SlideShare ist ein Scribd-Unternehmen logo
1 von 4
Downloaden Sie, um offline zu lesen
Habitando conjuntos habitacionais
Túlio Madson Galvão1
Incentivados por subsídios governamentais, como o programa “minha casa minha vida”,
aliado ao forte aquecimento imobiliário proporcionado por, entre outros fatores,
sediarmos uma Copa do Mundo, prolifera-se, em todos os rincões da cidade, conjuntos
habitacionais destinados a todos os gostos e classes sociais. Trata-se de verdadeiras
cidades encrustadas em regiões periféricas, onde em muitos casos a infraestrutura e os
serviços públicos disponíveis ainda são deficitários para abrigar tamanha densidade
populacional.
Esses empreendimentos - vendidos como a concretização do “sonho da casa própria”-
não refletem necessariamente em uma maior qualidade de vida para seus habitantes.
Muitos acabam iludidos pela publicidade que os vendem como uma garantia de
felicidade e status e se decepcionam com a impessoalidade e os transtornos de viver
entre muros. A crença de que um condomínio fechado é sinônimo de ascensão social,
faz com que muitos migrem de regiões onde há uma forte presença da comunidade na
rotina das pessoas, para conviver no ambiente impessoal e atomizado dos grandes
conjuntos habitacionais.
Os conjuntos habitacionais carecem de uma análise detalhada sobre os impactos
ocasionados não apenas ao meio ambiente, mas, sobretudo, à comunidade onde serão
instalados. As transformações nos espaços construídos, sem a devida análise, resultam
em danos, por vezes, irreversíveis. Não apenas danos ambientais, mas, sobretudo, na
própria maneira como nos sociabilizamos e como nos integramos à geografia e à
história da região onde habitamos. Alguns empreendimentos dão a sensação de
desejarem destruir o passado e a paisagem na qual se inserem, sem se preocuparem em
fazer parte da história, da cultura e da geografia do local em que se encontram,
pretendem encrustar em um recanto da cidade um espaço “higienizado” uma espécie de
sonho nórdico, um verdadeiro estado de bem estar social que existe apenas na
propaganda.
1
E-mail: tuliomadson@hotmail.com Página: facebook.com/tulio.madson.galvao
Os condomínios fechados precisam se abrir. Muitas vezes os muros que o cercam, sobre
o pretexto da segurança, isolam seus habitantes da comunidade da qual pertencem,
segregam ao invés de incorporar. Tais construções interferem não somente na
convivência e nas atividades cotidianas de seus habitantes, mas também, nas atividades
mais corriqueiras da comunidade que habita o seu entorno. Erguendo muros onde
outrora a população local tinha livre acesso. Seu planejamento deveria ir muito além de
medidas geométricas e possibilitar uma melhor convivência e integração entre seus
habitantes e a comunidade que o cerca. Os conjuntos habitacionais deveriam ser muito
mais do que uma aglomeração de habitações individuais, deveriam promover a
integração das pessoas, seja entre seus condôminos, seja com o meio no qual fazem
parte.
Diante disso, faz-se necessário repensarmos o modo como habitamos e a própria
natureza do habitar, para que nosso habitação não se resuma apenas a um caixote de
concreto com poucas dezenas de metros quadrados; para que o que chamamos de "lar"
promova um habitar verdadeiramente autêntico.
O que faz com que algo seja habitável? Não habitamos somente o espaço da nossa casa,
não é um teto que garante um habitar, nós habitamos a praia, a fazenda, o carro, o
trabalho, habitamos, inclusive, esse espaço virtual. Nesse momento você e eu habitamos
esse texto. Portanto, habitamos o mundo e o habitamos de diversos modos que
transcendem a espacialidade física de nossa casa ou de um conjunto habitacional. Ser
humano implica necessariamente em habitar algo, vivemos ao habitar o mundo: “o
homem é enquanto habita” diria Heidegger.
Assim, habitamos não somente nossa casa, mas, nosso bairro, nossa cidade, nosso
trabalho, nossos pensamentos, ou seja, tudo aquilo com o qual convivemos. Certamente
já tivemos a impressão de nos sentirmos em casa quando desfrutamos de um ambiente
onde o convívio se dá de forma agradável e natural, onde podemos ser nós mesmos, sem
máscaras, sem receios, onde o ambiente possibilite um convívio autêntico tanto entre as
pessoas, quanto entre as pessoas e as coisas.
O que torna nossa casa especial é o convívio que temos com nossas coisas e com as
pessoas que a habitam. O convívio quando prazeroso torna o habitar desejável.
Habitamos o bar da esquina porque lá podemos conviver com nossos amigos, habitamos
a praia no domingo porque lá podemos conviver com a paisagem e com a família,
habitamos esse espaço virtual porque desejamos conviver com diferentes opiniões e
perspectivas. O convívio, portanto, quando agradável, é o que possibilita um habitar
autêntico.
Quando podemos conviver autenticamente com as coisas e as pessoas, parece-me, de
fato, que estamos habitando autenticamente: nossos antepassados habitavam cavernas
que lhe proporcionavam abrigo, que continham desenhos que narravam seus feitos, que
permitiam ao grupo reunir-se em torno da fogueira, que abrigavam seus utensílios, ou
seja, que tornavam o convívio naquele espaço mais agradável e desejável, esse, me
parece, é o arquétipo de um habitar autêntico. O habitar autêntico se dá quando um
determinado espaço possibilita um convívio pleno e harmonioso entre as pessoas e as
coisas que dividem esse espaço.
Logo, começamos a habitar na medida em que convivemos. Precisamos repensar,
portanto, o modo como estamos construindo nossas habitações, muitas das quais nos
privam do convívio entre os condôminos e a comunidade, ou, entre os próprios
vizinhos, e, até mesmo, entre as pessoas que moram na mesma casa, em um espaço
onde os quartos adquirem cada vez mais o lugar da sala.
Os espaços de convivência dos conjuntos habitacionais não integram seus habitantes,
são espaços destinados a reunir conhecidos (exteriores àquele conjunto) por um breve
lapso de tempo, com horário programado e regimento interno a cumprir. Não é um
espaço público de convivência entre os condôminos, mas sim, uma extensão temporária
de apartamentos cada vez mais claustrofóbicos.
Em uma época onde as distâncias espaciais foram suprimidas, as distâncias entre as
pessoas nunca foram tão grandes. O vizinho não tem mais uma personalidade é apenas
um número: “o fulano do 504”. Nosso bairro não possui mais uma identidade própria,
somos privamos cada vez mais do convívio com o outro e com o espaço público. Nossa
morada não pode ser apenas mais um produto, algo que se consome e que se troca
quando surge outro melhor. Os conjuntos habitacionais precisam, de fato, proporcionar
um habitar autêntico, serem mais do que um conjunto de habitações, depósitos de gente,
precisam ser projetados para promover o convívio entre pessoas cada vez mais
individualizadas, precisamos, mais do que nunca, reaprender a habitar.
Publicado originalmente na Carta Potiguar em 11/11/2012:
http://www.cartapotiguar.com.br/2012/11/11/habitando-conjuntos-habitacionais/

Weitere ähnliche Inhalte

Andere mochten auch

Vestibular gabarito 1º dia
Vestibular gabarito 1º diaVestibular gabarito 1º dia
Vestibular gabarito 1º diaDanilo Aguiar
 
As12 cidadesmaispopulosasd
As12 cidadesmaispopulosasd As12 cidadesmaispopulosasd
As12 cidadesmaispopulosasd Jose Rosa
 
Presentacion tecnologia educativa.alicia perez
Presentacion tecnologia educativa.alicia perezPresentacion tecnologia educativa.alicia perez
Presentacion tecnologia educativa.alicia perezAliciaPerezRuizDiaz
 
Apresentação transfussional
Apresentação transfussionalApresentação transfussional
Apresentação transfussionalcmecc
 
Combining GTT and TD in Teaching Simple Past Tense in vhs
Combining GTT and TD in Teaching Simple Past Tense in vhsCombining GTT and TD in Teaching Simple Past Tense in vhs
Combining GTT and TD in Teaching Simple Past Tense in vhsNova Ayu
 
Como instalar oWindows 7 e Linux num computador
Como instalar oWindows 7 e Linux num computadorComo instalar oWindows 7 e Linux num computador
Como instalar oWindows 7 e Linux num computadorFabricio Micael
 

Andere mochten auch (9)

Vestibular gabarito 1º dia
Vestibular gabarito 1º diaVestibular gabarito 1º dia
Vestibular gabarito 1º dia
 
Derechos del niño juan guillermo osorio
Derechos del niño   juan guillermo osorioDerechos del niño   juan guillermo osorio
Derechos del niño juan guillermo osorio
 
As12 cidadesmaispopulosasd
As12 cidadesmaispopulosasd As12 cidadesmaispopulosasd
As12 cidadesmaispopulosasd
 
Action plan week 8
Action plan week 8Action plan week 8
Action plan week 8
 
Presentacion tecnologia educativa.alicia perez
Presentacion tecnologia educativa.alicia perezPresentacion tecnologia educativa.alicia perez
Presentacion tecnologia educativa.alicia perez
 
Action plan week 5
Action plan week 5Action plan week 5
Action plan week 5
 
Apresentação transfussional
Apresentação transfussionalApresentação transfussional
Apresentação transfussional
 
Combining GTT and TD in Teaching Simple Past Tense in vhs
Combining GTT and TD in Teaching Simple Past Tense in vhsCombining GTT and TD in Teaching Simple Past Tense in vhs
Combining GTT and TD in Teaching Simple Past Tense in vhs
 
Como instalar oWindows 7 e Linux num computador
Como instalar oWindows 7 e Linux num computadorComo instalar oWindows 7 e Linux num computador
Como instalar oWindows 7 e Linux num computador
 

Ähnlich wie Habitando conjuntos habitacionais

Comunicação, Cultura e Comunidade.pdf
Comunicação, Cultura e Comunidade.pdfComunicação, Cultura e Comunidade.pdf
Comunicação, Cultura e Comunidade.pdfVELDATORRES1
 
Comunidades Em Tempos De Redes
Comunidades Em Tempos De RedesComunidades Em Tempos De Redes
Comunidades Em Tempos De RedesIsrael Degasperi
 
Comunicação, cultura e valores
Comunicação, cultura e valoresComunicação, cultura e valores
Comunicação, cultura e valoresgraziela33
 
Comunicação, cultura e valores
Comunicação, cultura e valoresComunicação, cultura e valores
Comunicação, cultura e valoresgraziela33
 
Comunicação, cultura e valores
Comunicação, cultura e valoresComunicação, cultura e valores
Comunicação, cultura e valoresgraziela33
 
MULTIDIMENSIONALIDADES INTERNAS E AUTONOMIA EM NOSSO VIVER
MULTIDIMENSIONALIDADES INTERNAS E AUTONOMIA EM NOSSO VIVERMULTIDIMENSIONALIDADES INTERNAS E AUTONOMIA EM NOSSO VIVER
MULTIDIMENSIONALIDADES INTERNAS E AUTONOMIA EM NOSSO VIVERLuiz Algarra
 
Changing Places, a cidade inclusiva começa no rés do chão
Changing Places, a cidade inclusiva começa no rés do chãoChanging Places, a cidade inclusiva começa no rés do chão
Changing Places, a cidade inclusiva começa no rés do chãojorgecabraloliveira
 
Mensagem 43º dia das comunicações - Bento XVI
Mensagem 43º dia das comunicações - Bento XVIMensagem 43º dia das comunicações - Bento XVI
Mensagem 43º dia das comunicações - Bento XVIRodrigo Catini Flaibam
 
A sociedade Contemporânea
 A sociedade Contemporânea A sociedade Contemporânea
A sociedade ContemporâneaAurora Teixeira
 
Ecoar a palavra e ressoar os gestos
Ecoar a palavra e ressoar os gestosEcoar a palavra e ressoar os gestos
Ecoar a palavra e ressoar os gestosAfonso Murad (FAJE)
 
Para o 1º Ano - Sociologia Conceitos
Para o 1º Ano - Sociologia ConceitosPara o 1º Ano - Sociologia Conceitos
Para o 1º Ano - Sociologia ConceitosFabio Salvari
 
Conceitos bácos de sociologia
Conceitos bácos de sociologiaConceitos bácos de sociologia
Conceitos bácos de sociologiaFabio Salvari
 
Conceitos bácos de sociologia
Conceitos bácos de sociologiaConceitos bácos de sociologia
Conceitos bácos de sociologiaFabio Salvari
 
Habitação de Interesse Social "Repensando a vida em Comunidade"
Habitação de Interesse Social "Repensando a vida em Comunidade"Habitação de Interesse Social "Repensando a vida em Comunidade"
Habitação de Interesse Social "Repensando a vida em Comunidade"Thaís Cardoso
 

Ähnlich wie Habitando conjuntos habitacionais (20)

Trab. sociologia 2
Trab. sociologia 2Trab. sociologia 2
Trab. sociologia 2
 
Gestao paroquial
Gestao paroquialGestao paroquial
Gestao paroquial
 
Artigo
ArtigoArtigo
Artigo
 
Comunicação, Cultura e Comunidade.pdf
Comunicação, Cultura e Comunidade.pdfComunicação, Cultura e Comunidade.pdf
Comunicação, Cultura e Comunidade.pdf
 
Sociologia iii
Sociologia iiiSociologia iii
Sociologia iii
 
Comunidades Em Tempos De Redes
Comunidades Em Tempos De RedesComunidades Em Tempos De Redes
Comunidades Em Tempos De Redes
 
Comunicação, cultura e valores
Comunicação, cultura e valoresComunicação, cultura e valores
Comunicação, cultura e valores
 
Comunicação, cultura e valores
Comunicação, cultura e valoresComunicação, cultura e valores
Comunicação, cultura e valores
 
Comunicação, cultura e valores
Comunicação, cultura e valoresComunicação, cultura e valores
Comunicação, cultura e valores
 
MULTIDIMENSIONALIDADES INTERNAS E AUTONOMIA EM NOSSO VIVER
MULTIDIMENSIONALIDADES INTERNAS E AUTONOMIA EM NOSSO VIVERMULTIDIMENSIONALIDADES INTERNAS E AUTONOMIA EM NOSSO VIVER
MULTIDIMENSIONALIDADES INTERNAS E AUTONOMIA EM NOSSO VIVER
 
Changing Places, a cidade inclusiva começa no rés do chão
Changing Places, a cidade inclusiva começa no rés do chãoChanging Places, a cidade inclusiva começa no rés do chão
Changing Places, a cidade inclusiva começa no rés do chão
 
Mensagem 43º dia das comunicações - Bento XVI
Mensagem 43º dia das comunicações - Bento XVIMensagem 43º dia das comunicações - Bento XVI
Mensagem 43º dia das comunicações - Bento XVI
 
Reforço
ReforçoReforço
Reforço
 
A sociedade Contemporânea
 A sociedade Contemporânea A sociedade Contemporânea
A sociedade Contemporânea
 
Ecoar a palavra e ressoar os gestos
Ecoar a palavra e ressoar os gestosEcoar a palavra e ressoar os gestos
Ecoar a palavra e ressoar os gestos
 
Para o 1º Ano - Sociologia Conceitos
Para o 1º Ano - Sociologia ConceitosPara o 1º Ano - Sociologia Conceitos
Para o 1º Ano - Sociologia Conceitos
 
Conceitos bácos de sociologia
Conceitos bácos de sociologiaConceitos bácos de sociologia
Conceitos bácos de sociologia
 
Conceitos bácos de sociologia
Conceitos bácos de sociologiaConceitos bácos de sociologia
Conceitos bácos de sociologia
 
Habitação de Interesse Social "Repensando a vida em Comunidade"
Habitação de Interesse Social "Repensando a vida em Comunidade"Habitação de Interesse Social "Repensando a vida em Comunidade"
Habitação de Interesse Social "Repensando a vida em Comunidade"
 
Antropologia ser urbano
Antropologia ser urbanoAntropologia ser urbano
Antropologia ser urbano
 

Mehr von Túlio Madson Galvão

Notas sobre a pandemia perspectivas para o fim de um mundo - tulio madson g...
Notas sobre a pandemia   perspectivas para o fim de um mundo - tulio madson g...Notas sobre a pandemia   perspectivas para o fim de um mundo - tulio madson g...
Notas sobre a pandemia perspectivas para o fim de um mundo - tulio madson g...Túlio Madson Galvão
 
A Gaia Ciência: lições para o ensino de filosofia - Túlio Madson Galvão
A Gaia Ciência: lições para o ensino de filosofia - Túlio Madson GalvãoA Gaia Ciência: lições para o ensino de filosofia - Túlio Madson Galvão
A Gaia Ciência: lições para o ensino de filosofia - Túlio Madson GalvãoTúlio Madson Galvão
 
Mídias independentes e a Ética do Discurso
Mídias independentes e a Ética do DiscursoMídias independentes e a Ética do Discurso
Mídias independentes e a Ética do DiscursoTúlio Madson Galvão
 
Bairro Neópolis : vida e morte de uma utopia
Bairro Neópolis : vida e morte de uma utopia Bairro Neópolis : vida e morte de uma utopia
Bairro Neópolis : vida e morte de uma utopia Túlio Madson Galvão
 

Mehr von Túlio Madson Galvão (11)

Notas sobre a pandemia perspectivas para o fim de um mundo - tulio madson g...
Notas sobre a pandemia   perspectivas para o fim de um mundo - tulio madson g...Notas sobre a pandemia   perspectivas para o fim de um mundo - tulio madson g...
Notas sobre a pandemia perspectivas para o fim de um mundo - tulio madson g...
 
A Gaia Ciência: lições para o ensino de filosofia - Túlio Madson Galvão
A Gaia Ciência: lições para o ensino de filosofia - Túlio Madson GalvãoA Gaia Ciência: lições para o ensino de filosofia - Túlio Madson Galvão
A Gaia Ciência: lições para o ensino de filosofia - Túlio Madson Galvão
 
Mídias independentes e a Ética do Discurso
Mídias independentes e a Ética do DiscursoMídias independentes e a Ética do Discurso
Mídias independentes e a Ética do Discurso
 
Jornalismo para além do diploma
Jornalismo para além do diplomaJornalismo para além do diploma
Jornalismo para além do diploma
 
Janduí: o primeiro rei do sertão
Janduí: o primeiro rei do sertão Janduí: o primeiro rei do sertão
Janduí: o primeiro rei do sertão
 
Madrugada
MadrugadaMadrugada
Madrugada
 
O Pinta: cidadão natalense
O Pinta: cidadão natalenseO Pinta: cidadão natalense
O Pinta: cidadão natalense
 
Filosofia da proximidade
Filosofia da proximidadeFilosofia da proximidade
Filosofia da proximidade
 
Os mártires de Cunhaú
Os mártires de CunhaúOs mártires de Cunhaú
Os mártires de Cunhaú
 
Afinal, devemos temer a violência?
Afinal, devemos temer a violência?Afinal, devemos temer a violência?
Afinal, devemos temer a violência?
 
Bairro Neópolis : vida e morte de uma utopia
Bairro Neópolis : vida e morte de uma utopia Bairro Neópolis : vida e morte de uma utopia
Bairro Neópolis : vida e morte de uma utopia
 

Habitando conjuntos habitacionais

  • 1. Habitando conjuntos habitacionais Túlio Madson Galvão1 Incentivados por subsídios governamentais, como o programa “minha casa minha vida”, aliado ao forte aquecimento imobiliário proporcionado por, entre outros fatores, sediarmos uma Copa do Mundo, prolifera-se, em todos os rincões da cidade, conjuntos habitacionais destinados a todos os gostos e classes sociais. Trata-se de verdadeiras cidades encrustadas em regiões periféricas, onde em muitos casos a infraestrutura e os serviços públicos disponíveis ainda são deficitários para abrigar tamanha densidade populacional. Esses empreendimentos - vendidos como a concretização do “sonho da casa própria”- não refletem necessariamente em uma maior qualidade de vida para seus habitantes. Muitos acabam iludidos pela publicidade que os vendem como uma garantia de felicidade e status e se decepcionam com a impessoalidade e os transtornos de viver entre muros. A crença de que um condomínio fechado é sinônimo de ascensão social, faz com que muitos migrem de regiões onde há uma forte presença da comunidade na rotina das pessoas, para conviver no ambiente impessoal e atomizado dos grandes conjuntos habitacionais. Os conjuntos habitacionais carecem de uma análise detalhada sobre os impactos ocasionados não apenas ao meio ambiente, mas, sobretudo, à comunidade onde serão instalados. As transformações nos espaços construídos, sem a devida análise, resultam em danos, por vezes, irreversíveis. Não apenas danos ambientais, mas, sobretudo, na própria maneira como nos sociabilizamos e como nos integramos à geografia e à história da região onde habitamos. Alguns empreendimentos dão a sensação de desejarem destruir o passado e a paisagem na qual se inserem, sem se preocuparem em fazer parte da história, da cultura e da geografia do local em que se encontram, pretendem encrustar em um recanto da cidade um espaço “higienizado” uma espécie de sonho nórdico, um verdadeiro estado de bem estar social que existe apenas na propaganda. 1 E-mail: tuliomadson@hotmail.com Página: facebook.com/tulio.madson.galvao
  • 2. Os condomínios fechados precisam se abrir. Muitas vezes os muros que o cercam, sobre o pretexto da segurança, isolam seus habitantes da comunidade da qual pertencem, segregam ao invés de incorporar. Tais construções interferem não somente na convivência e nas atividades cotidianas de seus habitantes, mas também, nas atividades mais corriqueiras da comunidade que habita o seu entorno. Erguendo muros onde outrora a população local tinha livre acesso. Seu planejamento deveria ir muito além de medidas geométricas e possibilitar uma melhor convivência e integração entre seus habitantes e a comunidade que o cerca. Os conjuntos habitacionais deveriam ser muito mais do que uma aglomeração de habitações individuais, deveriam promover a integração das pessoas, seja entre seus condôminos, seja com o meio no qual fazem parte. Diante disso, faz-se necessário repensarmos o modo como habitamos e a própria natureza do habitar, para que nosso habitação não se resuma apenas a um caixote de concreto com poucas dezenas de metros quadrados; para que o que chamamos de "lar" promova um habitar verdadeiramente autêntico. O que faz com que algo seja habitável? Não habitamos somente o espaço da nossa casa, não é um teto que garante um habitar, nós habitamos a praia, a fazenda, o carro, o trabalho, habitamos, inclusive, esse espaço virtual. Nesse momento você e eu habitamos esse texto. Portanto, habitamos o mundo e o habitamos de diversos modos que transcendem a espacialidade física de nossa casa ou de um conjunto habitacional. Ser humano implica necessariamente em habitar algo, vivemos ao habitar o mundo: “o homem é enquanto habita” diria Heidegger. Assim, habitamos não somente nossa casa, mas, nosso bairro, nossa cidade, nosso trabalho, nossos pensamentos, ou seja, tudo aquilo com o qual convivemos. Certamente já tivemos a impressão de nos sentirmos em casa quando desfrutamos de um ambiente onde o convívio se dá de forma agradável e natural, onde podemos ser nós mesmos, sem máscaras, sem receios, onde o ambiente possibilite um convívio autêntico tanto entre as pessoas, quanto entre as pessoas e as coisas. O que torna nossa casa especial é o convívio que temos com nossas coisas e com as pessoas que a habitam. O convívio quando prazeroso torna o habitar desejável.
  • 3. Habitamos o bar da esquina porque lá podemos conviver com nossos amigos, habitamos a praia no domingo porque lá podemos conviver com a paisagem e com a família, habitamos esse espaço virtual porque desejamos conviver com diferentes opiniões e perspectivas. O convívio, portanto, quando agradável, é o que possibilita um habitar autêntico. Quando podemos conviver autenticamente com as coisas e as pessoas, parece-me, de fato, que estamos habitando autenticamente: nossos antepassados habitavam cavernas que lhe proporcionavam abrigo, que continham desenhos que narravam seus feitos, que permitiam ao grupo reunir-se em torno da fogueira, que abrigavam seus utensílios, ou seja, que tornavam o convívio naquele espaço mais agradável e desejável, esse, me parece, é o arquétipo de um habitar autêntico. O habitar autêntico se dá quando um determinado espaço possibilita um convívio pleno e harmonioso entre as pessoas e as coisas que dividem esse espaço. Logo, começamos a habitar na medida em que convivemos. Precisamos repensar, portanto, o modo como estamos construindo nossas habitações, muitas das quais nos privam do convívio entre os condôminos e a comunidade, ou, entre os próprios vizinhos, e, até mesmo, entre as pessoas que moram na mesma casa, em um espaço onde os quartos adquirem cada vez mais o lugar da sala. Os espaços de convivência dos conjuntos habitacionais não integram seus habitantes, são espaços destinados a reunir conhecidos (exteriores àquele conjunto) por um breve lapso de tempo, com horário programado e regimento interno a cumprir. Não é um espaço público de convivência entre os condôminos, mas sim, uma extensão temporária de apartamentos cada vez mais claustrofóbicos. Em uma época onde as distâncias espaciais foram suprimidas, as distâncias entre as pessoas nunca foram tão grandes. O vizinho não tem mais uma personalidade é apenas um número: “o fulano do 504”. Nosso bairro não possui mais uma identidade própria, somos privamos cada vez mais do convívio com o outro e com o espaço público. Nossa morada não pode ser apenas mais um produto, algo que se consome e que se troca quando surge outro melhor. Os conjuntos habitacionais precisam, de fato, proporcionar um habitar autêntico, serem mais do que um conjunto de habitações, depósitos de gente, precisam ser projetados para promover o convívio entre pessoas cada vez mais individualizadas, precisamos, mais do que nunca, reaprender a habitar.
  • 4. Publicado originalmente na Carta Potiguar em 11/11/2012: http://www.cartapotiguar.com.br/2012/11/11/habitando-conjuntos-habitacionais/