O documento descreve um encontro no ponto de ônibus entre o narrador e uma mulher que trabalha em uma sorveteria. Eles acabam cuidando de um bebê que foi deixado pela mãe. Embora o narrador se sinta atraído por ela, a mulher diz que não tem tempo para um relacionamento devido à sua vida agitada. Quando a mãe volta para pegar a criança, o ônibus chega e ela parte.
1. No ponto de ônibus
Eu decorei aquele momento como se fosse
um código para um cofre secreto. Cada
detalhe, cada plano de fundo e cada cheiro.
Tornei aquela situação um país da memória
em que eu visitava sempre que sentia que
faltava algo a mim. Meus movimentos
tímidos incrivelmente eram semelhantes
aos movimentos tímidos dela. Brincávamos
de fazer silêncio e rir para o infinito.
Jogávamos olhares rápidos para nossas
bocas e viajávamos nas montanhas-russas
de nossos lábios. Nossos cílios eram cortina
de decoração de nossas faces esculpidas
em nossas pupilas. Fazíamos samba com as
mãos em nervosismo e em uma fração de
segundos engolíamos frases que
poderíamos ter dito um para o outro, mas
sem nos saciar.
2. Há um tempo eu não a via. Tempo que não
foi suficiente para deletá-la dos meus
arquivos mentais incompletos e dos meus
desejos ancorados. Nem deletar minha
sensação de ficar estagnado e entalado no
silêncio que ela me provocava.
Talvez por ela ter aquela risada analgésica.
Talvez por ela também não ser tão clichê.
Não digo o mesmo de mim, pois fazia o
mesmo sempre que a assistia. Ressuscitei
tudo que um dia imaginei ou tentei viver,
seja claro ou escuro, bonito ou trágico,
apenas fiz crescer no ébano dos meus
pensamentos. Até me recordei brevemente
de nossa história.
A minha cidade não é muito grande. Ela
tem em média um número de cidadãos que
nem os próprios cidadãos sabem. Mas a
gente finge que é um número razoável. Ao
menos para pegar ônibus não era tão difícil
quanto na capital. Ouvia isso também de
alguns cidadãos.
3. Os ônibus não demoravam passar. Eram
pontuais, assim como quem os aguardava.
Eu o esperava todos os dias. A rotina era
religiosa, mas nem tanto iluminada.
Minha casa fica a uma distância
desproporcional a resistência dos meus pés
e da minha força de vontade. O ônibus era
minha ambulância: transferia gentilmente
meu corpo acabado pela longa labuta
diária. Quando o ônibus dava as caras no
cateto da rua, erguia meu braço e fazia
uma sinalização para parar como se fosse
um tom romântico de pegue o meu braço e
me leve, me possua, seja o meu guia
espiritual.
Meus olhos murchos e minhas bochechas
enrugadas me entregavam. Às vezes eu
fingia um sorriso para a trocadora. Mas ela
me devolvia um de volta provavelmente
ironizando meu cabelo desarrumado e
minha blusa do avesso.
4. Mas nos finais de semana o ônibus não era
tão pontual, principalmente à noite.
Esperávamos mais do que o atraso
permitia.
Lá no ponto de ônibus não tinha assento,
era sofrer e pedir perdão para os pés, que
em vista da longa jornada já flutuavam e às
vezes nem sentiam o chão. Os olhos
bancavam de vigias. O pescoço clamava por
perdão pelas retorcidas, era cá e lá, lá e cá,
praticamente o tratando como uma tampa
de uma garrafa pet, só que sem abri-la
completamente. A cintura era encosto para
os braços, que quando repousados nela,
davam a entender que eu estaria tentando
algum tipo de dança estranha com o corpo
parado. As dores físicas eram só confeites,
as dores por dentro eram recheios de sabor
amargo. Eu já não sabia mais distinguir o
que era, o que eu queria e em que situação
eu me encontrava. Vivia perdido nos meus
devaneios e nas minhas preocupações com
5. tudo que não se preocupava comigo. Era
abominado por uma confusão de
realidades, confusão de tempo e espaço.
Não encontrava na linha retilínea do
universo. Dava espaço até para aquele frio
que sobrevoava minha alma e pousava em
minha solidão. Eu já não me sentia mais
amado. Nem por mim mesmo. E nem me
sentia nos meus dias. Sequer um fiasco de
reciprocidade. Não. Nada.
Após percorrer a maratona dos trabalhos
ainda sem a bandeirada final, encostei em
uma das pilastras do que antigamente era
uma coberta para o ponto. Era confortante
e ficava exatamente no centro de tudo que
me rodeava e eu observava em silêncio. O
mendigo brigando com seus pés para ver
quem tinha todo o calor do pequeno
cobertor para si. A moça afogando o bebê
em seus seios numa tentativa desesperada
de parar o seu choro. E, para minha
surpresa, vindo em direção ao ponto, a
6. mulher que não era manequim de loja, mas
tinha corpo para isso: a caixa da sorveteria
da minha rua.
Era uma menina surrada pelo seu ardo
trabalho. Quando tinha tempo, o retirava
para colocar os trabalhos da faculdade em
dia. Mas o que mais me surpreendia era
que ainda sim sobrava um pequeno tempo
para cuidar de sua enorme beleza. Não sei
se era só uma beleza que eu notava, ela
não era muito namoradeira, nem arrancava
assobios dos pedreiros do bairro. Tinha o
corpo magrinho, que apesar disso haviam
gordurinhas que davam as silhuetas das
suas curvas em seu quadril. O olhar era tão
profundo quanto um poema que eu queria
escrever sobre ele.
A minha admiração ia além do que os
outros podiam imaginar. O fato daquela
menina ser tão dedicada me fantasiava a
uma vida que eu queria muito compartilhar
e ser da rotina.
7. Naquele dia, no ponto de ônibus, ela estava
muito bem arrumada. Um vestido que
parecia ter sido bordado por alguma tia
costureira que abusava do bom gosto nas
rendinhas florais rosadas e no brilho que
delineava-lhe as linhas do corpo. Um
encaixe perfeito no que se referia a alguém
que não se importava tanto em chamar a
atenção na sorveteria. Até esse bom senso
de não querer aparecer era afrodisíaco, por
mais estranho que isso soe. Talvez a
naturalidade da sua beleza – e o fato dela
não ter abusado da maquiagem nem
naquele sábado à noite – me instigava a ser
tão preso ao seu inigualável jeito.
Ela me cumprimentou.
- Olá, sabe se o ônibus do Vilarejo do Pinhal
já passou?
- Ainda não. Mas breve deve passar.
Me peguei numa vontade de esticar o
assunto, mesmo sabendo que ela estava
8. preocupada enviando mensagens em seu
celular e eu não queria dividir a sua
atenção com um aparelho telefônico. Mas
o fiz mesmo assim.
- É um bairro de elite. Haverá alguma festa
por lá hoje?
- Sim. – disse sem desgrudar os olhos do
celular.
- É alguma festa de formatura, festa do
pessoal da universidade, não sei, algo desse
tipo?
- Festa de formatura.
Ela abusava do curto diálogo. Algo a
aprisionava ao seu celular de modo a não
querer se desgrudar dele a nenhum
momento. Nem dispensou uns risinhos
esporádicos e umas recolocações de suas
mechas atrás das orelhas.
9. - Desculpa, mas não acha que perderá o
ônibus se não prestar atenção se ele está
vindo?
- Se ele aparecer, me avise, por favor.
- Olha! Lá vem ele!
Destrambelhada, deixou o celular cair ao
chão em susto. Ela desenhou um
desespero, mas se conteve quando,
cavalheiramente, me abaixei e peguei para
ela.
- Mas o ônibus nem vem. Por que você fez
isso?
Alguém cutucou minhas costas. Era a moça
que carregava o bebê.
- Moço, segure o bebê, por favor, por favor.
Eu imploro. Talvez eu volte. Mas segure
com toda a sua alma. – disse a moça com
os olhos refugiados em desespero e que,
logo em seguida, disparou a correr sem
rumo.
10. - Ei! Volte aqui! – gritei sem muitas
esperanças de que ela voltasse. - Meu
Deus! E agora? O que eu faço? – disse
olhando para ela com os olhos arregalados.
- Estava irritada por ter deixado cair o meu
celular, mas acho que agora você pagará
por aquilo. – esbanjou aquele sorriso que,
mesmo irônico, me derrubava como se eu
fosse uma pilha de dominós levantados e
ordenados.
- Mas que preço salgado.
- Estou brincando. Dá cá esse bebê, deixa
eu tentar fazer ele parar de chorar.
O bebê instantaneamente se tranquilizou.
Além do dom natural de ter algo que me
encantava e que não sei decifrar, ela tinha
um toque fascinante de calmaria.
- Você leva jeito pra coisa.
- Surpreendentemente, sim. Mas pra falar a
verdade é que minha irmã mais nova teve
11. um filho. 17 anos. Imatura para o mundo.
Engravidou precocemente. Minha mãe que
já não é mais aquela guerreira de outrora,
teve esse elefante jogado nos braços. Tive
de ajudá-la a cuidar do bebê enquanto ela
passava a roupa de metade do bairro de
Vilarejo do Pinhal. É toda uma história
muito chata e comum, desculpa estar lhe
falando isso.
- Não é incômodo algum me contar, eu
sentaria aqui para ouvi-la a noite toda,
afinal não podemos abandonar essa criança
sem devolvê-la à mãe.
- Exatamente.
- Toda semana passo para pegar um
sorvete no local que você trabalha. Não sei
se nunca me notou.
- São muitos clientes que frequentam a
loja, mas seu rosto não me é estranho.
- Nem o seu me é estranho.
12. - Estamos partindo para aquela história
batida do cara que é encantado pela
menina, mas ela nunca o notou na verdade
e ele tenta a ludibriar dizendo que a achava
linda, com uma beleza diferente e um
sorriso lindo?
- Espero que não. Mas acho incrível o seu
dom de ler pensamentos.
- Não é a primeira vez que isso acontece
comigo. Um outro rapaz ia regularmente na
loja. Ele tentou de qualquer maneira me
conquistar. Se disse apaixonado, dominado
pelo meu olhar segundo ele “diferente”.
Não sou de menosprezar e nem gosto de
fazer ninguém sofrer, mas disse que não
seria possível. Não tenho tempo nem para
cuidar de mim mesma, que dirá cuidar de
dois, ou três, ou quatro. Eu não sei a
quilometragem certa que um
relacionamento pode ter. Pareço ser
egoísta com isso, confesso. Imatura e
medrosa, talvez. Mas eu conheço minha
13. vida desorganizada. É uma insegurança de
querer trazer um passageiro para esse
comboio lotado.
Parecia que eu estava ouvindo a história do
meu eu futuro. Trágica, diga-se de
passagem. Mas agradecia por ter voltado
ao passado. Ela era a coisa perfeita para o
momento imperfeito. Um desencontro na
forma literal. Mesmo não sabendo se o que
eu sentia era algo de estalo ou repentino,
de certa forma ir a uma sorveteria
constantemente e se atentar a uma única
pessoa e querer trazê-la para si, para
dentro do seu livro de novas histórias não é
algo lá tão comum.
- Enfim. O que será que aconteceu com
aquela mulher para ela deixar um bebê nas
mãos de estranhos e sair correndo?
- Realmente não faz muito sentido. Mas
por que de repente mudou de assunto?
14. - A gente nem se conhece, mas, com uma
frase, eu posso criar um laço entre nós. Um
laço estranho, mas posso criar.
- E qual seria?
- Com o pouco que você disse eu senti
como se você já tivesse visitado meus
pensamentos, feito uma releitura dos meus
desejos e colocado uma ancora naquilo
tudo. Uma repaginada no visual da minha
ilusão.
- Assim eu me sinto como uma megera.
- Não, não é. A culpa aqui é toda minha.
- Por que sua?
- Eu fui copiar a idéia errada do outro
rapaz. Deveria ter pensado em outra. Uma
mais convincente, quem sabe.
- Você é engraçado.
A mãe do bebê voltou. Pediu a criança de
volta e agradeceu. Parecia mais aliviada.
15. - Aconteceu alguma coisa?
- O pai da criança me ligou. Queria me
encontrar. Disse que tinha algo urgente
para me dizer, mas eu já sabia que era só
uma artimanha para ver a criança, sendo
que ele não dá a mínima para ela.
- Malditos pais modernos.
- Mas muito obrigado por terem olhado a
criança. Principalmente você, moço, sei que
é de confiança pois sempre o vejo por aqui.
- Disponha.
- Que loucura, não? – disse colocando a
mão nos bolsos e respirando fundo.
- Essa vida não é fácil.
Dividindo um momento de pura falta de
assunto, não sabia se me aventurava a
tentar convencê-la do contrário ou apenas
me acostumar com a idéia de que aquela
situação não apresentava uma estrada de
16. opção. Ela não se demonstrava interessada
e aquilo me trouxe a um universo de
frustração, devido às ilusões que alimentei
numa suposta perfeição de um ser que
queria ter no abraço nos finais dos meus
dias ácidos.
- Parece que o ônibus está vindo.
- É, já está chegando. Me desculpa pelo
celular. Ele estragou?
- Não, está intacto.
- Desculpa a intromissão e a minha
curiosidade, mas o que tanto prendia a sua
atenção e lhe arrancava algumas risadas?
- Era minha irmã. Disse que o meu sobrinho
falou suas primeiras palavras. Uma delas foi
o meu nome.
- Que coisa mais linda.
17. - É sim. Bom, lá vem o ônibus. Deixa eu ir.
Obrigada pela companhia essa noite. Você
me parece um bom rapaz.
- Eu que agradeço. – disse levantando
vagarosamente os braços e dando um
tchau em tons de não se vá.
O meu ônibus passou logo em seguida.
Novamente, a trocadora com seus risos.
Naquele dia eu não estava tão
desarrumado e nem com a camisa do
avesso. Talvez ela debochasse de fato de
mim. Mas voltei para casa como quem não
tivesse completado sua missão.
No dia que nos encontramos novamente
naquela mesma situação e naquele mesmo
ponto de ônibus, o filme voltou a se exibir
nos meus olhos. Ela estava vestida do
mesmo jeito – talvez aquele vestido fosse o
seu preferido, ou talvez ela abusasse do
seu dom de fazer uma leitura dos meus
pensamentos e optasse pelo que eu achava
18. que a deixava como uma rainha. A encarei
devagar, sem graça como me era de
costume e sem palavras como sempre me
faltara.
Ela me cumprimentou.
- Olá, sabe se o ônibus do Vilarejo do Pinhal
já passou?
- Ainda não. Mas breve deve passar.
Tiago Peçanha.