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Volume VI
“A gente é criada para ser
assim, mas temos que
mudar. Precisamos ser
criadas para a liberdade. O
mundo é grande demais para
não sermos quem a gente é.”
Elza Soares
EDITORIAL
Sempre fui “aquela das lutas”.
Recordo-me de ser ainda uma cri-
ança a tentar entender o mundo, e
questionar porque é que diziam que
eu era “um cidadão”. Se eu era uma
menina, deveria ser “uma cidadã”.
Espanto foi o meu quando o meu
pai não soube justificar para além
de dizer “porque é assim que se diz”.
Também questionei o meu pai o
porquê de dizerem na escola que “o
Homem descobriu o fogo”. Como é
que sabem que foi um homem e não
uma mulher? E porque é que uti-
lizamos homem com H grande para
nos referir à humanidade? Porque é
que mesmo estando numa sala com
muitas meninas e apenas um men-
ino, usam o plural no masculino
para se referir a nós?
Hoje percebo que a luta pela igual-
dade sempre me pertenceu. Esta ân-
sia de potenciar a mudança e acred-
itar que vou fazer parte dela nunca
me abandonou. Fui e continuo a
ser “aquela das lutas”, ocasional-
mente acompanhada por olhares de
desdém, murmúrios e uns quantos
sermões. Afinal, porque é que eu,
uma mulher, vejo e denuncio estas
micro desigualdades culturalmente
aceites que silenciam a mulher na
sociedade? Devia era estar calada e
consentir.
Acabou por ser um percurso um
pouco solitário, ser “aquela das lu-
tas” mesmo quando as pessoas que
me rodeavam viam isso como algo
negativo. Porém, em 2017, quando
entrei em criminologia no ISMAI,
o meu percurso cruzou-se com o
da Sofia Neves que veio a ser ver-
dadeiramente e derradeiramente
“aquela das lutas”. Fiquei deslum-
brada ao encontrar uma mulher a
falar de forma tão poderosa sobre
as desigualdades presentes na nossa
sociedade sem nunca pedir descul-
pa pelo incómodo ou remeter-se ao
silêncio.
Assim que descobri a Plano i, com-
ecei a idealizar um dia poder fazer
parte desta associação. E assim foi.
Três anos depois, criaram o Grupo
de Jovens Promotor da Igualdade
e da Saúde, do qual sou represent-
ante. Foi uma sensação incrível
perceber que existem mais pessoas
das lutas. Pessoas com a mesma de-
terminação e vontades que eu, e que
não pedem desculpa por serem das
lutas. Afinal não é algo mau.
Recentemente fui convidada para
fazer parte da direção da Plano i,
juntamente com a Sofia Neves, a
Paula Allen e a Mafalda Ferreira.
Outras mulheres que também são
das lutas. É um orgulho enorme
pertencer a esta associação, estar
junto destas pessoas que fazem o
impossível todos os dias. Pessoas
que lutam para ajudar quem mais
precisa.
O ano de 2021 foi, definitivamente,
repleto de começos marcantes.
Começos com pessoas idênticas a
mim, com a mesma perseverança,
com os mesmos valores e com as
mesmas ambições. Pessoas das lu-
tas. E é isto que importa. Encontrar-
mos o sítio onde pertencemos, com
as pessoas que constantemente nos
motivam a ir mais longe.
Telma Portela
10
14
18
26
30
44
48
52
60
66
Í
N
D
I
C
E
Organograma Plano i
Os rostos por detrás da Plano i
-Apresentação de Telma Portela
Projetos Plano i
-Apresentação do projeto No Label
-Apresentação da linha SOS Suicídio: Serviço de Prevenção do Suícidio
-Bairros Sem Bullying
Entidade Parceira
-Apresentação do projeto Boomerang
Lugar de Fala
-Carta anónima de uma ex-vítima de Violência Doméstica
-Novos começos
-Ver para além do olhar
ABC da Igualdade
-Fetichização
Sabias que...?
-A ONU anunciou a criação de Índice da Juventude na Política
Espaço Cultural
-Apresentação do Projeto Kriarte
-Sugestão Cultural: MAID
Exposição Fotográfica
-CLARA (artista e obra)
Bibliografia e Ficha Técnica
ORGANOGRAMA
PLANO I
Mafalda Ferreira
Sofia Neves
Telma Portela
Dora Pinto
Paula Allen
10 11
OS ROSTOS POR
DETRÁS DA PLANO I
Apresentação de Telma Portela
Telma
PortelaTelma Portela é licenciada em Criminologia pela Universidade
da Maia (ISMAI) e mestranda em Criminologia na Faculdade de
Direito da Universidade do Porto (FDUP). A sua principal área
de interesse está relacionada com as causas LGBTI+, estando a
desenvolver a sua tese nesse sentido. Iniciou o seu percurso na
Associação Plano i fazendo parte do Grupo de Jovens Promotores
da Igualdade e da Saúde do qual é representante. Para além desse
papel, auxilia também na gestão das redes sociais da Associação.
PROJETOS PLANO I
Apresentação do projeto No Label
Apresentação da linha SOS Suicídio: Serviço de Prevenção do Suícidio
Bairros Sem Bullying
No passado 10 de dezembro
de 2021 nasceu de um sonho o
mais recente projeto do Grupo
de Jovens da Associação Plano i.
Sem rótulos, sustentável, igual e
livre são palavras que o definem,
e não é por acaso.
Apresentamos a No Label.
De nome e princípio, a No Label
nasceu de uma vontade invicta
de alcançar uma verdadeira mu-
dança social e lutar ferozmente
pela implementação plena dos
Direitos Humanos. Para tal, a
No Label formou um comprom-
isso claro de acolher e dar
visibilidade aos rostos,
identidades e vozes esquecidas
pela sociedade.
Aliando a esta parceria o amor
pela arte, e pela expressão de
sentimentos e vivências da for-
ma mais pura e variada. O
objetivo é materializar as ex-
periências, retirando um rendi-
mento das mesmas, e tornando
as pessoas em verdadeiras gale-
rias vivas na luta pelos Direitos
Humanos.
A No Label une por isso a arte e
a sociedade, a cultura e o amor, a
construção e a desconstrução.
Não é uma empresa, mas uma
forma criativa, consciente e im-
pactante de angariar fundos para
as causas abraçadas pela Asso-
ciação Plano i (como o Centro
Gis, Casa Arco-Íris e Plano 3C)
e retirar um rendimento para as
pessoas artistas que embarcarem
connosco nesta viagem.
Assim é a No Label. Conhece
mais através do instagram
@nolabel.planoi
No Label
18 19
SOS Suicídio
A Plano i, estando consciente da existência de outros recursos e
entidades, e não se estando a substituir aos mesmos, considerou
prioritário criar um serviço destinado a combater e prevenir o
suicídio nas crianças e jovens.
Trata-se de um serviço de apoio e encaminhamento efetuado por
profissionais
especializados/as e com cédula profissional.
Não criámos este serviço com nenhum apoio ou financiamento,
nem é isso que procuramos, criámos para podermos ser mais um
recurso para crianças e jovens que sentem que estão sozinhas/as.
Não estão sozinhas/os. Estamos aqui!
20
Dia Escolar da Não
Violência e da Paz
“Em comemoração do Dia Escolar da Não Violência
e da Paz, o projeto Bairros SEM Bullying gostaria de
deixar uma mensagem para ti, que vês o bullying a
acontecer ao teu lado, que observas aquela colega a ser
gozada pelo corte de cabelo que usa ou a ser insultada
por usar uma saia curta. Esta mensagem é para ti, que
vês o teu colega a ser insultado nas redes sociais por
gostar de maquilhagem e não de desporto.
Sabias que podes contribuir para acabar com este ciclo
de violência? Denuncia, fala com o pessoal docente da
tua escola, com a tua família, com alguém em quem
confies.
Não compactues com situações de bullying. Compac-
tua com o seu término.”
22
ENTIDADE PARCEIRA
Apresentação do projeto Boomerang
O projeto Boomerang -
Estudo sobre as perceções do
impacto económico da partilha
desigual do trabalho não pago
nas vidas de mulheres e homens
imigrantes em Portugal,
coordenado pela Prof. Doutora
Estefânia Silva, é um projeto que
se enquadra no Programa
Conciliação e Igualdade de
Género, financiado pelo
Mecanismo Financeiro do
Espaço Económico Europeu-
EEA Grants, sendo a Comissão
para a Cidadania e a Igualdade
de Género a entidade
operadora e o Instituto Superior
de Ciências Sociais e
Políticas da Universidade de
Lisboa (ISCSP-ULisboa) a
entidade promotora.
Considerando a expressividade e
a complexidade dos fluxos
migratórios dos últimos anos, o
Boomerang tem como
objetivo principal caracterizar as
perceções de mulheres e homens
imigrantes em Portugal sobre o
impacto económico da partilha
desigual do trabalho não pago
e do divórcio com o intuito de
analisar os seus efeitos do ponto
de vista da conciliação pessoal,
familiar e profissional.
O projeto terá a duração de 18
meses e conta com a parceria
das seguintes organizações não
governamentais e universidades:
Associação Plano i, SOS
Racismo, Cruz Vermelha
Portuguesa – Delegação de
Braga, Universidade da Maia,
Universidade Aberta e
Odalnaeringshage. Está,
atualmente, em fase de
acolhimento de novas parcerias
com associações de imigrantes.
A sua implementação será
feita em grupo, num formato de
entrevista, e individualmente a
partir do preenchimento de um
inquérito.
Para participar no Boomerang é
necessário ser técnico/a que
trabalha diretamente com
população imigrante, ser
imigrante em Portugal, ter
nacionalidade brasileira,
Boomerang
cabo-verdiana ou ucraniana, ter
18 anos ou mais, estar a residir
no país há pelo menos 1 ano e
ter, ou ter tido no passado, uma
relação de intimidade.
Todos os quesitos éticos,
nomeadamente os que dizem
respeito à confidencialidade e ao
anonimato, estão garantidos pela
equipa de investigação.
Pretende-se que os resultados do
projeto aumentem o
conhecimento acerca da situação
das mulheres e homens
imigrantes em Portugal,
contribuam para uma
melhoria das suas condições de
vida e promovam a igualdade de
género entre os tempos afetos ao
trabalho pago e não pago.
Assim, se tiver interesse em
participar neste projeto, poderá
contactar-nos através do email
boomerang@iscsp.ulisboa.pt ou
das nossas redes sociais.
Muito agradecemos a vossa
participação, divulgação e
partilha junto de outros/as
potenciais interessados/as.
Venha fazer parte do
conhecimento e da mudança!
Entidades parceiras: Operador do programa:
Promotores: Financiado por:
26 27
LUGAR DE FALA
Carta anónima de uma ex-vítima de violência doméstica
Novos Começos
Ver para além do olhar
Bem, após a milésima tentativa
de escrita, parece que chegou o
momento…
Devo dizer que, quando me can-
didatei para escrever esta carta,
não pensei que seria tão difícil.
É toda uma mistura de emoções
e falta de palavras adequadas
para me exprimir. Está há dema-
siado tempo enterrado dentro de
mim.
Já repararam que o ser humano
tem uma mania muito engraça-
da de oprimir os sentimentos
menos bons?
Mas bem, hoje é o dia em que
me levanto para gritar por todas
as vítimas de Violência Domésti-
ca, desde as que já não estão cá,
às que precisam de uma força
para se levantarem também e,
por isso, escrevo esta carta, a
minha carta de esperança para
vocês.
No final de 2015 estava a
começar uma relação que se veio
a revelar um ciclo que parecia
não ter fim. Em 2018 estava a
denunciá-lo por agressão física e
psicológica. Segundo o relatório,
eu estava numa relação de risco
elevado. Porém, devo admitir
que me sentia culpada por estar
a fazer a denúncia.
É como uma lavagem ao cérebro
onde tudo o que vemos é aque-
la pessoa, se vai gostar do que
fizemos, se vai ficar zangado/a,
se vai ter um ataque de raiva.
É ter cuidado no mais mínimo
pormenor porque se não estiver
da forma como ele/a quer, nós
vamos sofrer as consequências.
É desculpar tudo porque “a cul-
pa foi nossa” e porque não temos
mais ninguém.
A violência afeta tanto, que, por
vezes, parece mais fácil man-
termo-nos num relacionamen-
to em que não estamos felizes,
eu sei…, mas devo dizer, como
pessoa que sobreviveu, que há
todo um mundo enorme e belo
à vossa espera.
Inicialmente, achei que não ia
aguentar, não tinha amigos, tive
que começar tudo do zero, mas
a sensação de liberdade era tão
Carta anónima de uma ex-vítima de
Violência Doméstica
grande que me fez querer con-
tinuar. Com o tempo, conheci
pessoas novas e fiz amizades
para a vida, acabei a licencia-
tura, comecei a trabalhar e até
entrei num relacionamento no
qual sou bastante feliz. Não vou
mentir, foi uma grande batal-
ha e bastantes noites de choro,
nem tudo são rosas, mas tudo
ameniza com o tempo, especial-
mente a dor.
Hoje em dia, quando olho para
trás, apesar de ainda haver um
pouco daquela menina pequena
e insegura em mim, devo dizer
que estou muito orgulhosa da
pessoa na qual me tornei.
Para ti, para mim e para todas as
outras pessoas, há esperança.
30 31
Uma expressão vacante sempre
esteve presente na minha cara,
era algo comum quando era
mais nova, onde as pessoas ol-
havam para mim e diziam que
eu não era normal porque não
sorria e que era meia “abichana-
da” ou quando outras diziam era
obvio que não tinha muito amor
na minha vida e que tinha de
ultrapassar o trauma e etc., mas
que a única coisa que faziam era
desaparecer depois de me usar e/
ou obter o que queriam de mim
e acrescentar mais bagagem para
cima, bagagem esta que sempre
tive comigo cada vez que tinha
que recomeçar de novo.
Nasci no Porto em 86, e vivi aqui
até quase os nove anos, nesses
nove anos a minha realidade era
uma realidade de pobreza, de
miséria, de droga, de abuso de
todo o tipo, os meus pais não
eram boas pessoas, eram tudo de
errado que pode acontecer com
um ser humano e sabendo o que
sei agora sobre tudo o que ac-
onteceu posso dizer que foi um
milagre ter sobrevivido ás coisas
que aconteceram nesse período
da minha vida. Ironicamente
uma das pessoas que acabei por
apresentar queixa de violên-
cia doméstica foi a pessoa que
me removeu desse ambiente, a
minha avó, ela era muito católi-
ca, muito da velha guarda, muito
conservadora e era de ignorar o
problema de modo a conservar
as aparências, mas mesmo assim
ela viu o desastre de vida que
a minha mãe era responsável e
decidiu tirar-me de lá e levar-me
para casa dela em Oliveira de
Azeméis.
De certa forma foi o meu
primeiro recomeço, era algo
novo, mas num sítio onde ainda
se vivia no passado e com o pas-
sar do tempo, dos anos, eu via
cada vez mais o quanto aquela
gente vivia no passado, o pessoal
mais idoso estava sempre a dizer
quando era o tempo do Salazar
havia respeito e não havia pan-
eleiros e cenas e etc., e também
que deviam ser todos espanca-
dos quem não acreditava em
deus para meter medo, de modo
a parar com toda a pouca verg-
onha da vida moderna porque
Novos começos antigamente é que era bom e
não havia nada destas modern-
ices….e cenas.
Posso dizer tendo vivido lá des-
de os 9 anos até aos 28 que tudo
isso era treta, eu testemunhei
a pior merda corrupta que al-
guém pode testemunhar, desde
corrupção, consumo de drogas,
abuso de todos os tipos especial-
mente por parte de quem tinha
poder lá ou seja, a ordem natu-
ral das coisas, a verdadeira or-
dem das coisas, como era desde
o tempo do Salazar, como eram
e sempre foram, e provavel-
mente sempre seriam, mas com
uma capa de conservadorismo
religioso e tradições bonitas,
tradições que quebraram a mim
e a todas as pessoas que foram
mastigadas por esses sistemas de
poder. Todos e todas engolidas
pela máquina e processadas para
ser um produto bonito e tradi-
cional o que era mau para mim
porque sempre fui um produto
com defeito para aquela gente
toda. Eu costumava olhar para
o céu e imaginar como a minha
vida seria se pudesse simples-
mente sair, algo que naquela
altura era aparentemente im-
possível, mas que ironicamente
começou a manifestar-se após
ter começado uma transição
enquanto ainda residia naquela
cidade em segredo, uma tran-
sição que era o resultado de algo
que tive de esconder a vida toda,
que se eu não tivesse começado
naquela altura eu muito provav-
elmente teria acabado com
tudo…ou seja eu já não tinha
nada a perder e iria recomeçar
de novo após sem pensar duas
vezes e sem planear nada de
todo.
Ironicamente eu e a minha avó
fomos expulsas pelo senhorio
da casa nessa altura e tínhamos
que ir para outro sitio, e aca-
bámos por ir para São João da
Madeira a 10km de distância, ou
seja mais um começo, estive lá
durante quase quatro anos onde
levei com tudo o que uma pes-
soa trans poderia levar durante a
sua transição mas notei que hav-
ia cada vez mais pessoas a tratar-
me bem devido ao fato de eu
ter uma aparência passável, mas
que cuja intenção desta gente
era obvia, o que me fez sentir
na pele ainda mais a discrim-
inação sexista e classista que a
32 33
sociedade portuguesa tem em
relação aos papeis dos homens
e das mulheres na sociedade,
onde um homem de baixa casta
social tem que se desenrascar
e nem merece empatia ou aju-
da dos outros porque tem que
ser homem e cenas, onde um
homem com maior afluência
social tem que ter a aparência
e comportamento normativo e
ser homem com h grande e ser
um “doutor” ou “engenheiro”,
onde uma mulher de baixa cas-
ta é usada ao longo da sua vida
e tem que se calar pois senão é
uma meretriz sem vergonha e
sem decência alguma porque
mulher boa para aquela gente
leva e cala-se, e onde uma mul-
her de classe social mais elevada
tem que ser a menina perfeita
e virginal para um dia ser bem
sucedida e ter a família perfeita
com o homem perfeito ao seu
lado…e tudo pelo meio é es-
quecido e deitado fora pois não
tem uso neste sistema rígido e
binário e mais uma vez tipica-
mente português. Mas eu aguen-
tei porque tinha que aguentar,
não possuía alternativa, mas os
abusos e ameaças de violência
estavam mais uma vez cada vez
mais presentes, não havia um
único dia que não ouvisse um
paneleiro isto, um paneleiro
aquilo, ser dito na minha di-
reção pá esquerda e pá direita,
e a minha saúde estava cada vez
mais a deteriorar como resulta-
do disso. Tive de pedir ajuda
para sair de lá, e ainda bem que
fiz isto porque senão eu posso
garantir com 100% de certeza
que se tivesse ficado lá eu já es-
taria morta hoje.
Eu já era utente do Centro Gis
há um tempo e já há um ano
antes de ter pedido ajuda me
diziam que eu era vítima e que
tinha o direito de pedir ajuda
e etc.., mas como podem já ter
uma noção, eu não queria de-
sistir e queria ver se conseguia
resolver as coisas por mim, mas
falhei…e mais um pouco de
tempo e isso me teria custado a
vida…por isso tive de engolir o
sapo, deitar o orgulho de lado e
pedir ajuda, e ajuda recebi. Dois
meses depois de ter pedido aju-
da, fui para a casa arco iris, mas
nesses dois meses antes de ir, eu
me despedi do meu emprego
em São João da Madeira e pus a
coisas em dia para que ninguém
suspeitasse de nada nem soubes-
sem para onde iria de modo a
assegurar a minha proteção e
um novo começo. Mas como
sempre algo de estupido acon-
tece, o mundo estava a perder a
estribeiras devido ao covid-19
e mudei de vida em plena pan-
demia sem saber mais uma vez o
que esperar ou o que me iria sair
na rifa.
Muitas pessoas passam pela casa
arco iris e por outras estruturas
de apoio, mas uma constante é
que quase todas as pessoas que
entram nestas estruturas rara-
mente estão bem e não são mui-
to funcionais devido ao abuso,
mas mesmo assim era melhor
do que estar no outro sítio e
a primeira noite que estive lá
na casa arco iris, foi a primei-
ra noite em anos que consegui
dormir sem interrupções e sem
gritaria…foi diferente. O tempo
na casa não foi fácil porque dev-
ido ao covid as coisas ficaram
paradas e ninguém sabia o que
iria acontecer, mas tratavam-me
como uma pessoa e não como
um produto defeituoso, o que
mais uma vez, era diferente do
que tinha vivido. Eventualmente
saí e fui para a 3C e mais uma
vez havia confinamentos, mas
para mim não interessava pois
pela primeira vez em anos volt-
ei a estudar, nesse tempo que
estive na 3C tirei um curso téc-
nico de nível 5 online de modo
a ter mais hipóteses de me pu-
der desenrascar no mercado de
trabalho e ser mais empregável
porque aprendi que se uma pes-
soa não se mexe é deixada para
trás uma vez que a vida não
para.
E mais uma vez as coisas mudar-
am, agora finalmente após anos
de abuso constante, passar pelas
estruturas e acabar um curso,
mais todas as dificuldades à mis-
tura, tenho casa própria onde
tudo que está dentro desta foi
adquirido com o meu dinheiro
produto do meu esforço, escol-
ha e trabalho constante. Um
novo começo, onde ninguém me
controla ou me diz o que fazer,
ou se sou isto ou aquilo, final-
mente estou bem, finalmente
estou livre para viver a minha
vida. Tive muita sorte, mesmo
muita, porque as coisas nunca
foram boas para pessoas como
34 35
eu e apesar do constante abuso
consegui sempre adaptar-me e
sobreviver as circunstâncias do
que a vida despejava em mim.
Mas sobrevivi e fiz algo disso,
mas tenho consciência e ex-
emplos que isso nem sempre é
assim, já perdemos demasiadas
pessoas na nossa comunidade,
pessoas que nunca tiveram o
luxo de um novo começo e nesse
aspeto tive mesmo muita sorte
porque tive vários começos,
várias vidas e finalmente posso
ser eu própria graças a isso.
Mas é lixado quando temos um
sistema que diz á maior parte
das vitimas de violência domes-
tica que o caso foi arquivado
por falta de provas, um sistema
que parece que está mais pre-
ocupado com o bem estar e a
liberdade dos agressores do que
a nossa, um sistema que não
preocupa com pessoas que nun-
ca tiveram uma hipótese e que
foram quebradas de vez e onde
muitas destas se transformaram
em agressores devido ao abuso,
onde foram quebradas de vez
pela sociedade, e que nunca ti-
veram direito a um recomeço. É
quase um motivo de vergonha
que o estado delega a nossa
proteção a associações, mas ao
menos é algo, e é um algo que
devemos proteger e ajudar o
máximo possível para que mais
pessoas como eu possam ter um
novo começo, mesmo que seja
difícil. Há razões por que muitas
pessoas na nossa comunidade
cometem suicídio ou que apa-
rentam ser um estereotipo am-
bulante mas a principal razão
para isso, na minha opinião, é
que não possuem recursos para
recomeçar ou ter uma vida dig-
na e devemos ajudar o máximo
possível para que este paradig-
ma mude, mas também deve ser
dito que tudo começa e acaba
com o individuo e para alguém
mudar tem que decidir isso, tal
como eu e muitas pessoas que
passaram pelas estruturas de
apoio fizeram, quem quer um
novo começo não deve ter medo
da mudança mas sim abraçá-la
e aceitá-la porque a alternativa é
vastamente pior.
Tudo na vida muda, a vida é im-
permanente, tudo se transforma
em algo, até nós e quem con-
segue sobreviver o tempo sufi-
ciente consegue ver coisas boas
a acontecer, mas nem sempre
muda para melhor e o que quero
dizer com isto é que a vida vai
mudar com ou sem nós, agora
se queremos um novo começo,
um começo bom, então deve-
mos decidir mudar as coisas na
direção que queremos e lutar, e
se tivermos que pedir ajuda que
seja, se tivermos que mudar algo
em nós então que seja, na vida
nem sempre temos escolha mas
quando temos devemos sempre
tomar uma decisão e agir.
Voltei para o Porto e a minha
expressão já não é tão vacante na
minha cara como era e agora fi-
nalmente consigo viver, ser livre,
só tive que decidir e viver isso
ao longo do caminho.
Eris Teixeira Carvalho
36 37
O meu nome é Paula Ferreira,
sou mediadora municipal e in-
tercultural que exerci durante 3
anos a função de técnica psicos-
social num “Centro Detenção
para Imigrantes Irregulares”
toda a gente me perguntava -
mas o que é isso? Isso existe?
Nunca ouvi falar…!
Foi desconcertante pensar que
trabalhamos numa espécie de
ilha deserta sem ninguém saber
onde fica, uma espécie de cu-
riosidade e desdém como se
trabalhássemos em algo que
ninguém sabe ao certo se existe
de facto. Mas é perfeitamente
normal este tipo de reação, eu
própria nunca soube que algo
semelhante existia até começar a
trabalhar para o JRS Portugal –
Serviço Jesuíta aos Refugiados,
criado em 1980 pelo padre jesuí-
ta Pedro Arrupe (http://www.
jrsportugal.pt).
A nossa missão é infelizmente
intemporal: Acompanhar, Servir
e Defender os direitos dos refu-
giados, migrantes e deslocados à
força do seu país, da sua pátria.
Acompanhava diariamente pes-
soas que são detidas, privadas da
sua liberdade pelo tempo máxi-
mo de 60 dias, pelo facto de não
terem os documentos necessári-
os para entrar em Portugal, são
detidos mediante uma ordem
judicial e entregues ao SEF –
Serviço de Estrangeiros e Fron-
teiras, autoridade responsável
pelo controle das fronteiras.
Trabalhei com pessoas de todos
os continentes, de diferentes
etnias, crenças religiosas, cul-
turais, linguísticas etc. No início
fiquei estonteada com tanta di-
versidade e como conseguiria
chegar até a estas pessoas tão
diferentes umas das outras, tão
assustadas e com tantas pergun-
tas sem respostas à vista.
Mas surpreendentemente me
vi rodeada de pessoas muito
generosas e com tanta necessi-
dade de se expressar e dizer ao
Mundo que apenas querem uma
vida melhor, uma escola para os
filhos, um médico quando estão
doentes e uma cama onde pos-
sam dormir todas as noites – “ai
uma cama só minha..!” Como
tomamos como certo estes priv-
Ver para além do olhar ilégios que são tão banais para
nós, mas tão distantes para tan-
tas pessoas que não têm nada a
que chamar de seu, nem casa,
nem família nem pátria, nem
pai, nem mãe.
Falar sobre a resiliência e a re-
sistência quando trabalhamos
com pessoas que os aconteci-
mentos que vivenciaram ao lon-
go da vida são quase impossíveis
de medir ou qualificar é quase
tão natural como falar em res-
pirar.
Se a resiliência tivesse outro
nome ela seria a história de mui-
tos destes migrantes, que perd-
eram quase tudo aquilo que para
nós seria impossível de suportar
do ponto de vista emocional,
as suas vidas estão rodeadas de
perdas irreparáveis de sofrimen-
tos sem sentido, muito além da
maior parte dos filmes de terror
que já assistimos na televisão.
Mas por algum mecanismo que
não consigo definir, há pessoas
que vão para além das capaci-
dades normais dos seres hu-
manos, a capacidade de acredi-
tar em algo, a vontade, a raiva, a
luta, a coragem de não ser mais
um a passar só por passar, mui-
tos me dizem: - Eu estou vivo
por milagre, já escapei à morte
mais vezes do que me lembro e
isso tem que querer dizer algo,
senti todas as dores: as perdas, o
luto, o fracasso, cheguei até aqui
por algum motivo.
Como conseguimos superar tan-
to sofrimento? Porque alguns
conseguem e outros não? Não
sou de forma alguma uma espe-
cialista em saúde mental, nem
em comportamento humano,
apenas alguém que pretende
dar algum conforto emocional
e material enquanto as pessoas
estão detidas no Centro de De-
tenção. Aquilo que sinto é que
aqueles que sobrevivem não
são aqueles que aparentam ser
mais fortes, mais robustos. Os
que sobrevivem são aqueles que
não se deixaram embrutecer que
ainda acalentam algum sonho
bem escondido, que se deixam
encantar com pequenos nadas,
aqueles que ainda conseguem rir
e fazer rir os outros. Tenho uma
enorme admiração por estas
pessoas, elas ensinam-me todos
os dias o sentido da gratidão e
da humildade perante aquilo
38 39
que humanamente julgamos não
conseguir suportar.
A falta de interesse pelo mundo
e pelos outros é o que nos pode
acontecer de pior, e para mim
aqueles que ainda olham para os
que estão ao seu lado, conseg-
uem sentir compaixão e amiza-
de apesar de todas as tormentas
que passaram, esses sim, são os
mais fortes, os resistentes, os que
acreditam até ao fim.
Se me perguntarem qual o in-
grediente que faz a diferença?
Penso que nunca saberei re-
sponder, existem tantas teorias,
tantos estudos, mas nunca con-
seguiremos saber ao certo o que
nos protege de enlouquecer ou
de resistir no meio do sofrimen-
to, da escuridão e da incerteza
absoluta se vamos viver ou mor-
rer.
Tanta haveria a fazer para que as
pessoas possam aprender com
as experiências dos outros, em
alargar o horizonte para além do
que nos é familiar e educar des-
de muito cedo para os afectos e
não apenas para a competição.
Um exemplo muito claro é o
quadro de mérito para os mais
inteligentes, todas as escolas se
orgulham e fazem uma grande
festa de entrega dos diplomas
para aqueles mais capazes, com
melhores notas nas pautas. Eu
gostava tanto que também hou-
vesse quadros de mérito nas
escolas para os mais solidários,
para os que ajudam os colegas
quando têm mais dificuldades,
para os que desde cedo fazem
voluntariado e ajudam o Mundo
a ser um lugar melhor.
Para mim a educação começa
aqui, em entender que para além
da inteligência é importante
cuidar das emoções, da empa-
tia, da aceitação da diferença e
em aprender que não vivemos
sozinhos, os outros caminham
connosco…que o importante
é que ninguém solte a mão de
ninguém!
Paula Ferreira – Técnica Social
JRS Portugal - Serviço Jesuíta
aos Refugiados
40 41
ABC DA IGUALDADE
Fetichização
Fetichização
A fetichização tem vindo a ser defini-
da como o ato de transformar um
indivíduo num objeto de desejo sex-
ual, tendo por base um aspeto da sua
identidade, removendo a sua huma-
nidade da equação. Esta objetificação
pode afetar as diferentes minorias
sociais, sendo que as dimensões da
identidade que são objetificadas var-
iam. Quando a dimensão se prende
com o corpo, a objetificação tende a
ser conceituada como sexualização.
Para as pessoas racializadas e indí-
genas, em particular, este fenómeno
não é recente. De um ponto de vista
superficial, a fetichização pode apare-
cer como forma de lisonjeio, no en-
tanto, estas “preferências” revelam-se
danosas e reforçadoras de estereóti-
pos raciais, com origem no racismo.
Em certos grupos sociais, a fet-
ichização racial tem sido usada para
justificar a violência nas suas variadas
formas. Durante a colonização e es-
cravidão transatlântica, o corpo fem-
inino racializado foi erotizado pelos/
as colonizadores/as Europeus até à
desumanização da pessoa.
Este posicionamento, de visualizar o
corpo negro como um objeto sexu-
al, facilitou a escravidão forçada e o
abuso perpretado contra as pessoas
racializadas. A hipersexualização
dos corpos negros mantém-se até
aos dias de hoje, especialmente visív-
el no posicionamento social face às
meninas racializadas, cujos corpos
começam a ser sexualizados muito
mais cedo do que o dos seus pares.
O mesmo se pode observar na fre-
quência com que, no sistema judi-
cial dos Estados Unidos da América,
o/a menor racializado/a é julgado/a
como adulto/a, em comparação com
o/a menor caucasiano/a de classe
média/ alta. O corpo “negro” é hiper-
sexualizado e socialmente visto como
“maduro”, comparativamente ao cor-
po “branco”.
A fetichização racial acontece mesmo
entre os membros das comunidades
racializadas, sobretudo na material-
ização da glorificacão do corpo claro
(colorismo), cujas caraterísticas se
aproximam das características cor-
porais Eurocêntricas, desde a cor dos
olhos, até à textura do cabelo.Mas a
fetichização não se prende com as
características étnicas. A fetichização
dos corpos trans e não-binários tem
vindo a ser discutida e explorada,
não só dentro da Queer Theory,
como a nível académico. A forma
mais gritante que toma, é na criação
e consumo da chamada pornografia
trans, frequentemente desenhada e
criada para o consumo de homens cis
e hétero.
No caso da sexualização do corpo
trans, em especial da mulher trans,
a objetificação soma-se ao medo as-
sociado à vulnerabilidade da mulher
trans, e o resultado é a opressão. A
sexualização distingue-se da atração
sexual no sentido em que o objetivo
da primeira é o estabelecimento de
uma relação de poder que subjuga a
pessoa trans, ao poder do normativo
cisgénero.
44 45
SABIAS QUE...?
ONU anunciou a criação de Índice da Juventude na Política
ONU anunciou a criação de
Índice da Juventude na Política
Segundo a ONU News, o obje-
tivo será verificar se os países
estão a criar espaços para a ju-
ventude no setor político. O
Secretário-Geral, António Gu-
terres, pretende que exista um
espaço garantido para os e as
jovens na discussão nas várias
frentes de atuação.
A nível mundial, os e as jovens
estão e continuarão a ser os e
as mais afetadas/os pelas crises
atuais, pelo que a sua presença
na linha da frente das soluções é
essencial. Segundo António Gu-
terres, a pandemia de Covid-19,
a mudança climática, a divisão
digital, os conflitos, a discrim-
inação e a queda da confiança,
carecem das vozes jovens, que se
devem erguer nas ruas e online,
defendendo, não só a justiça
climática, como a igualdade de
género e a justiça racial e socio-
económica.
Nos últimos tempos, a juventude
mundial tem vindo a exigir a
sua inclusão na política, ao que
o Secretário-Geral respondeu
positivamente com a criação do
Índice da Juventude na Políti-
ca. Nas palavras de António
Guterres, as pessoas jovens
mostram-se “agentes poderosos
para a mudança”. Neste sentido,
foram produzidos dois docu-
mentos que serão
implementados: um guia para os
Estados-membros operacional-
izarem a Agenda de Juventude,
Paz e Segurança, e uma estraté-
gia de cinco anos sobre Proces-
sos de Paz Inclusivos à Juven-
tude.
48
ESPAÇO CULTURAL
Sugestão Cultural: MAID
Apresentação do Projeto Kriarte
Quantas pessoas não se recon-
hecerão naquilo que são os
seus armários? Hoje o armário
poderá ser de outra textura e até
ser de outro tamanho, mas será
sempre o mesmo onde nos es-
condemos pela primeira vez.
Maid fala-nos de violência, fa-
la-nos da brutalidade, da vida
crua, da ansiedade, do medo, da
imprevisibilidade, mesmo quan-
do esta se mostre previsível.
Numa série acerca de Violên-
cia Doméstica a possibilidade
de falhar e ser-se negligente
é enorme, por isso Maid sur-
preende tanto pela positiva. Um
enredo reflexivo, elaborado, que
fugiu às facilidades e, quanto
possível, aos clichês. Maid faz-
nos respirar o peso do ar gélido
insalubre que nos envenena as
entranhas, e sentir a leveza das
respirações fundas nos interva-
los das permanências do medo.
A série comprova o que tantas
pessoas precisam de ver para
que se desconstruam os seus
estereótipos e preconceitos: o
sistema e a sociedade a falhar
em complô, expondo a reviti-
mização constante da vítima, e o
ciclo da violência a movimento.
Maid torna-se crucial em vári-
os pontos de relevância acer-
ca da Violência Doméstica, o
primeiro será a invisibilidade da
violência psicológica. Na série
é retratada a brutalidade, a di-
mensão da violência dos abusos
emocionais, e a forma profunda
como impactam e condicionam
a vida das vítimas ao medo, à
ansiedade, à dissociação iden-
titária e a traumas permanentes.
Na série, a violência financeira
aparece como cúmplice da vi-
olência psicológica que determi-
na a vítima enquanto refém na
sua própria casa. É importante
MAID
referir que a violência financei-
ra ocorre em muitos contornos
distintos, e que também pessoas
com elevados rendimentos são
vítimas de violência financeira.
O segundo ponto que torna a
série crucial é a forma como a
narrativa retrata o ciclo da vi-
olência. Quando somos apre-
sentados/as ao ciclo da violência
desta forma, a todos os seus es-
tágios, desde o primeiro mo-
mento, da primeira violência
ao desânimo aprendido, entre
idas e regressos, quando somos
introduzidos/as às histórias
para além da súmula dos factos,
acredito que todos os preconcei-
tos são desmantelados, porque
torna também para o/a especta-
dor/a perceptível o porquê das
vítimas regressarem ou perman-
ecerem em relações de violência.
Maid acaba, também, por con-
firmar os perigos de padronizar,
padronizar a
violência, a vítima e a pessoa
agressora. A padronização in-
visibiliza e invalida outras re-
alidades, impedindo muitas
vezes a pessoa de se reconhecer
no papel de vítima, não recon-
hecendo ou conferindo validade
à violência, neste caso, vivida
na sua relação. Quando a vítima
não se reconhece nesse papel,
existem muitas mais restrições a
um pedido de ajuda.
Vale a pena explicar que a Vi-
olência Doméstica é, infeliz-
mente, um fenómeno transversal
e com uma enorme amplitude
de especificidades. Para en-
tendermos isso é necessário ir
além do paradigma heterocis-
normativos, e etnocêntrico em
que muitas vezes vivemos. A
VD pode constituir-se enquan-
to fenómeno de vitimações in-
terseccionais, como no caso de
vítimas LGBTI+, imigrantes,
vítimas percepcionadas como
minorias étnico-culturais, viti-
mas racializadas. Não existem,
também, padrões fixos ou rig-
orosos quanto aos rendimentos,
“classe social” ou educação, e é
importante que tenhamos isso
inscrito enquanto cidadãs e ci-
dadãos, pois faz parte da nossa
responsabilidade estarmos aten-
tas/os, uma vez que a Violência
Doméstica constituiu um crime
público.
Maid coloca-nos ainda a perspe-
tiva das crianças enquanto víti-
52 53
mas das relações de violência,
sendo desta forma também elas
vítimas de Violência Doméstica.
É importante salientar que a VD
não é um fenómeno exclusivo de
relações de intimidade, grande
parte das vítimas de VD LGB-
TI+, por exemplo, são vítimas de
violência pela própria família.
Desta forma, Maid, abre-nos
o experto, desmantela o nosso
paradigma e deixa-nos visionar
um outro, onde somos engoli-
das/os pelas falhas do sistema
e da sociedade, que não floreia
ilusões, mas que nos faz sentir
que há esperança, que as leis e
as estruturas estão a mudar. Que
não se duvide que as estruturas
são hoje mais capazes, e que
estamos a percorrer um camin-
ho para que os novos começos
tenham uma rede de suporte
de confiança, que trabalha para
que as soluções não se assemel-
ham, como é descrito na série, a
“unicórnios” entre as burocra-
cias.
Existem hoje várias associações
e organizações a que podemos
recorrer, a Plano i é um exemp-
lo de uma associação que abriu
o experto, e que está atenta a
todas as necessidades e especifi-
cidades, que nos prova todos os
dias que ninguém ficará esque-
cido/a nos seus armários.
Maid é sobretudo uma história
real, de uma sobrevivente, de
uma força invicta de superação.
Uma realidade que desmantela
os facilitismos, mas que per-
petua a esperança. Saibam que
é sempre tempo de recomeçar,
que nunca é tarde, e que nun-
ca se desista. Kintsugi, para
mim é uma metáfora valiosa
para a vida. Kintsugi é uma arte
japonesa que repara peças com
ouro, e que me recorda que não
importa quantos danos a vida
nos tenha provocado, podemos
sempre repara-los, não os igno-
rando, mas fazendo deles a arte
da nossa resistência.
Minissérie: Maid
Ano: 2021
Episódios: 10 | 50 minutos
Criadora: Molly Smith Metzler
Plataforma: Netflix
55
O KRIARTE é um projeto que
se foca na educação musical
e de expressão dramática das
faixas etárias mais jovens. Que
começou a ser desenvolvido em
Dezembro do ano passado e vai
ser posto em prática
agora nos meses de Maio, Junho
e Julho na ilha de Santo Antão,
Cabo Verde. O nome é uma mis-
celânea de conceitos que fizeram
sentido para nós, são eles krio-
lo, criança, arte, criar de criação
artística e criar de educar.
Começámos como voluntárias
na associação Sementera Kri-
ativ em parceria com a Para
Onde? num projeto que se fo-
cava também na educação e
desenvolvimento por via artísti-
ca e cultural, só que em vários
setores populacionais. Durante
esta temporada que passámos
em Cabo Verde conseguimos
conhecer a comunidade, a sua
magia e as suas imensas vir-
tudes, mas também fomos con-
frontadas com alguns problemas
que nos deram vontade de agir.
Sendo um deles a falta de edu-
cação artística no programa de
ensino, um tema que nos é mui-
to próximo pois ambas temos
formação e uma ligação enorme
com as áreas da música e do te-
atro e sabemos bem a falta que
elas fazem no desenvolvimento,
principalmente durante a infân-
cia e a adolescência.
Os benefícios do contacto com
as artes são imensos e
insubstituíveis em qualquer
idade. E durante a fase mais pre-
coce da vida ainda mais, pois
trabalham todo o tipo de com-
petências, cognitivas, afetivas,
sociais e motoras, a capacidade
de foco e atenção, de raciocínio
lógico e abstrato, a canalização
de emoções pela expressão, entre
tantas outras competências. Em
suma, torna-nos pessoas mais
capazes e mais empáticas.
Em concreto, o projeto con-
siste em tentar levar ao máximo
número de crianças possível
KRIARTE
uma aula de introdução a es-
tas duas artes, só por si um fim
mas também um processo para
captar a sua curiosidade para
as atividades que vamos desen-
volver com as escolas em regime
extra-curricular e para o nos-
so campo de férias artístico de
verão que terá como objetivo a
criação de um teatro musical.
De momento, estamos em
preparação e planeamento, a
começar a publicitação nas redes
sociais, no instagram e facebook
com o @ kriarte.cv. Para nos
contactar, pode ser por qualquer
uma destas vias ou pelo nosso
email: kriarte.sintonton@gmail.
com. Brevemente vamos pub-
licar mais informações sobre o
projeto e sobre como ajudar.
Por fim, gostávamos de agrade-
cer à Revista Insubmissa pelo
interesse neste projeto que é tão
importante para nós e pela ajuda
tão essencial na sua divulgação.
O trabalho que fazem é
admirável!
Muito obrigada a todos!
As fundadoras,
Inês Costa e Joana Marques
56 57
EXPOSIÇÃO
FOTOGRÁFICA
CLARA (artista e obra)
CLARA
Clara. Se a Clara tivesse que se descrever diria que é “só uma pessoa”, e isso tem a
sua beleza. A Clara é uma pessoa, mas é uma pessoa com todo o valor que isso de
ser gente tem. Já muitas foram as vezes que lhe disse que tudo o que toca transfor-
ma-se em arte, desde o seu primeiro quadro em que parecia pintar desde sempre,
às peças que cria não sei bem como nem bem com o quê, mas que acabam por se
tornar em bonitas obras. A Clara não tem uma definição, ou uma descrição, porque
abandonou o que precisa de encaixe.
Clara. A Clara é muitas coisas, a Clara tem muitas formas e, acima de tudo a Clara é
muitas artes. E que bom é ser-se muito, que bom é ser-se arte. @quelara__
BIBLIOGRAFIA
FICHA
TÉCNICA
Bibliografia
Anzani A, Lindley L, Tognasso G, Galupo MP, Prunas A. “Being Talked to Like I Was a Sex
Toy, Like Being Transgender Was Simply for the Enjoyment of Someone Else”: Fetishiza-
tion and Sexualization of Transgender and Nonbinary Individuals. Arch Sex Behav. 2021
Apr;50(3):897-911. doi: 10.1007/s10508-021-01935-8. Epub 2021 Mar 24. PMID: 33763803;
PMCID: PMC8035091.
Asare, J. G. (2021, December 10). What Is Fetishization And How Does It Contribute To
Racism? Forbes. Retrieved January 26, 2022, from https://www.forbes.com/sites/janice-
gassam/2021/02/07/what-is-fetishization-and-how-does-it-contribute-to-racism/?sh=1a-
99fa256e39
Ficha Técnica
Equipa insubmissa:
Ana Sofia Figueiredo
Mariana Reis
Mel Tavares Almeida
Sheila Góis Habib
Teresa Ramos de Sá
Tex Silva
Paulo Lopes
Vânia Alves
Revisão de conteúdos:
Paula Allen
Design:
Clara Santos
Créditos:
Angela Roma
Elina Araja
Anna Shvets
Cottonbro
Dids
Wendy Wei
Clara Santos
E
L
Z
A
O
A
R
E
“Precisamos ter consciência
de que muitas mulheres
morreram para que
pudéssemos ficar vivas,
termos liberdade de escolher
e fazer o que quisermos.”
“Eu sou só um ser humano,
de carne e osso sofridos. Não
me sinto a mulher mais
poderosa do mundo. Sinto
que sou, talvez, a que pisa
mais forte no chão – isso,
sim. Pra ter certeza de que
estou viva!”
“As mulheres não se apoiam.
Falta mulher na política. Eu
tenho tanta vontade de vê-las
de mãos dadas, se ajudando.
E minha luta, além de ser
pelos negros e pelas
mulheres, sempre foi
pelos gays. Alguns tratam os
homossexuais como se não
fossem um pedaço de nós.
Eu sou todos eles.”
“Meu choro não é nada além
de carnaval
É lágrima de samba na
ponta dos pés”
“Não tenho medo da morte porque
acho que não vou morrer. Vou virar
purpurina.”
Esta edição é em memória de Elza Soares 1930-2022

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A luta pela igualdade e os novos começos

  • 2. “A gente é criada para ser assim, mas temos que mudar. Precisamos ser criadas para a liberdade. O mundo é grande demais para não sermos quem a gente é.” Elza Soares
  • 3. EDITORIAL Sempre fui “aquela das lutas”. Recordo-me de ser ainda uma cri- ança a tentar entender o mundo, e questionar porque é que diziam que eu era “um cidadão”. Se eu era uma menina, deveria ser “uma cidadã”. Espanto foi o meu quando o meu pai não soube justificar para além de dizer “porque é assim que se diz”. Também questionei o meu pai o porquê de dizerem na escola que “o Homem descobriu o fogo”. Como é que sabem que foi um homem e não uma mulher? E porque é que uti- lizamos homem com H grande para nos referir à humanidade? Porque é que mesmo estando numa sala com muitas meninas e apenas um men- ino, usam o plural no masculino para se referir a nós? Hoje percebo que a luta pela igual- dade sempre me pertenceu. Esta ân- sia de potenciar a mudança e acred- itar que vou fazer parte dela nunca me abandonou. Fui e continuo a ser “aquela das lutas”, ocasional- mente acompanhada por olhares de desdém, murmúrios e uns quantos sermões. Afinal, porque é que eu, uma mulher, vejo e denuncio estas micro desigualdades culturalmente aceites que silenciam a mulher na sociedade? Devia era estar calada e consentir. Acabou por ser um percurso um pouco solitário, ser “aquela das lu- tas” mesmo quando as pessoas que me rodeavam viam isso como algo negativo. Porém, em 2017, quando entrei em criminologia no ISMAI, o meu percurso cruzou-se com o da Sofia Neves que veio a ser ver- dadeiramente e derradeiramente “aquela das lutas”. Fiquei deslum- brada ao encontrar uma mulher a falar de forma tão poderosa sobre as desigualdades presentes na nossa sociedade sem nunca pedir descul- pa pelo incómodo ou remeter-se ao silêncio. Assim que descobri a Plano i, com- ecei a idealizar um dia poder fazer parte desta associação. E assim foi. Três anos depois, criaram o Grupo de Jovens Promotor da Igualdade e da Saúde, do qual sou represent- ante. Foi uma sensação incrível perceber que existem mais pessoas das lutas. Pessoas com a mesma de- terminação e vontades que eu, e que não pedem desculpa por serem das lutas. Afinal não é algo mau. Recentemente fui convidada para fazer parte da direção da Plano i, juntamente com a Sofia Neves, a Paula Allen e a Mafalda Ferreira. Outras mulheres que também são das lutas. É um orgulho enorme pertencer a esta associação, estar junto destas pessoas que fazem o impossível todos os dias. Pessoas que lutam para ajudar quem mais precisa. O ano de 2021 foi, definitivamente, repleto de começos marcantes. Começos com pessoas idênticas a mim, com a mesma perseverança, com os mesmos valores e com as mesmas ambições. Pessoas das lu- tas. E é isto que importa. Encontrar- mos o sítio onde pertencemos, com as pessoas que constantemente nos motivam a ir mais longe. Telma Portela
  • 4. 10 14 18 26 30 44 48 52 60 66 Í N D I C E Organograma Plano i Os rostos por detrás da Plano i -Apresentação de Telma Portela Projetos Plano i -Apresentação do projeto No Label -Apresentação da linha SOS Suicídio: Serviço de Prevenção do Suícidio -Bairros Sem Bullying Entidade Parceira -Apresentação do projeto Boomerang Lugar de Fala -Carta anónima de uma ex-vítima de Violência Doméstica -Novos começos -Ver para além do olhar ABC da Igualdade -Fetichização Sabias que...? -A ONU anunciou a criação de Índice da Juventude na Política Espaço Cultural -Apresentação do Projeto Kriarte -Sugestão Cultural: MAID Exposição Fotográfica -CLARA (artista e obra) Bibliografia e Ficha Técnica
  • 6. Mafalda Ferreira Sofia Neves Telma Portela Dora Pinto Paula Allen 10 11
  • 7. OS ROSTOS POR DETRÁS DA PLANO I Apresentação de Telma Portela
  • 8. Telma PortelaTelma Portela é licenciada em Criminologia pela Universidade da Maia (ISMAI) e mestranda em Criminologia na Faculdade de Direito da Universidade do Porto (FDUP). A sua principal área de interesse está relacionada com as causas LGBTI+, estando a desenvolver a sua tese nesse sentido. Iniciou o seu percurso na Associação Plano i fazendo parte do Grupo de Jovens Promotores da Igualdade e da Saúde do qual é representante. Para além desse papel, auxilia também na gestão das redes sociais da Associação.
  • 9. PROJETOS PLANO I Apresentação do projeto No Label Apresentação da linha SOS Suicídio: Serviço de Prevenção do Suícidio Bairros Sem Bullying
  • 10. No passado 10 de dezembro de 2021 nasceu de um sonho o mais recente projeto do Grupo de Jovens da Associação Plano i. Sem rótulos, sustentável, igual e livre são palavras que o definem, e não é por acaso. Apresentamos a No Label. De nome e princípio, a No Label nasceu de uma vontade invicta de alcançar uma verdadeira mu- dança social e lutar ferozmente pela implementação plena dos Direitos Humanos. Para tal, a No Label formou um comprom- isso claro de acolher e dar visibilidade aos rostos, identidades e vozes esquecidas pela sociedade. Aliando a esta parceria o amor pela arte, e pela expressão de sentimentos e vivências da for- ma mais pura e variada. O objetivo é materializar as ex- periências, retirando um rendi- mento das mesmas, e tornando as pessoas em verdadeiras gale- rias vivas na luta pelos Direitos Humanos. A No Label une por isso a arte e a sociedade, a cultura e o amor, a construção e a desconstrução. Não é uma empresa, mas uma forma criativa, consciente e im- pactante de angariar fundos para as causas abraçadas pela Asso- ciação Plano i (como o Centro Gis, Casa Arco-Íris e Plano 3C) e retirar um rendimento para as pessoas artistas que embarcarem connosco nesta viagem. Assim é a No Label. Conhece mais através do instagram @nolabel.planoi No Label 18 19
  • 11. SOS Suicídio A Plano i, estando consciente da existência de outros recursos e entidades, e não se estando a substituir aos mesmos, considerou prioritário criar um serviço destinado a combater e prevenir o suicídio nas crianças e jovens. Trata-se de um serviço de apoio e encaminhamento efetuado por profissionais especializados/as e com cédula profissional. Não criámos este serviço com nenhum apoio ou financiamento, nem é isso que procuramos, criámos para podermos ser mais um recurso para crianças e jovens que sentem que estão sozinhas/as. Não estão sozinhas/os. Estamos aqui! 20
  • 12. Dia Escolar da Não Violência e da Paz “Em comemoração do Dia Escolar da Não Violência e da Paz, o projeto Bairros SEM Bullying gostaria de deixar uma mensagem para ti, que vês o bullying a acontecer ao teu lado, que observas aquela colega a ser gozada pelo corte de cabelo que usa ou a ser insultada por usar uma saia curta. Esta mensagem é para ti, que vês o teu colega a ser insultado nas redes sociais por gostar de maquilhagem e não de desporto. Sabias que podes contribuir para acabar com este ciclo de violência? Denuncia, fala com o pessoal docente da tua escola, com a tua família, com alguém em quem confies. Não compactues com situações de bullying. Compac- tua com o seu término.” 22
  • 14. O projeto Boomerang - Estudo sobre as perceções do impacto económico da partilha desigual do trabalho não pago nas vidas de mulheres e homens imigrantes em Portugal, coordenado pela Prof. Doutora Estefânia Silva, é um projeto que se enquadra no Programa Conciliação e Igualdade de Género, financiado pelo Mecanismo Financeiro do Espaço Económico Europeu- EEA Grants, sendo a Comissão para a Cidadania e a Igualdade de Género a entidade operadora e o Instituto Superior de Ciências Sociais e Políticas da Universidade de Lisboa (ISCSP-ULisboa) a entidade promotora. Considerando a expressividade e a complexidade dos fluxos migratórios dos últimos anos, o Boomerang tem como objetivo principal caracterizar as perceções de mulheres e homens imigrantes em Portugal sobre o impacto económico da partilha desigual do trabalho não pago e do divórcio com o intuito de analisar os seus efeitos do ponto de vista da conciliação pessoal, familiar e profissional. O projeto terá a duração de 18 meses e conta com a parceria das seguintes organizações não governamentais e universidades: Associação Plano i, SOS Racismo, Cruz Vermelha Portuguesa – Delegação de Braga, Universidade da Maia, Universidade Aberta e Odalnaeringshage. Está, atualmente, em fase de acolhimento de novas parcerias com associações de imigrantes. A sua implementação será feita em grupo, num formato de entrevista, e individualmente a partir do preenchimento de um inquérito. Para participar no Boomerang é necessário ser técnico/a que trabalha diretamente com população imigrante, ser imigrante em Portugal, ter nacionalidade brasileira, Boomerang cabo-verdiana ou ucraniana, ter 18 anos ou mais, estar a residir no país há pelo menos 1 ano e ter, ou ter tido no passado, uma relação de intimidade. Todos os quesitos éticos, nomeadamente os que dizem respeito à confidencialidade e ao anonimato, estão garantidos pela equipa de investigação. Pretende-se que os resultados do projeto aumentem o conhecimento acerca da situação das mulheres e homens imigrantes em Portugal, contribuam para uma melhoria das suas condições de vida e promovam a igualdade de género entre os tempos afetos ao trabalho pago e não pago. Assim, se tiver interesse em participar neste projeto, poderá contactar-nos através do email boomerang@iscsp.ulisboa.pt ou das nossas redes sociais. Muito agradecemos a vossa participação, divulgação e partilha junto de outros/as potenciais interessados/as. Venha fazer parte do conhecimento e da mudança! Entidades parceiras: Operador do programa: Promotores: Financiado por: 26 27
  • 15. LUGAR DE FALA Carta anónima de uma ex-vítima de violência doméstica Novos Começos Ver para além do olhar
  • 16. Bem, após a milésima tentativa de escrita, parece que chegou o momento… Devo dizer que, quando me can- didatei para escrever esta carta, não pensei que seria tão difícil. É toda uma mistura de emoções e falta de palavras adequadas para me exprimir. Está há dema- siado tempo enterrado dentro de mim. Já repararam que o ser humano tem uma mania muito engraça- da de oprimir os sentimentos menos bons? Mas bem, hoje é o dia em que me levanto para gritar por todas as vítimas de Violência Domésti- ca, desde as que já não estão cá, às que precisam de uma força para se levantarem também e, por isso, escrevo esta carta, a minha carta de esperança para vocês. No final de 2015 estava a começar uma relação que se veio a revelar um ciclo que parecia não ter fim. Em 2018 estava a denunciá-lo por agressão física e psicológica. Segundo o relatório, eu estava numa relação de risco elevado. Porém, devo admitir que me sentia culpada por estar a fazer a denúncia. É como uma lavagem ao cérebro onde tudo o que vemos é aque- la pessoa, se vai gostar do que fizemos, se vai ficar zangado/a, se vai ter um ataque de raiva. É ter cuidado no mais mínimo pormenor porque se não estiver da forma como ele/a quer, nós vamos sofrer as consequências. É desculpar tudo porque “a cul- pa foi nossa” e porque não temos mais ninguém. A violência afeta tanto, que, por vezes, parece mais fácil man- termo-nos num relacionamen- to em que não estamos felizes, eu sei…, mas devo dizer, como pessoa que sobreviveu, que há todo um mundo enorme e belo à vossa espera. Inicialmente, achei que não ia aguentar, não tinha amigos, tive que começar tudo do zero, mas a sensação de liberdade era tão Carta anónima de uma ex-vítima de Violência Doméstica grande que me fez querer con- tinuar. Com o tempo, conheci pessoas novas e fiz amizades para a vida, acabei a licencia- tura, comecei a trabalhar e até entrei num relacionamento no qual sou bastante feliz. Não vou mentir, foi uma grande batal- ha e bastantes noites de choro, nem tudo são rosas, mas tudo ameniza com o tempo, especial- mente a dor. Hoje em dia, quando olho para trás, apesar de ainda haver um pouco daquela menina pequena e insegura em mim, devo dizer que estou muito orgulhosa da pessoa na qual me tornei. Para ti, para mim e para todas as outras pessoas, há esperança. 30 31
  • 17. Uma expressão vacante sempre esteve presente na minha cara, era algo comum quando era mais nova, onde as pessoas ol- havam para mim e diziam que eu não era normal porque não sorria e que era meia “abichana- da” ou quando outras diziam era obvio que não tinha muito amor na minha vida e que tinha de ultrapassar o trauma e etc., mas que a única coisa que faziam era desaparecer depois de me usar e/ ou obter o que queriam de mim e acrescentar mais bagagem para cima, bagagem esta que sempre tive comigo cada vez que tinha que recomeçar de novo. Nasci no Porto em 86, e vivi aqui até quase os nove anos, nesses nove anos a minha realidade era uma realidade de pobreza, de miséria, de droga, de abuso de todo o tipo, os meus pais não eram boas pessoas, eram tudo de errado que pode acontecer com um ser humano e sabendo o que sei agora sobre tudo o que ac- onteceu posso dizer que foi um milagre ter sobrevivido ás coisas que aconteceram nesse período da minha vida. Ironicamente uma das pessoas que acabei por apresentar queixa de violên- cia doméstica foi a pessoa que me removeu desse ambiente, a minha avó, ela era muito católi- ca, muito da velha guarda, muito conservadora e era de ignorar o problema de modo a conservar as aparências, mas mesmo assim ela viu o desastre de vida que a minha mãe era responsável e decidiu tirar-me de lá e levar-me para casa dela em Oliveira de Azeméis. De certa forma foi o meu primeiro recomeço, era algo novo, mas num sítio onde ainda se vivia no passado e com o pas- sar do tempo, dos anos, eu via cada vez mais o quanto aquela gente vivia no passado, o pessoal mais idoso estava sempre a dizer quando era o tempo do Salazar havia respeito e não havia pan- eleiros e cenas e etc., e também que deviam ser todos espanca- dos quem não acreditava em deus para meter medo, de modo a parar com toda a pouca verg- onha da vida moderna porque Novos começos antigamente é que era bom e não havia nada destas modern- ices….e cenas. Posso dizer tendo vivido lá des- de os 9 anos até aos 28 que tudo isso era treta, eu testemunhei a pior merda corrupta que al- guém pode testemunhar, desde corrupção, consumo de drogas, abuso de todos os tipos especial- mente por parte de quem tinha poder lá ou seja, a ordem natu- ral das coisas, a verdadeira or- dem das coisas, como era desde o tempo do Salazar, como eram e sempre foram, e provavel- mente sempre seriam, mas com uma capa de conservadorismo religioso e tradições bonitas, tradições que quebraram a mim e a todas as pessoas que foram mastigadas por esses sistemas de poder. Todos e todas engolidas pela máquina e processadas para ser um produto bonito e tradi- cional o que era mau para mim porque sempre fui um produto com defeito para aquela gente toda. Eu costumava olhar para o céu e imaginar como a minha vida seria se pudesse simples- mente sair, algo que naquela altura era aparentemente im- possível, mas que ironicamente começou a manifestar-se após ter começado uma transição enquanto ainda residia naquela cidade em segredo, uma tran- sição que era o resultado de algo que tive de esconder a vida toda, que se eu não tivesse começado naquela altura eu muito provav- elmente teria acabado com tudo…ou seja eu já não tinha nada a perder e iria recomeçar de novo após sem pensar duas vezes e sem planear nada de todo. Ironicamente eu e a minha avó fomos expulsas pelo senhorio da casa nessa altura e tínhamos que ir para outro sitio, e aca- bámos por ir para São João da Madeira a 10km de distância, ou seja mais um começo, estive lá durante quase quatro anos onde levei com tudo o que uma pes- soa trans poderia levar durante a sua transição mas notei que hav- ia cada vez mais pessoas a tratar- me bem devido ao fato de eu ter uma aparência passável, mas que cuja intenção desta gente era obvia, o que me fez sentir na pele ainda mais a discrim- inação sexista e classista que a 32 33
  • 18. sociedade portuguesa tem em relação aos papeis dos homens e das mulheres na sociedade, onde um homem de baixa casta social tem que se desenrascar e nem merece empatia ou aju- da dos outros porque tem que ser homem e cenas, onde um homem com maior afluência social tem que ter a aparência e comportamento normativo e ser homem com h grande e ser um “doutor” ou “engenheiro”, onde uma mulher de baixa cas- ta é usada ao longo da sua vida e tem que se calar pois senão é uma meretriz sem vergonha e sem decência alguma porque mulher boa para aquela gente leva e cala-se, e onde uma mul- her de classe social mais elevada tem que ser a menina perfeita e virginal para um dia ser bem sucedida e ter a família perfeita com o homem perfeito ao seu lado…e tudo pelo meio é es- quecido e deitado fora pois não tem uso neste sistema rígido e binário e mais uma vez tipica- mente português. Mas eu aguen- tei porque tinha que aguentar, não possuía alternativa, mas os abusos e ameaças de violência estavam mais uma vez cada vez mais presentes, não havia um único dia que não ouvisse um paneleiro isto, um paneleiro aquilo, ser dito na minha di- reção pá esquerda e pá direita, e a minha saúde estava cada vez mais a deteriorar como resulta- do disso. Tive de pedir ajuda para sair de lá, e ainda bem que fiz isto porque senão eu posso garantir com 100% de certeza que se tivesse ficado lá eu já es- taria morta hoje. Eu já era utente do Centro Gis há um tempo e já há um ano antes de ter pedido ajuda me diziam que eu era vítima e que tinha o direito de pedir ajuda e etc.., mas como podem já ter uma noção, eu não queria de- sistir e queria ver se conseguia resolver as coisas por mim, mas falhei…e mais um pouco de tempo e isso me teria custado a vida…por isso tive de engolir o sapo, deitar o orgulho de lado e pedir ajuda, e ajuda recebi. Dois meses depois de ter pedido aju- da, fui para a casa arco iris, mas nesses dois meses antes de ir, eu me despedi do meu emprego em São João da Madeira e pus a coisas em dia para que ninguém suspeitasse de nada nem soubes- sem para onde iria de modo a assegurar a minha proteção e um novo começo. Mas como sempre algo de estupido acon- tece, o mundo estava a perder a estribeiras devido ao covid-19 e mudei de vida em plena pan- demia sem saber mais uma vez o que esperar ou o que me iria sair na rifa. Muitas pessoas passam pela casa arco iris e por outras estruturas de apoio, mas uma constante é que quase todas as pessoas que entram nestas estruturas rara- mente estão bem e não são mui- to funcionais devido ao abuso, mas mesmo assim era melhor do que estar no outro sítio e a primeira noite que estive lá na casa arco iris, foi a primei- ra noite em anos que consegui dormir sem interrupções e sem gritaria…foi diferente. O tempo na casa não foi fácil porque dev- ido ao covid as coisas ficaram paradas e ninguém sabia o que iria acontecer, mas tratavam-me como uma pessoa e não como um produto defeituoso, o que mais uma vez, era diferente do que tinha vivido. Eventualmente saí e fui para a 3C e mais uma vez havia confinamentos, mas para mim não interessava pois pela primeira vez em anos volt- ei a estudar, nesse tempo que estive na 3C tirei um curso téc- nico de nível 5 online de modo a ter mais hipóteses de me pu- der desenrascar no mercado de trabalho e ser mais empregável porque aprendi que se uma pes- soa não se mexe é deixada para trás uma vez que a vida não para. E mais uma vez as coisas mudar- am, agora finalmente após anos de abuso constante, passar pelas estruturas e acabar um curso, mais todas as dificuldades à mis- tura, tenho casa própria onde tudo que está dentro desta foi adquirido com o meu dinheiro produto do meu esforço, escol- ha e trabalho constante. Um novo começo, onde ninguém me controla ou me diz o que fazer, ou se sou isto ou aquilo, final- mente estou bem, finalmente estou livre para viver a minha vida. Tive muita sorte, mesmo muita, porque as coisas nunca foram boas para pessoas como 34 35
  • 19. eu e apesar do constante abuso consegui sempre adaptar-me e sobreviver as circunstâncias do que a vida despejava em mim. Mas sobrevivi e fiz algo disso, mas tenho consciência e ex- emplos que isso nem sempre é assim, já perdemos demasiadas pessoas na nossa comunidade, pessoas que nunca tiveram o luxo de um novo começo e nesse aspeto tive mesmo muita sorte porque tive vários começos, várias vidas e finalmente posso ser eu própria graças a isso. Mas é lixado quando temos um sistema que diz á maior parte das vitimas de violência domes- tica que o caso foi arquivado por falta de provas, um sistema que parece que está mais pre- ocupado com o bem estar e a liberdade dos agressores do que a nossa, um sistema que não preocupa com pessoas que nun- ca tiveram uma hipótese e que foram quebradas de vez e onde muitas destas se transformaram em agressores devido ao abuso, onde foram quebradas de vez pela sociedade, e que nunca ti- veram direito a um recomeço. É quase um motivo de vergonha que o estado delega a nossa proteção a associações, mas ao menos é algo, e é um algo que devemos proteger e ajudar o máximo possível para que mais pessoas como eu possam ter um novo começo, mesmo que seja difícil. Há razões por que muitas pessoas na nossa comunidade cometem suicídio ou que apa- rentam ser um estereotipo am- bulante mas a principal razão para isso, na minha opinião, é que não possuem recursos para recomeçar ou ter uma vida dig- na e devemos ajudar o máximo possível para que este paradig- ma mude, mas também deve ser dito que tudo começa e acaba com o individuo e para alguém mudar tem que decidir isso, tal como eu e muitas pessoas que passaram pelas estruturas de apoio fizeram, quem quer um novo começo não deve ter medo da mudança mas sim abraçá-la e aceitá-la porque a alternativa é vastamente pior. Tudo na vida muda, a vida é im- permanente, tudo se transforma em algo, até nós e quem con- segue sobreviver o tempo sufi- ciente consegue ver coisas boas a acontecer, mas nem sempre muda para melhor e o que quero dizer com isto é que a vida vai mudar com ou sem nós, agora se queremos um novo começo, um começo bom, então deve- mos decidir mudar as coisas na direção que queremos e lutar, e se tivermos que pedir ajuda que seja, se tivermos que mudar algo em nós então que seja, na vida nem sempre temos escolha mas quando temos devemos sempre tomar uma decisão e agir. Voltei para o Porto e a minha expressão já não é tão vacante na minha cara como era e agora fi- nalmente consigo viver, ser livre, só tive que decidir e viver isso ao longo do caminho. Eris Teixeira Carvalho 36 37
  • 20. O meu nome é Paula Ferreira, sou mediadora municipal e in- tercultural que exerci durante 3 anos a função de técnica psicos- social num “Centro Detenção para Imigrantes Irregulares” toda a gente me perguntava - mas o que é isso? Isso existe? Nunca ouvi falar…! Foi desconcertante pensar que trabalhamos numa espécie de ilha deserta sem ninguém saber onde fica, uma espécie de cu- riosidade e desdém como se trabalhássemos em algo que ninguém sabe ao certo se existe de facto. Mas é perfeitamente normal este tipo de reação, eu própria nunca soube que algo semelhante existia até começar a trabalhar para o JRS Portugal – Serviço Jesuíta aos Refugiados, criado em 1980 pelo padre jesuí- ta Pedro Arrupe (http://www. jrsportugal.pt). A nossa missão é infelizmente intemporal: Acompanhar, Servir e Defender os direitos dos refu- giados, migrantes e deslocados à força do seu país, da sua pátria. Acompanhava diariamente pes- soas que são detidas, privadas da sua liberdade pelo tempo máxi- mo de 60 dias, pelo facto de não terem os documentos necessári- os para entrar em Portugal, são detidos mediante uma ordem judicial e entregues ao SEF – Serviço de Estrangeiros e Fron- teiras, autoridade responsável pelo controle das fronteiras. Trabalhei com pessoas de todos os continentes, de diferentes etnias, crenças religiosas, cul- turais, linguísticas etc. No início fiquei estonteada com tanta di- versidade e como conseguiria chegar até a estas pessoas tão diferentes umas das outras, tão assustadas e com tantas pergun- tas sem respostas à vista. Mas surpreendentemente me vi rodeada de pessoas muito generosas e com tanta necessi- dade de se expressar e dizer ao Mundo que apenas querem uma vida melhor, uma escola para os filhos, um médico quando estão doentes e uma cama onde pos- sam dormir todas as noites – “ai uma cama só minha..!” Como tomamos como certo estes priv- Ver para além do olhar ilégios que são tão banais para nós, mas tão distantes para tan- tas pessoas que não têm nada a que chamar de seu, nem casa, nem família nem pátria, nem pai, nem mãe. Falar sobre a resiliência e a re- sistência quando trabalhamos com pessoas que os aconteci- mentos que vivenciaram ao lon- go da vida são quase impossíveis de medir ou qualificar é quase tão natural como falar em res- pirar. Se a resiliência tivesse outro nome ela seria a história de mui- tos destes migrantes, que perd- eram quase tudo aquilo que para nós seria impossível de suportar do ponto de vista emocional, as suas vidas estão rodeadas de perdas irreparáveis de sofrimen- tos sem sentido, muito além da maior parte dos filmes de terror que já assistimos na televisão. Mas por algum mecanismo que não consigo definir, há pessoas que vão para além das capaci- dades normais dos seres hu- manos, a capacidade de acredi- tar em algo, a vontade, a raiva, a luta, a coragem de não ser mais um a passar só por passar, mui- tos me dizem: - Eu estou vivo por milagre, já escapei à morte mais vezes do que me lembro e isso tem que querer dizer algo, senti todas as dores: as perdas, o luto, o fracasso, cheguei até aqui por algum motivo. Como conseguimos superar tan- to sofrimento? Porque alguns conseguem e outros não? Não sou de forma alguma uma espe- cialista em saúde mental, nem em comportamento humano, apenas alguém que pretende dar algum conforto emocional e material enquanto as pessoas estão detidas no Centro de De- tenção. Aquilo que sinto é que aqueles que sobrevivem não são aqueles que aparentam ser mais fortes, mais robustos. Os que sobrevivem são aqueles que não se deixaram embrutecer que ainda acalentam algum sonho bem escondido, que se deixam encantar com pequenos nadas, aqueles que ainda conseguem rir e fazer rir os outros. Tenho uma enorme admiração por estas pessoas, elas ensinam-me todos os dias o sentido da gratidão e da humildade perante aquilo 38 39
  • 21. que humanamente julgamos não conseguir suportar. A falta de interesse pelo mundo e pelos outros é o que nos pode acontecer de pior, e para mim aqueles que ainda olham para os que estão ao seu lado, conseg- uem sentir compaixão e amiza- de apesar de todas as tormentas que passaram, esses sim, são os mais fortes, os resistentes, os que acreditam até ao fim. Se me perguntarem qual o in- grediente que faz a diferença? Penso que nunca saberei re- sponder, existem tantas teorias, tantos estudos, mas nunca con- seguiremos saber ao certo o que nos protege de enlouquecer ou de resistir no meio do sofrimen- to, da escuridão e da incerteza absoluta se vamos viver ou mor- rer. Tanta haveria a fazer para que as pessoas possam aprender com as experiências dos outros, em alargar o horizonte para além do que nos é familiar e educar des- de muito cedo para os afectos e não apenas para a competição. Um exemplo muito claro é o quadro de mérito para os mais inteligentes, todas as escolas se orgulham e fazem uma grande festa de entrega dos diplomas para aqueles mais capazes, com melhores notas nas pautas. Eu gostava tanto que também hou- vesse quadros de mérito nas escolas para os mais solidários, para os que ajudam os colegas quando têm mais dificuldades, para os que desde cedo fazem voluntariado e ajudam o Mundo a ser um lugar melhor. Para mim a educação começa aqui, em entender que para além da inteligência é importante cuidar das emoções, da empa- tia, da aceitação da diferença e em aprender que não vivemos sozinhos, os outros caminham connosco…que o importante é que ninguém solte a mão de ninguém! Paula Ferreira – Técnica Social JRS Portugal - Serviço Jesuíta aos Refugiados 40 41
  • 23. Fetichização A fetichização tem vindo a ser defini- da como o ato de transformar um indivíduo num objeto de desejo sex- ual, tendo por base um aspeto da sua identidade, removendo a sua huma- nidade da equação. Esta objetificação pode afetar as diferentes minorias sociais, sendo que as dimensões da identidade que são objetificadas var- iam. Quando a dimensão se prende com o corpo, a objetificação tende a ser conceituada como sexualização. Para as pessoas racializadas e indí- genas, em particular, este fenómeno não é recente. De um ponto de vista superficial, a fetichização pode apare- cer como forma de lisonjeio, no en- tanto, estas “preferências” revelam-se danosas e reforçadoras de estereóti- pos raciais, com origem no racismo. Em certos grupos sociais, a fet- ichização racial tem sido usada para justificar a violência nas suas variadas formas. Durante a colonização e es- cravidão transatlântica, o corpo fem- inino racializado foi erotizado pelos/ as colonizadores/as Europeus até à desumanização da pessoa. Este posicionamento, de visualizar o corpo negro como um objeto sexu- al, facilitou a escravidão forçada e o abuso perpretado contra as pessoas racializadas. A hipersexualização dos corpos negros mantém-se até aos dias de hoje, especialmente visív- el no posicionamento social face às meninas racializadas, cujos corpos começam a ser sexualizados muito mais cedo do que o dos seus pares. O mesmo se pode observar na fre- quência com que, no sistema judi- cial dos Estados Unidos da América, o/a menor racializado/a é julgado/a como adulto/a, em comparação com o/a menor caucasiano/a de classe média/ alta. O corpo “negro” é hiper- sexualizado e socialmente visto como “maduro”, comparativamente ao cor- po “branco”. A fetichização racial acontece mesmo entre os membros das comunidades racializadas, sobretudo na material- ização da glorificacão do corpo claro (colorismo), cujas caraterísticas se aproximam das características cor- porais Eurocêntricas, desde a cor dos olhos, até à textura do cabelo.Mas a fetichização não se prende com as características étnicas. A fetichização dos corpos trans e não-binários tem vindo a ser discutida e explorada, não só dentro da Queer Theory, como a nível académico. A forma mais gritante que toma, é na criação e consumo da chamada pornografia trans, frequentemente desenhada e criada para o consumo de homens cis e hétero. No caso da sexualização do corpo trans, em especial da mulher trans, a objetificação soma-se ao medo as- sociado à vulnerabilidade da mulher trans, e o resultado é a opressão. A sexualização distingue-se da atração sexual no sentido em que o objetivo da primeira é o estabelecimento de uma relação de poder que subjuga a pessoa trans, ao poder do normativo cisgénero. 44 45
  • 24. SABIAS QUE...? ONU anunciou a criação de Índice da Juventude na Política
  • 25. ONU anunciou a criação de Índice da Juventude na Política Segundo a ONU News, o obje- tivo será verificar se os países estão a criar espaços para a ju- ventude no setor político. O Secretário-Geral, António Gu- terres, pretende que exista um espaço garantido para os e as jovens na discussão nas várias frentes de atuação. A nível mundial, os e as jovens estão e continuarão a ser os e as mais afetadas/os pelas crises atuais, pelo que a sua presença na linha da frente das soluções é essencial. Segundo António Gu- terres, a pandemia de Covid-19, a mudança climática, a divisão digital, os conflitos, a discrim- inação e a queda da confiança, carecem das vozes jovens, que se devem erguer nas ruas e online, defendendo, não só a justiça climática, como a igualdade de género e a justiça racial e socio- económica. Nos últimos tempos, a juventude mundial tem vindo a exigir a sua inclusão na política, ao que o Secretário-Geral respondeu positivamente com a criação do Índice da Juventude na Políti- ca. Nas palavras de António Guterres, as pessoas jovens mostram-se “agentes poderosos para a mudança”. Neste sentido, foram produzidos dois docu- mentos que serão implementados: um guia para os Estados-membros operacional- izarem a Agenda de Juventude, Paz e Segurança, e uma estraté- gia de cinco anos sobre Proces- sos de Paz Inclusivos à Juven- tude. 48
  • 26. ESPAÇO CULTURAL Sugestão Cultural: MAID Apresentação do Projeto Kriarte
  • 27. Quantas pessoas não se recon- hecerão naquilo que são os seus armários? Hoje o armário poderá ser de outra textura e até ser de outro tamanho, mas será sempre o mesmo onde nos es- condemos pela primeira vez. Maid fala-nos de violência, fa- la-nos da brutalidade, da vida crua, da ansiedade, do medo, da imprevisibilidade, mesmo quan- do esta se mostre previsível. Numa série acerca de Violên- cia Doméstica a possibilidade de falhar e ser-se negligente é enorme, por isso Maid sur- preende tanto pela positiva. Um enredo reflexivo, elaborado, que fugiu às facilidades e, quanto possível, aos clichês. Maid faz- nos respirar o peso do ar gélido insalubre que nos envenena as entranhas, e sentir a leveza das respirações fundas nos interva- los das permanências do medo. A série comprova o que tantas pessoas precisam de ver para que se desconstruam os seus estereótipos e preconceitos: o sistema e a sociedade a falhar em complô, expondo a reviti- mização constante da vítima, e o ciclo da violência a movimento. Maid torna-se crucial em vári- os pontos de relevância acer- ca da Violência Doméstica, o primeiro será a invisibilidade da violência psicológica. Na série é retratada a brutalidade, a di- mensão da violência dos abusos emocionais, e a forma profunda como impactam e condicionam a vida das vítimas ao medo, à ansiedade, à dissociação iden- titária e a traumas permanentes. Na série, a violência financeira aparece como cúmplice da vi- olência psicológica que determi- na a vítima enquanto refém na sua própria casa. É importante MAID referir que a violência financei- ra ocorre em muitos contornos distintos, e que também pessoas com elevados rendimentos são vítimas de violência financeira. O segundo ponto que torna a série crucial é a forma como a narrativa retrata o ciclo da vi- olência. Quando somos apre- sentados/as ao ciclo da violência desta forma, a todos os seus es- tágios, desde o primeiro mo- mento, da primeira violência ao desânimo aprendido, entre idas e regressos, quando somos introduzidos/as às histórias para além da súmula dos factos, acredito que todos os preconcei- tos são desmantelados, porque torna também para o/a especta- dor/a perceptível o porquê das vítimas regressarem ou perman- ecerem em relações de violência. Maid acaba, também, por con- firmar os perigos de padronizar, padronizar a violência, a vítima e a pessoa agressora. A padronização in- visibiliza e invalida outras re- alidades, impedindo muitas vezes a pessoa de se reconhecer no papel de vítima, não recon- hecendo ou conferindo validade à violência, neste caso, vivida na sua relação. Quando a vítima não se reconhece nesse papel, existem muitas mais restrições a um pedido de ajuda. Vale a pena explicar que a Vi- olência Doméstica é, infeliz- mente, um fenómeno transversal e com uma enorme amplitude de especificidades. Para en- tendermos isso é necessário ir além do paradigma heterocis- normativos, e etnocêntrico em que muitas vezes vivemos. A VD pode constituir-se enquan- to fenómeno de vitimações in- terseccionais, como no caso de vítimas LGBTI+, imigrantes, vítimas percepcionadas como minorias étnico-culturais, viti- mas racializadas. Não existem, também, padrões fixos ou rig- orosos quanto aos rendimentos, “classe social” ou educação, e é importante que tenhamos isso inscrito enquanto cidadãs e ci- dadãos, pois faz parte da nossa responsabilidade estarmos aten- tas/os, uma vez que a Violência Doméstica constituiu um crime público. Maid coloca-nos ainda a perspe- tiva das crianças enquanto víti- 52 53
  • 28. mas das relações de violência, sendo desta forma também elas vítimas de Violência Doméstica. É importante salientar que a VD não é um fenómeno exclusivo de relações de intimidade, grande parte das vítimas de VD LGB- TI+, por exemplo, são vítimas de violência pela própria família. Desta forma, Maid, abre-nos o experto, desmantela o nosso paradigma e deixa-nos visionar um outro, onde somos engoli- das/os pelas falhas do sistema e da sociedade, que não floreia ilusões, mas que nos faz sentir que há esperança, que as leis e as estruturas estão a mudar. Que não se duvide que as estruturas são hoje mais capazes, e que estamos a percorrer um camin- ho para que os novos começos tenham uma rede de suporte de confiança, que trabalha para que as soluções não se assemel- ham, como é descrito na série, a “unicórnios” entre as burocra- cias. Existem hoje várias associações e organizações a que podemos recorrer, a Plano i é um exemp- lo de uma associação que abriu o experto, e que está atenta a todas as necessidades e especifi- cidades, que nos prova todos os dias que ninguém ficará esque- cido/a nos seus armários. Maid é sobretudo uma história real, de uma sobrevivente, de uma força invicta de superação. Uma realidade que desmantela os facilitismos, mas que per- petua a esperança. Saibam que é sempre tempo de recomeçar, que nunca é tarde, e que nun- ca se desista. Kintsugi, para mim é uma metáfora valiosa para a vida. Kintsugi é uma arte japonesa que repara peças com ouro, e que me recorda que não importa quantos danos a vida nos tenha provocado, podemos sempre repara-los, não os igno- rando, mas fazendo deles a arte da nossa resistência. Minissérie: Maid Ano: 2021 Episódios: 10 | 50 minutos Criadora: Molly Smith Metzler Plataforma: Netflix 55
  • 29. O KRIARTE é um projeto que se foca na educação musical e de expressão dramática das faixas etárias mais jovens. Que começou a ser desenvolvido em Dezembro do ano passado e vai ser posto em prática agora nos meses de Maio, Junho e Julho na ilha de Santo Antão, Cabo Verde. O nome é uma mis- celânea de conceitos que fizeram sentido para nós, são eles krio- lo, criança, arte, criar de criação artística e criar de educar. Começámos como voluntárias na associação Sementera Kri- ativ em parceria com a Para Onde? num projeto que se fo- cava também na educação e desenvolvimento por via artísti- ca e cultural, só que em vários setores populacionais. Durante esta temporada que passámos em Cabo Verde conseguimos conhecer a comunidade, a sua magia e as suas imensas vir- tudes, mas também fomos con- frontadas com alguns problemas que nos deram vontade de agir. Sendo um deles a falta de edu- cação artística no programa de ensino, um tema que nos é mui- to próximo pois ambas temos formação e uma ligação enorme com as áreas da música e do te- atro e sabemos bem a falta que elas fazem no desenvolvimento, principalmente durante a infân- cia e a adolescência. Os benefícios do contacto com as artes são imensos e insubstituíveis em qualquer idade. E durante a fase mais pre- coce da vida ainda mais, pois trabalham todo o tipo de com- petências, cognitivas, afetivas, sociais e motoras, a capacidade de foco e atenção, de raciocínio lógico e abstrato, a canalização de emoções pela expressão, entre tantas outras competências. Em suma, torna-nos pessoas mais capazes e mais empáticas. Em concreto, o projeto con- siste em tentar levar ao máximo número de crianças possível KRIARTE uma aula de introdução a es- tas duas artes, só por si um fim mas também um processo para captar a sua curiosidade para as atividades que vamos desen- volver com as escolas em regime extra-curricular e para o nos- so campo de férias artístico de verão que terá como objetivo a criação de um teatro musical. De momento, estamos em preparação e planeamento, a começar a publicitação nas redes sociais, no instagram e facebook com o @ kriarte.cv. Para nos contactar, pode ser por qualquer uma destas vias ou pelo nosso email: kriarte.sintonton@gmail. com. Brevemente vamos pub- licar mais informações sobre o projeto e sobre como ajudar. Por fim, gostávamos de agrade- cer à Revista Insubmissa pelo interesse neste projeto que é tão importante para nós e pela ajuda tão essencial na sua divulgação. O trabalho que fazem é admirável! Muito obrigada a todos! As fundadoras, Inês Costa e Joana Marques 56 57
  • 31. CLARA Clara. Se a Clara tivesse que se descrever diria que é “só uma pessoa”, e isso tem a sua beleza. A Clara é uma pessoa, mas é uma pessoa com todo o valor que isso de ser gente tem. Já muitas foram as vezes que lhe disse que tudo o que toca transfor- ma-se em arte, desde o seu primeiro quadro em que parecia pintar desde sempre, às peças que cria não sei bem como nem bem com o quê, mas que acabam por se tornar em bonitas obras. A Clara não tem uma definição, ou uma descrição, porque abandonou o que precisa de encaixe. Clara. A Clara é muitas coisas, a Clara tem muitas formas e, acima de tudo a Clara é muitas artes. E que bom é ser-se muito, que bom é ser-se arte. @quelara__
  • 32.
  • 33.
  • 34. BIBLIOGRAFIA FICHA TÉCNICA Bibliografia Anzani A, Lindley L, Tognasso G, Galupo MP, Prunas A. “Being Talked to Like I Was a Sex Toy, Like Being Transgender Was Simply for the Enjoyment of Someone Else”: Fetishiza- tion and Sexualization of Transgender and Nonbinary Individuals. Arch Sex Behav. 2021 Apr;50(3):897-911. doi: 10.1007/s10508-021-01935-8. Epub 2021 Mar 24. PMID: 33763803; PMCID: PMC8035091. Asare, J. G. (2021, December 10). What Is Fetishization And How Does It Contribute To Racism? Forbes. Retrieved January 26, 2022, from https://www.forbes.com/sites/janice- gassam/2021/02/07/what-is-fetishization-and-how-does-it-contribute-to-racism/?sh=1a- 99fa256e39 Ficha Técnica Equipa insubmissa: Ana Sofia Figueiredo Mariana Reis Mel Tavares Almeida Sheila Góis Habib Teresa Ramos de Sá Tex Silva Paulo Lopes Vânia Alves Revisão de conteúdos: Paula Allen Design: Clara Santos Créditos: Angela Roma Elina Araja Anna Shvets Cottonbro Dids Wendy Wei Clara Santos
  • 35. E L Z A O A R E “Precisamos ter consciência de que muitas mulheres morreram para que pudéssemos ficar vivas, termos liberdade de escolher e fazer o que quisermos.” “Eu sou só um ser humano, de carne e osso sofridos. Não me sinto a mulher mais poderosa do mundo. Sinto que sou, talvez, a que pisa mais forte no chão – isso, sim. Pra ter certeza de que estou viva!” “As mulheres não se apoiam. Falta mulher na política. Eu tenho tanta vontade de vê-las de mãos dadas, se ajudando. E minha luta, além de ser pelos negros e pelas mulheres, sempre foi pelos gays. Alguns tratam os homossexuais como se não fossem um pedaço de nós. Eu sou todos eles.” “Meu choro não é nada além de carnaval É lágrima de samba na ponta dos pés”
  • 36. “Não tenho medo da morte porque acho que não vou morrer. Vou virar purpurina.” Esta edição é em memória de Elza Soares 1930-2022