O documento descreve uma cena noturna na região da Beira, Portugal, onde uma mulher pede emprestado fermento à prima para cozer pão no dia seguinte. O texto também retrata as vidas simples mas unidas das pessoas da região, onde ajudam uns aos outros e dividem o pouco que têm.
1. O anoitecer na Beira
- «Eh! Maria!... Eh! Maria!...»
Ruídos de socos que se arrastam, portas que batem e, finalmente,
uma voz de mulher, esganiçada, responde:
- «Já lá vou! Já lá vou...». Ao mesmo tempo, surge na varanda de
madeira, a ameaçar ruína, enfeitada de craveiros em flor, uma
mulher nova, quase bonita, de feições frescas e sorriso bondoso.
Mulher do campo, a quem o dia a dia de afazeres não tira o viço,
mas que parece, até, pôr-lhe no rosto aquele ar decidido e prestável.
Limpando as mãos delgadas e secas ao avental de chita, fala de
novo:
- «É você, prima? Empurre o portal... Isso, força! Ora, o Senhor
lhe dê muito boas nôtes»!
Alguém responde, já dentro do pátio:
- «Ora o Senhor lhe dê as mesmas...» E o diálogo começa:
- «Então que a traz por cá, prima? Está tudo bom, lá por casa?»
- «Está tudo bom, graças a Deus; muito obrigada! E os seus?
Assim é que se quer... Pois eu venho, mais uma vez, incomodá-la...
Sabe, prima, é que a minha Joana estragou-me o fermento. Olha
que vida a minha, priminha! Quero cozer amanhã e não tenho
«mezinha» que lhe ponha... E vinha ver se me emprestava um
pouco do seu, prima! Só até amanhã, pode?»
- «Então, não posso? Leve-o todo, prima!
Não me faz falta... O que há em minha casa, há em toda a Foz de
Arouce... Porque não? Então, fica aí à porta? Entre criaturinha do
Senhor!...»
Novos passos que se arrastam, portas que batem, rumores que se
perdem no interior da habitação...
É assim a Beira. Cada povoado é uma família, um amontoado de
primos e primas, que não mais acaba, que não pode decompor-se
em número exato. Não importa. Desde o fidalgo da quinta, cujo
solar é brasonado, ao pobre moleiro enfarinhado, anda de boca em
boca a mesma saudação: «Está bom, primo? Bem. muito
obrigado!», que se estende de família em família, a léguas de
distância, chegando a transpor os umbrais da Serra. As mesmas
cenas repetem-se, ao pôr do sol, nos diversos lares, ao findar de
cada dia, depois da labuta quotidiana, à hora em que tudo recolhe a
descansar.
2. Em todos os atalhos da aldeia, há vultos que deslizam como
sombras ignoradas, n
as quais se adivinham vidas que passam, em direções definidas,
seres que desaparecem, aqui e além, nos umbrais das portas, ao
longo dos caminhos desertos e silenciosos.
A luz é pouca, o solo vermelho, calcário torna-se negro, as
oliveiras carregadas de frutos vergam-se, silenciosamente, e a Luz
aparece pálida e indecisa, num céu quase oriental, tingido de anil.
Além, as serras, são monstros enormes desafiando a imensidão
dos céus, um gesto sempre igual e tenso. Vêm, do outro lado do rio,
ruídos musicais, notas rústicas, formadas por centenas de guizos e
campainhas: são as ovelhas da quinta, que voltam do pasto. (Dlim...
Dlim... Dlim...)
Chiam noras, docemente, entre as fazendas, e a água corre em
borbotões, por entre a terra dura e seca.
-«Eh! Homem!.... Não me percas essa água...»
Sim, a água é oiro, é sangue, é maravilha, nessa terra, cor de fogo,
que Deus fez ávida e crua.
Aparecem no céu as primeiras estrelas, a princípio trémulas,
indecisas; depois, cheias, brilhantes.
À volta da lareira, sentada nos degraus carcomidos e escuros, a
família reúne-se. O pai medita, a mãe prepara a ceia, os filhos
conversam, brincam, disputando ao mesmo tempo o lançamento
dum casulo na fogueira crepitante, que põe sombras fantásticas nas
paredes enegrecidas da ampla chaminé.
Alguém bate ao portal. É um pobre serrano pedindo esmola. Diz
vir lá dos lados da Serra, noite fora, em busca de aconchego. Há
sempre farinha do taleigo, carne salgadeira, chouriço no fumeiro,
pão na arca e vinho na picheira.
Quando não, a água saída do cântaro é doce e fresca; e, nas noites
de Verão, é uma delícia bebê-la por um púcaro de esmalte
comprado na Lousã.
Dá-se a esmola, diz-se sempre a mesma frase: «Vá com Deus,
Santinho!», e ouve-se a resposta habitual: - «Benza-a Deus! O
Senhor lhe acrescente o que fica...» Mesmo que a prece do mendigo
não seja ouvida no Céu e a quantidade de restos aumente à volta da
lareira, o pouco que houver far-se-á muito, dividido aos bocadinhos,
o pote do azeite não ficará vazio e a pipa de água-pé durará o ano
inteiro. E, se o Inverno trouxer tormenta e as enxurradas da serra
levarem no seu caminho caudoloso o fruto das oliveiras, o trigo das
3. searas ao pé do rio e a riqueza das vinhas, na boca do beirão haverá
sempre a mesma deixa: «O pouco com Deus é muito...»
E na noite cálida, serena, silenciosa, cheia de mistério e sonho,
que os velhos dizem ser povoada de seres estranhos e sobrenaturais,
tudo é recolhimento, tudo é paz, tudo é prece: e a terra beirã cor de
fogo, que Deus fez seca e dura, rodeada de serras, como monstros
enormes, desafiando a imensidão dos Céus, num gesto sempre igual
e tenso, dorme tranquila e crente, cansada e feliz. O seu seio, dito
estéril, seco, ardente, feito de seixos bronzeados, será amanhã,
novamente, revolvido, explorado, humedecido pelo beirão honrado
e trabalhador, franco e bondoso, que nele busca o pão de cada dia,
desde o nascer do sol até ao anoitecer, nua luta árdua e persistente,
debaixo duma estrela de fogo ou de uma Lua romântica e prateada,
sorrindo às cumeadas pálidas, espargindo ao redor a luz do
Infinito!...
Maria Helena Amaro
In, «Maria Mãe», 1973.
Data da conclusão da edição no blogue - 30 de dezembro de 2011
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