O documento discute a relação entre literatura e fome, abordando tópicos como:
1) A fome como fundação da humanidade e da linguagem segundo filósofos como Kristeva e Thélot.
2) Como a fome é representada na literatura brasileira, notadamente em obras de Graciliano Ramos, Josué de Castro e Glauber Rocha.
3) Se somente uma "literatura engajada" abordaria a fome e o que define esse termo.
2. De que modo o comer e o dizer se
relacionam?
Qual relação haveria entre a literatura e a
fome?
A representação literária da fome insere-se
em qual contexto de discussão sobre o
próprio da literatura?
Como a cultura e a literatura brasileiras vem
abordando essa questão?
Somente uma “literatura engajada” falaria da
fome? E o que define exatamente uma
literatura engajada?
Plano da aula
3. DE QUE MODO O COMER E O DIZER SE
RELACIONAM?
Poderíamos começar num ponto longínquo,
tal como se nos oferecem as narrativas do
Antigo Testamento, perguntando: como foi
que a comida operou a nossa primeira
distinção enquanto mortais?
O primeiro traço que nos deu um corpo, e
para tanto nos apartou de deus. A deus os
seres vivos (através do sacrifício), aos
homens somente os vegetais. Isso porque:
Não Matarás!
Como lembra Julia Kristeva (1980), a
autorização para comer a carne só aparece
depois de um grande cataclismo. O Dilúvio e
com ele a constatação de que o “objeto do
coração do homem é o mal” (KRISTEVA,
1980).
4. A separação seria a partir de agora instaurada não
mais entre o vivo e o vegetal, mas sim, entre a
carne e o sangue. O sangue sendo o limite que
demarca a impureza do homem, mesmo sangue
que deve, por conseguinte, ser purgado sendo
entregue a deus. A carne a ser comida pelo
homem deve ser, portanto, uma carne sem
sangue, que dissipe todo e qualquer fantasma da
carnificina. Lembro: não matarás! Os animais
comestíveis pelo homem devem obedecer a uma
taxonomia que garanta que são animais
herbívoros. Para evitar que o homem coma um
animal carnívoro, o campo da impureza se
estende do sangue para uma série lógica e
abstrata, que faz entrever, como leu Kristeva, que
o puro é da ordem e o impuro da mistura, da
desordem.
5. A relação entre a comida e a fundação
do humano é crucial. Não há como
separar, nesse sentido, o que se come do
que se pode ser. A constituição da
humanidade do homem, no sentido
mesmo de sua mortalidade e de sua
separação de Deus é designada através da
comida.
6. Por isso muitas das figurações da fome na
literatura apontam para um processo
continuado de desumanizar, seja através da
aproximação entre o homem e o animal
(Graciliano e Josué de Castro), ou do homem
monstruoso (Dante, Dostoievski, Artaud), ou
do homem insano (Hamsum, Artaud), ou do
homem curiosamente mais perto de Deus do
que todos os outros homens humanos
(Kafka, Glauber Rocha, incluiria também aqui
o documentário Estamira, de Marcos Prado).
7. o estudo do filósofo francês Jérome Thélot
intitulado No início era a fome: tratado do
intratável (2005) vai também postular a
fundação do mundo através da fome. Para
Thélot a fome é o afeto universal, posto
que mesmo aqueles que têm o que comer
sentem fome. Ela é quem vai dar o mundo
aos homens. Isso porque a fundação do
mundo se faz a partir da distinção entre o
comível e o incomível. Eu posso comer o
próprio filho mas não o tecido de minha
camisa. Crueldade intrínseca à fome.
8. A fome instaura, desse modo, o nomear
do mundo: “afetado pela fome o homem
fala: forçosamente” (THELOT, 2005). Um
pathos da fome é aquele que une e
desune fome e palavra.
10. Para o autor francês a fome e a palavra
se colocam num continuum
a fome seria o afeto poético por
excelência, o jejuador seria aquele que
rejuntaria a potência da palavra, palavra
da fome, que renuncia à satisfação (à
retórica do mundo) para reencontrar o
Verbo.
11. Para o filósofo falar dá a fome quase que
a mesma satisfação que a comida, quase
o mesmo esquecimento que a comida
provoca da própria fome. É nesse sentido
que tal como a comida a palavra será
constitutiva, para o autor, da humanidade
do homem.
Nesse sentido ele encontra Kristeva na
leitura do Antigo Testamento.
12. Mas eu gostaria que nós discutíssemos
essa hipótese.
Isso porque temos que interrogar como a
cultura brasileira vem contribuindo e
questionando essa tradição
Nem só de palavra a fome vive, é o que de
uma maneira muitas vezes trágica
aprendemos com a história do Brasil.
13. Romances de Trinta – denúncia e
engajamento
Tabu da Fome – Josué de Castro (1945)
Estética da Fome – Glauber Rocha (1965)
Como a cultura e a literatura
brasileiras vem abordando
essa questão?
14. TRECHO da CARTA de GRACILIANO RAMOS ao
pintor CANDIDO PORTINARI
“A sua carta chegou muito atrasada, e receio que
esta resposta já não o ache fixando na tela a
nossa pobre gente da roça. Não há trabalho
mais digno, penso eu. Dizem que somos
pessimistas e exibimos deformações; contudo,
as deformações e a miséria existem fora da arte
e são cultivadas pelos que nos censuram. O que
à vezes pergunto a mim mesmo, com angústia,
Portinari, é isto: se elas desaparecessem,
poderíamos continuar a trabalhar? Desejaremos
realmente que elas desapareçam ou seremos
também uns exploradores, tão perversos como
os outros, quando expomos desgraças?”
(RAMOS, 1946, Acervo Projeto Portinari)
15. Pontos para discutir:
Tradição da burguesia como classe
artística
Para escrever hei de ter comido?
Autorização X Desautorização à palavra
Representar o outro
Autorepresentar-se
16. Somente uma “literatura
engajada” falaria da fome? E o que
define exatamente uma literatura
engajada?
Tradição
moderna
O que mudou e quando começaram as
mudanças?