Este artigo analisa o paralelo entre os personagens Common e Gentleman na obra Grandes Esperanças de Charles Dickens. O artigo explora como o personagem Pip, um garoto pobre, tenta se transformar em um gentleman depois de receber dinheiro de um benfeitor anônimo. O contraste entre Pip e Herbert, um gentleman sem dinheiro, é examinado para entender a definição de gentleman na era vitoriana e como a sociedade pode modificar a essência de uma pessoa.
Concepção de common x gentleman na obra grandes esperanças
1. CONCEPÇÃO DE COMMON x GENTLEMAN NA OBRA
GRANDES ESPERANÇAS
Marta Maria de Sousa Matos1
RESUMO
Este artigo tem por objetivo analisar como se dá o paralelo entre Common e Gentleman na
obra Grandes Esperanças de Charles Dickens. Para tanto, verificaremos os relatos do
personagem Pip, um garoto pobre, de essência comum, que ao receber dinheiro de um
benfeitor anônimo tenta trasnformar-se em um gentleman. Para tal transformação, Pip
contará com a ajuda de Herbert, um garoto que nasceu em berço nobre, mas não possui
dinheiro para ostentar a riqueza. Este forte contraste está presente do meio da obra até o
final, e provoca o leitor para se ater a grande quantidade de auto-análise, muitas vezes de
forma dissimulada do autor Charles Dickens no intuito de traçar um retrato ou uma
definição do conceito de Gentleman. Dickens tentou toda a vida ser um gentleman, pois o
pai ostentava riqueza, mesmo sem a possuir. Dickens foi educado em uma família de classe
média, mas que não possuia o suficiente para se manter neste pantamar. Porém, mesmo
com a prisão do pai, pelo não pagamento de dívidas, Dickens fez questão de manter por
muito tempo essa parte de sua vida em sigilo. E ao começar a ganhar dinheiro com as suas
obras, fez grandes esforços para manter-se como gentleman. No decorrer do trabalho
analisaremos também a relação em tornar-se um gentleman e se abster de trabalhar. Já que
na era vitoriana, época em que se dá o desenrolar da obra, um gentleman era caracterizado
como alguém que não tinha necessidade de trabalhar para sobreviver. O personagem Pip, ao
receber o dinheiro, não trabalha de forma alguma para aplicar o que recebeu, revertendo em
lucros maiores. Veremos os motivos dessa concepção do autor, entre ser gentleman e não
necessitar de trabalho para manter-se bem visto pela sociedade.
PALAVRAS-CHAVES: Gentleman. Comum. Grandes Esperanças.
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Acadêmica do 5º período do Curso de Letras – LI da Universidade Estadual Vale do Acaraú – UVA.
2. INTRODUÇÃO
Um Gentleman na sociedade vitoriana era um homem com modos,
não especificamente rico, e sim nascido em berço nobre. Sabia de assuntos
variados e despertava comentários interessantes que cativava tanto a
mulheres, como também ao público masculino por sua elegância e classe.
Um homem não se tornava um gentleman, ele nascia um, e não tinha
necessidade de trabalhar para viver.
Um perfeito gentleman na obra Grandes Esperanças era Herbert,
este foi incubido de ajudar Pip a tornar-se um gentleman. Pip era um garoto
pobre, de origem comum, que tinha um futuro traçado, tornar-se um ferreiro
e trabalhar na ferraria do cunhado Joe. Mas, ao receber uma fortuna de um
anônimo deixa esses planos de lado e vai morar em Londres para se educar
e aprender a ser um gentleman, assim como ele mesmo relata “O pai de
Herbert aconselhou-me a frequentar certos lugares em Londres, para
aaquisição dos mínimos rudimentos do que eu precissasse”. (Cap. 24, p.
224.).
Pip jamais havia percebido que era diferente das outras pessoas, que
o tratavam com certa indiferença, ele era satisfeito com seu destino de
tornar-se um ferreiro. Mas tudo muda na visita feita à Miss Havisham,
quando Pip é humilhado por Estella,
“Disse Estella, com desprezo ___ e que mãos grosseiras ele
tem! E as botas! Trabalhadorzinho estúpido e desajeitado [...]
Eles nunca haviam me incomodado antes, mas agora tais
apêndices vulgares me incomodam. […] Senti-me tão
humilhado, ferido, agredido, insultado, com raiva, pesaroso.”
(Cap. 08, p. 82 – 84).
Até aquele momento Pip não tinha idéia que ele era diferente, tinha
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3. um estilo de vida completamente oposto ao de Estella. E então começa a se
incomodar pelo motivo de estar mal vestido e não saber se expressar de
forma adequada. Ele passa a sentir vergonha de si próprio, da sua família e
do modo como vive, mas não ver outro caminho a ser percorrido para
tornar-se um cavalheiro que estivesse à altura de Estella, pois ele é pobre e
ela rica, e esse já é por si um longo percurso que os separa.
O contraste entre Herbert e Pip está no fato daquele ser um
gentleman porque era de linhagem nobre e recebeu educação condizente
com sua posição, porém sua família não possuia dinheiro para manterem-se
nesse pantamar, como ele mesmo diz “pois tenho de ganhar meu próprio
pão, e meu pai não pode me sustentar”. (Cap. 21, p. 202). Já Pip era comum
por natureza, estudou pouco na infância, e não foi educado para se tornar
outra coisa além de um ferreiro. Os dois garotos se encontram e tornam-se
amigos, Herbert tenta ensinar a Pip como um gentleman se comporta, se
veste, fala. Pip aprendeu bem as lições e aparentava ser um gentleman,
porém a sua essência não era aquela, ele era simples e tinha outros valores.
No entanto, Dickens nos leva a reflexão sobre a possibilidade da
sociedade mudar até os nossos valores. Pip tinha valores como simplicidade,
companheirismo, honestidade e ao tornar-se um gentleman esqueceu da
família, resumida apenas ao cunhado Joe, esqueceu a simplicidade. Algumas
vezes, Pip lembrava-se de como era a vida simples ao lado do amigo Joe,
porém logo estava convencido que lá não era mais o seu lugar. Nessa
passagem, ele demonstra sentir vergonha do único amigo “Queria fazer de
Joe uma pessoa menos ignorante e comum, para que tivesse à altura de
minha convivência e menos exposto à reprovação de Estella” (Cap. 15, p.
135).
Mesmo convivendo com esses pensamentos, ele não muda e
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4. continua sua vida de ostentação, de cavalheiro educado e rico. No final da
obra, quando Pip volta a ser pobre, ele retorna ao vilarejo onde nasceu para
reencontrar Joe, com esperanças de casar-se com a amiga de infância Biddy.
Mas ao chegar depara-se com Biddy casada com Joe e com um filho fruto
dessa união. Percebemos então o egoísmo e prepotência de Pip, ao supor
que Biddy iria passar o resto da vida esperando o dia que ele decidisse amá-
la. Como se as pessoas fosses peças de um jogo controlado por ele. Essa é a
essência de um gentleman, prepotente, egoísta e não do garoto comum,
companheiro, simples e fiel. Então a sociedade foi capaz de modificar a
essência de Pip, tornado-o um gentleman mesmo sem ele ter vindo de berço
nobre.
Essa análise feita por Dickens nas entrelinhas da obra leva o leitor a
conclusão que no final do século XIX poderia ser aceito na sociedade um
homem, que vindo de berço comum, mas que ao estudar em escolas de
renome ser um gentleman, sem importar qual seria sua origem. Vemos então
a importância da literatura para estudo das transformações sociais ocorridas
em determinadas épocas. E como os escritores contribuíram para este
estudo, ao relatar a realidade social, as transformações, as injustiças e as
vitórias que presenciaram.
Como relata Williams em um dos seus textos, Dickens foi um dos
escritores que mais tiveram excelência em retratar a sociedade em que
viveu. Williams diz:
“Embora Dickens fosse afetado pelas imagens da cidade como
uma nova espécie de ordem social, e no caso de Coketown e
alguns outros, de importância reduzida, em outras obras suas,
realizasse projeções diretas dessa imagem, sua reação à nova
experiência urbana era basicamente mais diversificada e, ao
meu ver, mais arguta [...] Pois este é o outro aspecto da
originalidade de Dickens. Ele consegue dramatizar as
instituições sociais e suas consequencias que não se revelam à
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5. observação física comum. Ele as toma e as apresenta como se
fossem pessoas ou fenômenos naturais.” (WILLIAMS, 1990, p.
215 – 218).
Outro personagem que também é gentleman, pelo berço nobre e não
por suas ações é Dentley Drummle, que Pip conhece ao chegar em Londres,
segundo Pip “Drummle era tão rabugento, ocioso, arrogante, sovina,
reservado e desconfiado” (Cap. 25, p. 231). Vemos então as características
de Drummle, e percebemos que a prepotência faz parte do seu íntimo. E Pip
adquiri de certa forma essa prepotência, talvez pelo ambiente que está
inserido, pelo tipo de pessoa com quem ele passa a conviver.
A relação entre ser gentleman e não trabalhar é uma das
caracterísitcas marcantes nas obras de Dickens, ele sempre procura
relacionar seus personagens a coisas, a fatos. Quando Pip era um garoto
comum ele tinha um enorme desejo de trabalhar, como se o trabalho fosse
um tipo de libertação, mas ao tornar-se gentleman esquece completamente
este desejo pelo trabalho e isso muito nos diz sobre sua personalidade.
Dickens não precisa dizer ao leitor quem são seus personagens, ele os
apresenta a nós pelos fatos que ocorrem na obra, por ações, por coisas
inanimadas, como fenômenos da natureza. Williams relata que,
“Este método é realmente notável. Naturalmente, baseia-se em
certas propriedades do idioma: percepções entre pessoas e
coisas. Mas em Dickens ele tem uma importância crucial. É
uma maneira consciente de ver e mostrar”. (WILLIAM, 1990,
p. 220).
Pode-se ainda tirar mais conclusões desse paralelo entre ser
gentleman e a abstinência do trabalho. Dickens tem um traço humorístico
em suas obras, assim como Pina relata. Então ele poderia estar relacionando
nas entrelinhas que o homem ocupante de um cargo na sociedade, por ser
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6. um gentleman não cumpria com suas obrigações no trabalho. Para se ter
uma idéia, os gentlemans na sociedade vitoriana eram os membros da
aristocracia britânica, estes por direito de nascimento, os industriais,
comerciantes, oficias do exército, membros do parlamento que assim foram
reconhecidos por sua ocupação.
Segundo Pina,
O traço humorístico merece atenção aqui como sempre que
acompanha e caracteriza, por exemplo, a relação personagem
central com a estreiteza e o ridículo de facetas da comunidade
rural e da cidade de província; ou com figuras que as
evidenciam enquanto sintoma da confiança em si do
protagonista e do livre jogo das suas faculdades face ao que o
rodeia. Assim, a representação humorística contribui para a
correta avaliação que o receptor faz de personagens, condutas,
normas, atitudes a partir da centralidade do Pip em
desenvolvimento, com a autoconfiança criada pela
necessidade do seu desenvolvimento individual, critério
fundamental para julgarmos os contextos sociais e a carreira
da personagem principal”. (PINA, 1984, p. 105).
Conclui-se com este estudo que há diferenças marcantes em ser
comum e ser gentleman na obra Grandes Esperanças, e que essas diferenças
vão muito além do fator abstinência do trabalho quando Pip torna-se
gentleman. Ao analisar a obra de forma crítica percebemos como se
caracteriza a sociedade da época, onde a pessoa era tratada pelo que
ostentava, se fosse pobre era destratada, caso aparentasse ser rica, usando
boas vestimentas, fazendo uso correto da linguagem, era respeitada pela
sociedade. Vemos então a hipocrisia que reinava na era vitoriana, onde o
dinheiro era que mostrava o valor da pessoa. Dickens explorou esses
conceitos de forma excepcional na obra, mesmo que o leitor não consiga
decifrar logo no início os significados existentes nas auto-análises de Pip, os
ricos dados contidos na obra sobre os comportamentos da sociedade, as
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7. transformações, o cotidiano de um gentleman, a vida difícil de uma pessoa
que tivesse origem comum. Tudo isso Dickens nos revela por meio de seus
personagens e principalmente pelos trechos em que usa um tom sarcástico
para se referir a sociedade da era vitoriana.
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8. REFERÊNCIAS
1. DICKENS, Charles. Grandes Esperanças: texto integral / Charles
Dickens: tradução Daniel R. Lehman. São Paulo: Martin Claret,
2006. Coleção a obra-prima de casa autor; 49. Série ouro.
2. PINA, Álvaro. 1984. “Great Expectations: A subjectividade como
construção simbólica”. In: Id. Dickens: a arte do romance. Lisboa:
Horizonte Universitário, p. 85-134.
3. WILLIAMS, Raymond. 1990 [1973]. “Gente da cidade”. In: Id. O
campo e a cidade: na história e na literatura. Trad.: Paulo
Henriques Britto. São Paulo: Companhia das Letras, p. 214-227.
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