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ARTE TRANSVERSA, QUANDO A MEMÓRIA DESÁGUA NA CULTURA
Ana Beatriz Barroso1
Resumo: O texto transita por conexões possíveis entre arte, cultura e memória em perspectiva
poética e explora a hipótese de um encontro entre as três. A idéia de uma arte aberta e definida
em consonância com sua potência comunicacional, transversal à sua realidade imediata,
perpassa o ensaio.
Palavras-chave: transversalidade, comunicação, arte, poética
Carrega-me contigo, Pássaro-Poesia
Quando cruzares o Amanhã, a luz, o impossível
Porque de barro e palha tem sido esta viagem
Que faço a sós comigo. Isenta de traçado2
Que relação podemos dizer que se estabelece entre arte, cultura e memória? Que as três se dão
e se afastam, isso é certo. Porém, quando se juntam, se é que se juntam, como isso se dá?
Imaginemos por um segundo que isso se dê em uma espécie de desaguamento da memória na
cultura. Haveria nesse caso um rio – a memória – e um mar – a cultura. A arte seria o quando,
seria, portanto, um tempo: o tempo do encontro de uma com a outra, memória e cultura, ou de
um com o outro, rio e mar. Penso em imagens porque é sabido o quanto elas nos ajudam a ver
e também a transver, como afirma Manoel de Barros em depoimento a João Jardim e Walter
Carvalho no filme Janela da Alma (Brasil, 2001): os olhos vêem, a imaginação transvê. A
questão, nesse caso, para o poeta (e também para mim), não é saber o que entra pelos dois
orifícios que temos na face, sensíveis à luz, mas sim saber o que deles sai, o que se sobrepõe
ao mundo lá fora. Cabe lembrar que houve um tempo em que se acreditava que a luz, e
consequentemente as imagens que formamos do mundo, saía dos olhos, de dentro para fora,
em vez de entrar. Imagina...
Durante muito tempo a visão foi explicada pela teoria dos raios
visuais, segundo a qual dos olhos emanam luzes que apreendem os
objetos, como tentáculos. As visíveis cintilações que jorram do olhar
eram citadas como prova da existência de tais raios, assim como a
luminescência dos olhos dos animais noturnos.3
Sem retroagir, podemos apenas resgatar, nessa ideia, a percepção de uma presença ativa e
poderosa da imaginação humana, sua ação poética e poetizante. Ora, se de fato há um rio que
deságua em um mar, esse encontro acontece de um determinado modo. Se há rios que
deságuam em mares, esses encontros acontecem de diferentes modos. Há ainda rios que
deságuam em rios e mares que deságuam na terra, na arrebentação, em tsunamis. Não nos
cabe descrever nem demonstrar todos encontros possíveis, nem as variadas formas que esses
encontros adquirem. A nós, basta-nos saber que existem, apreciá-los quando nos é dada a
oportunidade, comentá-los se assim se quiser. O que de fato nos cabe, a nós que nos situamos
nessa margem de cá, perto do estranhamento perpétuo, perto do caos e das flores, perto,
dentro e fora da arte, é ensaiar um encontro apenas, imaginário, evidentemente, entre memória
e cultura.
Sendo imaginário, esse encontro não se daria em um lugar, mas em um tempo. Se fosse em
um lugar, uma série de definições, descrições, delimitações e infinitas outras ações se
manifestariam imprescindíveis ao relato, ou à hipótese. Dando-se no tempo, ao contrário,
podemos vê-lo em qualquer lugar, em múltiplas formas, acontecendo de modo plural, como
plural é a arte no tempo em que nos é dado viver, nossa época, mas também no tempo-fio-
histórico que nos é dado conhecer, pois que historicamente, sabe-se, a arte sempre variou.
Tendo atravessado o sonho eurocêntrico e rompido o cerco em que se confinava em categorias
restritas, regras rígidas e gênios incontestes, a arte percebe-se, hoje, extremamente variada,
multiforme e plural, como plural passa a ser o mundo que habitamos quando visto em sua
globalidade perturbadora através dos fragmentos de imagens fotográficas, cinematográficas,
televisivas, textuais e computacionais, que dele nos vão chegando.
Eis, portanto, a vantagem de se imaginar o tal encontro entre memória e cultura no tempo e
não no espaço, em instantes e durações e não em lugares: a diversidade salta aos olhos (e dos
olhos). Chamaremos esse encontro, marcado pela diversidade poética, de arte transversa. Por
ser um momento e não uma coisa, nem um acontecimento, tampouco um objeto, uma ação ou
uma inação, a assim batizada arte transversa vem a ser (e é, quando o encontro se dá) uma
dimensão íntima, pessoal. Não podemos vê-la, tocá-la, senti-la nem nada. Tudo que podemos
fazer com ela é sê-la. Sequer podemos estar nela.
De algum modo, por mais íntima que seja a dimensão do instante, onde se dá o encontro
poético entre memória e cultura, em seu todo ou conjunto o tempo é visto por fora e, nesse
fora, é visto pelas marcas que faz e deixa. A transformação por ele e nele operada é constante
e discreta. O tempo se mostra no transformar, é trânsito em estado puro. No turbilhão das
pequenas e grandes mutações que sofremos e fazemos sofrer, o tempo se revela, escoa e
escapa. Fica, dele, a memória que temos dele quando nele nos transformamos. Quando um
cheiro, visão ou canção chega até nós e nos faz lembrar de algo vivido, vemo-nos em um
tempo próprio. Somos em parte uma memória desgrudada, desenraizada, livre de calendários.
“Ao ler a data marcada na carta, Kimie, pela primeira vez, deu-se conta de que já era julho.
Para ela era como se o incidente de dez dias antes tivesse acontecido há um ou dois meses.”4
Se não ter memória é como não ser, somos, portanto, um pouco do que fomos embora já não o
sejamos. Somos igualmente um pouco do que sonhamos ser ou termos sido, nesse passado
feito de lembranças, e um pouco do que sonhamos vir a ser, em um futuro incerto. Somos
ainda um pouco do que somos de fato quando nos lembramos de ser alguma coisa além do
que já somos quando entregues integralmente ao que somos, esquecidos de antes,
despreocupados do amanhã. O que ficará, aliás, de nós, quando já não formos? Dos mortos, o
que fica, geralmente, para os que ficam, é a lembrança do que foram em vida: gestos,
palavras, posturas, rigores, hábitos, palavras, sorrisos, alguns objetos e pertences, quando os
teve o morto. Nada mais. Essencialmente, o que fica é a memória deste, ou melhor, o que dele
ou dela se gravou em nossa memória, fixou-se em nossa lembrança, impregnou-nos. É o todo
dela, da pessoa, que fica. Os detalhes se vão, uma coisa ou outra pode ser retida, mas é o
conjunto externo de instantes do ser que permanece. Em outras palavras, para quem vê de fora
– e quem de nós não vê de fora – é o complexo de instante e duração que importa. Para quem
vê de dentro, é a eternidade que vale. Alternamos, no fundo, um e outro.
Na paixão, a lembrança se inclina ao intemporal. Juntamos as
aventuras de um passado numa só imagem; os poentes de diferentes
vermelhos que vejo a cada entardecer serão na lembrança um só
poente. Passa-se o mesmo com a previsão: as esperanças mais
incompatíveis podem concicer sem problema. Digamos em outras
palavras: o estilo do desejo é a eternidade.5
Dos instantes íntimos de cada pessoa nada, ou quase nada, sabemos. Aquilo que ela pensou no
instante exato em que tomou tal atitude e não outra, aquilo que a fez dizer isso e não aquilo; a
minúcia da ação nos escapa, não a alcançamos, nem o mais arguto e sensível dos olhares
capta. Não, tudo isso é da ordem da intimidade e é dessa ordem a dita arte transversa, essa que
não é coisa, lugar ou espaço, essa que é ser e comunicar-se e que também é desejo de
comunicação. Se a pessoa é artista, dela não ficam apenas gestos, atitudes e palavras, mas
também obras, propostas ou sistemas artísticos, coisas que objetivam em alguma linguagem
os meandros de sua subjetividade, sua expressão, sua busca e seu conhecimento. Nesse caso,
se a linguagem (qualquer linguagem) é um solo comum que nos permite partilhar intimidades
por meio da fala (sendo esta o uso pessoal que se faz de determinada língua), que quebra
silêncios e abismos, a obra, proposta ou sistema artístico nelas (na linguagem e na fala)
concretizada seria como um poço de instantes distintos, alinhavados em uma tessitura
translúcida e em fluxo, a formar um tempo outro, distinto do tempo corriqueiro.
Gaston Bachelard6
cria uma imagem singular, decerto já deformada pela minha própria e
precária memória, para o instante poético e para a arte, que identifico com a idéia de uma arte
transversa, que independe, como já se pôde perceber, de uma obra-objeto-concreto, pois
transita por conceitos e posturas. A imagem que talvez guardei de Bachelard para isso é a do
impulso, élan. A obra de arte, poema, proposta ou sistema artístico apenas funcionam como
uma mola que nos lança na dimensão do instante poético, um instante caracterizado pela
verticalidade, um instante que parece se desconectar da dita linha do tempo e lançar a pessoa
em um outro nível de realidade. Esse outro nível de realidade é íntimo, pessoal e virtual, posto
que aponta para uma potência do ser, para o devir, o vir a ser, desconhecido mas pressentido.
O instante poético, efetivamente, lança-nos no (i)memorial de nós mesmos, num recanto onde
a cultura se esquece, onde imaginamos (ou temos a sensação de imaginar) por nós mesmos.
O devaneio poético, experimentado nesse instante, quer ser partilhado e o faz na realização da
forma. Não há, portanto, na obra (proposta ou sistema), uma mensagem, fechada ou aberta,
mas um ser, que se dobra e se desdobra em formas oriundas de uma substância material e
onírica. A ciência do artista, nessa óptica transversa, não é criar universos de sentido por meio
de técnicas variadas, capazes de iludir ou encantar as pessoas, mas, sim, criar campos de
sentimentos e significação, lugares, momentos ou situações propícios à invenção de sentido,
convidativos à criação poética.
O impulso criativo só funciona, claro, junto a uma predisposição da pessoa, que esse põe em
contato com a arte, a ser lançada naquela outra dimensão, lugar aberto; por isso a arte
transversa não está exatamente na obra, mas na relação e portanto no trânsito, que se
estabelece entre artista, obra (proposta ou sistema), pessoa e sentido. Está, voltando à imagem
original, no desaguamento da memória pessoal na cultura, solo comum. O instante poético
gera uma percepção ímpar, que é partilhada em uma forma de arte. Quando essa forma
substancial afeta a cultura, perturba-a, a arte é transversa. O que esta arte diz exatamente, seu
conteúdo e sua forma, não são mais importantes que aquilo que ela nos faz pensar e sentir por
nós mesmos a partir do impulso inicial que ela nos deu. A arte, assim, tem valor por acionar
em nosso psiquismo lembranças esquecidas: ela nos dá chaves de memória, impulsos (élans)
para o imemorial e, paradoxalmente, para o vir a ser. A partir delas mergulhamos no rio de
nossas próprias lembranças. Este relembrar — próprio, íntimo e pessoal — apenas
impulsionado pelo poeta e pelo artista, ou mesmo este sonhar, pois já não sabemos em que
medida imaginamos sentidos e reinventamos noções ao lembrar, esse relembrar, enfim,
sobrepõe-se à mensagem propriamente dita da arte, ultrapassa-a, importa mais que o objeto
que lhe deu origem, constitui-se por isso em arte e, por isso igualmente, em arte transversa,
posto que atravessa o verso, transcende-o a partir de si. Cumpre lembrar que o discurso é um
trânsito entre texto e contexto, um corre-corre, um pique-esconde, onde o que se revela não é
o que se dá a ver. “Dis-cursus é, originalmente, a ação de correr para todo lado, são idas e
vindas, démarches, intrigas”7
. Se é assim, à arte transversa importa ir além do discurso e do
jogo cultural.
A cultura pode ser entendida como uma espécie de memória coletiva, berço de linguagens,
criadouro de hábitos e costumes, lugar das tradições que funcionam como armas inconscientes
a nos orientar rumo ao desconhecido, por entre suas entranhas, por entre ruas e monumentos,
nomes e desertos. A cultura é chave de experiências acumuladas por outros antes de nós, é
herdada e transformada, coletivamente, por comunidades de pessoas afins, próximas ou
distantes, ligadas por laços, ora de sangue, ora de amizade ou de paixões. Fosse a arte mais
humilde do que costuma ser, do que culturalmente se tornou ao longo dos séculos, seria
naturalmente percebida como a língua o é: bem de todos, lugar de ninguém, fluxo por onde
transitamos ao sabor dos ventos essenciais, fruto compartilhado pela tribo local ou global, por
uma coletividade imensa nesses tempos de aldeia cibernética de seres humanos conectados
pela rede mundial de computadores e de telecomunicações. Nesse sentido, a arte transversa,
concebida como um estado de ser, um estar no mundo, uma maneira de viver, modus
operandi pessoal e potencialmente universal, é uma língua e uma linguagem, menos visível e
audível que a língua e que a linguagem operacional e pragmática normalmente aprendidas e
praticadas muito espontaneamente por todos os membros de uma comunidade, mas tão
necessária ao existir quanto essas.
Cabe lembrar que a cultura não é um bem em si, não é boa em si. A tradição cultural por vezes
pesa demasiadamente nos ombros dos inquietos e desejosos de não saber já de antemão o que
querem saber, de descobrir por si, de reinventar rodas, sim, de experimentar não só o novo,
mas o velho também, no eterno retorno dos que vivem e experimentam pela primeira vez tudo
que os vivos experimentam e que os faz se sentirem vivos: sabores e prazeres. Que queimem a
língua, que quebrem a cara, que se estrebuchem adiante, que mal há nisso, que tem os outros,
seguros e certeiros, sempre sabidos, donos de verdades e fundos, com isso? O falar, no sujeito
da fala, nesse que é poeta, nesse que areja a linguagem — “minhocas arejam a terra; poetas, a
linguagem”8
— é mecanismo de prazer íntimo, partilhado com os próximos, e de subversão.
Quem já tenha experimentado ir contra a ordem estabelecia ou a partes dessa ordem
estabelecida, cultivando em si comportamentos, posturas e percepções inusuais, conhece o
peso opressivo da cultura, de qualquer cultura, sua face monstruosa, seu poder estagnante e
silenciador. Na fala a desafiamos. O falar é um gesto contracultural por natureza, posto que
ousa abalar (arejar seria o mesmo) a ordem imemorial que garante a suposta perfeita ordem
das coisas e da vida social.
Assim, só aparece aos nossos olhos uma verdade que seria riqueza,
fecundidade, força doce e insidiosamente universal. E ignoramos, em
contrapartida, a vontade de verdade, como prodigiosa maquinaria
destinada a excluir todos aqueles que, ponto por ponto, em nossa
história, procuraram contornar essa vontade de verdade e recolocá-
la em questão contra a verdade, lá justamente onde a verdade assume
a tarefa de justificar a interdição e definir a loucura; todos aqueles,
de Nietzsche a Artaud e a Bataille, devem agora nos servir de sinais,
altivos sem dúvida, para o trabalho de todo dia.9
Com esses sinais em mente ensaiemos contrapor, essencialmente, memória e invenção,
cultura e pessoa, língua e fala. Estava a sonhar que era possível não contrapô-las, mas
imiscuí-las, fazer desaguar uma na outra, a memória na cultura, a pessoa na fala, a língua na
invenção. Sonhava, sim, e com todo direito de fazê-lo, e lembrava, imperfeitamente lembrava,
de Fernando Pessoa, transversado em Álvaro de Campos (no poema Lisbon Revisited, de
1923), arredio, a dizer “Sou um técnico, mas tenho técnica só dentro da técnica. / Fora disso
sou doido, com todo direito a sê-lo. / Com todo o direito a sê-lo, ouviram?”10
A técnica é a fala
do artista transverso, cuja loucura nada mais é que problema de comunicação ou de
linguagem, ruptura da ponte que vai de si aos outros, isolamento ou solidão, inferno,
convicção íntima acirrada, que a ninguém quer convencer e por ninguém se deixa dissuadir,
fundo de poço, resto de desamor, ou amor pleno, “a magia da verdade inteira todo poderoso
amor” (Gilberto Gil). A diferença, qual seria, do estado doentio para o estado poético? A
benesse da técnica e a força do amor, insubordinado amor. Pelo esforço de comunicar
novamente, de maneira própria, dentro de uma técnica específica e particularmente
trabalhada, a técnica insubordinada (sou técnico, somente dentro da minha técnica) alçaria o
louco, já artista, a outro patamar, não da normalidade da qual saíra um dia, mas do estado de
ser transverso. Já não é o excesso de lucidez, de insanidade, de sensibilidade e de espírito
crítico que caracterizam esse estado, mas outra coisa, dessas inomináveis, ou simples
pororoca: desaguamento da memória na cultura.
Digamos que a técnica, tão cara à arte, seja ao mesmo tempo memória e cultura11
. Ela é
memória na medida em que preserva um modus operandi experimentados, cuja eficácia
realizadora se aprimora a cada nova experimentação. Ela é cultura na medida em que se deixa
partilhar por meio de uma prática diária, de um cultivo, solitário ou coletivo de um conjunto
de costumes e valores. Ela, porém, tanto no campo da arte, como no da ciência, do desporto e
de tantos outros, é inválida se fica fora do sujeito. Fora dele, a técnica é estanque, é língua
morta. A técnica, sendo a fala do artista, é também uma conquista deste. Não se compra, não
se vende, não se troca. Pratica-se. Vivencia-se, como se faz com a língua e com a linguagem
ao se falar. Na fala, assim como na técnica, transformamos partículas, talvez ínfimas, talvez
significativas, do todo cultural, e operamos tal transformação quanto mais impregnamos nossa
fala de nossa memória, amalgamando, assim, pelo menos três dimensões distintas: uma
abstrata ou extremamente abrangente (a linguagem, o sistema), uma social e prática (a língua)
e uma idiossincrática – a fala, própria da pessoa.
A arte transversa faz desaguar a memória na cultura no instante preciso em que se
compreende que essas instâncias não são unidimensionais. A memória, por exemplo, é
pessoal, mas é também comum, igual a de todos, pois calcada em um corpo, mais ou menos
igual aos demais corpos. Costumamos vê-la como propriedade privada, particular apenas,
idiossincrática, enquanto ela tem uma dimensão comum: sua origem corporal. Talvez aí resida
a chance à universalidade da arte, em seu fundo de dor, de percepção e criação de beleza, de
fedor, de miséria e morte, que ninguém gosta de lembrar, que a todos convém esquecer. A
cultura, ao contrário, embora pareça sempre exterior ao indivíduo, coisa obviamente social,
grupal e coletiva, reserva uma parcela de subjetividade: manias, trejeitos, esquisitices e
hábitos formam a cultura da pessoa.
O momento preciso, porém, que nos interessa, equivale ao que Bachelard chamara de instante
poético e Henri Cartier-Bresson, de momento decisivo. Para aquele é o instante em que se
escapa do encadeamento linear natural do existir, onde minutos e horas se encadeiam
horizontalmente, em perfeita ordenação, e se entra no tempo vertical, onde realidades
ontológicas se revelam, inventam-se ou relembram-se na pessoa, tornando-a, justamente, mais
pessoa. Para o fotógrafo, trata-se da fração de segundo irrepetível, única, à qual se chega por
uma espécie de antecipação ou sintonia fina com o presente, o devir aqui e agora. Cada artista
talvez tenha sua definição para aquele momento preciso e para a arte transversa. Transitemos.
Assumamo-nos como seres errantes! Nômades de nós mesmos por excelência.
Arte transversa, enfim, não coroa nem inaugura nenhum processo progressivo ou tampouco
depressivo e pode se manifestar em múltiplas obras e não-obras, trair discursos e práticas,
infiltrar-se em manifestos e movimentos, permanecer inerte ou expandir-se porque não é um
espaço, nem uma coisa nem outra, mas um tempo de encontro de memórias e culturas, um
estado de ser e de se comunicar no tempo, um estado de ser complexo, desdobrado em
camadas e camadas de intimidade, sobrepostas eventualmente de maneira simples,
eventualmente de modo sofisticado. Nesse tempo, memória e cultura confluem. Nesse
encontro, inúmeras artes e artistas têm sua importância radical e relativa. Podemos, por isso,
ao sabor do vento ou das necessidades do momento, mas não a partir de pressupostos
apriorísticos, colher e provar diversos frutos estéticos, amargos e doces, pequenos e grandes.
Na confluência, o sonho de uma arte transversa prolonga uma visão expressa no manifesto
neoconcreto.
Afirmo ali que, para os neoconcretos, a obra de arte não é uma
máquina mas um quasi-corpus, isto é, um ser cuja realidade não se
esgota nas relações exteriores de seus elementos, conforme a visão de
Merleau-Ponty, Susan Langer e Vladímir Weidlé, para os quais a
obra de arte se assemelha não a máquinas mas a organismos vivos.12
Como organismo vivo, a arte se comunica e comunica universos de valores. Se ela fixa e
cristaliza uma significação particular, a do artista, se ela, nesse cristalizar, constitui-se como
um organismo vivo, como uma memória exposta, pulsante, ativa e impulsionante, ela só se
completa no momento em que o outro – espectador, leitor, fruidor, participante ou interator –
entra em contato com ela e nela se altera, lançado que é a uma outra atmosfera, a uma outra
dimensão, que já não é a de si, nem a do artista, mas de ambos e de ninguém: uma realidade
maior, transversal e cortante, ponte precária entre pelo menos dois seres. Composta por
percepções e significações singulares, a memória pessoal sai de seu casulo e alcança, na arte
como potência de comunicação e não como garantia certeira, a alteridade, deságua na cultura,
soma-se a outras percepções e significações singulares, a outras memórias, adormecidas ou
atentas, e nesse somar tece manhãs, gera culturas.
Um galo sozinho não tece a manhã: / ele precisará sempre de outros
galos. / De um que apanhe esse grito que ele / e o lance a outro: de
um outro galo / que apanhe o grito que um galo antes / e o lance a
outro; e de outros galos / que com muitos outros galos se cruzam / os
fios de sol de seus gritos de galo / para que a manhã, desde uma tela
tênue, / se vá tecendo, entre todos os galos. / E se encorpando em
tela, entre todos, / se erguendo tenda, onde entrem todos, no toldo / (a
manhã) que plana livre de armação. / A manhã, toldo de um tecido
tão aéreo / que, tecido, se eleva por si: luz balão.13
Não fosse tal potencial inventivo, a arte viva e nós, seres humanos vivos, seríamos mera
repetição de nós mesmos, reprodução de valores já assimilados, exercício doméstico de
digestão cultural, inofensivo e claramente benéfico, assegurador da aparente ordem e paz
social e de todo o rol de injustiças indignas que sabemos existir sob o manto do status quo e
da acomodação. Pelo contrário, dotada de potência comunicacional, a arte se estabelece como
prolongamento, não de uma, mas de pelo menos duas memórias inquietas, e atravessa
transversalmente suas culturas, transformando-as neste atravessamento.
1
Doutora em Comunicação. Professora pesquisadora do Departamento de Artes Visuais da
Universidade de Brasília. Membro do Programa de Pós-Graduação em Arte da UnB e da Rede CO3
de ensino e pesquisa em arte, cultura e tecnologias. abeatrizb@gmail.com. SHIS QI 23 conjunto
04 casa 20. CEP: 71660-040. Brasília-DF. (61) 99623882.
2
HILST, Hilda. Do Desejo. São Paulo: Globo, 2004, p. 42
3
PEDROSA, Israel. Da cor à cor inexistente. 5ed. Brasília: Editora Universidade de Brasília, 1995,
p. 31.
4
KAFU, Nagai. Crônica da estação das chuvas. São Paulo: Estação Liberdade, 2008, p. 144.
5
BORGES, Jorge Luis. História da eternidade. São Paulo: Companhia das Letras, 2008, p. 30.
6
BACHELARD, Gaston. L’Intuition de l’instant. Paris: Éditions Stock, 1992.
7
BARTHES, Roland. Fragmentos de um discurso amoroso. 12. ed. Rio de janeiro: Francisco Alves,
1994, p. 1.
8
BARROS, Manoel de. Gramática expositiva do chão (poesia quase toda). Rio de Janeiro:
Civilização Brasileira, 1992, p. 252.
9
FOUCAULT, Michel. A ordem do discurso. São Paulo: Edições Loyola, 1996, p. 20.
10
PESSOA, Fernando. Obra poética. Volume único. Rio de Janeiro: Editora Nova Aguilar S.A.,
1977, p. 357.
11
Cf. SUASSUNA, Ariano. Iniciação à Estética. Rio de Janeiro: José Olympio, 2005. Em dado
momento do livro, já na parte concernente à arte, o autor faz interessante distinção entre ofício,
técnica e forma, esclarecendo que o primeiro se ensina com bastante facilidade, a segunda se
partilha, conquista-se pela prática e se dá a conhecer no estudo da história, porém a terceira, a
forma, não há quem ensine, tudo que podemos fazer, como professores, é estimular nos estudantes o
mergulho em si e em seu universo de necessidades e desejos de comunicação estética.
12
GULLAR, Ferreira. Experiência neoconcreta: momento-limite da arte. São Paulo: Cosac Naif,
2007, p. 43.
13
MELO NETO, João Cabral de. A educação pela pedra. Rio de Janeiro: Objetiva, 2008, p. 219.
NOTA:
A primeira versão deste texto está publicada no livro:
Madalena Zaccara; Lívia Marques. (Org.). Paisagens plurais: artes visuais & transversalidades.
1ed. Recife - PE: Editora Universitária da UFPE, 2012, v. 1, p. 35-52

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Arte transversa, quando a memória deságua na cultura

  • 1. ARTE TRANSVERSA, QUANDO A MEMÓRIA DESÁGUA NA CULTURA Ana Beatriz Barroso1 Resumo: O texto transita por conexões possíveis entre arte, cultura e memória em perspectiva poética e explora a hipótese de um encontro entre as três. A idéia de uma arte aberta e definida em consonância com sua potência comunicacional, transversal à sua realidade imediata, perpassa o ensaio. Palavras-chave: transversalidade, comunicação, arte, poética Carrega-me contigo, Pássaro-Poesia Quando cruzares o Amanhã, a luz, o impossível Porque de barro e palha tem sido esta viagem Que faço a sós comigo. Isenta de traçado2 Que relação podemos dizer que se estabelece entre arte, cultura e memória? Que as três se dão e se afastam, isso é certo. Porém, quando se juntam, se é que se juntam, como isso se dá? Imaginemos por um segundo que isso se dê em uma espécie de desaguamento da memória na cultura. Haveria nesse caso um rio – a memória – e um mar – a cultura. A arte seria o quando, seria, portanto, um tempo: o tempo do encontro de uma com a outra, memória e cultura, ou de um com o outro, rio e mar. Penso em imagens porque é sabido o quanto elas nos ajudam a ver e também a transver, como afirma Manoel de Barros em depoimento a João Jardim e Walter Carvalho no filme Janela da Alma (Brasil, 2001): os olhos vêem, a imaginação transvê. A questão, nesse caso, para o poeta (e também para mim), não é saber o que entra pelos dois orifícios que temos na face, sensíveis à luz, mas sim saber o que deles sai, o que se sobrepõe ao mundo lá fora. Cabe lembrar que houve um tempo em que se acreditava que a luz, e consequentemente as imagens que formamos do mundo, saía dos olhos, de dentro para fora, em vez de entrar. Imagina... Durante muito tempo a visão foi explicada pela teoria dos raios visuais, segundo a qual dos olhos emanam luzes que apreendem os
  • 2. objetos, como tentáculos. As visíveis cintilações que jorram do olhar eram citadas como prova da existência de tais raios, assim como a luminescência dos olhos dos animais noturnos.3 Sem retroagir, podemos apenas resgatar, nessa ideia, a percepção de uma presença ativa e poderosa da imaginação humana, sua ação poética e poetizante. Ora, se de fato há um rio que deságua em um mar, esse encontro acontece de um determinado modo. Se há rios que deságuam em mares, esses encontros acontecem de diferentes modos. Há ainda rios que deságuam em rios e mares que deságuam na terra, na arrebentação, em tsunamis. Não nos cabe descrever nem demonstrar todos encontros possíveis, nem as variadas formas que esses encontros adquirem. A nós, basta-nos saber que existem, apreciá-los quando nos é dada a oportunidade, comentá-los se assim se quiser. O que de fato nos cabe, a nós que nos situamos nessa margem de cá, perto do estranhamento perpétuo, perto do caos e das flores, perto, dentro e fora da arte, é ensaiar um encontro apenas, imaginário, evidentemente, entre memória e cultura. Sendo imaginário, esse encontro não se daria em um lugar, mas em um tempo. Se fosse em um lugar, uma série de definições, descrições, delimitações e infinitas outras ações se manifestariam imprescindíveis ao relato, ou à hipótese. Dando-se no tempo, ao contrário, podemos vê-lo em qualquer lugar, em múltiplas formas, acontecendo de modo plural, como plural é a arte no tempo em que nos é dado viver, nossa época, mas também no tempo-fio- histórico que nos é dado conhecer, pois que historicamente, sabe-se, a arte sempre variou. Tendo atravessado o sonho eurocêntrico e rompido o cerco em que se confinava em categorias restritas, regras rígidas e gênios incontestes, a arte percebe-se, hoje, extremamente variada, multiforme e plural, como plural passa a ser o mundo que habitamos quando visto em sua globalidade perturbadora através dos fragmentos de imagens fotográficas, cinematográficas, televisivas, textuais e computacionais, que dele nos vão chegando. Eis, portanto, a vantagem de se imaginar o tal encontro entre memória e cultura no tempo e não no espaço, em instantes e durações e não em lugares: a diversidade salta aos olhos (e dos olhos). Chamaremos esse encontro, marcado pela diversidade poética, de arte transversa. Por ser um momento e não uma coisa, nem um acontecimento, tampouco um objeto, uma ação ou uma inação, a assim batizada arte transversa vem a ser (e é, quando o encontro se dá) uma dimensão íntima, pessoal. Não podemos vê-la, tocá-la, senti-la nem nada. Tudo que podemos
  • 3. fazer com ela é sê-la. Sequer podemos estar nela. De algum modo, por mais íntima que seja a dimensão do instante, onde se dá o encontro poético entre memória e cultura, em seu todo ou conjunto o tempo é visto por fora e, nesse fora, é visto pelas marcas que faz e deixa. A transformação por ele e nele operada é constante e discreta. O tempo se mostra no transformar, é trânsito em estado puro. No turbilhão das pequenas e grandes mutações que sofremos e fazemos sofrer, o tempo se revela, escoa e escapa. Fica, dele, a memória que temos dele quando nele nos transformamos. Quando um cheiro, visão ou canção chega até nós e nos faz lembrar de algo vivido, vemo-nos em um tempo próprio. Somos em parte uma memória desgrudada, desenraizada, livre de calendários. “Ao ler a data marcada na carta, Kimie, pela primeira vez, deu-se conta de que já era julho. Para ela era como se o incidente de dez dias antes tivesse acontecido há um ou dois meses.”4 Se não ter memória é como não ser, somos, portanto, um pouco do que fomos embora já não o sejamos. Somos igualmente um pouco do que sonhamos ser ou termos sido, nesse passado feito de lembranças, e um pouco do que sonhamos vir a ser, em um futuro incerto. Somos ainda um pouco do que somos de fato quando nos lembramos de ser alguma coisa além do que já somos quando entregues integralmente ao que somos, esquecidos de antes, despreocupados do amanhã. O que ficará, aliás, de nós, quando já não formos? Dos mortos, o que fica, geralmente, para os que ficam, é a lembrança do que foram em vida: gestos, palavras, posturas, rigores, hábitos, palavras, sorrisos, alguns objetos e pertences, quando os teve o morto. Nada mais. Essencialmente, o que fica é a memória deste, ou melhor, o que dele ou dela se gravou em nossa memória, fixou-se em nossa lembrança, impregnou-nos. É o todo dela, da pessoa, que fica. Os detalhes se vão, uma coisa ou outra pode ser retida, mas é o conjunto externo de instantes do ser que permanece. Em outras palavras, para quem vê de fora – e quem de nós não vê de fora – é o complexo de instante e duração que importa. Para quem vê de dentro, é a eternidade que vale. Alternamos, no fundo, um e outro. Na paixão, a lembrança se inclina ao intemporal. Juntamos as aventuras de um passado numa só imagem; os poentes de diferentes vermelhos que vejo a cada entardecer serão na lembrança um só poente. Passa-se o mesmo com a previsão: as esperanças mais incompatíveis podem concicer sem problema. Digamos em outras palavras: o estilo do desejo é a eternidade.5
  • 4. Dos instantes íntimos de cada pessoa nada, ou quase nada, sabemos. Aquilo que ela pensou no instante exato em que tomou tal atitude e não outra, aquilo que a fez dizer isso e não aquilo; a minúcia da ação nos escapa, não a alcançamos, nem o mais arguto e sensível dos olhares capta. Não, tudo isso é da ordem da intimidade e é dessa ordem a dita arte transversa, essa que não é coisa, lugar ou espaço, essa que é ser e comunicar-se e que também é desejo de comunicação. Se a pessoa é artista, dela não ficam apenas gestos, atitudes e palavras, mas também obras, propostas ou sistemas artísticos, coisas que objetivam em alguma linguagem os meandros de sua subjetividade, sua expressão, sua busca e seu conhecimento. Nesse caso, se a linguagem (qualquer linguagem) é um solo comum que nos permite partilhar intimidades por meio da fala (sendo esta o uso pessoal que se faz de determinada língua), que quebra silêncios e abismos, a obra, proposta ou sistema artístico nelas (na linguagem e na fala) concretizada seria como um poço de instantes distintos, alinhavados em uma tessitura translúcida e em fluxo, a formar um tempo outro, distinto do tempo corriqueiro. Gaston Bachelard6 cria uma imagem singular, decerto já deformada pela minha própria e precária memória, para o instante poético e para a arte, que identifico com a idéia de uma arte transversa, que independe, como já se pôde perceber, de uma obra-objeto-concreto, pois transita por conceitos e posturas. A imagem que talvez guardei de Bachelard para isso é a do impulso, élan. A obra de arte, poema, proposta ou sistema artístico apenas funcionam como uma mola que nos lança na dimensão do instante poético, um instante caracterizado pela verticalidade, um instante que parece se desconectar da dita linha do tempo e lançar a pessoa em um outro nível de realidade. Esse outro nível de realidade é íntimo, pessoal e virtual, posto que aponta para uma potência do ser, para o devir, o vir a ser, desconhecido mas pressentido. O instante poético, efetivamente, lança-nos no (i)memorial de nós mesmos, num recanto onde a cultura se esquece, onde imaginamos (ou temos a sensação de imaginar) por nós mesmos. O devaneio poético, experimentado nesse instante, quer ser partilhado e o faz na realização da forma. Não há, portanto, na obra (proposta ou sistema), uma mensagem, fechada ou aberta, mas um ser, que se dobra e se desdobra em formas oriundas de uma substância material e onírica. A ciência do artista, nessa óptica transversa, não é criar universos de sentido por meio de técnicas variadas, capazes de iludir ou encantar as pessoas, mas, sim, criar campos de sentimentos e significação, lugares, momentos ou situações propícios à invenção de sentido, convidativos à criação poética.
  • 5. O impulso criativo só funciona, claro, junto a uma predisposição da pessoa, que esse põe em contato com a arte, a ser lançada naquela outra dimensão, lugar aberto; por isso a arte transversa não está exatamente na obra, mas na relação e portanto no trânsito, que se estabelece entre artista, obra (proposta ou sistema), pessoa e sentido. Está, voltando à imagem original, no desaguamento da memória pessoal na cultura, solo comum. O instante poético gera uma percepção ímpar, que é partilhada em uma forma de arte. Quando essa forma substancial afeta a cultura, perturba-a, a arte é transversa. O que esta arte diz exatamente, seu conteúdo e sua forma, não são mais importantes que aquilo que ela nos faz pensar e sentir por nós mesmos a partir do impulso inicial que ela nos deu. A arte, assim, tem valor por acionar em nosso psiquismo lembranças esquecidas: ela nos dá chaves de memória, impulsos (élans) para o imemorial e, paradoxalmente, para o vir a ser. A partir delas mergulhamos no rio de nossas próprias lembranças. Este relembrar — próprio, íntimo e pessoal — apenas impulsionado pelo poeta e pelo artista, ou mesmo este sonhar, pois já não sabemos em que medida imaginamos sentidos e reinventamos noções ao lembrar, esse relembrar, enfim, sobrepõe-se à mensagem propriamente dita da arte, ultrapassa-a, importa mais que o objeto que lhe deu origem, constitui-se por isso em arte e, por isso igualmente, em arte transversa, posto que atravessa o verso, transcende-o a partir de si. Cumpre lembrar que o discurso é um trânsito entre texto e contexto, um corre-corre, um pique-esconde, onde o que se revela não é o que se dá a ver. “Dis-cursus é, originalmente, a ação de correr para todo lado, são idas e vindas, démarches, intrigas”7 . Se é assim, à arte transversa importa ir além do discurso e do jogo cultural. A cultura pode ser entendida como uma espécie de memória coletiva, berço de linguagens, criadouro de hábitos e costumes, lugar das tradições que funcionam como armas inconscientes a nos orientar rumo ao desconhecido, por entre suas entranhas, por entre ruas e monumentos, nomes e desertos. A cultura é chave de experiências acumuladas por outros antes de nós, é herdada e transformada, coletivamente, por comunidades de pessoas afins, próximas ou distantes, ligadas por laços, ora de sangue, ora de amizade ou de paixões. Fosse a arte mais humilde do que costuma ser, do que culturalmente se tornou ao longo dos séculos, seria naturalmente percebida como a língua o é: bem de todos, lugar de ninguém, fluxo por onde transitamos ao sabor dos ventos essenciais, fruto compartilhado pela tribo local ou global, por uma coletividade imensa nesses tempos de aldeia cibernética de seres humanos conectados pela rede mundial de computadores e de telecomunicações. Nesse sentido, a arte transversa,
  • 6. concebida como um estado de ser, um estar no mundo, uma maneira de viver, modus operandi pessoal e potencialmente universal, é uma língua e uma linguagem, menos visível e audível que a língua e que a linguagem operacional e pragmática normalmente aprendidas e praticadas muito espontaneamente por todos os membros de uma comunidade, mas tão necessária ao existir quanto essas. Cabe lembrar que a cultura não é um bem em si, não é boa em si. A tradição cultural por vezes pesa demasiadamente nos ombros dos inquietos e desejosos de não saber já de antemão o que querem saber, de descobrir por si, de reinventar rodas, sim, de experimentar não só o novo, mas o velho também, no eterno retorno dos que vivem e experimentam pela primeira vez tudo que os vivos experimentam e que os faz se sentirem vivos: sabores e prazeres. Que queimem a língua, que quebrem a cara, que se estrebuchem adiante, que mal há nisso, que tem os outros, seguros e certeiros, sempre sabidos, donos de verdades e fundos, com isso? O falar, no sujeito da fala, nesse que é poeta, nesse que areja a linguagem — “minhocas arejam a terra; poetas, a linguagem”8 — é mecanismo de prazer íntimo, partilhado com os próximos, e de subversão. Quem já tenha experimentado ir contra a ordem estabelecia ou a partes dessa ordem estabelecida, cultivando em si comportamentos, posturas e percepções inusuais, conhece o peso opressivo da cultura, de qualquer cultura, sua face monstruosa, seu poder estagnante e silenciador. Na fala a desafiamos. O falar é um gesto contracultural por natureza, posto que ousa abalar (arejar seria o mesmo) a ordem imemorial que garante a suposta perfeita ordem das coisas e da vida social. Assim, só aparece aos nossos olhos uma verdade que seria riqueza, fecundidade, força doce e insidiosamente universal. E ignoramos, em contrapartida, a vontade de verdade, como prodigiosa maquinaria destinada a excluir todos aqueles que, ponto por ponto, em nossa história, procuraram contornar essa vontade de verdade e recolocá- la em questão contra a verdade, lá justamente onde a verdade assume a tarefa de justificar a interdição e definir a loucura; todos aqueles, de Nietzsche a Artaud e a Bataille, devem agora nos servir de sinais, altivos sem dúvida, para o trabalho de todo dia.9 Com esses sinais em mente ensaiemos contrapor, essencialmente, memória e invenção, cultura e pessoa, língua e fala. Estava a sonhar que era possível não contrapô-las, mas
  • 7. imiscuí-las, fazer desaguar uma na outra, a memória na cultura, a pessoa na fala, a língua na invenção. Sonhava, sim, e com todo direito de fazê-lo, e lembrava, imperfeitamente lembrava, de Fernando Pessoa, transversado em Álvaro de Campos (no poema Lisbon Revisited, de 1923), arredio, a dizer “Sou um técnico, mas tenho técnica só dentro da técnica. / Fora disso sou doido, com todo direito a sê-lo. / Com todo o direito a sê-lo, ouviram?”10 A técnica é a fala do artista transverso, cuja loucura nada mais é que problema de comunicação ou de linguagem, ruptura da ponte que vai de si aos outros, isolamento ou solidão, inferno, convicção íntima acirrada, que a ninguém quer convencer e por ninguém se deixa dissuadir, fundo de poço, resto de desamor, ou amor pleno, “a magia da verdade inteira todo poderoso amor” (Gilberto Gil). A diferença, qual seria, do estado doentio para o estado poético? A benesse da técnica e a força do amor, insubordinado amor. Pelo esforço de comunicar novamente, de maneira própria, dentro de uma técnica específica e particularmente trabalhada, a técnica insubordinada (sou técnico, somente dentro da minha técnica) alçaria o louco, já artista, a outro patamar, não da normalidade da qual saíra um dia, mas do estado de ser transverso. Já não é o excesso de lucidez, de insanidade, de sensibilidade e de espírito crítico que caracterizam esse estado, mas outra coisa, dessas inomináveis, ou simples pororoca: desaguamento da memória na cultura. Digamos que a técnica, tão cara à arte, seja ao mesmo tempo memória e cultura11 . Ela é memória na medida em que preserva um modus operandi experimentados, cuja eficácia realizadora se aprimora a cada nova experimentação. Ela é cultura na medida em que se deixa partilhar por meio de uma prática diária, de um cultivo, solitário ou coletivo de um conjunto de costumes e valores. Ela, porém, tanto no campo da arte, como no da ciência, do desporto e de tantos outros, é inválida se fica fora do sujeito. Fora dele, a técnica é estanque, é língua morta. A técnica, sendo a fala do artista, é também uma conquista deste. Não se compra, não se vende, não se troca. Pratica-se. Vivencia-se, como se faz com a língua e com a linguagem ao se falar. Na fala, assim como na técnica, transformamos partículas, talvez ínfimas, talvez significativas, do todo cultural, e operamos tal transformação quanto mais impregnamos nossa fala de nossa memória, amalgamando, assim, pelo menos três dimensões distintas: uma abstrata ou extremamente abrangente (a linguagem, o sistema), uma social e prática (a língua) e uma idiossincrática – a fala, própria da pessoa. A arte transversa faz desaguar a memória na cultura no instante preciso em que se compreende que essas instâncias não são unidimensionais. A memória, por exemplo, é
  • 8. pessoal, mas é também comum, igual a de todos, pois calcada em um corpo, mais ou menos igual aos demais corpos. Costumamos vê-la como propriedade privada, particular apenas, idiossincrática, enquanto ela tem uma dimensão comum: sua origem corporal. Talvez aí resida a chance à universalidade da arte, em seu fundo de dor, de percepção e criação de beleza, de fedor, de miséria e morte, que ninguém gosta de lembrar, que a todos convém esquecer. A cultura, ao contrário, embora pareça sempre exterior ao indivíduo, coisa obviamente social, grupal e coletiva, reserva uma parcela de subjetividade: manias, trejeitos, esquisitices e hábitos formam a cultura da pessoa. O momento preciso, porém, que nos interessa, equivale ao que Bachelard chamara de instante poético e Henri Cartier-Bresson, de momento decisivo. Para aquele é o instante em que se escapa do encadeamento linear natural do existir, onde minutos e horas se encadeiam horizontalmente, em perfeita ordenação, e se entra no tempo vertical, onde realidades ontológicas se revelam, inventam-se ou relembram-se na pessoa, tornando-a, justamente, mais pessoa. Para o fotógrafo, trata-se da fração de segundo irrepetível, única, à qual se chega por uma espécie de antecipação ou sintonia fina com o presente, o devir aqui e agora. Cada artista talvez tenha sua definição para aquele momento preciso e para a arte transversa. Transitemos. Assumamo-nos como seres errantes! Nômades de nós mesmos por excelência. Arte transversa, enfim, não coroa nem inaugura nenhum processo progressivo ou tampouco depressivo e pode se manifestar em múltiplas obras e não-obras, trair discursos e práticas, infiltrar-se em manifestos e movimentos, permanecer inerte ou expandir-se porque não é um espaço, nem uma coisa nem outra, mas um tempo de encontro de memórias e culturas, um estado de ser e de se comunicar no tempo, um estado de ser complexo, desdobrado em camadas e camadas de intimidade, sobrepostas eventualmente de maneira simples, eventualmente de modo sofisticado. Nesse tempo, memória e cultura confluem. Nesse encontro, inúmeras artes e artistas têm sua importância radical e relativa. Podemos, por isso, ao sabor do vento ou das necessidades do momento, mas não a partir de pressupostos apriorísticos, colher e provar diversos frutos estéticos, amargos e doces, pequenos e grandes. Na confluência, o sonho de uma arte transversa prolonga uma visão expressa no manifesto neoconcreto. Afirmo ali que, para os neoconcretos, a obra de arte não é uma máquina mas um quasi-corpus, isto é, um ser cuja realidade não se esgota nas relações exteriores de seus elementos, conforme a visão de
  • 9. Merleau-Ponty, Susan Langer e Vladímir Weidlé, para os quais a obra de arte se assemelha não a máquinas mas a organismos vivos.12 Como organismo vivo, a arte se comunica e comunica universos de valores. Se ela fixa e cristaliza uma significação particular, a do artista, se ela, nesse cristalizar, constitui-se como um organismo vivo, como uma memória exposta, pulsante, ativa e impulsionante, ela só se completa no momento em que o outro – espectador, leitor, fruidor, participante ou interator – entra em contato com ela e nela se altera, lançado que é a uma outra atmosfera, a uma outra dimensão, que já não é a de si, nem a do artista, mas de ambos e de ninguém: uma realidade maior, transversal e cortante, ponte precária entre pelo menos dois seres. Composta por percepções e significações singulares, a memória pessoal sai de seu casulo e alcança, na arte como potência de comunicação e não como garantia certeira, a alteridade, deságua na cultura, soma-se a outras percepções e significações singulares, a outras memórias, adormecidas ou atentas, e nesse somar tece manhãs, gera culturas. Um galo sozinho não tece a manhã: / ele precisará sempre de outros galos. / De um que apanhe esse grito que ele / e o lance a outro: de um outro galo / que apanhe o grito que um galo antes / e o lance a outro; e de outros galos / que com muitos outros galos se cruzam / os fios de sol de seus gritos de galo / para que a manhã, desde uma tela tênue, / se vá tecendo, entre todos os galos. / E se encorpando em tela, entre todos, / se erguendo tenda, onde entrem todos, no toldo / (a manhã) que plana livre de armação. / A manhã, toldo de um tecido tão aéreo / que, tecido, se eleva por si: luz balão.13 Não fosse tal potencial inventivo, a arte viva e nós, seres humanos vivos, seríamos mera repetição de nós mesmos, reprodução de valores já assimilados, exercício doméstico de digestão cultural, inofensivo e claramente benéfico, assegurador da aparente ordem e paz social e de todo o rol de injustiças indignas que sabemos existir sob o manto do status quo e da acomodação. Pelo contrário, dotada de potência comunicacional, a arte se estabelece como prolongamento, não de uma, mas de pelo menos duas memórias inquietas, e atravessa transversalmente suas culturas, transformando-as neste atravessamento.
  • 10. 1 Doutora em Comunicação. Professora pesquisadora do Departamento de Artes Visuais da Universidade de Brasília. Membro do Programa de Pós-Graduação em Arte da UnB e da Rede CO3 de ensino e pesquisa em arte, cultura e tecnologias. abeatrizb@gmail.com. SHIS QI 23 conjunto 04 casa 20. CEP: 71660-040. Brasília-DF. (61) 99623882. 2 HILST, Hilda. Do Desejo. São Paulo: Globo, 2004, p. 42 3 PEDROSA, Israel. Da cor à cor inexistente. 5ed. Brasília: Editora Universidade de Brasília, 1995, p. 31. 4 KAFU, Nagai. Crônica da estação das chuvas. São Paulo: Estação Liberdade, 2008, p. 144. 5 BORGES, Jorge Luis. História da eternidade. São Paulo: Companhia das Letras, 2008, p. 30. 6 BACHELARD, Gaston. L’Intuition de l’instant. Paris: Éditions Stock, 1992. 7 BARTHES, Roland. Fragmentos de um discurso amoroso. 12. ed. Rio de janeiro: Francisco Alves, 1994, p. 1. 8 BARROS, Manoel de. Gramática expositiva do chão (poesia quase toda). Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1992, p. 252. 9 FOUCAULT, Michel. A ordem do discurso. São Paulo: Edições Loyola, 1996, p. 20. 10 PESSOA, Fernando. Obra poética. Volume único. Rio de Janeiro: Editora Nova Aguilar S.A., 1977, p. 357. 11 Cf. SUASSUNA, Ariano. Iniciação à Estética. Rio de Janeiro: José Olympio, 2005. Em dado momento do livro, já na parte concernente à arte, o autor faz interessante distinção entre ofício, técnica e forma, esclarecendo que o primeiro se ensina com bastante facilidade, a segunda se partilha, conquista-se pela prática e se dá a conhecer no estudo da história, porém a terceira, a forma, não há quem ensine, tudo que podemos fazer, como professores, é estimular nos estudantes o mergulho em si e em seu universo de necessidades e desejos de comunicação estética. 12 GULLAR, Ferreira. Experiência neoconcreta: momento-limite da arte. São Paulo: Cosac Naif, 2007, p. 43. 13 MELO NETO, João Cabral de. A educação pela pedra. Rio de Janeiro: Objetiva, 2008, p. 219. NOTA: A primeira versão deste texto está publicada no livro: Madalena Zaccara; Lívia Marques. (Org.). Paisagens plurais: artes visuais & transversalidades. 1ed. Recife - PE: Editora Universitária da UFPE, 2012, v. 1, p. 35-52