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O anoitecer na Beira
     - «Eh! Maria!... Eh! Maria!...»
   Ruídos de socos que se arrastam, portas que batem e, finalmente,
uma voz de mulher, esganiçada, responde:
    - «Já lá vou! Já lá vou...». Ao mesmo tempo, surge na varanda de
madeira, a ameaçar ruína, enfeitada de craveiros em flor, uma
mulher nova, quase bonita, de feições frescas e sorriso bondoso.
Mulher do campo, a quem o dia a dia de afazeres não tira o viço,
mas que parece, até, pôr-lhe no rosto aquele ar decidido e prestável.
Limpando as mãos delgadas e secas ao avental de chita, fala de
novo:
   - «É você, prima? Empurre o portal... Isso, força! Ora, o Senhor
lhe dê muito boas nôtes»!
   Alguém responde, já dentro do pátio:
   - «Ora o Senhor lhe dê as mesmas...» E o diálogo começa:
   - «Então que a traz por cá, prima? Está tudo bom, lá por casa?»
   - «Está tudo bom, graças a Deus; muito obrigada! E os seus?
Assim é que se quer... Pois eu venho, mais uma vez, incomodá-la...
Sabe, prima, é que a minha Joana estragou-me o fermento. Olha
que vida a minha, priminha! Quero cozer amanhã e não tenho
«mezinha» que lhe ponha... E vinha ver se me emprestava um
pouco do seu, prima! Só até amanhã, pode?»
   - «Então, não posso? Leve-o todo, prima!
   Não me faz falta... O que há em minha casa, há em toda a Foz de
Arouce... Porque não? Então, fica aí à porta? Entre criaturinha do
Senhor!...»
   Novos passos que se arrastam, portas que batem, rumores que se
perdem no interior da habitação...
   É assim a Beira. Cada povoado é uma família, um amontoado de
primos e primas, que não mais acaba, que não pode decompor-se
em número exato. Não importa. Desde o fidalgo da quinta, cujo
solar é brasonado, ao pobre moleiro enfarinhado, anda de boca em
boca a mesma saudação: «Está bom, primo? Bem. muito
obrigado!», que se estende de família em família, a léguas de
distância, chegando a transpor os umbrais da Serra. As mesmas
cenas repetem-se, ao pôr do sol, nos diversos lares, ao findar de
cada dia, depois da labuta quotidiana, à hora em que tudo recolhe a
descansar.
Em todos os atalhos da aldeia, há vultos que deslizam como
sombras ignoradas, n
as quais se adivinham vidas que passam, em direções definidas,
seres que desaparecem, aqui e além, nos umbrais das portas, ao
longo dos caminhos desertos e silenciosos.
   A luz é pouca, o solo vermelho, calcário torna-se negro, as
oliveiras carregadas de frutos vergam-se, silenciosamente, e a Luz
aparece pálida e indecisa, num céu quase oriental, tingido de anil.
   Além, as serras, são monstros enormes desafiando a imensidão
dos céus, um gesto sempre igual e tenso. Vêm, do outro lado do rio,
ruídos musicais, notas rústicas, formadas por centenas de guizos e
campainhas: são as ovelhas da quinta, que voltam do pasto. (Dlim...
Dlim... Dlim...)
   Chiam noras, docemente, entre as fazendas, e a água corre em
borbotões, por entre a terra dura e seca.
   -«Eh! Homem!.... Não me percas essa água...»
   Sim, a água é oiro, é sangue, é maravilha, nessa terra, cor de fogo,
que Deus fez ávida e crua.
   Aparecem no céu as primeiras estrelas, a princípio trémulas,
indecisas; depois, cheias, brilhantes.
   À volta da lareira, sentada nos degraus carcomidos e escuros, a
família reúne-se. O pai medita, a mãe prepara a ceia, os filhos
conversam, brincam, disputando ao mesmo tempo o lançamento
dum casulo na fogueira crepitante, que põe sombras fantásticas nas
paredes enegrecidas da ampla chaminé.
   Alguém bate ao portal. É um pobre serrano pedindo esmola. Diz
vir lá dos lados da Serra, noite fora, em busca de aconchego. Há
sempre farinha do taleigo, carne salgadeira, chouriço no fumeiro,
pão na arca e vinho na picheira.
   Quando não, a água saída do cântaro é doce e fresca; e, nas noites
de Verão, é uma delícia bebê-la por um púcaro de esmalte
comprado na Lousã.
   Dá-se a esmola, diz-se sempre a mesma frase: «Vá com Deus,
Santinho!», e ouve-se a resposta habitual: - «Benza-a Deus! O
Senhor lhe acrescente o que fica...» Mesmo que a prece do mendigo
não seja ouvida no Céu e a quantidade de restos aumente à volta da
lareira, o pouco que houver far-se-á muito, dividido aos bocadinhos,
o pote do azeite não ficará vazio e a pipa de água-pé durará o ano
inteiro. E, se o Inverno trouxer tormenta e as enxurradas da serra
levarem no seu caminho caudoloso o fruto das oliveiras, o trigo das
searas ao pé do rio e a riqueza das vinhas, na boca do beirão haverá
sempre a mesma deixa: «O pouco com Deus é muito...»
   E na noite cálida, serena, silenciosa, cheia de mistério e sonho,
que os velhos dizem ser povoada de seres estranhos e sobrenaturais,
tudo é recolhimento, tudo é paz, tudo é prece: e a terra beirã cor de
fogo, que Deus fez seca e dura, rodeada de serras, como monstros
enormes, desafiando a imensidão dos Céus, num gesto sempre igual
e tenso, dorme tranquila e crente, cansada e feliz. O seu seio, dito
estéril, seco, ardente, feito de seixos bronzeados, será amanhã,
novamente, revolvido, explorado, humedecido pelo beirão honrado
e trabalhador, franco e bondoso, que nele busca o pão de cada dia,
desde o nascer do sol até ao anoitecer, nua luta árdua e persistente,
debaixo duma estrela de fogo ou de uma Lua romântica e prateada,
sorrindo às cumeadas pálidas, espargindo ao redor a luz do
Infinito!...

Maria Helena Amaro
In, «Maria Mãe», 1973.

Data da conclusão da edição no blogue - 30 de dezembro de 2011

http://mariahelenaamaro.blogspot.com/

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O anoitecer na beira

  • 1. O anoitecer na Beira - «Eh! Maria!... Eh! Maria!...» Ruídos de socos que se arrastam, portas que batem e, finalmente, uma voz de mulher, esganiçada, responde: - «Já lá vou! Já lá vou...». Ao mesmo tempo, surge na varanda de madeira, a ameaçar ruína, enfeitada de craveiros em flor, uma mulher nova, quase bonita, de feições frescas e sorriso bondoso. Mulher do campo, a quem o dia a dia de afazeres não tira o viço, mas que parece, até, pôr-lhe no rosto aquele ar decidido e prestável. Limpando as mãos delgadas e secas ao avental de chita, fala de novo: - «É você, prima? Empurre o portal... Isso, força! Ora, o Senhor lhe dê muito boas nôtes»! Alguém responde, já dentro do pátio: - «Ora o Senhor lhe dê as mesmas...» E o diálogo começa: - «Então que a traz por cá, prima? Está tudo bom, lá por casa?» - «Está tudo bom, graças a Deus; muito obrigada! E os seus? Assim é que se quer... Pois eu venho, mais uma vez, incomodá-la... Sabe, prima, é que a minha Joana estragou-me o fermento. Olha que vida a minha, priminha! Quero cozer amanhã e não tenho «mezinha» que lhe ponha... E vinha ver se me emprestava um pouco do seu, prima! Só até amanhã, pode?» - «Então, não posso? Leve-o todo, prima! Não me faz falta... O que há em minha casa, há em toda a Foz de Arouce... Porque não? Então, fica aí à porta? Entre criaturinha do Senhor!...» Novos passos que se arrastam, portas que batem, rumores que se perdem no interior da habitação... É assim a Beira. Cada povoado é uma família, um amontoado de primos e primas, que não mais acaba, que não pode decompor-se em número exato. Não importa. Desde o fidalgo da quinta, cujo solar é brasonado, ao pobre moleiro enfarinhado, anda de boca em boca a mesma saudação: «Está bom, primo? Bem. muito obrigado!», que se estende de família em família, a léguas de distância, chegando a transpor os umbrais da Serra. As mesmas cenas repetem-se, ao pôr do sol, nos diversos lares, ao findar de cada dia, depois da labuta quotidiana, à hora em que tudo recolhe a descansar.
  • 2. Em todos os atalhos da aldeia, há vultos que deslizam como sombras ignoradas, n as quais se adivinham vidas que passam, em direções definidas, seres que desaparecem, aqui e além, nos umbrais das portas, ao longo dos caminhos desertos e silenciosos. A luz é pouca, o solo vermelho, calcário torna-se negro, as oliveiras carregadas de frutos vergam-se, silenciosamente, e a Luz aparece pálida e indecisa, num céu quase oriental, tingido de anil. Além, as serras, são monstros enormes desafiando a imensidão dos céus, um gesto sempre igual e tenso. Vêm, do outro lado do rio, ruídos musicais, notas rústicas, formadas por centenas de guizos e campainhas: são as ovelhas da quinta, que voltam do pasto. (Dlim... Dlim... Dlim...) Chiam noras, docemente, entre as fazendas, e a água corre em borbotões, por entre a terra dura e seca. -«Eh! Homem!.... Não me percas essa água...» Sim, a água é oiro, é sangue, é maravilha, nessa terra, cor de fogo, que Deus fez ávida e crua. Aparecem no céu as primeiras estrelas, a princípio trémulas, indecisas; depois, cheias, brilhantes. À volta da lareira, sentada nos degraus carcomidos e escuros, a família reúne-se. O pai medita, a mãe prepara a ceia, os filhos conversam, brincam, disputando ao mesmo tempo o lançamento dum casulo na fogueira crepitante, que põe sombras fantásticas nas paredes enegrecidas da ampla chaminé. Alguém bate ao portal. É um pobre serrano pedindo esmola. Diz vir lá dos lados da Serra, noite fora, em busca de aconchego. Há sempre farinha do taleigo, carne salgadeira, chouriço no fumeiro, pão na arca e vinho na picheira. Quando não, a água saída do cântaro é doce e fresca; e, nas noites de Verão, é uma delícia bebê-la por um púcaro de esmalte comprado na Lousã. Dá-se a esmola, diz-se sempre a mesma frase: «Vá com Deus, Santinho!», e ouve-se a resposta habitual: - «Benza-a Deus! O Senhor lhe acrescente o que fica...» Mesmo que a prece do mendigo não seja ouvida no Céu e a quantidade de restos aumente à volta da lareira, o pouco que houver far-se-á muito, dividido aos bocadinhos, o pote do azeite não ficará vazio e a pipa de água-pé durará o ano inteiro. E, se o Inverno trouxer tormenta e as enxurradas da serra levarem no seu caminho caudoloso o fruto das oliveiras, o trigo das
  • 3. searas ao pé do rio e a riqueza das vinhas, na boca do beirão haverá sempre a mesma deixa: «O pouco com Deus é muito...» E na noite cálida, serena, silenciosa, cheia de mistério e sonho, que os velhos dizem ser povoada de seres estranhos e sobrenaturais, tudo é recolhimento, tudo é paz, tudo é prece: e a terra beirã cor de fogo, que Deus fez seca e dura, rodeada de serras, como monstros enormes, desafiando a imensidão dos Céus, num gesto sempre igual e tenso, dorme tranquila e crente, cansada e feliz. O seu seio, dito estéril, seco, ardente, feito de seixos bronzeados, será amanhã, novamente, revolvido, explorado, humedecido pelo beirão honrado e trabalhador, franco e bondoso, que nele busca o pão de cada dia, desde o nascer do sol até ao anoitecer, nua luta árdua e persistente, debaixo duma estrela de fogo ou de uma Lua romântica e prateada, sorrindo às cumeadas pálidas, espargindo ao redor a luz do Infinito!... Maria Helena Amaro In, «Maria Mãe», 1973. Data da conclusão da edição no blogue - 30 de dezembro de 2011 http://mariahelenaamaro.blogspot.com/