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A orientação sexual e a
identidade de gênero são fatores
determinantes para a saúde, não
apenas por implicarem em práticas
sexuais e sociais específicas, mas
também porque podem significar
o enfrentamento cotidiano de
preconceitos e violações de
direitos humanos. O Centro de
Referência e Treinamento
DST/Aids, sede da Coordenação
Estadual DST/Aids-SP, A relação entre a epidemia da
inaugurou em junho de 2009, em aids e a exclusão social precisa ser
suas dependências, o primeiro melhor compreendida e enfrentada.
ambulatório de saúde do Brasil É com esse propósito que o Grupo
dedicado exclusivamente a Pela Vidda/SP está à frente do
travestis e transexuais. Este Centro de Referência da
serviço foi criado para facilitar o Diversidade (CRD), desde 2008,
acesso de populações vulneráveis em parceria com a Prefeitura
ao Sistema Único de Saúde, de São Paulo. Iniciativa pioneira,
possibilitando a elas sua inserção oferece assistência, capacitação,
social e o direito integral à saúde. geração de renda, convivência e
Maria Clara Gianna e cultura para profissionais do sexo,
Artur Kalichman gays, lésbicas, travestis, transexuais
Coordenação Estadual DST/Aids-SP
e pessoas que vivem com HIV e
aids em situação de vulnerabilidade
e risco social. Com a porta
aberta para a realidade, buscamos
resgatar a dignidade, a cidadania e
melhores condições de vida para
tantas pessoas historicamente
esquecidas e discriminadas.
Mário Scheffer e Irina Bacci
Grupo Pela Vidda/SP
Centro de Referência da Diversidade
3. REALIZAÇÃO
Grupo Pela Vidda/SP
Presidente: Mário Scheffer
Coordenadora do CRD: Irina Bacci
Centro de Referência e Treinamento DST/Aids-SP
Coordenadora: Maria Clara Gianna
Coordenador-adjunto: Artur Kalichman
COLABORAÇÕES
Nossos agradecimentos aos entrevistados: Ana Maria
Costa, Elaine Maria Frade Costa, Gustavo Menezes, Jalma
Jurado, Jovanna Baby e Tereza Rodrigues Vieira.
Grupo Pela Vidda/SP: Abel Corino da Fonseca Neto,
Douglas Galiazzo, Flavio A. Rodrigues, Luis Francisco dos
Santos, Marcos Ferreira Marinho, Maria Hiroko Watinaga,
Michele Aparecida Morais Santos, Murilo Bezerra Duarte,
Rogério de Jesus Ribeiro e Silvia Regina Carvalho.
Centro de Referência da Diversidade: Alessandra Saraiva,
Andreza Barbosa Trindade, Claudia Coca (in memorian), Fernanda
Maria Munhoz Salgado, Fernando Henrique da Silva Settanni,
João Batista Pereira, Maria Cristina Santos, Paulo Rogério da Silva,
Renato Mathias, Selma da Silva Leal Montervan, Taís Diniz Souza,
Thaís di Azevedo e Thatiane Di Risio dos Santos.
CRT DST/Aids-SP: Angela Maria Peres, Denise Mallet, Emi
Shimma, Judit Lia Busanello, Maria Filomena Cernichiaro, Marta
Omya e Ricardo Barbosa Martins.
AGRADECIMENTOS
Secretaria Municipal de Assistência Social (SMAS/PMSP)
– CRAS/Sé e CAS/Centro-Oeste: Idalina Helena Villas Boas
Menezes, Lia Déborah Sztulman, Margarida Yoshie Iwakura
Yuba, Maria Inês Cordeiro Gabriel, Marilisa Jorge Ayres, Nívea
de Simone da Silva e Sueli Chohfe Stelzer.
Coordenadoria de Assuntos de Diversidade Sexual –
CADS (SMPP/PMSP)
Projeto de Inclusão Social Urbana Nós do Centro
Pelo incentivo e apoio: Ana Paula Alberico, Cássio Rodrigo,
Floriano Pesaro, Gilberto Natalini, José Carlos Ferreira, Leilah
Rios, Luca Santoro, Marcelo Garcia, Marina Morena Barbosa,
Nacime Salomão Mansur, Norberto Bossolani, Renato de
Paula Marin e Vicente Roberto Hortega.
APOIOS
Departamento de DST, Aids e Hepatites Virais
do Ministério da Saúde
Secretaria Municipal de Assistência Social da
Prefeitura de São Paulo (SMAS/PMSP)
Programa Municipal de DST/Aids de São Paulo (SMS/PMSP)
EQUIPE DE PRODUÇÃO
Reportagens e textos: Aureliano Biancarelli
Fotografia: Osmar Bustos
Edição e revisão: Fernando Fulanetti
Arte e diagramação: José Humberto de S. Santos
Produção gráfica: Márcia Costa
Impressão: Gráfica Stampatto
Tiragem: 2.000 exemplares
São Paulo, outubro de 2010
4. SUMÁRIO
4 O amor na diversidade
Um tema estigmatizado e ignorado 6
10 Acolhimento e atenção integral à diversidade
Transexuais e travestis.
Respeito e direitos em adequação 15
20 CRD. O acolhimento como “porta de entrada”
Ambulatório para travestis e transexuais.
A busca pela saúde integral 25
Transexuais têm maior escolaridade
32 e inserção no trabalho
Abrigo, trabalho e acolhimento 34
“Não sou doente mental”,
41 diz ex-presidente da Parada GLBT de São Paulo
Brasil tem quatro centros
públicos para a cirurgia 44
Terças-Trans.
50 Um espaço de dúvidas e aprendizados
A batalha pelo direito ao nome e ao sexo 54
“Abertura” do Judiciário
56 facilita nova identidade
Nome afasta transexuais e travestis
da escola e serviços de saúde 60
63 Mudança no documento é prioridade
Visita às avenidas e guetos onde se
oferecem as profissionais do sexo 67
72 A “festa” dos craqueiros anestesiados e esquecidos
Jovens e determinadas. Maioria das travestis
diz não “precisar” de cuidados médicos 76
5. PREFÁCIO
O AMOR NA
DIVERSIDADE
Aureliano Biancarelli
á esperava ouvir relatos de humilhações e maus- panheiro com quem vai se casar quando se preparava
J
tratos sofridos pela população LGBT, especial- para a cirurgia de redesignação sexual. Os pais do casal
mente por parte das travestis e transexuais. A já foram apresentados.
angústia de gays que abandonaram a casa dos A descoberta do amor nesse universo marginal sur-
pais depois de agredidos e foram morar na rua. giu ao longo das muitas entrevistas. A solidariedade e a
Garotas travestis que fugiram de suas famílias e troca de cuidados, como gestos de amor, estão presen-
se aventuraram sozinhas em busca de hormônio e de tes em quase todos os relatos. Já se imaginava um uni-
clientela. Só não esperava que o amor e o com- verso de preconceito mas o amor não estava na pauta,
panheirismo sobrevivessem com tanta força entre esses nem na lista de preocupações dessa publicação.
personagens. No Centro de Referência da Diversidade A proposta foi deixar que contassem suas histó-
é comum ver casais de mãos dadas, ela travesti, ele rias. Reunir relatos descritos a partir do olhar de quem
heterossexual, os dois morando na rua. Em todos os se encontra na rua ou dependente da rua, onde seu
relatos, em meio a histórias de maus-tratos, abandono sexo, definido ou imaginado, é a razão das atenções
e discriminação, há sempre uma história de amor e discriminações. Muitas vezes desejadas e fantasia-
Mikaela é capaz de quebrar um bar se alguém mal- das, travestis e transexuais são objetos de desejos es-
trata uma de suas colegas travestis. Na “vida real”, ima- condidos – ou revelados – nas escapadas noturnas
gina uma casinha onde possa trabalhar no computa- de “clientes” em avenidas e esquinas pouco ilumina-
dor, ao lado do “esposo” que diz amar. Luiza Santos das da cidade. Na lista dos clientes estão garotos com
vive há 14 anos com o companheiro e sonha com o dia carro emprestado dos pais e homens à procura de
em que poderá presenteá-lo com uma vagina, sem a companhia.
necessidade de esconder o pênis atrofiado. Ele nunca A proposta dos textos que se seguem é reproduzir
se queixou, diz ela. Alexsandro, um homem trans, teve as histórias dessas travestis e transexuais. Falar das
A DIVERSIDADE REVELADA
várias parceiras heterossexuais. A família da atual na- barreiras que separam essas personagens dos serviços
morada prepara o casamento. Rodrigo já foi michê e públicos, principalmente aqueles de saúde. A publi-
agora, portador do HIV, troca cuidados com a compa- cação dedica cuidado diferenciado e esperançoso a dois
nheira que é travesti e sofre com um câncer. Marciano serviços recentes que buscam olhares e atenção ino-
ganhou dinheiro como cafetão, até cair no crack e ado- vadores para essa população. Trata-se do CRD, o
ecer com câncer e aids. Em nenhum momento antes e Centro de Referência da Diversidade, parceria da
depois da doença, ele conta, foi abandonado por com- ONG Grupo Pela Vidda/SP com a Prefeitura de São
panheiras, travestis e mulheres, que estiveram ao seu Paulo. E do Ambulatório de Saúde Integral para Tra-
lado. A travesti Camila, no entusiasmo dos seus 20 anos, vestis e Transexuais, do Centro de Treinamento e
deixou o albergue e passou a morar nas ruas por “amor Referência DST/Aids-SP, serviço da Secretaria de
4 ao esposo”. A transexual Alessandra conheceu o com- Estado da Saúde de São Paulo.
6. Aos olhos dessa publicação, estes locais revelam-se xúria”, não de uma modificação que necessitasse de
pontos de encontro com um universo marginal e estig- cuidados médicos. A oferta dos serviços públicos, só
matizado, mal compreendido e subavaliado. A depen- agora regulamentada, não dá conta de uma ínfima
dência pelo crack e a infecção pelo HIV, altamente parcela das transexuais. A maioria, mesmos nos “tem-
presentes nessa população, são duas ameaças para as pos modernos”, morrerá embalando o sonho de ter o
quais a sociedade e a saúde pública ainda não presta- pênis trocado por uma vagina. Aos homens trans, não
ram a devida atenção. Os custos produzidos pela vio- há sequer a perspectiva de implantação de um pênis,
lência desse vulcão silencioso, os gastos com saúde, as técnica ainda experimental.
perdas de vidas e o sofrimento dos sobreviventes só O resultado desta publicação é ainda uma via-
serão conhecidos quando a conta chegar. E ela chega- gem superficial num território outrora batizado
rá com acréscimos nem sempre possíveis de bancar. equivocadamente de “terceiro sexo”, ignorado pela
Convidado a produzir os textos dessa publicação, maioria heterossexual. Já começou o milênio onde
me senti à vontade para reunir relatos que ilustram a homens e mulheres serão superados por um sexo que
vida de personagens e dados sobre serviços de saúde, não será nem masculino nem feminino, fantasiam
procedimentos médicos e legislações. A cirurgia de alguns militantes LGBT.
redesignação sexual para transexuais foi oficializada Verdade ou fantasia, o livro revela que pouco se
no Brasil em 2002, um atraso de meio século quando sabe sobre esse outro universo. E que poucos cuida-
se compara com países desenvolvidos. A Justiça tam- dos vêm sendo dispensados para aqueles que vivem
bém empacou nos seus códigos, e a mudança de nome entre a marginalidade e a sobrevivência. O que se sabe,
– e especialmente de sexo – ainda requer uma longa e é que eles vêm abandonando o ninho e ganhando voz
cara ação individual. O cenário vem mudando, mas a no meio social.
desesperança na fila das cirurgias – agravada com a Enquanto a sociedade não presta atenção nem cui-
A DIVERSIDADE REVELADA
falta de transparência – e as dificuldades na mudança dados, travestis, transexuais e michês se protegem di-
de nome fazem parte de quase todos os relatos. vidindo solidariedade e se juntando em casais. A im-
A discriminação e a pouca atenção dedicadas a pressão que salta dos relatos é a de que o amor na
travestis e transexuais se arrastam ao longo de sécu- diversidade é mais generoso e menos opressivo do que
los. Um dia alguém ainda escreverá sobre o sofri- entre casais heterossexuais. O preço que se paga, no
mento dessa população, ignorada e estigmatizada. entanto, continua muito alto.
Historiadores e antropólogos ainda não deram a devida A grande maioria das entrevistas foi feita entre
atenção a esses personagens. março e junho de 2010, nos espaços do CRD e do
Até décadas atrás, a medicina tinha pouco a fazer. ambulatório. Algumas poucas foram feitas por telefone.
Agora que tem, limita a atenção a uma minúscula Todos os entrevistados e entrevistadas concordaram
minoria de transexuais, como se tratasse de uma “lu- com a publicação de seus nomes e de suas fotos. 5
7. INTRODUÇÃO
UM TEMA
ESTIGMATIZADO
E IGNORADO
“Não mudamos nada, apenas adequamos o sexo ao cérebro”, diz o
cirurgião que mais fez cirurgias de redesignação sexual no Brasil.
Muito além dos bisturis, o desafio está em adequar as mentes
heterossexuais à convivência com a diversidade.
elatos de personagens de uma chamada reúne essa população. Mesmo reduzidas a um décimo
R
“diversidade” estão registrados nos capítu- desse número, não há estrutura nos serviços públicos
los desta publicação. São mulheres trans – capaz de atender sequer uma parcela dessa população.
que nasceram com corpo de homem e se Sem a pretensão de ordenar temas ou de explo-
sentem mulheres. E de homens trans, que rar todas as dificuldades da população LGBT, os tex-
conservam os órgãos femininos, mas pen- tos que se seguem nesta publicação tratam das ques-
sam e agem como homens. O respeito e os cuidados tões da legalidade, do direito ao nome, dos serviços
psicológicos e médicos a essa população dependem de saúde e do reconhecimento desse grupo. Espe-
de um amadurecimento da sociedade. Vai do conhe- cialistas do direito e da saúde, e ativistas transexuais,
cimento e da atenção médica, que inclui cirurgias expõem seus pontos de vistas e falam de suas expe-
complexas e reordenações do serviço público, aos riências com essa população.
avanços em termos da legislação e até mesmo às in- Os depoimentos das pessoas entrevistadas ilustram
A DIVERSIDADE REVELADA
terpretações do Judiciário. um cenário desconhecido e ignorado mesmo pelos
Nos códigos prevalentes, não há espaço para um profissionais que deveriam estar de olhos mais atentos
“terceiro sexo”, por isso a mudança do nome e do para a evolução dos conceitos. “Não mudamos nada,
sexo depende de demorados e complexos processos apenas adequamos o sexo ao cérebro”, diz Jalma Ju-
na Justiça. Medicina e Judiciário estão décadas atrás rado, o cirurgião plástico brasileiro que diz já ter feito
de um processo de readequação do sexo que há sé- 800 cirurgias de redesignação sexual. A grande maio-
culos aparece em relatos, em todas as civilizações e ria dos profissionais ainda terá de amadurecer antes
em todas as épocas. de pensar como ele.
Camufladas e escondidas no meio social, as traves- A seguir, falas resumidas de alguns e algumas das
tis seriam 800 mil no Brasil e 400 mil as transexuais, personagens, cujas histórias em detalhe podem ser vis-
6 segundo estimativas da Antra, articulação nacional que tas ao longo desta publicação.
8. AGNES traz entre os seios uma procedimentos – e a abertura do “O CRD para mim é uma
tatuagem com seu nome, uma cruz e Ambulatório de Saúde Integral para clínica, nenhum outro tratamento me
uma borboleta. Fez isso quando tinha Travestis e Transexuais, ela retomou mudaria tanto, porque aqui me deram
23 anos. Deprimida, tinha decidido se as esperanças. “Só não me suicidei responsabilidades, tive o apoio e a
matar, mas não se conformava com o porque tirar a vida por uma condição confiança de toda a equipe. Para
fato de que na lápide ficaria gravado que Deus me deu, seria cometer o desviar da droga, o drogado tem que
seu nome masculino. Com a maior pecado. Mas ainda espero que ter uma responsabilidade. Então o
tatuagem, saberiam que estavam com a cirurgia encontrarei o contrato aqui com o CRD mudou
enterrando uma mulher, ela casamento e a felicidade.” tudo, virou um projeto de vida, mais
imaginava. Desistiu do suicídio, mas do que um trabalho. É uma luta
se inquieta ao pensar que se morrer NO PARQUE DA LUZ, o mais constante. Eu era 100% drogada, hoje
antes da cirurgia e da mudança nos pobre e triste ponto de prostituição da posso dizer que sou 20%. Um tempo
documentos trocarão suas roupas por cidade, Bernadete é considerada atrás eu jamais estaria aqui, estaria
um paletó de homem e na lápide jovem perto das senhoras de mais de roubando, indo atrás de droga.”
ficará seu nome masculino. 80 anos que fazem programa ali. Claudia Coca, 42 anos, é uma travesti
“Vivem de clientes antigos, ou de contratada como educadora de rua.
ALEXSANDRO já teve quatro rapazes maníacos com fixação na mãe Percorre pontos de prostituição
casamentos com mulheres ou na avó”, ela interpreta. “Os embaixo de viadutos, onde só uma
heterossexuais e diz que sempre clientes idosos, com os cabelos travesti seria recebida. Quem vê
cumpriu suas “funções de homem e branquinhos, são tão sozinhos quanto aquela negra atraente, de cabelos
marido”. Agora está diante de um elas. Usam três cuecas, quando uma curtos, cintura torneada e seios
dilema: os pais da atual namorada suja, colocam outra por cima, depois empinados, não imagina que já foi
esperam um casamento na igreja e de outra.” Bernardete Vicente de Souza, drogada, prostituída, presidiária,
papel passado. Só que ele é um homem 58 anos, faz a ponte entre as bombadeira. É um dos exemplos mais
trans, tem barba e traços masculinos, “meninas” da Luz e o CRD. “Digo a marcantes de “travestis marginais”
mas disfarça os seios e esconde uma elas que é um jeito de não ficar que mudaram de vida ao encontrar o
vagina. E nos documentos traz o nome sozinha. Porque ficar sozinha nesta CRD e que, infelizmente, faleceu
de mulher. Sua esperança é conseguir vida é perigoso.” antes de ver essa publicação.
uma cirurgia para a retirada dos seios, já
que substituir a vagina por um pênis é CAMILA ROCHA, 18 anos, é uma A CABELEIREIRA Débora Zaidan
uma possibilidade remota. E mudar o travesti forte, bonita, com traços e reuniu R$ 30 mil com a ajuda da família
nome depende de um processo lento seios que chamam a atenção. Dorme e em 2006 fez a cirurgia de
na Justiça. A data do casamento está se na rua “por amor”, ela conta. O redesignação sexual com um cirurgião
aproximando. “marido” morria de ciúmes sabendo particular. Os vizinhos e clientes
que estava num albergue numa ala sabem que hoje ela é uma “mulher
ANDRÉIA FERRARESI carrega na com 120 homens. “Não dava para operada”, embora sempre tenha sido
pasta repleta de papéis um laudo de ficar separados. Decidimos os dois respeitada como mulher. Débora diz
1977 informando que é portadora de dormir na rua.” Camila encontrou que teve companheiros antes e depois
transexualismo e que está apta para a socorro no CRD e no Ambulatório de da cirurgia, e descobriu que o sexo não
cirurgia de adaptação de genitais. Só Saúde Integral para Travestis e era o mais importante na relação.
A DIVERSIDADE REVELADA
25 anos depois, em 2002, o Conselho Transexuais quando o HIV já estava “Hoje vivo muito mais tranqüila com
Federal de Medicina viria a autorizar roubando as energias e as drogas meu sexo, mas descobri que o prazer
o procedimento nos hospitais públicos afastando os clientes. Sua vida de rua é psicológico. Tive muito prazer com
e privados. Nesse quarto de século, e prostituição começou aos 10 anos na alguns homens, e não tive nada com
Andréia viveu de terapias e sonhos. praia de Iracema, em Fortaleza. “Em outros, sem vagina e com vagina, assim
Ainda continua sonhando. Aos 67 São Paulo descabelei, orgia, bebida, como qualquer mulher.”
anos, ela se diz uma mulher droga. O cliente oferece crack, paga
injustiçada, mas se recusa a falar em mais e não quer camisinha. Não vou “A MUDANÇA de sexo é uma
desistência. Com a nova portaria do contar que tenho aids. Estou coisa que hoje não me incomoda
SUS de 2008 – incluindo a cirurgia de deixando essa vida, mas ainda preciso tanto, mas já sofri muito
redesignação sexual entre seus de dinheiro.” afetivamente. Você conhece um 7
9. homem e ele pensa que você é marquises no centro de Osasco, até Demônio, que conserva até hoje.
biologicamente mulher, e você não conhecer o CRD e ser encaminhada a Alta, forte e “babadeira”, ela se
é... Fica com medo de contar e ser um albergue. Diz que ainda não impunha onde estivesse. Um cliente
rejeitada, como acontecia lá atrás. O encontrou ajuda nos serviços de saúde ou estranho que humilhasse uma
medo de se identificar vai virando um e naqueles voltados para a população colega, ela quebrava uma garrafa na
trauma. Hoje já me pega menos. LGBT, onde esperava uma reinserção mesa e o bar virava um silêncio. Era a
Estou conseguindo gostar de mim no trabalho. “Meu relato é uma mais respeitada. Aos 40 anos,
mesma.” Kleos Marine Guedes, 45 história de perdas e de um auto- “exausta, acabada, sem saída”,
anos, produtora de eventos e artesã. conhecimento solitário. Perda do passou um dia pela calçada do CRD e
emprego, da casa, da identidade dediciu entrar. “Ali mostraram que
“MEU NOME social é Leo sexual, da família. Aos 26 anos contei a minha vida podia ser diferente, e eu
Moreira, tenho 52 anos, sou um meus pais o que eles sempre comecei a mudar.” Dali passou a ser
homem trans, tenho essa barba e cara souberam. Meu pai disse, ‘eu aceito cuidada pelo Ambulatório de Saúde
de homem, mas ainda carrego seios e você assim, só não estou preparado Integral para Travestis e Transexuais.
uma vagina. Estive preso por cinco para participar’. Era justamente o que Mikaela está se mudando para uma
anos em vários presídios por conta de esperava ouvir. Esse foi o momento casa na periferia da Zona Sul com o
drogas, me casei três vezes nas definitivo. Meu pai e minha mãe “esposo”, que tem emprego no
cadeias, nas alas femininas, porque morreram logo depois.” programa Travessia Segura, da
para o sistema eu era a Lourdes Prefeitura. Diz que aprendeu tudo de
Helena Moreira Santos, era a sapatão MARCIANO Alves Fernandes, 29 informática e quer fazer faculdade de
mais disputada pelas presidiárias. anos, conserva a elegância dos tempos tecnologia da informação. Ganhará
Com metade do curso de sociologia que mantinha R$ 300 mil em conta tanto que voltará a usar seu perfume
na USP, virei professor na cadeia, bancária e chefiava 30 meninas numa preferido, Bulgary black, e só
antes já tinha sido militante feminista das ruas de Ravenna, na Itália. Foi para trabalhará em casa, “pelada, com
e baterista do grupo As Mercenárias. rua com 12 anos quando o pai adotivo meu namorado”.
Fui casado de papel com a travesti lhe bateu na cara e ele prometeu que
Gabriela Bionda, eu com meu nome homem nenhum voltaria a fazer isso MILA não quer mais que a
de mulher, ela com o nome de com ele. Fugitivo de casa, dormiu em chamem de Mila Citroen, apelido que
homem, era o casal mais badalado do cima de árvores, foi cuidado por ganhou porque os carros que
mundo gay. Quando sai da cadeia, não travestis, até se tornar cafetão “sequestrava” para tirar dinheiro de
tinha mais nada, nem amigos nem respeitado e patrocinador de festas caixas eletrônicos eram sempre da
referências sexuais. O CRD me deu com as mulheres mais bonitas. Hoje se marca Citroen. “Sou outra Mila”, ela
essa força. Hoje sou ator na peça trata da aids, de diabetes e de um diz. Mila Alves dos Santos, 30 anos, já
“Hipóteses para o Amor de câncer. Trocou as contas em banco foi prostituta, assaltante, presidiária,
Verdade”, que conta um pedaço da por um salário contado como drogada, “fazia programa por R$ 5 só
minha história, e que está no espaço segurança e agente de prevenção do para comprar pedra”. Entrou no
Satyros 1. Vocês estão convidados.” CRD. “Plantei espinhos, estou CRD convidada por uma amiga e
colhendo espinhos”, diz, sem perder a desde então diz que sua vida está
MARCELLE MIGUEL, 37 anos, tem dignidade. “O crack me pegou e me mudando. “Hoje não sou mais
traços femininos, cabelos sobre os destruiu em dois anos. Mas ainda vou clandestina, vivo com meu parceiro, o
A DIVERSIDADE REVELADA
ombros, olhos verdes, usa blusa regata sair dessa.” Em todos os momentos, Igor, todo mundo no bairro sabe”.
preta, calça unisex e sandália de dedo. sempre teve uma mulher do seu lado, Igor é ajudante de carga e descarga,
Chama a atenção pela aparente travesti ou transexual. “Quando você estava noivo quando se decepcionou
timidez, a conversa tranquila, as para com a droga, fica muito carente. e encontrou Mila, “esta é história que
palavras medidas, as frases construídas Agora vivo com Bianca, na periferia. ele me conta”, diz. “A droga ainda
com cuidado. Já foi “técnico” de Um cuida do outro.” me tenta, mas estou vivendo como
informática em grandes empresas auxiliar de cabeleireira e faço
antes de abandonar os trajes NOS 20 ANOS que se prostituiu, supletivo. Vivo fugindo das
masculinos e se assumir como mulher quando se animava com drogas e tentações. Costumava carregar R$ 3
trans. O preço foi o desemprego e a álcool, a travesti Mikaela Rossini mil na bolsa, oferecia drogas e bebidas
8 rua. Viveu vários períodos sob ganhou o apelido de Mikaela para as colegas. Hoje o dinheiro para
10. viver me deixa feliz. No ambulatório, com um trabalho e um espaço que prostitutas, é voluntária num serviço de
estou treinando com a fonoaudióloga possa dividir com Fernanda. “Ela tem DST-Aids, e faz o primeiro ano numa
para afinar a voz.” dois yorkshires, precisamos de uma faculdade de Serviço Social. É
casinha com quintal.” acompanhada pelo ambulatório para
ELA É A ESTRELA das noites travestis e transexuais do CRT DST/
paulistanas nos bares que reúnem “UMA TRAVESTI com silicone e Aids-SP. Vanessa diz que nunca ouviu
gays, lésbicas e travestis. É uma das próteses pode ganhar até R$ 500 por uma “gracinha, um psiu, uma
raras drag queens que não dubla e que noite, as outras ganham a metade. O provocação”, referindo-se a seus trajes
coleciona elogios da crítica como silicone industrial é perigoso, mas não e comportamento como mulher. “Se
intérprete da música popular vim de Belém para ficar no meio do você quer respeito, tem que ter
brasileira. Cria suas coreografias e caminho. Assim que fizer as respeito, tem que impor. Não pode
destila um humor picante, sempre aplicações e juntar dinheiro, vou para botar um bustiê, um sutiã, e querer ir
intercalado com poemas. Seu próximo a Itália.” Suzielen S., 19 anos, se diz ao açougue ao meio-dia”, ela diz.
CD é dedicado a Noel Rosa. Ela é travesti e transexual. Frequenta as
Renata Perón, mas já foi o cantor Terças-Trans do CRD e faz O PROFESSOR de inglês Victor
Sérgio, em Juazeiro, Bahia. Em São acompanhamento no Ambulatório de de Abreu, 27 anos, é um homem
Paulo foi cabeleireira, manequim, Saúde Integral para Travestis e trans que já fez cirurgia da mama e
trabalhou em teatro, cinema e novela Transexuais. Mesmo orientada, agora embala um sonho com a
de TV. Nas tardes de quarta-feira, percorre a rota sonhada por milhares namorada com quem vive há quatro
pode ser vista entre o grupo que delas, “modelar” o corpo e ganhar anos: retirar um dos seus óvulos e
frequenta as oficinas de canto do dinheiro lá fora. guardá-lo congelado numa clínica de
CRD. “A música é sempre um inseminação para que no futuro possa
momento de reflexão e autoestima, “O TERCEIRO milênio é o ser fecundado e colocado no útero da
para noiados ou não.” Foi o Centro de milênio da mente, e a mente tem um companheira. Assim, o filho nasceria
Combate à Homofobia, da Prefeitura, terceiro sexo. Vai chegar um de um óvulo seu e seria gerado na
e o CRD que a acolheram quando foi momento que o homossexual terá “barriga” da namorada. Victor é
agredida por um grupo de rapazes na muito orgulho em ser homo, porque é paciente do Ambulatório de Saúde
praça da República e perdeu um rim. capaz de gerar coisas lindas, Integral para Travestis e Transexuais.
Renata é uma travesti, mas nos shows fabulosas.” Thaís di Azevedo, que faz
que agora faz no Hábeas Copus se essa “previsão”, traz a experiência de ALEXANDRE SANTOS, o Xande,
identifica como drag queen. “A uma travesti que aos 60 anos 38 anos, é um homem trans que já
sociedade não aceita que haja travestis coleciona uma história de vitórias e comandou a Parada do Orgulho GLBT
com alguma dignidade e inteligência.” conquistas que superam as de São Paulo, a maior manifestação de
humilhações. Thaís é hoje a gays, lésbicas, travestis, transexuais e
QUASE TODOS os dias Fernanda recepcionista do CRD, aprovada em simpatizantes do mundo. Tem uma
sai de Guarulhos e vai à região central concurso. Combina a elegância com a filha, hoje com 19 anos, que nasceu
de São Paulo para ver Rodrigo. Ela é amabilidade e a habilidade necessárias ainda em sua “fase” lésbica. Nas
travesti, já foi auxiliar de para manter a ordem num espaço relações seguintes, as companheiras
enfermagem, agora luta contra um onde se misturam moradores de rua e foram sempre heterossexuais, como
câncer e batalha pela aposentadoria travestis em busca de ajuda, às vezes Débora, sua atual parceira. Xande
A DIVERSIDADE REVELADA
que tem direito. Rodrigo de Souza ainda sob o efeito de drogas. “A falta ainda não conseguiu a retirada dos
Ventura, 30 anos, percorreu várias de informação e o preconceito seios e dos órgãos femininos internos,
cidades antes de chegar a São Paulo e paralisam todos nós”, diz. As cadeiras embora seja um procedimento comum
se assumir como michê profissional. dispostas ao lado de sua mesa nunca em mulheres, por necessidades
Animado pelo crack, chegava a fazer estão vazias. Tem sempre alguém médicas. “A menstruação é uma coisa
20 programas em 24 horas nos querendo ouvir suas idéias. terrível para mim”, ele diz, cobrando
principais cinemas pornôs do centro um direito que considera fundamental.
de São Paulo. Doente e com os VANESSA PAVANELLO, 41 anos, Militante em tempo integral, Xande
sintomas da aids, foi em busca de mãe de um filho adotivo, é uma mulher lamenta a invisibilidade dos homens
ajuda no CRD, onde encontrou trans. Trabalha como agente social da trans e faz críticas à imposição do
amigos e o gosto pela pintura. Sonha Prefeitura, coordena reuniões com padrão heterossexual. 9
11. Acolhimento e atenção
INTEGRAL À
DIVERSIDADE
Os públicos são muito parecidos, o que facilitou a aproximação e a
sinergia dos trabalhos realizados pelo Centro de Referência da
Diversidade e pelo Ambulatório de Saúde Integral para Travestis e
Transexuais do CRT DST/Aids-SP A experiência dos dois serviços
.
traz a perspectiva de dias melhores à população LGBT .
Centro de Referência da Diversidade, o do Centro de Referência da Diversidade, o CRD.
O
CRD, já se firmou como porta aberta para “‘Tem um lanche da tarde e tevê’, Baby disse. Des-
a população LGBT em situação de cobri que tinha muito mais, tinha gente para con-
vulnerabilidade e risco social. Em outra versar e que se preocupava comigo. Minha vida co-
frente, o Ambulatório de Saúde Integral meçou a mudar ali.” Foi o CRD que encaminhou
para Travestis e Transexuais do Centro Mila para o Ambulatório de Saúde Integral para Tra-
de Referência e Treinamento DST/Aids-SP (CRT vestis e Transexuais do CRT DST/Aids-SP. Encon-
A DIVERSIDADE REVELADA
DST/Aids-SP) já é referência como serviço de saúde trou lá não só endocrinologista, proctologista,
voltado para essa população. Oferece, inclusive, o psicólogo, mas também uma fonoaudióloga. “Mi-
acompanhamento psicológico necessário para a cirur- nha voz não era assim, era uma voz grossa.”
gia de redesignação sexual. As duas iniciativas estão Camila Rocha, também travesti, fez caminho se-
revelando formas diferenciadas e criativas de oferecer melhante. Divide visitas ao CRD com o ambulatório
acolhimento, escuta especializada e realizar ações de do CRT DST/Aids-SP onde passa por consultas e
prevenção junto a esta população. monitora a carga viral da infecção pelo HIV. A
A travesti Mila Alves dos Santos viveu nove anos transexual Verônica Freitas conheceu o CRD no fi-
entre prostituição, drogas, assaltos e cadeias. Lem- nal de 2009 e meses depois tinha suas consultas
bra-se da tarde de setembro de 2009 quando Baby, agendadas no ambulatório. Quer participar do grupo
10 uma amiga, insistiu para que entrassem na porta aberta de psicoterapia e sonha com uma cirurgia. Taís Diniz
12. Os sofás do saguão do CRD são o primeiro espaço de acolhimento para quem está chegando da rua
Souza, transexual e assistente social do CRD, retirou O Ambulatório de Saúde Integral para Travestis e
o silicone industrial que a incomodava depois que pas- Transexuais foi pensado para oferecer na área da saú-
sou a freqüentar o ambulatório. de a atenção especializada que os serviços da rede pú-
O CRD fica na rua Major Sertório, entre a Rego blica não contam ou não estão capacitados a oferecer.
Freitas e a Amaral Gurgel, certamente a calçada do Até então, travestis não passavam por endocrinologistas
Centro da cidade mais freqüentada por travestis e toda (embora abusem do uso de hormônio), homens trans
sorte de desassistidos da noite. O Ambulatório de Saú- não contavam com ginecologistas (embora biologica-
de Integral para Travestis e Transexuais, por sua vez, mente sejam mulheres), e mulheres trans não viam
ocupa várias salas dentro do Centro de Referência e urologistas – embora conservem a próstata, mesmo
Treinamento DST/Aids-SP, na rua Santa Cruz, na Vila depois de operadas. Homens trans com jeito másculo
Mariana, Zona Sul. A entrada fica na calçada em frente e barba no rosto não ficavam à vontade numa sala de
à Igreja Nossa Senhora da Saúde, próximo do metrô, espera de um ginecologista. Travestis ainda evitam
do Colégio Marista Arquidiocesano e de um shopping serviços de saúde para não serem chamadas em voz
center. Seu entorno é agitado por milhares de pessoas. alta pelo nome do registro civil.
Para muitos usuários, é conhecido como o ambulatório Nas saídas noturnas, quando educadores sociais do
da Santa Cruz. CRD entregam camisinha e gel para profissionais do
O Centro de Referência da Diversidade foi inau- sexo, as travestis mais jovens dizem que nunca procu-
gurado em março de 2008. O Ambulatório de Saú- raram ajuda médica com medo de serem humilhadas.
de Integral para Travestis e Transexuais começou a Agora, além de especialistas e de profissionais prepa-
funcionar em junho de 2009. Os dois serviços se rados para essas usuárias, o ambulatório oferece ses-
completam. Marcam um passo inovador na forma sões de fonoaudiologia, para que suas vozes sejam
de fazer prevenção e oferecer cuidados a uma moduladas como seus corpos são modelados.
população habituada à discriminação, ao pouco caso Os dois centros buscam oferecer mais que o acolhi-
e à inabilidade das políticas públicas. mento e o atendimento. Pretendem ser modelos para
A DIVERSIDADE REVELADA
O CRD é a porta de entrada para travestis, que outros serviços sejam abertos no país, por isso são
transexuais, prostitutas, lésbicas, gays e michês que centros de referência. Capacitar profissionais da saúde
se encontram em situação de risco – vulneráveis à para que, num futuro, travestis e transexuais não neces-
droga, à violência, ao HIV/aids e ao abandono com- sitem recorrer a um ambulatório diferenciado.
pleto. É um espaço de acolhimento, convivência e A gestão do CRD é feita pelo Grupo Pela Vidda/
intervenção na trajetória social. O maior desafio é o SP, uma ONG que trabalha com HIV/aids há mais
aumento constante de usuários de crack e a reinserção de 20 anos, em parceria com a Secretaria Municipal
no trabalho. Cerca de metade dos freqüentadores se de Assistência Social da Prefeitura de São Paulo. No
dizem desempregados, e outra parte, profissionais do início, o CRD integrava o Projeto Inclusão Social
sexo. Para dar conta dessa tarefa, o CRD fez uma Urbana – Nós do Centro, com recursos da União
série de parcerias públicas e não governamentais. Europeia. O Ambulatório de Saúde Integral para 11
13. rência da Diversidade ilustra o nível de risco em que
se encontram. Entre os usuários que procuraram o
CRD até maio de 2010, 57% se auto-classificavam
como travestis e apenas 5% como transexuais. Os ou-
tros disseram ser gays, heterossexuais, bissexuais ou
lésbicas. No grupo todo, 40% viviam com HIV e 46%
não realizavam teste há mais de três anos, embora
relatassem situação de exposição. A metade se dizia
desempregada e 35%, profissionais do sexo. Um terço
deles era morador de rua.
Trata-se de uma população bastante diferencia-
da daquela que procura o ambulatório do CRT
DST/Aids-SP, o que é compreensível pela própria
proposta do serviço. De uma amostra inicial
cadastrada no ambulatório, 68,2% se auto-definiram
como transexuais e a demanda principal era a cirur-
gia de redesignação sexual e tratamento hormonal.
As travestis eram 35,3% e procuravam sobretudo pela
hormonoterapia e pela retirada de silicone industrial.
Partiu do então secretário estadual da Saúde, Luiz
Roberto Barradas Barata, morto em 17 de julho de 2010,
o pedido para que o CRT DST/Aids-SP colocasse em
andamento um programa voltado para travestis e
transexuais. “As condições estavam dadas, havia planos
À espera de atendimento no CRT DST/Aids-SP: antes do
nacionais e estaduais dizendo que tínhamos de trabalhar
gênero, do nome e do sexo, o mais importante é o respeito com essa questão, e havia a clareza de nossa parte de
que a vulnerabilidade dessa população precisava de
Travestis e Transexuais, por sua vez, é um serviço do respostas diferenciadas e concretas – e que essas respostas
CRT DST/Aids-SP, da Secretaria de Estado da Saúde passavam pelo acesso aos serviços de saúde. Para aquelas
de São Paulo, o primeiro centro voltado ao tratamento que são soropositivas, o serviço permite melhor acom-
e prevenção da aids, ainda no início dos anos 1980. panhamento. Com as outras, podemos trabalhar a pre-
“Participamos desde o início da construção desse venção”, diz Maria Clara Gianna, coordenadora do Pro-
ambulatório, por isso somos um parceiro prioritário”, grama Estadual DST/Aids-SP.
diz Irina Bacci, que coordena o CRD. No cadastro que Se oferecesse apenas um acolhimento diferenciado,
preenchem quando da chegada de um novo usuário, o ambulatório não atrairia nem teria a fidelidade que
vários itens tratam da saúde. “Sabemos há quanto tem- tem das usuárias. “A saúde integral, como o ambulató-
po não passam por um médico, se são soropositivas, se rio promete, inclui necessidades que vão da Atenção
injetaram silicone e se fazem uso indiscriminado de Básica à hormonoterapia, à fonoaudiologia, passando
hormônio. Quando é o caso, ligamos e agendamos uma por psicoterapia preparatória para a operação, no caso
consulta no ambulatório”, diz Irina. das transexuais”, diz a médica. As travestis, por exemplo,
A DIVERSIDADE REVELADA
O caminho para os serviços de saúde não preci- não iriam ao ambulatório se não contassem com um
saria, em princípio, passar pelo CRD, mas para al- acompanhamento hormonal e se não pudessem receber
guns é o único atalho. “Muita gente está vindo aqui cuidados no caso de danos provocados por silicone
porque não consegue acessar os serviços de urgên- industrial. Uma parceria com o Hospital Estadual de
cia e emergência”, diz Irina. “Estavam tão mal que Diadema, na Grande São Paulo, vem cuidando daquelas
pronto-socorro não aceita, Samu não resgata. Então cujo silicone migrou para outras partes do corpo,
nós levamos para o ambulatório, e na fase seguinte causando deformações e inchaços. Em uma amostra
ele encaminha para dentro da rede. Essa é outra im- de 72 travestis atendidas no ambulatório, 15 foram em
portância do ambulatório, abrir a porta da rede de busca de tratamento para o silicone industrial implantado.
saúde para essa população.” E quase todas procuraram o serviço para acompanha-
12 O perfil dos frequentadores do Centro de Refe- mento hormonal.
14. Rodrigo de Souza Ventura, 30 anos
QUASE TODOS os dias Fernanda sai de
Guarulhos e vai à região central de São
Paulo para ver Rodrigo. O trajeto toma
“
Eu me prostituia
e usava crack
quase uma hora. Fernanda tem 45 anos, porque não
é travesti, já foi auxiliar de enfermagem
queria morrer
por 20 anos, é portadora do HIV e agora
se trata de um câncer enquanto aguarda
a aposentadoria. Rodrigo de Souza Ven-
tura, 30 anos, também tem HIV, foi
michê em Maringá onde nasceu, depois
”
ceu na Praça da República, quatro me-
ses atrás, eu estava pesando 49 quilos,
dez meses antes tinha descoberto que
em Curitiba e São Paulo. Chegou a fa- estava com HIV, foi julho de 2009. Co-
zer 20 programas por dia, dentro ou fora mecei o tratamento e parei, achava que
dos cinemas da São João, cobrando R$ minha vida não tinha mais sentido. Todo
30 por saída. Desde que conheceu o dia eu me prostituía, todo o dinheiro que
CRD vem fazendo cursos e sonha com eu pegava ia para o crack. Mesmo sa-
uma casa pequena onde possa morar Curitiba, daí para São Paulo. “Estava bendo que tinha HIV, eu saia para noi-
com Fernanda e seus dois yorkshires. decidido a sair dessa vida.” Era maio de te. Eu já freqüentava o CRD há um ano
“Foi no CRD que comecei a acredi- 2007 e ao desembarcar em São Paulo, e meio, mas continuava fazendo pro-
tar que havia um outro caminho”, ele conta que roubaram os R$ 1.800 que gramas, o dinheiro ia todo para o crack,
diz. “Aqui me sinto seguro, meu sonho trazia e a saída foi retomar o caminho porque eu não aceitava que estava com
é trabalhar aqui, mostrar aos outros que da prostituição. “Conheci as termas aids. Os clientes não sabiam que eu ti-
sempre há uma saída.” Foi um colega Lagoa, a Fragata, a Praça da República, nha aids, nem queriam saber.”
de albergue, já nas primeiras noites em rua do Arouche, os ‘cinemão’ pornôs, Foi nos contatos no Centro de Refe-
São Paulo, que falou do CRD, um pon- que naquele tempo eram muitos. Foi rência da Diversidade, e com o círculo
to de encontro onde teria lanche à tar- num desses que me apresentaram o de amigos que foi formando, que Rodrigo
de, Internet, tevê e até mesmo a ajuda crack, minha decadência começou aí.” fez as primeiras tentativas de deixar a
de um psicólogo e a atenção de uma Usava tanto que num momento co- droga e a prostituição. “Aqui é a minha
assistente social. Isso foi no ano passa- meçou a vender o que tinha e a se primeira casa, porque nos albergues
do, 2009. Rodrigo continua morando envolver com todos os personagens você não tem um espaço seu, só tem
em albergue e fazendo tratamento no da noite, travestis, gays, prostitutas. horários para cumprir, até às 8 da noite
SAE de Campos Elíseos. Trabalho ain- “No cine Saci, quando funcionava, eu para entrar, 10 minutos para tomar ba-
da não conseguiu. cheguei a fazer R$ 480 reais com pro- nho, às 6 da manhã as luzes são acesas,
Rodrigo nasceu em São Jorge do Ivaí, gramas de R$ 20, R$ 30 reais. Saí você tem até às 8 para sair. Mas foi a
no Paraná. Logo a família foi para mais de 20 vezes em menos de 24 Fernanda, minha namorada, que me
Maringá, e quando perdeu o pai, atro- horas, o corpo destruído. Tinha o Las ajudou a mudar de vida. Ela sofreu mui-
pelado e bêbado, foi internado num or- Vegas, que foi desativado. O pessoal to, se envolveu com traficantes, com
A DIVERSIDADE REVELADA
fanato. Tinha cinco anos e ficou lá até deixava usar os banheiros, era crack usuários que já tentaram matá-la. O cân-
os 18. Na saída, trabalhou como vigi- e sexo dentro do cinema também. cer dela é de pulmão. A gente vive cui-
lante no centro da cidade, ruas que reu- Havia duas escadas laterais, duas sa- dando um do outro. Nesses cinco me-
niam prostitutas e michês. “A farda e o las de cinema e uma sala menor onde ses que estamos juntos, ela só não veio
cassetete chamavam a atenção e os ho- tinha uma tevê e o pessoal fumava me ver três dias. Hoje ela me deixou
mens começaram a se envolver comi- crack direto, e fazia sexo, não preci- aqui na porta, é ela que cuida de mim,
go. Ganhava até R$ 80 por programas sava nem ir para hotel. O cinema era da minha roupa. Largou o trabalho de
que rendiam R$ 200 por noite. Come- só fachada, lá dentro se fazia de tudo, enfermagem depois que pegou o cân-
cei a freqüentar saunas, conheci a ma- fechou alguns meses atrás.” cer, e ainda não conseguiu uma aposen-
conha e a cocaína.” Fernanda, sua namorada, é quem tem tadoria. Perdeu todo o cabelo que ti-
Com dinheiro no bolso, foi para dado força, diz ele. “A gente se conhe- nha, não pode mais trabalhar na noite.” 13
15. Débora Zaidan, 49 anos
O SALÃO DA cabeleireira Débora Zaidan
é um dos mais conhecidos numa das
principais avenidas de Diadema, na
Grande São Paulo. Seus clientes e vi-
zinhos sabem que Débora já foi uma
“mulher com corpo de homem”, e que
“
Eu já mudei
o sexo, mas
hoje é uma “mulher operada”, como ainda não
eles costumam dizer. Em 2006, fez
uma cirurgia de transgenitalização na
consegui mudar
clínica particular do cirurgião Jalma Ju- o nome
rado. O médico construiu uma vagina
valendo-se do tecido do pênis, como
se fosse uma luva ao contrário, uma
técnica aprimorada por ele e que diz
”
preservar a sensibilidade. homens, e não tive nada com outros, 15 anos, só um pouquinho, mas nunca
Para pagar os R$ 30 mil que custou a sem vagina e com vagina, assim como fiz uma avaliação. No ambulatório
cirurgia com a enfermagem e todos os qualquer mulher.” estou passando por todos esses médi-
procedimentos, Débora afirma que Depois da cirurgia, Débora teve um cos. Nunca tinha recebido essa atenção.
economizou durante anos. “Foi a úni- relacionamento que durou pouco mais Também percebo que estou encon-
ca forma que encontrei para sair da fila de um ano. “Hoje estou com outro trando gente como eu, coisa difícil,
do HC, onde aguardei por cinco anos companheiro, uma relação muito porque ficava isolada no salão.”
sem nenhuma perspectiva”, ela diz. tranquila, cada um em sua casa, eu em Débora conta que se descobriu
Débora tem 49 anos e desde os 25 vem Diadema, ele em Itaquera.” Filhos, ela transexual desde muito menina. “Eu
tentando a cirurgia, sempre carregan- pensa em adotar mais tarde, quando um percebia que era diferente dos outros,
do culpas quando um relacionamento dia tiver mais tempo e voltar para a ter- porque sentia aquele arrepio só quan-
terminava. “Achava que os namorados ra de onde veio, Fortaleza, no Ceará. do via os meninos, não as meninas.
iam embora porque eu não tinha uma Débora soube do Ambulatório de Quando eu via as meninas eu me sentia
vagina. Aquilo sempre me deprimia.” Saúde Integral para Travestis e Tran- igual, só que eu notava que nas partes
Hoje Débora diz entender que a ci- sexuais do CRT DST/Aids-SP quando genitais eu era diferente. Na minha
rurgia, embora um direito fundamen- procurou o serviço do HC e não época, lá no Ceará, tudo era mais com-
tal para as transexuais, não é tudo no conseguiu consulta com o endocri- plicado, demorou muito para a eu en-
relacionamento. “Tive vários namora- nologista “porque tinha sido operada tender essas coisas.”
dos, até casada já fui. Morei com um em clínica particular”. “Eu precisava de Débora conseguiu ganhar um lugar
companheiro por 11 anos antes da ci- um acompanhamento hormonal porque na fila, juntar dinheiro e fazer a cirur-
rurgia, ele nunca falou em operação. Eu sempre tomei remédio por conta, e gia, conquistou o respeito de seus
A DIVERSIDADE REVELADA
achava que sexo segurava alguém, mas com a idade chegando os riscos aumen- clientes e vizinhos como mulher trans,
hoje vejo diferente, o sexo não impor- tam. Foi aí que alguém do posto de mas ainda não conseguiu mudar sua
ta. A cirurgia veio para me completar, saúde aqui do bairro me falou do documentação. “Estou com todos os
isso sim. A insegurança que eu tinha, ambulatório da Santa Cruz.” laudos e papéis num serviço gratuito
hoje não tenho mais, me sinto tranquila, Débora marcou uma consulta pelo aqui de Diadema, mas está demoran-
a tensão do relacionamento terminou. telefone e vem passando pelos médi- do muito.” No caso da transexua-
Quando me olho no espelho, não me cos desde o final de 2009. “Eu nunca lidade, como em vários outros, a me-
vejo mais como alguém com o sexo tinha ido antes a um ginecologista. Não dicina andou mais rápido que a Justi-
deformado. Mas para mim o prazer não estava mais fazendo psicoterapia, nem ça. Se morrer, Débora será enterrada
depende só do sexo, porque ele é psi- ia ao endocrinologista. Também tenho com corpo de mulher e na lápide esta-
14 cológico. Tive muito prazer com alguns uma aplicação de silicone industrial faz rá escrito seu nome de homem.
16. TRANSEXUAIS
E TRAVESTIS
Respeito e direitos em adequação
Travestis e transexuais formam o grupo mais
estigmatizado e por isso o mais afastado e
incompreendido nos serviços de saúde. O
acolhimento proporcionado pelo CRD-Pela
Vidda/SP e a atenção à saúde oferecida pelo
ambulatório do CRT DST/Aids-SP são
exemplos de iniciativas bem-sucedidas que se
empenham para mudar esse cenário.
Q
uem observa a sala de espera do Ambula- gestos masculinos, mas que são biologicamente do sexo
tório de Saúde Integral para Travestis e feminino. Têm tudo de homem, mas escondem uma
Transexuais, na Vila Mariana, em São Pau- vagina, disfarçam os seios e seus corpos carregam útero
lo, vai notar ali homens e mulheres, como e ovários. São os homens trans.
se vê em qualquer sala de espera de um Entre esses homens trans está Alexandre Santos, o
serviço de saúde. Trata-se, no entanto, de Xande, ex-presidente da Associação da Parada do Or-
um espaço onde sexo e gênero não obedecem à divi- gulho GLBT de São Paulo, a maior manifestação do
são convencional entre masculino e feminino. Algu- gênero no mundo, que ainda não se livrou da mens-
mas das presentes são travestis, pessoas que nasceram truação. Espera pela cirurgia para a retirada do ovário
do sexo masculino e que optaram por desenvolver os e da mama. O promotor de eventos Alexsandro San-
A DIVERSIDADE REVELADA
traços e as atitudes das mulheres, porque é assim que tos Silva, que há cinco anos é acompanhado em cen-
se sentem. A maioria ali são transexuais. Parte são tros de referência e que deseja se casar até o final do
mulheres trans que se apresentam como mulheres, ano – desde que retire a mama e mude o nome nos
pensam como mulheres, agem e têm cérebro de mu- papéis. Há também o professor de idiomas Victor de
lheres, mas que biologicamente são homens. Podem Abreu, que vive com a companheira e sonha em guar-
ser bonitas, elegantes, a voz com a modulação das dar um óvulo para um futuro filho, antes que o uso de
vozes das mulheres, mas conservam o órgão sexual hormônios o deixe estéril.
masculino. São chamadas de mulheres trans porque Na mesma sala de espera está Andréia Ferraresi,
estão se adequando ao gênero feminino, ao qual per- 67 anos, que nasceu biologicamente do sexo mascu-
tencem. Entre elas, nessa sala de espera, há uns pou- lino e há quatro décadas cobra o direito a uma cirur-
cos homens, voz grossa, alguns com barba no rosto, gia que readequaria sua genitália em uma vagina. 15
17. Recepção do ambulatório do CRT DST/Aids-SP: porta de acesso para a atenção integral à saúde
E Luiza Claudia Santos, que vive com um compa- Os decretos recentes estão garantindo o nome
nheiro há 14 anos e que ainda sonha em exibir a ele social em alguns serviços públicos para travestis e
uma vagina, em lugar de esconder o pênis. transexuais. Mas a mudança do nome e do sexo nos
São alguns dos dramas e sonhos que se escondem documentos, fato que mais trauma provoca nas pes-
debaixo dos lençóis e que estão ali silenciosos na sala soas trans, só é concedida mediante uma ação na
de espera. Na rua, nas escolas, no mercado de traba- Justiça, e diante de laudos que comprovem a cirur-
lho, ou quando procuram um serviço de saúde, as gia, um sonho distante para muitas delas.
pessoas transexuais e travestis amargam a discrimina- Não há levantamentos que quantifiquem essa po-
ção e o preconceito. O que vale é o nome no docu- pulação, nem estimativas sobre sua prevalência. A
mento, não a aparência, os gestos, os cuidados. Antra, Associação Nacional das Travestis e
Depois de décadas de humilhações, o Estado de Transexuais, estima que sejam 1,2 milhão no país –
São Paulo aprovou no início de 2010 uma lei que 800 mil travestis e 400 mil transexuais. Possivel-
garante aos transexuais e travestis o direito de serem mente um número de difícil comprovação, mas en-
chamados pelo nome social nos serviços públicos. Nos quanto o governo não considerar essa população
últimos meses, cerca de 12 Estados e vários municípios nos censos demográficos, é o número que continua-
baixaram decretos garantindo o mesmo direito na edu- rá valendo. Mesmo reduzindo esse número a um
cação e nos serviços de saúde. Atendem a uma reco- décimo, as transexuais seriam 40 mil. Consideran-
mendação da 1ª Conferência Nacional LGBT, de 2008, do que todas desejam a cirurgia de redesignação
e a uma antiga reivindicação dos ativistas. Uma lei sexual, seriam necessários 50 hospitais fazendo 40
paulista, existente desde 2001, pune quem pratica qual- cirurgias por ano ao longo de 20 anos. Em 2008,
quer ato discriminatório contra homossexuais, bissexuais, uma portaria do SUS incluiu a operação entre seus
travestis e transexuais em todo estabelecimento público procedimentos e definiu quatro centros de referên-
A DIVERSIDADE REVELADA
– de delegacias, hospitais a lanchonetes e empresas. cia para a sua realização. Um deles, o Hospital das
Mas apenas em março de 2010 um decreto dispôs so- Clínicas da Faculdade de Medicina da USP, passou
bre as penalidades. em junho de 2010 a fazer 12 cirurgias por ano. Até
Ser chamado publicamente pelo nome que não então vinha fazendo duas.
corresponde à aparência é o desrespeito responsável A Secretaria de Estado da Saúde de São Paulo,
pela fuga de milhares de travestis dos serviços de saú- por meio do Ambulatório de Saúde Integral para
de. É também a causa da evasão de mais da metade Travestis e Transexuais do CRT DST/Aids-SP, busca
das travestis dos bancos escolares. Em todas as situa- uma parceria para a abertura de mais um serviço no
ções de convívio com a sociedade, elas são a parcela Estado. Quando a intenção se concretizar, o Estado
da população LGBT mais estigmatizada e com me- de São Paulo deve fazer 30 cirurgias por ano, somadas
16 nor índice de escolaridade. as do HC com a do futuro serviço.
18. Foram 50 anos de olhos fechados, paralisando avanços da
medicina e atrofiando milhares de vidas
As cirurgias de transgenitalização vêm sendo reali- Dentro de alguns anos, uma ou duas décadas tal-
zadas no mundo desde a década de 1950, especial- vez, quando a idade “aposentá-las” como profissio-
mente em mulheres trans – pessoas que nasceram do nais do sexo, o abuso de drogas pesar, o silicone in-
sexo masculino, mas que na verdade são mulheres, dustrial mostrar seus efeitos e a aids afastá-las das
nas quais o pênis é retirado e uma vagina é construída. ruas, o mesmo Estado que as ignorou não saberá o
No Brasil, no entanto, só em 1997 o Conselho Fe- que fazer. Assim como a legião de usuários do crack,
deral de Medicina autorizou esses procedimentos as travestis descartadas serão um peso enorme para
como experimentais e em ambientes universitários. uma rede pública e uma sociedade que não sabem,
Em 2002, a cirurgia foi liberada em qualquer hospi- nem nunca souberam, como lidar com elas. A
tal, apenas em mulheres trans, e seguindo um proto- desconsideração será cobrada em dobro.
colo do CFM. Foram 50 anos de olhos fechados para Algumas iniciativas públicas e não-governamentais
essa população, o que resultou numa carência abso- começam a mudar esse cenário. Uma delas é o Cen-
luta de cirurgiões especializados e em milhares de tro de Referência da Diversidade, o CRD, parceria do
vidas “atrofiadas”. Muitos serviços de psicoterapia Grupo Pela Vidda/SP com a Prefeitura de São Paulo.
para transexuais foram fechados. Ou interromperam A outra é o Ambulatório de Saúde Integral para Tra-
novas inscrições, uma forma de camuflar o tamanho vestis e Transexuais do Centro de Referência e Trei-
das filas e de evitar que mais transexuais apostassem namento DST/Aids-SP, da Secretaria de Estado da
suas vidas numa cirurgia que não viria nunca. Aos 67 Saúde. A primeira é a porta aberta para aqueles em
anos, Andréia exibe o primeiro laudo indicando-a maior situação de risco e abandono entre a população
como apta para uma “cirurgia de plástica dos genitais” LGBT. É nesse primeiro socorro, que antes da con-
e assinado ainda em 1977 por médicos do HC. Três versa com a assistente social e a psicóloga oferece um
outros laudos foram feitos em anos e décadas seguin- sofá para um cochilo, que muitos estão encontrando
tes. Agora matriculada no Ambulatório de Saúde um caminho para sair da rua e das drogas. O segundo
Integral para Travestis e Transexuais do CRT DST/ é um ambulatório especializado onde travestis e
Aids-SP, Andréia ainda não perdeu a esperança. “Não transexuais são cuidadas na sua saúde integral e nas
passa pela cabeça dos médicos e diretores de hospitais suas necessidades diferenciadas. A maioria dos servi-
quanto sofre um transexual”, diz. ços da rede de saúde limita sua atenção ao masculino
Enquanto as transexuais aparecem como vítimas, e ao feminino. Pessoas em fase de adequação de sexo
dignas de piedade e necessitadas de cuidados médi- não cabem nos seus protocolos, nem são considera-
cos – sentimentos e abordagem que elas rejeitam – das nas suas práticas de assistência.
as travestis são mostradas como “sem vergonhas” e A proposta e o cotidiano desses dois serviços apa-
marginais, que modificam o corpo para ganhar di- recem nos relatos de quase vinte transexuais, traves-
nheiro. Em número muito maior que o das tis e michês ouvidos nesta publicação. Ao lado deles,
transexuais, elas são as principais vítimas da discrimi- um número significativo de profissionais foi entre-
nação da sociedade e da desconsideração dos servi- vistado. O resultado é um retrato de dupla face. De
ços públicos. Jovens e saudáveis na sua maioria, não um lado, revela o abandono e as dificuldades que
A DIVERSIDADE REVELADA
procuram nem sentem necessidade da rede de saú- enfrentam essa população. De outro, o empenho dos
de. Muitas, devido ao preconceito, se envolvem com profissionais e a surpreendente volta por cima de
drogas e álcool e abusam do silicone industrial e de pessoas já tidas como irrecuperáveis.
hormônios para modelar o corpo mais depressa. É o que mostram depoimentos de personagens
Mostram-se pessoas divertidas quando são vistas que estão conseguindo escapar ao destino da rua,
nas esquinas das avenidas escuras, seminuas e convi- das drogas e da doença. Como Claudia Coca, travesti
dativas. Mas formam o grupo que mais sofre violên- que já foi prostituta, drogada, presidiária, e que ao
cia – nos primeiros meses de 2010, 28 foram assassi- encontrar o CRD descobriu suas habilidades como
nadas no país. E constituem um dos grupos de maior educadora social. A travesti Mikaela Rossini, que
vunerabilidade para a infecção pelo HIV. Entre as que encontrou no CRD uma saída para sua vida de pros-
procuram o CRD, cerca de 40% estão infectadas. tituta e drogada “babadeira”. Agora se prepara para 17
19. fazer faculdade de tecnologia da informação. Marcia-
no Alves Fernandes, que já foi cafetão e dependente
de crack, e que agora trabalha e cuida da saúde.
Por uma
Por sua vez, relatos colhidos no Ambulatório de
Saúde Integral para Travestis e Transexuais do CRT
gramática
DST/Aids-SP demonstram a importância de um ser-
viço de saúde integral e especializado. Muitos
transexuais que sonham com a cirurgia de redesig-
transexual
nação sexual encontraram ali a única porta para se Uma das dificuldades dessa
integrar a um grupo de psicoterapia como fase pre- publicação foi adequar o
paratória. A transexual Vanessa Pavanello, agente gênero e a sexualidade dos
social e universitária, é uma das que estão começan- personagens ao gênero
do no grupo e passando por consultas médicas. estabelecido pela gramática.
Vanessa tem 41 anos, viveu 12 com um companhei-
Não há, nas cartilhas,
ro e nunca tinha encontrado um
referência a um “terceiro
serviço especializado. O transe-
sexo”, por isso optou-se por
xual Alexsandro Santos Silva vem A escola deixar de lado essa
do interior de São Paulo a cada
15 dias para participar das con- poderia preocupação. De acordo com
sultas e terapias. a gramática, onde há pelo
Dez anos atrás, travestis e
contribuir
menos um elemento
transexuais também não tinham para uma masculino, o gênero que
a quem recorrer quando se sen-
tiam abusadas e discriminadas. nova relação predomina é o masculino,
Hoje vários Estados contam com embora grupos ativistas
mecanismos e instrumentos de
entre as reivindiquem, corretamente, a
proteção, embora a maioria ain- pessoas se referência sempre aos dois
da não passe de intenções no pa- gêneros. O correto seria dizer
pel. Ainda falta o sentimento de ensinasse aos “os” transexuais e “as”
que o importante está na educa-
ção. Uma escola que ensine aos
alunos o transexuais, por exemplo. Mas
como se referir a uma mulher
alunos a respeitar uma travesti ou respeito à trans, que na verdade é
uma pessoa transexual colega de
classe estará contribuindo para diversidade biologicamente homem (do
que uma nova relação se estabe- sexo masculino)? Ou a um
leça entre as pessoas. A maioria homem trans, cujo nome é
das travestis e transexuais ouvidas nesse trabalho rela-
feminino? Se ainda faltam
ta humilhações sofridas nas escolas. Depois da famí-
definições sociais e médicas
lia, a escola e o local de trabalho têm sido o principal
palco das discriminações. Os sentimentos, os fatos, os para esse “gênero em
A DIVERSIDADE REVELADA
julgamentos e as sugestões, podem ser extraídos dos adequação”, é natural que a
depoimentos colhidos. gramática nada tenha a dizer a
Em abril de 2010, o Governo Federal e repre- respeito. Decidiu-se, portanto,
sentantes de movimentos de travestis lançaram a cam- que os textos desta publicação
panha “Sou Travesti – Tenho Direito de Ser Quem
usariam o masculino ou
Sou”, voltada aos serviços de saúde. “Esta é a de-
manda mais importante das travestis, que têm o di-
feminino dentro dos
reito de cuidar de sua saúde. Elas têm problemas contextos, facilitando a leitura
específicos e o sistema de saúde tem que atender às e a compreensão.
suas singularidades”, afirmou à época o ministro da
18 Saúde José Gomes Temporão.
20. Agnes Prado dos Santos, 28 anos
AGNES traz entre os seios uma tatua-
gem com seu nome, uma cruz e uma
borboleta. Fez isso quando tinha 23
anos. Deprimida, tinha decidido se ma-
tar, mas não se conformava com o fato
“Não me
enterrem como
de que na lápide ficaria gravado seu
homem
nome masculino. Com a tatuagem, sa-
beriam que estavam enterrando uma
mulher, pensava. O pior da crise pas-
sou, ela desistiu do suicídio, mas a tatua-
gem entre os seios permanece como
”
lésbica, o que a torna sujeita a um du-
uma forma de dizer que não é homem, plo preconceito. “Apesar de ter a mi-
nem nunca quis ser. Agnes ainda espe- nha identidade feminina, eu gosto de
ra mudar seu nome na Justiça, mas se mulheres, assim como existem transe-
vê muito longe de uma cirurgia de xuais gays, homens trans que gostam
transgenitalização por conta das filas de de homens. Imagine minha alegria quan-
espera. Tudo que faz é o acompanha- do senti que não era a única. É muito
mento terapêutico no Hospital das Clí- se a chefia. “Use o banheiro unisex”, complicado para as pessoas entende-
nicas há um ano, e o comparecimento um banheiro que ficava escondido e qua- rem que eu me identifico mais como
fiel às Terças-Trans, promovidas pelo se desativado. Agnes conta que escre- uma mulher lésbica do que com uma
CRD, o Centro de Referência da Di- veu para a superintendência, que res- mulher trans.”
versidade. Se morrer atropelada – ela pondeu autorizando o uso de roupas fe- Agnes nasceu biologicamente ho-
imagina – trocarão suas roupas femini- mininas e o banheiro das moças. Mas logo mem, mas se sentia mulher. Em lugar
nas por um paletó de homem e na lápi- aconteceram protestos de funcionárias, de gostar de homem, porém, sentia
de irá seu nome masculino, que ela não a proibição voltou e ela ainda aguarda atração por outras mulheres. “Quando
quer pronunciar nem revelar. Será que uma decisão da superintendência para era criança era uma doideira com-
alguém notará a Agnes tatuada no colo usar o banheiro e um crachá feminino. preender tudo isso, na minha cabeça
dos seios?, ela pergunta. Agnes conta que conheceu o CRD eu não era gay, não era travesti, não
Agnes Prado dos Santos, 28 anos, dois anos atrás, em 2008, quando pro- era trans, nem nada... Aquela coisa de
pode ser vista nos corredores do Insti- curava grupos de transexuais na Inter- menino gostar de menina, não valia para
tuto de Psiquiatria do Hospital das Clí- net e soube das “terças-trans”. “Pro- mim, eu não me sentia menino, e como
nicas, onde é “funcionário administrati- curava pessoas que tinham o mesmo menina eu deveria gostar de menino,
vo”, traja uma jaqueta masculina da ins- desejo que eu, que me orientassem a mas eu queria gostar de menina como
tituição disfarçando blusa e calças femi- fazer um tratamento. Aqui no ‘terça- menina, isso não batia. Custou para eu
ninas. Tem os cabelos na altura dos om- trans’, quando ouço outros relatos, vejo descobrir que identidade de gênero e
A DIVERSIDADE REVELADA
bros, encaracolados, quem a vê no tra- que minha vida foi até tranquila. Sem- sexualidade são coisas distintas.”
balho não consegue saber se é homem pre acredito que vou acrescentar algu- O nome Agnes, que ela traz no pei-
ou mulher. Fora dali, Agnes só usa rou- ma coisa. É também um pouco de to, veio ainda da infância quando assis-
pas femininas, e quase sempre pretas. militância, eu quero fazer algo pelo tia desenhos japoneses como Jaspion,
Foi assim que se vestiu quando compa- movimento. E queria contar coisas que Flashion e Jirai. “Em um dos episódios
receu ao Instituto de Psiquiatria depois não conseguia dizer na psicoterapia do havia uma ninja que se chamava Agnes.
de ter passado em um concurso do Hos- HC, porque lá me sinto presa a um ró- Uma mulher ninja que enfrenta todos
pital das Clínicas, dois anos atrás. “Quan- tulo de transexual.” os perigos, eu quero ser assim, quero
do viram que eu me vestia como mu- O que imaginava ser um segredo só ser forte assim. E fiquei com aquele
lher, não sabiam o que fazer comigo”, seu, revelou-se um sentimento com- nome na cabeça... Acho que tinha uns
conta. “Você vai ter que disfarçar”, dis- partilhado por várias colegas. Agnes é sete ou oito anos.” 19
21. CRD
O acolhimento
como “porta de
entrada”
Entre 2009 e 2010, o número de
atendimentos mensais aumentou
em 115%. A população em
situação de rua e usuária de crack
tem sido a principal causa desse
crescimento. Entre os que
procuraram o CRD em 2010, um
terço era morador de rua.
espaço do Centro de Referência da Di- As paredes do Centro estão tomadas por grafites e
O
versidade, com a porta aberta para a cal- quadros pintados pelos próprios usuários durante as
çada da rua Major Sertório, é um lugar sessões de arteterapia. Três computadores ficam à dis-
que convida a entrar. Nenhum obstáculo posição e a concorrência entre os usuários exige ins-
separa a porta dos sofás vermelhos mo- crição no livro sobre a mesa da recepcionista Thaís.
rango dispostos diante de uma tevê sem- Nas salas no fundo ficam Taís Diniz Souza, a assistente
pre ligada. A mesa da recepcionista Thaís di Azeve- social, e Fernanda Maria Munhoz Salgado, a psicóloga.
do fica discreta à direita da sala, e o segurança do Um pequeno quadro indica se estão disponíveis ou
espaço é instruído para cuidar da ordem, não con- não, mas a janela de vidro permite que se observe de
trolar a entrada. Quem quiser chegar e apenas esti- fora, e as pessoas podem entrar sem bater.
A DIVERSIDADE REVELADA
car-se no sofá não será incomodado. Alguns chegam “Queríamos fugir da cara de equipamento públi-
ali ainda “bodeados”, outros dormiram na rua. Ti- co burocrático”, diz Irina Bacci, que passou a dirigir
ram um cochilo antes de se animar para uma con- a segunda fase do CRD, voltada sobretudo para o
versa, ou antes da chegada de dona Selma, oferecen- acolhimento. “Fizemos uma recepção confortável,
do lanche e um suco. Na tarde da sexta-feira, 16 de com sofá, tevê, com livros, colocamos uns computa-
julho, um dos dias mais frios do ano, havia pelo me- dores, mesmo que só para entrar no Orkut, Facebook.
nos 30 pessoas no espaço, entre travestis, transexuais O importante era despertar outros interesses que não
e michês. Muitos se apertavam no sofá. Parte deles fosse só a droga, deixá-los menos bodeados.” A pró-
iria para algum albergue no início da noite, outros pria tevê, mesmo que não componha um espaço ideal
dormiriam na rua. Nas noites de frio, os pernoites para a inclusão, os leva a prestarem atenção na pro-
20 em albergues são mais disputados. gramação, a discutirem sobre canais. “Às vezes
22. folheiam um livro, não ficam com aquele olhar vazio
com que costumam chegar”, diz Irina. “Isso é im-
portante para nós, como equipe, observar o despertar
deles. Ver qual tipo de ajuda estão pedindo.”
O sofá é “nossa porta de entrada”, diz a psicóloga
Fernanda. “É um espaço aconchegante para dizer ‘eu
estou aqui, eu preciso ficar aqui’. Depois começamos
um convencimento, pode ser eu mesma, ou qualquer
outro educador social do CRD, porque todos ali te-
mos essa função. ‘Olha, quando precisar venha falar
comigo, estou naquela salinha’, a gente diz. No se-
gundo dia passamos de novo para um olá. Assim tem
sido com muitos, alguns dias ou uma semana depois
estão fazendo parte das oficinas. Outros não apare-
cem mais. Mas a porta continua aberta.”
Os números e o perfil dos usuários do CRD mos-
tram a dimensão do desafio. Desde que foi aberto
até setembro de 2010, um total de 1.486 pessoas pas-
saram pelo Centro, e dessas 1.276 foram cadastradas.
O número total de atendimentos em 2009 foi de 9.539;
de janeiro a setembro de 2010 os atendimentos
somaram 15.406. A média mensal passou de 795 em
2009 para 1.712 em 2010. Um aumento de mais de
115%, demanda que já deixou o CRD no seu limite.
O crack vem sendo o responsável pelo crescimento
brusco dessa população, que na sua maioria já é desem-
pregada, vive na rua ou é profissional do sexo, diz Irina.
Essa é uma demanda não só do CRD, mas em todos os
serviços de assistência social de São Paulo e de muitas
cidades. Passou a ser uma prioridade de saúde pública
com a qual o governo não sabe ainda lidar.
“O crack está matando nossos moradores de rua,
especialmente travestis e gays”, diz Irina, “talvez mais
do que já matou a aids”. Agora, as duas “epidemias”
estão associadas. Travestis e michês relatam o convite
freqüente de clientes para dividirem a droga nos quar-
tos de hotel, quando antes era apenas o álcool. Neste
cenário, a camisinha costuma ser deixada de lado. “Uma
vez que você começa, não para mais”, diz Rodrigo de
Souza Ventura, agora um assíduo frequentador do CRD
A DIVERSIDADE REVELADA
e em fase de tratamento. Rodrigo já foi michê e se ini-
ciou no crack convidado por clientes.
“A rede social e de saúde vê o usuário de droga
meio como um criminoso, um cara que não tem mais
jeito. Isso preocupa muito, porque hoje é o nosso
maior público”, diz Irina. A exclusão, que pode le-
var à droga e à rua, começa lá atrás, “quando a socie-
dade discrimina, coloca fora de casa”. O roteiro é
conhecido: a expulsão da família, a “pista”, da “pis-
ta” à construção do corpo com silicone industrial, a
droga e o álcool na noite, até que a “pista” já não 21