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No ponto de ônibus

Eu decorei aquele momento como se fosse
um código para um cofre secreto. Cada
detalhe, cada plano de fundo e cada cheiro.
Tornei aquela situação um país da memória
em que eu visitava sempre que sentia que
faltava algo a mim. Meus movimentos
tímidos incrivelmente eram semelhantes
aos movimentos tímidos dela. Brincávamos
de fazer silêncio e rir para o infinito.
Jogávamos olhares rápidos para nossas
bocas e viajávamos nas montanhas-russas
de nossos lábios. Nossos cílios eram cortina
de decoração de nossas faces esculpidas
em nossas pupilas. Fazíamos samba com as
mãos em nervosismo e em uma fração de
segundos      engolíamos      frases    que
poderíamos ter dito um para o outro, mas
sem nos saciar.
Há um tempo eu não a via. Tempo que não
foi suficiente para deletá-la dos meus
arquivos mentais incompletos e dos meus
desejos ancorados. Nem deletar minha
sensação de ficar estagnado e entalado no
silêncio que ela me provocava.

Talvez por ela ter aquela risada analgésica.
Talvez por ela também não ser tão clichê.
Não digo o mesmo de mim, pois fazia o
mesmo sempre que a assistia. Ressuscitei
tudo que um dia imaginei ou tentei viver,
seja claro ou escuro, bonito ou trágico,
apenas fiz crescer no ébano dos meus
pensamentos. Até me recordei brevemente
de nossa história.

A minha cidade não é muito grande. Ela
tem em média um número de cidadãos que
nem os próprios cidadãos sabem. Mas a
gente finge que é um número razoável. Ao
menos para pegar ônibus não era tão difícil
quanto na capital. Ouvia isso também de
alguns cidadãos.
Os ônibus não demoravam passar. Eram
pontuais, assim como quem os aguardava.
Eu o esperava todos os dias. A rotina era
religiosa, mas nem tanto iluminada.

Minha casa fica a uma distância
desproporcional a resistência dos meus pés
e da minha força de vontade. O ônibus era
minha ambulância: transferia gentilmente
meu corpo acabado pela longa labuta
diária. Quando o ônibus dava as caras no
cateto da rua, erguia meu braço e fazia
uma sinalização para parar como se fosse
um tom romântico de pegue o meu braço e
me leve, me possua, seja o meu guia
espiritual.

Meus olhos murchos e minhas bochechas
enrugadas me entregavam. Às vezes eu
fingia um sorriso para a trocadora. Mas ela
me devolvia um de volta provavelmente
ironizando meu cabelo desarrumado e
minha blusa do avesso.
Mas nos finais de semana o ônibus não era
tão pontual, principalmente à noite.
Esperávamos mais do que o atraso
permitia.

Lá no ponto de ônibus não tinha assento,
era sofrer e pedir perdão para os pés, que
em vista da longa jornada já flutuavam e às
vezes nem sentiam o chão. Os olhos
bancavam de vigias. O pescoço clamava por
perdão pelas retorcidas, era cá e lá, lá e cá,
praticamente o tratando como uma tampa
de uma garrafa pet, só que sem abri-la
completamente. A cintura era encosto para
os braços, que quando repousados nela,
davam a entender que eu estaria tentando
algum tipo de dança estranha com o corpo
parado. As dores físicas eram só confeites,
as dores por dentro eram recheios de sabor
amargo. Eu já não sabia mais distinguir o
que era, o que eu queria e em que situação
eu me encontrava. Vivia perdido nos meus
devaneios e nas minhas preocupações com
tudo que não se preocupava comigo. Era
abominado por uma confusão de
realidades, confusão de tempo e espaço.
Não encontrava na linha retilínea do
universo. Dava espaço até para aquele frio
que sobrevoava minha alma e pousava em
minha solidão. Eu já não me sentia mais
amado. Nem por mim mesmo. E nem me
sentia nos meus dias. Sequer um fiasco de
reciprocidade. Não. Nada.

Após percorrer a maratona dos trabalhos
ainda sem a bandeirada final, encostei em
uma das pilastras do que antigamente era
uma coberta para o ponto. Era confortante
e ficava exatamente no centro de tudo que
me rodeava e eu observava em silêncio. O
mendigo brigando com seus pés para ver
quem tinha todo o calor do pequeno
cobertor para si. A moça afogando o bebê
em seus seios numa tentativa desesperada
de parar o seu choro. E, para minha
surpresa, vindo em direção ao ponto, a
mulher que não era manequim de loja, mas
tinha corpo para isso: a caixa da sorveteria
da minha rua.

Era uma menina surrada pelo seu ardo
trabalho. Quando tinha tempo, o retirava
para colocar os trabalhos da faculdade em
dia. Mas o que mais me surpreendia era
que ainda sim sobrava um pequeno tempo
para cuidar de sua enorme beleza. Não sei
se era só uma beleza que eu notava, ela
não era muito namoradeira, nem arrancava
assobios dos pedreiros do bairro. Tinha o
corpo magrinho, que apesar disso haviam
gordurinhas que davam as silhuetas das
suas curvas em seu quadril. O olhar era tão
profundo quanto um poema que eu queria
escrever sobre ele.

A minha admiração ia além do que os
outros podiam imaginar. O fato daquela
menina ser tão dedicada me fantasiava a
uma vida que eu queria muito compartilhar
e ser da rotina.
Naquele dia, no ponto de ônibus, ela estava
muito bem arrumada. Um vestido que
parecia ter sido bordado por alguma tia
costureira que abusava do bom gosto nas
rendinhas florais rosadas e no brilho que
delineava-lhe as linhas do corpo. Um
encaixe perfeito no que se referia a alguém
que não se importava tanto em chamar a
atenção na sorveteria. Até esse bom senso
de não querer aparecer era afrodisíaco, por
mais estranho que isso soe. Talvez a
naturalidade da sua beleza – e o fato dela
não ter abusado da maquiagem nem
naquele sábado à noite – me instigava a ser
tão preso ao seu inigualável jeito.

Ela me cumprimentou.

- Olá, sabe se o ônibus do Vilarejo do Pinhal
já passou?

- Ainda não. Mas breve deve passar.

Me peguei numa vontade de esticar o
assunto, mesmo sabendo que ela estava
preocupada enviando mensagens em seu
celular e eu não queria dividir a sua
atenção com um aparelho telefônico. Mas
o fiz mesmo assim.

- É um bairro de elite. Haverá alguma festa
por lá hoje?

- Sim. – disse sem desgrudar os olhos do
celular.

- É alguma festa de formatura, festa do
pessoal da universidade, não sei, algo desse
tipo?

- Festa de formatura.

Ela abusava do curto diálogo. Algo a
aprisionava ao seu celular de modo a não
querer se desgrudar dele a nenhum
momento. Nem dispensou uns risinhos
esporádicos e umas recolocações de suas
mechas atrás das orelhas.
- Desculpa, mas não acha que perderá o
ônibus se não prestar atenção se ele está
vindo?

- Se ele aparecer, me avise, por favor.

- Olha! Lá vem ele!

Destrambelhada, deixou o celular cair ao
chão em susto. Ela desenhou um
desespero, mas se conteve quando,
cavalheiramente, me abaixei e peguei para
ela.

- Mas o ônibus nem vem. Por que você fez
isso?

Alguém cutucou minhas costas. Era a moça
que carregava o bebê.

- Moço, segure o bebê, por favor, por favor.
Eu imploro. Talvez eu volte. Mas segure
com toda a sua alma. – disse a moça com
os olhos refugiados em desespero e que,
logo em seguida, disparou a correr sem
rumo.
- Ei! Volte aqui! – gritei sem muitas
esperanças de que ela voltasse. - Meu
Deus! E agora? O que eu faço? – disse
olhando para ela com os olhos arregalados.

- Estava irritada por ter deixado cair o meu
celular, mas acho que agora você pagará
por aquilo. – esbanjou aquele sorriso que,
mesmo irônico, me derrubava como se eu
fosse uma pilha de dominós levantados e
ordenados.

- Mas que preço salgado.

- Estou brincando. Dá cá esse bebê, deixa
eu tentar fazer ele parar de chorar.

O bebê instantaneamente se tranquilizou.
Além do dom natural de ter algo que me
encantava e que não sei decifrar, ela tinha
um toque fascinante de calmaria.

- Você leva jeito pra coisa.

- Surpreendentemente, sim. Mas pra falar a
verdade é que minha irmã mais nova teve
um filho. 17 anos. Imatura para o mundo.
Engravidou precocemente. Minha mãe que
já não é mais aquela guerreira de outrora,
teve esse elefante jogado nos braços. Tive
de ajudá-la a cuidar do bebê enquanto ela
passava a roupa de metade do bairro de
Vilarejo do Pinhal. É toda uma história
muito chata e comum, desculpa estar lhe
falando isso.

- Não é incômodo algum me contar, eu
sentaria aqui para ouvi-la a noite toda,
afinal não podemos abandonar essa criança
sem devolvê-la à mãe.

- Exatamente.

- Toda semana passo para pegar um
sorvete no local que você trabalha. Não sei
se nunca me notou.

- São muitos clientes que frequentam a
loja, mas seu rosto não me é estranho.

- Nem o seu me é estranho.
- Estamos partindo para aquela história
batida do cara que é encantado pela
menina, mas ela nunca o notou na verdade
e ele tenta a ludibriar dizendo que a achava
linda, com uma beleza diferente e um
sorriso lindo?

- Espero que não. Mas acho incrível o seu
dom de ler pensamentos.

- Não é a primeira vez que isso acontece
comigo. Um outro rapaz ia regularmente na
loja. Ele tentou de qualquer maneira me
conquistar. Se disse apaixonado, dominado
pelo meu olhar segundo ele “diferente”.
Não sou de menosprezar e nem gosto de
fazer ninguém sofrer, mas disse que não
seria possível. Não tenho tempo nem para
cuidar de mim mesma, que dirá cuidar de
dois, ou três, ou quatro. Eu não sei a
quilometragem        certa    que     um
relacionamento pode ter. Pareço ser
egoísta com isso, confesso. Imatura e
medrosa, talvez. Mas eu conheço minha
vida desorganizada. É uma insegurança de
querer trazer um passageiro para esse
comboio lotado.

Parecia que eu estava ouvindo a história do
meu eu futuro. Trágica, diga-se de
passagem. Mas agradecia por ter voltado
ao passado. Ela era a coisa perfeita para o
momento imperfeito. Um desencontro na
forma literal. Mesmo não sabendo se o que
eu sentia era algo de estalo ou repentino,
de certa forma ir a uma sorveteria
constantemente e se atentar a uma única
pessoa e querer trazê-la para si, para
dentro do seu livro de novas histórias não é
algo lá tão comum.

- Enfim. O que será que aconteceu com
aquela mulher para ela deixar um bebê nas
mãos de estranhos e sair correndo?

- Realmente não faz muito sentido. Mas
por que de repente mudou de assunto?
- A gente nem se conhece, mas, com uma
frase, eu posso criar um laço entre nós. Um
laço estranho, mas posso criar.

- E qual seria?

- Com o pouco que você disse eu senti
como se você já tivesse visitado meus
pensamentos, feito uma releitura dos meus
desejos e colocado uma ancora naquilo
tudo. Uma repaginada no visual da minha
ilusão.

- Assim eu me sinto como uma megera.

- Não, não é. A culpa aqui é toda minha.

- Por que sua?

- Eu fui copiar a idéia errada do outro
rapaz. Deveria ter pensado em outra. Uma
mais convincente, quem sabe.

- Você é engraçado.

A mãe do bebê voltou. Pediu a criança de
volta e agradeceu. Parecia mais aliviada.
- Aconteceu alguma coisa?

- O pai da criança me ligou. Queria me
encontrar. Disse que tinha algo urgente
para me dizer, mas eu já sabia que era só
uma artimanha para ver a criança, sendo
que ele não dá a mínima para ela.

- Malditos pais modernos.

- Mas muito obrigado por terem olhado a
criança. Principalmente você, moço, sei que
é de confiança pois sempre o vejo por aqui.

- Disponha.

- Que loucura, não? – disse colocando a
mão nos bolsos e respirando fundo.

- Essa vida não é fácil.

Dividindo um momento de pura falta de
assunto, não sabia se me aventurava a
tentar convencê-la do contrário ou apenas
me acostumar com a idéia de que aquela
situação não apresentava uma estrada de
opção. Ela não se demonstrava interessada
e aquilo me trouxe a um universo de
frustração, devido às ilusões que alimentei
numa suposta perfeição de um ser que
queria ter no abraço nos finais dos meus
dias ácidos.

- Parece que o ônibus está vindo.

- É, já está chegando. Me desculpa pelo
celular. Ele estragou?

- Não, está intacto.

- Desculpa a intromissão e a minha
curiosidade, mas o que tanto prendia a sua
atenção e lhe arrancava algumas risadas?

- Era minha irmã. Disse que o meu sobrinho
falou suas primeiras palavras. Uma delas foi
o meu nome.

- Que coisa mais linda.
- É sim. Bom, lá vem o ônibus. Deixa eu ir.
Obrigada pela companhia essa noite. Você
me parece um bom rapaz.

- Eu que agradeço. – disse levantando
vagarosamente os braços e dando um
tchau em tons de não se vá.

O meu ônibus passou logo em seguida.
Novamente, a trocadora com seus risos.
Naquele dia eu não estava tão
desarrumado e nem com a camisa do
avesso. Talvez ela debochasse de fato de
mim. Mas voltei para casa como quem não
tivesse completado sua missão.

No dia que nos encontramos novamente
naquela mesma situação e naquele mesmo
ponto de ônibus, o filme voltou a se exibir
nos meus olhos. Ela estava vestida do
mesmo jeito – talvez aquele vestido fosse o
seu preferido, ou talvez ela abusasse do
seu dom de fazer uma leitura dos meus
pensamentos e optasse pelo que eu achava
que a deixava como uma rainha. A encarei
devagar, sem graça como me era de
costume e sem palavras como sempre me
faltara.

Ela me cumprimentou.

- Olá, sabe se o ônibus do Vilarejo do Pinhal
já passou?

- Ainda não. Mas breve deve passar.




                             Tiago Peçanha.

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  • 2. Há um tempo eu não a via. Tempo que não foi suficiente para deletá-la dos meus arquivos mentais incompletos e dos meus desejos ancorados. Nem deletar minha sensação de ficar estagnado e entalado no silêncio que ela me provocava. Talvez por ela ter aquela risada analgésica. Talvez por ela também não ser tão clichê. Não digo o mesmo de mim, pois fazia o mesmo sempre que a assistia. Ressuscitei tudo que um dia imaginei ou tentei viver, seja claro ou escuro, bonito ou trágico, apenas fiz crescer no ébano dos meus pensamentos. Até me recordei brevemente de nossa história. A minha cidade não é muito grande. Ela tem em média um número de cidadãos que nem os próprios cidadãos sabem. Mas a gente finge que é um número razoável. Ao menos para pegar ônibus não era tão difícil quanto na capital. Ouvia isso também de alguns cidadãos.
  • 3. Os ônibus não demoravam passar. Eram pontuais, assim como quem os aguardava. Eu o esperava todos os dias. A rotina era religiosa, mas nem tanto iluminada. Minha casa fica a uma distância desproporcional a resistência dos meus pés e da minha força de vontade. O ônibus era minha ambulância: transferia gentilmente meu corpo acabado pela longa labuta diária. Quando o ônibus dava as caras no cateto da rua, erguia meu braço e fazia uma sinalização para parar como se fosse um tom romântico de pegue o meu braço e me leve, me possua, seja o meu guia espiritual. Meus olhos murchos e minhas bochechas enrugadas me entregavam. Às vezes eu fingia um sorriso para a trocadora. Mas ela me devolvia um de volta provavelmente ironizando meu cabelo desarrumado e minha blusa do avesso.
  • 4. Mas nos finais de semana o ônibus não era tão pontual, principalmente à noite. Esperávamos mais do que o atraso permitia. Lá no ponto de ônibus não tinha assento, era sofrer e pedir perdão para os pés, que em vista da longa jornada já flutuavam e às vezes nem sentiam o chão. Os olhos bancavam de vigias. O pescoço clamava por perdão pelas retorcidas, era cá e lá, lá e cá, praticamente o tratando como uma tampa de uma garrafa pet, só que sem abri-la completamente. A cintura era encosto para os braços, que quando repousados nela, davam a entender que eu estaria tentando algum tipo de dança estranha com o corpo parado. As dores físicas eram só confeites, as dores por dentro eram recheios de sabor amargo. Eu já não sabia mais distinguir o que era, o que eu queria e em que situação eu me encontrava. Vivia perdido nos meus devaneios e nas minhas preocupações com
  • 5. tudo que não se preocupava comigo. Era abominado por uma confusão de realidades, confusão de tempo e espaço. Não encontrava na linha retilínea do universo. Dava espaço até para aquele frio que sobrevoava minha alma e pousava em minha solidão. Eu já não me sentia mais amado. Nem por mim mesmo. E nem me sentia nos meus dias. Sequer um fiasco de reciprocidade. Não. Nada. Após percorrer a maratona dos trabalhos ainda sem a bandeirada final, encostei em uma das pilastras do que antigamente era uma coberta para o ponto. Era confortante e ficava exatamente no centro de tudo que me rodeava e eu observava em silêncio. O mendigo brigando com seus pés para ver quem tinha todo o calor do pequeno cobertor para si. A moça afogando o bebê em seus seios numa tentativa desesperada de parar o seu choro. E, para minha surpresa, vindo em direção ao ponto, a
  • 6. mulher que não era manequim de loja, mas tinha corpo para isso: a caixa da sorveteria da minha rua. Era uma menina surrada pelo seu ardo trabalho. Quando tinha tempo, o retirava para colocar os trabalhos da faculdade em dia. Mas o que mais me surpreendia era que ainda sim sobrava um pequeno tempo para cuidar de sua enorme beleza. Não sei se era só uma beleza que eu notava, ela não era muito namoradeira, nem arrancava assobios dos pedreiros do bairro. Tinha o corpo magrinho, que apesar disso haviam gordurinhas que davam as silhuetas das suas curvas em seu quadril. O olhar era tão profundo quanto um poema que eu queria escrever sobre ele. A minha admiração ia além do que os outros podiam imaginar. O fato daquela menina ser tão dedicada me fantasiava a uma vida que eu queria muito compartilhar e ser da rotina.
  • 7. Naquele dia, no ponto de ônibus, ela estava muito bem arrumada. Um vestido que parecia ter sido bordado por alguma tia costureira que abusava do bom gosto nas rendinhas florais rosadas e no brilho que delineava-lhe as linhas do corpo. Um encaixe perfeito no que se referia a alguém que não se importava tanto em chamar a atenção na sorveteria. Até esse bom senso de não querer aparecer era afrodisíaco, por mais estranho que isso soe. Talvez a naturalidade da sua beleza – e o fato dela não ter abusado da maquiagem nem naquele sábado à noite – me instigava a ser tão preso ao seu inigualável jeito. Ela me cumprimentou. - Olá, sabe se o ônibus do Vilarejo do Pinhal já passou? - Ainda não. Mas breve deve passar. Me peguei numa vontade de esticar o assunto, mesmo sabendo que ela estava
  • 8. preocupada enviando mensagens em seu celular e eu não queria dividir a sua atenção com um aparelho telefônico. Mas o fiz mesmo assim. - É um bairro de elite. Haverá alguma festa por lá hoje? - Sim. – disse sem desgrudar os olhos do celular. - É alguma festa de formatura, festa do pessoal da universidade, não sei, algo desse tipo? - Festa de formatura. Ela abusava do curto diálogo. Algo a aprisionava ao seu celular de modo a não querer se desgrudar dele a nenhum momento. Nem dispensou uns risinhos esporádicos e umas recolocações de suas mechas atrás das orelhas.
  • 9. - Desculpa, mas não acha que perderá o ônibus se não prestar atenção se ele está vindo? - Se ele aparecer, me avise, por favor. - Olha! Lá vem ele! Destrambelhada, deixou o celular cair ao chão em susto. Ela desenhou um desespero, mas se conteve quando, cavalheiramente, me abaixei e peguei para ela. - Mas o ônibus nem vem. Por que você fez isso? Alguém cutucou minhas costas. Era a moça que carregava o bebê. - Moço, segure o bebê, por favor, por favor. Eu imploro. Talvez eu volte. Mas segure com toda a sua alma. – disse a moça com os olhos refugiados em desespero e que, logo em seguida, disparou a correr sem rumo.
  • 10. - Ei! Volte aqui! – gritei sem muitas esperanças de que ela voltasse. - Meu Deus! E agora? O que eu faço? – disse olhando para ela com os olhos arregalados. - Estava irritada por ter deixado cair o meu celular, mas acho que agora você pagará por aquilo. – esbanjou aquele sorriso que, mesmo irônico, me derrubava como se eu fosse uma pilha de dominós levantados e ordenados. - Mas que preço salgado. - Estou brincando. Dá cá esse bebê, deixa eu tentar fazer ele parar de chorar. O bebê instantaneamente se tranquilizou. Além do dom natural de ter algo que me encantava e que não sei decifrar, ela tinha um toque fascinante de calmaria. - Você leva jeito pra coisa. - Surpreendentemente, sim. Mas pra falar a verdade é que minha irmã mais nova teve
  • 11. um filho. 17 anos. Imatura para o mundo. Engravidou precocemente. Minha mãe que já não é mais aquela guerreira de outrora, teve esse elefante jogado nos braços. Tive de ajudá-la a cuidar do bebê enquanto ela passava a roupa de metade do bairro de Vilarejo do Pinhal. É toda uma história muito chata e comum, desculpa estar lhe falando isso. - Não é incômodo algum me contar, eu sentaria aqui para ouvi-la a noite toda, afinal não podemos abandonar essa criança sem devolvê-la à mãe. - Exatamente. - Toda semana passo para pegar um sorvete no local que você trabalha. Não sei se nunca me notou. - São muitos clientes que frequentam a loja, mas seu rosto não me é estranho. - Nem o seu me é estranho.
  • 12. - Estamos partindo para aquela história batida do cara que é encantado pela menina, mas ela nunca o notou na verdade e ele tenta a ludibriar dizendo que a achava linda, com uma beleza diferente e um sorriso lindo? - Espero que não. Mas acho incrível o seu dom de ler pensamentos. - Não é a primeira vez que isso acontece comigo. Um outro rapaz ia regularmente na loja. Ele tentou de qualquer maneira me conquistar. Se disse apaixonado, dominado pelo meu olhar segundo ele “diferente”. Não sou de menosprezar e nem gosto de fazer ninguém sofrer, mas disse que não seria possível. Não tenho tempo nem para cuidar de mim mesma, que dirá cuidar de dois, ou três, ou quatro. Eu não sei a quilometragem certa que um relacionamento pode ter. Pareço ser egoísta com isso, confesso. Imatura e medrosa, talvez. Mas eu conheço minha
  • 13. vida desorganizada. É uma insegurança de querer trazer um passageiro para esse comboio lotado. Parecia que eu estava ouvindo a história do meu eu futuro. Trágica, diga-se de passagem. Mas agradecia por ter voltado ao passado. Ela era a coisa perfeita para o momento imperfeito. Um desencontro na forma literal. Mesmo não sabendo se o que eu sentia era algo de estalo ou repentino, de certa forma ir a uma sorveteria constantemente e se atentar a uma única pessoa e querer trazê-la para si, para dentro do seu livro de novas histórias não é algo lá tão comum. - Enfim. O que será que aconteceu com aquela mulher para ela deixar um bebê nas mãos de estranhos e sair correndo? - Realmente não faz muito sentido. Mas por que de repente mudou de assunto?
  • 14. - A gente nem se conhece, mas, com uma frase, eu posso criar um laço entre nós. Um laço estranho, mas posso criar. - E qual seria? - Com o pouco que você disse eu senti como se você já tivesse visitado meus pensamentos, feito uma releitura dos meus desejos e colocado uma ancora naquilo tudo. Uma repaginada no visual da minha ilusão. - Assim eu me sinto como uma megera. - Não, não é. A culpa aqui é toda minha. - Por que sua? - Eu fui copiar a idéia errada do outro rapaz. Deveria ter pensado em outra. Uma mais convincente, quem sabe. - Você é engraçado. A mãe do bebê voltou. Pediu a criança de volta e agradeceu. Parecia mais aliviada.
  • 15. - Aconteceu alguma coisa? - O pai da criança me ligou. Queria me encontrar. Disse que tinha algo urgente para me dizer, mas eu já sabia que era só uma artimanha para ver a criança, sendo que ele não dá a mínima para ela. - Malditos pais modernos. - Mas muito obrigado por terem olhado a criança. Principalmente você, moço, sei que é de confiança pois sempre o vejo por aqui. - Disponha. - Que loucura, não? – disse colocando a mão nos bolsos e respirando fundo. - Essa vida não é fácil. Dividindo um momento de pura falta de assunto, não sabia se me aventurava a tentar convencê-la do contrário ou apenas me acostumar com a idéia de que aquela situação não apresentava uma estrada de
  • 16. opção. Ela não se demonstrava interessada e aquilo me trouxe a um universo de frustração, devido às ilusões que alimentei numa suposta perfeição de um ser que queria ter no abraço nos finais dos meus dias ácidos. - Parece que o ônibus está vindo. - É, já está chegando. Me desculpa pelo celular. Ele estragou? - Não, está intacto. - Desculpa a intromissão e a minha curiosidade, mas o que tanto prendia a sua atenção e lhe arrancava algumas risadas? - Era minha irmã. Disse que o meu sobrinho falou suas primeiras palavras. Uma delas foi o meu nome. - Que coisa mais linda.
  • 17. - É sim. Bom, lá vem o ônibus. Deixa eu ir. Obrigada pela companhia essa noite. Você me parece um bom rapaz. - Eu que agradeço. – disse levantando vagarosamente os braços e dando um tchau em tons de não se vá. O meu ônibus passou logo em seguida. Novamente, a trocadora com seus risos. Naquele dia eu não estava tão desarrumado e nem com a camisa do avesso. Talvez ela debochasse de fato de mim. Mas voltei para casa como quem não tivesse completado sua missão. No dia que nos encontramos novamente naquela mesma situação e naquele mesmo ponto de ônibus, o filme voltou a se exibir nos meus olhos. Ela estava vestida do mesmo jeito – talvez aquele vestido fosse o seu preferido, ou talvez ela abusasse do seu dom de fazer uma leitura dos meus pensamentos e optasse pelo que eu achava
  • 18. que a deixava como uma rainha. A encarei devagar, sem graça como me era de costume e sem palavras como sempre me faltara. Ela me cumprimentou. - Olá, sabe se o ônibus do Vilarejo do Pinhal já passou? - Ainda não. Mas breve deve passar. Tiago Peçanha.