei porque não estava pronto mesmo –, na prova de Direito Civil, o membro da banca narrou um caso de conflito de vizinhança e perguntou, na maior cara de pau, o que é supressio ou Verwirkung – algo como: Diga como se aplica a teoria da supressio ou Verwirkung nesse caso21. Supressio! Ninguém nunca tinha ouvido falar dela na vida! Que diabo é isso? É de comer? É claro que você vai chutar alguma coisa ali, terá que embromar, mas com alguma razoabilidade. Você não pode chutar completamente, não é? Mas por essas e por outras eu fiquei muito frustrado com a prova, não passei, mas bola para a frente. Logo abriu outro concurso e foi nesse que eu passei. Foram dois concursos quase simultâneos: o do MPMG e o do MPF. A prova oral dos dois foi na mesma semana. Eu fui a Brasília, dois colegas meus também estavam fazendo os dois concursos e os três passamos nos dois. Fiz esses dois concursos e estava muito preparado, estava sabendo 23
  • 24. muito mesmo. Mas há sempre o imprevisível, você sempre terá de contar com alguma coisa que você não saberá, com alguma surpresa, com algum membro de alguma banca que pode ser um cara esquisito, um cara que quer mostrar conhecimento, que quer mostrar como ele é diferente, que perguntará coisas que não estão propriamente ali no programa. Mas o que é importante contar do concurso? As provas objetivas são muito simples, não é necessário explicar como é, não há muita surpresa. Na prova aberta do MPMG acontecem muitas surpresas, essas perguntas que ninguém sabe do que se trata. Por exemplo, perguntaram em uma época lá – não foi no meu concurso – na prova de Processo Penal: o que é o princípio da suficiência da ação penal? Suficiência da ação penal? Ninguém nunca tinha visto aquilo. Depois eu vim a saber que aquilo estava em um livro de perguntas e respostas de Processo Penal de algum autor não sei de onde. Quer dizer: para quê isso, não é? Eu soube depois que tinha alguma coisa a ver com os efeitos da sentença condenatória penal na área cível. Como é que o candidato iria descobrir isso? Quer dizer: tem coisas que podem vir de surpresa, mas não é uma surpresa só para você, mas para todo mundo. É muito agradável na hora da prova você ver que tem lá uma surpresa dessas, olhar para o lado e ver que todo mundo está ferrado junto, todo mundo está no mesmo barco, ninguém sabe aquilo, ninguém nunca viu aquilo, só o cara da banca mesmo. Por exemplo, esse caso da supressio, depois eu vim a saber, estava citado em um único, singular e miserável acórdão do Superior Tribunal de Justiça – STJ. E aí o ministro do STJ citou um autor português. Poxa, como é que é isso? Não tinha como saber isso aí! É aquela questão para ferrar mesmo. Se uma questão assim cai na prova objetiva, menos mal. Porque ali é um número maior de questões, você pode errar aquela e você pode suprir por outras questões. Agora, na prova subjetiva é mais difícil, pois são três ou quatro questões, e se você zerou uma dessas, é difícil, não é? Na prova aberta do MPF eu tive também uma surpresa, mas essa surpresa foi muito boa, muito agradável. Isso de fato foi um presente de Deus para mim – alguns chamam de sorte, outros chamam de Deus. Na prova de Direito Penal e Processo Penal, caiu uma questão sobre um assunto que não era muito falado na época. Era um tema que estava começando a ser discutido na época. Hoje já há emenda constitucional sobre isso – que é o tema da federalização dos crimes contra os direitos humanos. Estava lá na minha prova aberta do MPF e eu tinha estudado esse tema – eu não me lembro se ele estava explicitamente no programa –, por sorte ou por Deus, semanas atrás, em um relatório daquela organização internacional Human Right´s Watch, um relatório dela sobre o Brasil – eu não sei como é que eu descobri esse texto aí, mas eu acabei achando ele pela internet, não sei como é que isso me caiu às 24
  • 25. mãos. Mas eu o li e ele falava do situação policial e jurídica do Brasil à época. É uma ONG internacional que vem aqui fazer uma análise, e estava lá o relatório dizendo sobre as prisões do Brasil, aquela coisa horrorosa e tal. E uma das sugestões desse relatório era federalizar os crimes contra os direitos humanos, ou seja, em algumas situações excepcionais passar os processos relativos a esses crimes para a área federal. Por quê? Porque há uma suposição de que porque se trata de uma justiça menos capilarizada, ela está mais distante do fato, é mais imparcial e menos sujeita a pressões locais. Então tinha esse item lá no relatório – que falava também de uma Proposta de Emenda Constitucional – PEC que estava no Congresso Nacional sobre esse assunto. E na hora da prova eu fui agraciado com essa benção, de cair essa questão, que valia 40 pontos em 100. E a minha nota nessa questão foi essencial para eu passar. Eu tirei 50 na prova, em cima da risca – o mínimo necessário na prova subjetiva era 50 pontos. Eu tirei 35 nessa questão – foi uma das notas mais altas nessa questão – e eu tirei zero em duas outras. Havia essa questão maior que valia 40 pontos, que era a mais extensa, e havia três outras de 20 pontos. Eu zerei duas outras e tirei 15 na terceira – ou zerei uma delas e tirei 5 e 10 nas outras, não me lembro bem, mas eu zerei uma delas. Então se não fosse essa questão eu não tinha passado, não tinha jeito, era ferro mesmo. Então tem sempre o imprevisível, não tem jeito, você tem que contar com isso aí. Tem que ter algum jogo de cintura, você tem que estar antenado nos temas que estão surgindo mais ou menos por aí. Não dá para ficar só nos manuais, mas também não dá para ficar só nesses temas, porque se você não tem a base você não vai dissertar sobre a coisa. Você tem que efetivamente saber os fundamentos. O conhecimento é como uma pirâmide: se você só tem o topo ela não tem fundamento, ela cairá fatalmente. Então é essencial ficar nessas duas situações, na base (com os manuais) e nas situações especiais, nos temas novos e tal. Eu tenho algumas coisas interessantes para contar das duas provas orais. Eu sempre quis saber como era uma prova oral, e ninguém nunca me contou isso. Eu às vezes assistia a algumas provas orais do MPMG, mas era muito de longe, porque os candidatos ficavam fechados em uma espécie de curralzinho em uma grande sala no último andar, e a plateia era muito distante. Eu conseguia ver mais ou menos como era uma prova oral, mas eu nunca soube dos detalhes, como era o ambiente mais próximo, como era o nervosismo dos candidatos. Foi só fazendo mesmo que eu vi. Aliás eu fiz uma prova oral antes, mas foi para o concurso de estagiário da DAJ, mas é como se fosse um ensaio, não era o jogo mesmo. Ali eu iria entrar no jogo mesmo. A prova oral não é algo para assustar. Eu tinha receio de ficar nervoso, porque eu sou um pouco gago. Eu tinha medo de ficar muito nervoso na hora da prova oral. Porque o cara da banca fica geralmente mais 25
  • 26. alto que você, a cadeira dele já é uma cadeira de autoridade. E você está ali, miserável e pedindo clemência. E eu tinha algum receio disso aí. Em Minas há também a prova de tribuna. É uma prova em que você vai a uma tribuna, fica de pé, todo mundo te vendo e te examinando, e você fala sobre um tema sorteado no mesmo dia. Há uma lista prévia de temas – por exemplo, Direito Penal tem quatro ou cinco temas. Mas sorteiam no dia o tema sobre o qual você falará. Então sorteiam algum tema, por exemplo, sorteiam um tema de Direito Constitucional ou de Direito do Consumidor, e você tem algumas horas para elaborar o seu texto e ir para a tribuna falar durante cinco minutos. Você dissertará oralmente sobre o tema e mostrará sua habilidade verbal. É um concurso onde os aprovados farão júris, discursos em palanque na praça principal da cidade. Então é importante você ter algum tipo de traquejo verbal. A prova oral do MPMG foi muito divertida, muito legal mesmo. Os candidatos acabam tendo muita afinidade, acabam criando laços de amizade na hora da prova oral. Eu me lembro que às portas da prova oral o pessoal que saía da prova comentava, por exemplo, o que tinham perguntado em algumas das provas. Quem chegou a esse ponto do concurso não tem muita rivalidade, ali é todo mundo junto. A gente sabe que se alguém não passar não foi porque o outro passou, mas porque eles quiseram reprovar a pessoa. Ali no caso não tinha um número limitante de vagas – havia menos candidatos que vagas. Então não tinha uma rivalidade. Por isso lá fora da sala estava um clima muito ameno. Eu me lembro que a prova de Direito Civil era com o representante da OAB. Em Processo Penal, por exemplo, o que corria ali nos bastidores era que o membro da banca tinha uma listinha de umas quinze perguntas e ele não saía muito disso. Então o pessoal já sabia que ele ia perguntar mais ou menos aquilo ali. Por exemplo: Quais são os cinco princípios da ação penal, segundo Mirabete? Então o pessoal ficava mais ou menos preparado, sabendo qual era a resposta. A gente ia mais ou menos pronto. É claro que havia algumas surpresas na hora. Por exemplo, para vocês terem ideia, ele tinha vários manuais sobre a mesa dele (Mirabete, Pacelli, enfim, os mais famosos, uns dez manuais), ele pedia para você escolher um dos manuais que ele tinha na mesa, e abrir em uma página, onde você quisesse. Eu escolhi o livro do Eugênio Pacelli e caiu lá em uma página que fazia referência à Lei nº 6.368/76 – (antiga) Lei de Entorpecentes. E então ele me contou um caso: imagine que você passou no concurso, foi para a sua comarca, e chegou às suas mãos um inquérito policial por tráfico de drogas – isso é ele me contando o caso, para depois me perguntar –, você denunciou o sujeito, o processo correu tranquilamente, sem nenhuma nulidade, o juiz, na sentença, condenou o sujeito, a pena foi justa, mas você quer recorrer da sentença. Me diga aí qual é 26
  • 27. o motivo que você tem para recorrer da sentença. O que você poderia alegar? A questão não foi muito bem colocada – vocês percebem. Ele foi narrando um caso e me perguntou o que eu poderia alegar. Me veio uma luz na hora – não havia nenhum indício ali, nada. Na época havia uma discussão que não era muito forte ainda, sobre o regime de cumprimento de pena dos condenados por tráfico de drogas. Mas na hora da arguição, o examinador não havia falado nada sobre regime de cumprimento da pena, nada disso. Mas na hora eu pensei que a resposta estava clara. Por quê? O Supremo Tribunal Federal – STF estava dizendo na época que se na sentença condenatória constasse expressamente regime inicialmente fechado, o réu poderia progredir; se na sentença constasse regime integralmente fechado, não poderia progredir. E o MPMG, claro, é MP, com sangue no olho, quer ver o réu preso até o final. Eu falei: É claro, doutor, eu iria recorrer – aí eu expliquei para ele o que eu havia imaginado, e de fato era isso o que ele queria ouvir – eu iria recorrer para que na sentença constasse regime integralmente fechado, porque segundo o STF... Quer dizer, essa questão foi uma surpresa, eu não sabia que ele iria perguntar isso, é lógico, mas eu já tinha lido muito sobre o assunto, eu estava antenado nas discussões, e eu pude responder o que ele estava esperando. Houve também outras questões mais ou menos complexas que essa. Em geral cada banca te segura por um tempo que varia entre dez e quinze minutos. Em outra banca, a de Processo Civil, foi muito interessante. A cara também me contou um caso: imagine que você foi aprovado no concurso, chegou na comarca e você entrou com uma ação civil pública ambiental, mas o Ministério Público não tem dinheiro para pagar a perícia. A perícia, no caso, é cara. Você está alegando, então tem que provar. Aí ele perguntou como eu iria resolver a questão, como eu iria pagar a perícia. Como eu iria dar conta disso aí. Resolva isso aí para mim. Ele perguntou: Que solução você dará? Eu falei tudo o que eu pude imaginar, mas eu não acertei. Eu falei: tem o fundo de direitos difusos, previsto na legislação, que tem dinheiro disponível. Ele falou: Pode esquecer! Não está disponível. No meu exemplo o fundo está sem dinheiro. Eu falei: Olha, o Estado pode pagar e, depois, o réu, se perder a ação, deverá ressarcir. É uma opção, eu brigaria por isso aí. Ele disse que não era por aí também não. Enfim, eu inventei mais algumas saídas lá e não consegui achar a solução. Aí ele viu que eu não ia resolver a questão e passou para a próxima. É claro que eu não fui reprovado por isso, mas a minha pontuação não foi excelente. Aí vejam que curioso: anos depois, eu estava com a minha esposa no carro – ainda não era minha esposa na época – eu estava em Volta Redonda, e eu me lembro que na época havia uma discussão sobre a inversão do ônus da prova, como ocorre no Direito do Consumidor, para essa situação. Ou seja, inverter o ônus da prova, mas aqui no aspecto processual e financeiro. Pelos princípios ambientais você fará com que 27
  • 28. aquele infrator – ainda que o seja de modo presumido – adiante o valor da perícia – você inverterá o ônus. É você quem alega mas é ele quem vai pagar – inverter o ônus da prova financeiramente para que ele pague. O cara queria que eu dissesse isso; ele queria ouvir isso de mim. Mas eu, no carro com a minha esposa, pensando em outra coisa, não sei o que deu na hora: Caramba, é isso o que ele queria ouvir! Isso aconteceu anos depois, eu não estava falando com ela sobre Direito, aquele assunto estava ali no fundo da consciência, e foi ali que eu, lembrando da prova oral, anos depois, cinco ou seis anos depois, falei: Ah tá, era isso o que você queria ouvir, não é? Agora eu já sei! É interessante: nem sempre você tem a resposta; às vezes ela chegará anos depois. Você tem que juntar os dados. Eu não juntei A com B – na época, no fundo eu não sabia dessa teoria, eu não sabia mesmo. Eu não imaginava que fosse isso aí. Eu soube depois da teoria, e depois ainda eu juntei A com B. Então nem sempre você vai saber tudo, nem sempre você vai conseguir ter controle de tudo, não tem jeito. Uma outra coisa interessante nessa prova oral do MPMG foi o seguinte. Tinha lá um sujeito da banca examinadora com um livro de doutrina, era um resumo, desses resumões que estão famosos hoje, e a gente achava aquilo muito engraçado. Por quê? É um membro da banca, poxa. É o cara que sabe, é o cara, não é? É o cara que sabe o negócio. E está lá com um resumão do lado dele, exibindo orgulhosamente aquele resumo. Enquanto outros estão lá com tratados, compêndios, ele estava lá com um resumão! Esquisito isso aí, não é? E a gente não sabia como reagir a isso aí. Porque você pensa: será que ele está querendo enganar a gente? Ele quer falar que sabe pouco – é um senhor mais antigo na carreira –, para enganar a gente, para a gente relaxar e para ele então enfiar a faca? Ou será que ele de fato é modesto e humilde e vai se sentir ferido por uma resposta mais bem dada? Também tem isso, não é? O cara que é muito humilde, domina apenas o feijão com arroz, se você quiser falar bonito com ele, ele vai te cortar! Ele é quem manda ali! Então isso foi um mistério para a gente. A gente não sabia que reação ter perante ele. Valia mais a pena ficar no feijão com arroz ali e não pisar muito fora. Em uma outra banca a pessoa tinha um caderno brochura, com perguntas escritas à caneta, e ela perguntava, como se fosse um ditado mesmo: O que você tem a dizer sobre isso? E olhava assim para você, por cima do caderno, e você tinha que responder. Fale sobre a classificação de não-sei-quem. E aí ela olhava assim e você falava: Segundo não-sei-quem... Era muito engraçado! Era muito singelo aquilo, não tinha nenhuma maldade naquele negócio. Em uma outra banca eu já fiquei um pouco intimidado. Cada banca era composta por duas pessoas. Nessa banca, um deles tinha a cara de mais bravo, de inquisidor, e o outro era mais amigável. Houve 28
  • 29. perguntas sobre Direito Econômico, Direito do Consumidor – era uma banca de legislação especial. Eu sei que eu fui respondendo e a prova acabou durando um pouco mais que as outras. Eu fui ficando à vontade com eles, fui relaxando e fui baixando na cadeira. Quando eu menos percebi eu já estava bem à vontade. Aí o mais amigável olhou para mim – eu não percebi que eu estava à vontade – e disse: Por favor, o senhor queira se recompor na cadeira . Eu logo percebi, voltei à postura formal, e pedi desculpas. Eu fiquei muito sem graça por perceber aquele estado meu. Eu estava muito à vontade ali, eu estava sabendo as questões, e eu relaxei mesmo, eu estava relaxado ali, como quem está em casa conversando com amigos. E aquilo me grilou tanto, eu fiquei a semana inteira, até o resultado final, me perguntando: Será que aquele cara vai me ferrar? Será que ele vai me tirar do concurso por isso? Porque, de fato, é uma postura meio esquisita, não é? Você está ali na banca, de terno, naquele ambiente formal, e, poxa, relaxado como quem está achando tudo muito bom. Eu realmente fiquei com muito medo disso, de não passar por isso. Mas no final das contas eles me aprovaram e não tive nenhum problema com isso. No Ministério Público Federal a prova oral é mais ou menos assim também. É uma sala, onde cada banca ocupa uma mesa, e você fica circulando de mesa em mesa e vai passando por todos os carrascos e tomando tapas, não é? Eu não posso dizer que é mais tranquila e nem que é mais difícil. É uma prova tranquila também. Não tem muitas surpresas. E lá, em especial, é mais previsível. Por quê? O nosso edital do MPF vem por tópicos. Então cada disciplina tem 20 ou 25 tópicos e cada tópico tem três itens. Na hora da prova oral eles sorteiam um dos itens – eu não me lembro se é um dos números, com três itens, ou se é uma das alíneas – sorteiam um tema e você terá ou que dissertar oralmente sobre aquele tema ou terá que responder a perguntas sobre ele. Eu me lembro que o subprocurador membro da banca de Direito Civil e Processo Civil sorteou um tema de registro civil e um outro de ações possessórias e ele me mandou falar sobre isso: Ah, então fale sobre o que você sabe sobre isso aí. Sobre o tema das ações possessórias eu sabia – eu tinha lido muito sobre isso. Eu li em Direito Civil e em Processo Civil. Eu sabia tudo, não é? Sabia das três ações, dos graus de ataque à posse, tudo na cabeça. Mas na hora não saíam os nomes das ações! Eu me esqueci deles na hora da prova! Eu expliquei para ele: Olha, eu sei quais são as ações... – expliquei com muita calma – … sei que elas variam de acordo com o ataque à posse: em uma delas o ataque não aconteceu ainda, em outra o ataque já aconteceu, mas não se completou, e na outra a posse já está perdida, mas eu me esqueci os nomes, mas são essas aí que o senhor bem sabe... Apesar disso eu passei bem nessa matéria, mas o branco às vezes vem mesmo. É uma hora muito solene. Vocês sabem que o prédio da 29
  • 30. PGR parece um disco voador, é muito bonito, não é? E eu estava lá dentro daquele negócio ali, é um negócio muito bonito. E eu estava li naquele lugar maravilhoso, eu estava na prova oral do MPF, no primeiro concurso que eu fiz para a PGR. É uma situação que geralmente deixa as pessoas um pouco mais nervosas, mais tensas, não é? Então a última coisa de que eu me lembraria ali seria o nome das ações possessórias. Eu não me lembrei mesmo! O outro cara da banca – era a banca de Direito Financeiro e Tributário – fez uma pergunta sem pé nem cabeça: Vem cá, como é a importação de peças de aeronave? Que tributos incidem sobre a importação desse produto? Eu não tinha a menor noção de como era isso aí. Eu respondi como eu achei que tinha que responder, mas eu não tinha nem noção se eu tinha acertado ou não. E ele fez também outras perguntas que eu soube responder. Mas tem sempre o folclore das provas orais, e não tem como escapar dele. Em geral é isso: você tem que manter a calma, tem que dominar um pouco os temas. No MPF você tem que saber que pode cair para você um tema que será pura surpresa. Há vários itens ali e na sua prova oral pode ser aquele, entendeu? Você tem que dominar mais ou menos a coisa. No meu concurso foi interessante porque os candidatos que foram para a prova oral conseguimos nos reunir por e-mail, e nós dividimos o programa inteiro do concurso entre os candidatos – éramos um pouco mais de noventa pessoas –, e cada um ficou com três tópicos para resumir e mandar para o grupo. Então nós conseguimos fazer várias apostilas com um resumo de todos os tópicos. Porque era mesmo uma surpresa. Poderia cair para você ali um item que você nunca viu na vida. Vocês podem ver o programa do 25º Concurso, que está disponível aí, e verão coisas ali que, meu amigo, é difícil! Você nunca mais os verá na vida! Só nesse concurso mesmo. Então isso foi importante para a gente saber bem sobre temas sobre os quais nós não tínhamos muita ideia, para você ir com alguma coisa para falar, alguma nuance, alguma classificação, algum indício de conhecimento sobre aquele tema. Mas diante de tudo isso aí, eu ainda olho para trás – como eu falei, já se passaram oito, nove anos, de tudo isso aí, em alguns casos mais de dez anos – e fica sempre alguma coisa que faltou entender. Eu ainda não entendo muito bem o que é que de fato me tirou daquela situação, um menino normal ali, pô, e num concurso com vinte mil candidatos, passam noventa e eu estou ali entre eles! É claro que eu estudei muito, ralei demais, foi muito difícil, mas ainda falta alguma coisa que eu não sei explicar, sabe? Faltam alguns elos. É engraçado pensar sobre isso! Parece que foi algo que Deus me deu de graça! Ele me mostrou o caminho, e eu o fui seguindo, mas chegou uma hora em que eu não sabia o que fazer – talvez nem soubesse que tinha algo a fazer –, uma hora em que eu não dominava a situação, uma hora em que eu 30
  • 31. não sabia o que estava acontecendo mesmo, e foi ele quem me levou. Porque, olha, essa mania de controle que nós temos – alguns têm mais, outros têm menos –, mania de controlar, mania de saber tudo – claro, o concurseiro tem que ter essa mania de controle, ele tem que saber tudo mesmo, e um pouco mais –, isso é só uma meta, é só um anseio, você nunca chegará a esse conhecimento absoluto. Não tem jeito. E mais: algumas coisas nesse trajeto são imprevisíveis, não é? Há situações que podem te surpreender no meio do caminho: você pode se apaixonar, você pode se casar! E aí, como é que fica o seu programa que estava em andamento? Você pode ter que mudar de cidade, em razão do emprego. Você pode desistir e querer outro concurso, e aí terá que pegar o programa e adaptá-lo. Tudo isso pode acontecer. E nesse meu trajeto houve algumas mudanças, e eu de fato fico me perguntando de onde veio essa força. Coisas imprevisíveis que eu não estava preparado para superar, que eu não sabia como superar, mas que eu nem percebi e passei por aquilo tranquilamente – hoje, olhando para trás, eu vejo que passei por muitas dificuldades da vida sem sequer percebê-las, certamente porque Deus estava do meu lado, me levando pelas mãos. E essa é décima lição: Diante do imprevisível, contei com Deus. Eu fico pensando às vezes: é como aquela criança que passa o dia brincando, fazendo o dever de casa, e dorme na sala, com os pais, vendo televisão. Ela, inocente, não foi para a cama. Quem carrega ela para a cama é o pai, não é? A mãe prepara a cama dela e o pai pega ela no colo e a leva para a cama – e ela nem percebe, ela nem sabe, ela nem viu isso aí, não é? O pai dela dá conta de tudo, tranca a porta da casa, confere o gás, coloca o despertador; a mãe passa a roupa dela, prepara o café da manhã – e esses cuidados nem passaram pela cabeça dessa criança! Ela nem sabe que a vida, a saúde, a segurança e o conforto dela dependem desse pai e dessa mãe – tudo o que ela fez foi brincar, fazer o para casa e dormir na sala. Aí ela acorda no dia seguinte, restabelecida, descansada e pronta para o novo dia, para novos desafios, brincadeiras e aprendizado. E quando eu penso nisso tudo eu vejo que é como se eu fosse essa criança que cumpriu o seu papel, fez o seu dever de casa, brincou um pouco, se divertiu – isso foi divertido mesmo, eu olho para trás e acho muita graça –, mas chegou o momento em que eu dormi na sala mesmo, eu não tinha noção do que estava acontecendo nesse fundo muitas vezes incontrolável das nossas vidas, eu não tinha controle da situação – eu não estou dizendo que houve desespero, não é isso! Mas tem coisas que você não vai controlar, não é? Não é você que vai resolver aquilo. Você é incapaz mesmo, você não está pronto para aquilo e muitas vezes você sequer sabe que tem um problema ali para você resolver. É como se eu fosse essa pessoa, essa criança que 31
  • 32. dormiu ali na sala e de fato tinha uma cama pronta para ela dormir, e é Deus quem pega você nos braços e te leva para a cama, foi Ele quem me deu a segurança. Na época eu não era religioso (eu me converti à Igreja Católica há pouco tempo; eu fui batizado quando criança mas fiquei longe da Igreja por muito tempo), mas eu sempre rezei em casa. E eu olho para trás e sinto isso: que foi Ele quem me pegou pelas mãos, me pôs na cama, para descansar mesmo, e cuidou de tudo o que era necessário enquanto eu estava ali meio adormecido, enfim, foi Ele quem coroou mesmo essa vitória, me colocou ali, onde eu descansei – e eu já acordei adulto, no susto, descansado, e pronto para a batalha, para esse desafio que é o Ministério Público. A mensagem que eu tenho a dar para vocês a esse respeito é essa: façam o que vocês têm de fazer mesmo, mas não adianta: haverá alguma coisa ali que você não conseguirá suprir – e às vezes você nem saberá o que é! Às vezes é isso, um artigo que cai nas suas mãos na hora certa, na véspera da prova! Poxa, não foi você que foi atrás, o artigo chegou às suas mãos! Você tem que reconhecer isso aí! Você não é gênio a ponto de descobrir o que vai cair na prova. Caiu nas suas mãos, foi um presente. Está lá na sua mão um artigo da Human Rigth´s Watch, e aí? Como é que é isso aí? No concurso do MPMG eu não me lembro de nenhum fato surpreendente – é claro que houve ação divina, lógico, mas não tem nenhum fato surpreendente. No MPF houve. Realmente se não fosse esse artigo eu não tinha passado, não tinha passado mesmo. Então é isso. É preciso contar com essa válvula de escape para o transcendente, que é Deus, que é o Infinito, o Insuperável. Você vai ter que ter isso aí com você. Você não vai conseguir passar sozinho, tem que ter os amigos, tem que ter família, se possível a seu favor – às vezes não é possível, não é? Se não for possível, você se mantenha um pouquinho ali, e às vezes fuja da família para estudar. Isso também funciona. Mas é importante saber qual é a sua parte e qual é a parte de Deus – porque Ele tem a parte dele também. Então, pessoal, essa é a minha história. Com essa exposição a gente encerra o nosso Ciclo de Palestras e eu fico à disposição para perguntas, outras questões que vocês tenham, algum comentário, alguma dúvida sobre essa minha trajetória. Eu queria agradecer muito à Lúcia, por estar todos os dias aqui com a gente, e fazer parte desse Ciclo de Palestras – e também à Lígia, minha estagiária, que está fazendo e digitando os resumos das palestras. Eu espero que esse ciclo se repita no próximo semestre. Eu não estarei aqui no próximo semestre, pois eu farei uma permuta com um colega de Minas Gerais, mas eu espero que esse espaço aqui se multiplique, pois ele foi muito importante. Esse espaço aberto, esse diálogo com os estagiários e com os servidores é muito importante. A 32