Vera lucia marinzeck_de_carvalho_-_mansao_da_pedra_torta
Peça
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Cena I
D. RITA está na sala de sua casa, lendo um livro na cadeira quando
DOMINGOS entra esbaforido com um papel em mãos. Ele anda de um lado
para o outro da sala na frente da mulher até que esta se irrita.
D. RITA
(irritada e deixando o livro de lado pra olhar séria para o marido)
Diz logo o que aconteceu? A carta veio da cidade?
DOMINGOS
(parando em frente à mulher)
Veio de Manuel.
D. RITA
(levanta da cadeira abruptamente e leva a mão ao coração, fazendo cara
de preocupada)
De Manuel? O que diz aí? Lê logo a carta.
DOMINGOS
(lendo a carta)
Manuel diz que não quer morar mais com Simão. Diz que ele é de péssimo
gênio...
D. RITA
Que mais?
DOMINGOS
...que vem gastando em pistolas o dinheiro dos livros...
D. RITA
E o que mais?
DOMINGOS
(impaciente)
Vai me deixar ler ou quer ler você mesmo?
D. RITA
Continua logo!
DOMINGOS
Anda com os piores tipos da academia, perturba a ordem da vizinhança e
vem se envolvendo em políticas.
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D. RITA
Ora essa! O que será de uma família arruinada por esses malditos
comunistas? Meu querido Simão sendo despejado de casa pelo próprio
irmão!
DOMINGOS
Ordenemos que o garoto volte para casa ainda este verão, antes que dê
tempo de acontecer algo mais grave.
DOMINGOS se retira da sala com seu andar empertigado e deixa a mulher
sozinha. D. RITA senta-se em sua cadeira e volta a ler o livro.
D. RITA
(divagando enquanto lê seu livro)
A boa notícia é que terei meu filhinho de volta. Quem sabe não o
matriculo no clube de tênis e o visto com as melhores marcas?
CENA II
D. RITA está na sala com DOMINGOS. DOMINGOS lê o jornal do dia. D.
RITA está tricotando. Um empregado entra na sala com malas e as deixa
no chão. Pede licença e se retira. Logo em seguida, SIMÃO entra na
sala com o boletim de notas em mãos.
D. RITA deixa o tricô de lado e o abraça. SIMÃO se solta do abraço da
mãe e vai até o pai.
SIMÃO
(beijando a mão do pai)
A benção, pai.
DOMINGOS
Deus lhe abençoe meu filho. (bagunça o cabelo do filho) E que abençoe
essa sua cabecinha de vento.
SIMÃO
Pois acho que também não se interessa pelos méritos que essa cabecinha
de vento conquistou nos últimos dois anos. (estende o boletim para o
pai de maneira presunçosa)
DOMINGOS
(analisando, admirado, as notas do filho)
Parabenizo-o pelas notas, mas me parece que ainda há muito a ser
explicado sobre seu comportamento nos últimos meses, ainda mais para
com seu irmão.
SIMÃO
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(sentando-se ao lado do pai)
Ora meu caro pai, Manuel, assim como todos da academia, são uns
chatos. Tão parados que só lhe faltavam algumas velas aromáticas para
ficarem mais monásticos. Aliás, agradeço a oportunidade de voltar para
casa.
D. RITA
Mas Simão...
SIMÃO
(levanta-se, vai até a mãe e passa o braço ao redor de seu ombro, como
que para tranquiliza-la)
Mas nada, mamãe. As vezes até me esquecia como era viver aqui, esqueço
os discos que a senhora sempre tocava na vitrola, o papai lendo o
jornal, o sabor dos bolos de fruta...
D. RITA
Olha só Domingos, como é carinhosos esse nosso menino!
DOMINGOS concorda com a cabeça.
SIMÃO
Ah, e as velhas companhias! Como poderia esquecer as velhas
companhias.
D. RITA
(libertando-se do abraço do filho e levando a mão a testa de maneira
dramática)
Oh, não! As velhas companhias não!
SIMÃO
(assovia para a porta)
Pessoal, entra aí pra dar um oi pro pai e pra mãe.
Três rapazes vestidos pobremente entram.
RAPAZ 1
Opa. Tudo beleza, D. Rita?
D.RITA
Mas era só o que me faltava, esse insolente me dirigindo a palavra!
(dá um tapa na cabeça do marido) Venha, Domingos!
DOMINGOS segue a esposa para outro aposento. Ambos saem de cena.
SIMÃO
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Pois é caras. Parece-me que vocês terão de renascer em família rica
pra dirigir a palavra à dama do Paço. (dá uma batidinha no ombro do
amigo e os dirige à porta) Até mais tarde.
Os RAPAZES saem de cena e SIMÃO fica só. RITINHA, a irmã mais nova,
entra saltitante na sala com uma HQ nas mãos. Abraça o irmão.
SIMÃO
Olá irmãzinha.
RITINHA
Simão, o que está acontecendo? Ah, deixa pra lá. Estou feliz que você
finalmente está em casa. Você não sabe o inferno que é isso aqui
quando você me abandona.
SIMÃO
Credo Rita. Tão dramática que está ficando igual as sua irmãs.
RITINHA
Deus me livre. Bom, você vai me levar pra tomar sorvete hoje, né?
SIMÃO
Claro, claro. Só vou por as malas lá em cima.
SIMÃO e RITINHA saem de cena.
CENA III
Uma festa onde tem alguns jovens bêbados. Um dos empregados derruba
bebida em alguns jovens sem querer e estes partem para cima do
empregado. SIMÃO e seus amigos que estavam passando por lá veem a
confusão e resolvem entrar no meio.
SIMÃO
Aí pessoal. Tão fazendo festinha sem a gente.
SIMÃO pega eu bastão e vai para o meio da briga. Seus amigos fazem o
mesmo.
CENA IV
Na sala dos Botelho, DOMINGOS e D. RITA recebem a visita do vizinho
TADEU DE ALBUQUERQUE e seu sobrinho BALTASAR COUTINHO. TADEU e
DOMINGOS discutem sobre os eventos da noite passada. D. RITA está
sentada na cadeira observando. BALTASAR está em pé ao lado do tio, com
seu ar presunçoso.
TADEU
(de modo visivelmente alterado e expansivo)
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E o que me diz sobre o prejuízo de meus empregados e a injúria de meu
sobrinho?
DOMINGOS
(tentado ficar calmo)
Podemos falar com um pouco de calma?
TADEU
Me pede calma, meu senhor? Ora essa. Foi assim que me prejudicou e
jogou lama sobre a honra dos Albuquerque em outro carnavais, não foi?
SIMÃO entra na sala. Alheio à conversa, ele parece ignorar as visitas.
TADEU
Ora, aqui está o rapaz que, em suma, representa tudo que a família
Botelho tenta esconder da elite durante todos esses anos. Ainda não
entendo como tão bela senhora como D. Preciosa deu a luz à tão vil
criatura.
DOMINGOS
(perdendo a linha)
Muita audácia da sua parte vir à minha casa, insultar meu brasão e
fazer gracejos a minha mulher.
TADEU
Vai negar então que seu filho é um baderneiro da pior espécie.
SIMÃO
Alguém pode me explicar como meu nome tá rolando nessa conversa?
DOMINGOS
Parece me que andou aprontando de novo, meu filho.
SIMÃO
AH, a festa de ontem? A gente só estava se divertindo.
TADEU
(virando-se para o sobrinho)
Está vendo, Baltasar, é exatamente gente da laia dos Botelhos que
mancham a reputação da nossa cidade.
SIMÃO
Peraí, você que é o Baltasar? Acho que vi você apanhando feio ontem...
BALTASAR se descontrola e tenta partir pra cima de SIMÃO, mas é
segurado pelo tio. SIMÃO tenta revidar e é impedido pelo pai.
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TADEU
Faça o favor de levar esse seu cãozinho para longe, onde ele não possa
manchar-me a honra.
DOMINGOS
(ainda segurando filho, meio relutante, vira-se para a esposa)
Querida, por favor, acompanhe Simão lá para cima, sim?
D. RITA pega no braço do filho e ambos saem de cena.
TADEU se aproxima ameaçadoramente de DOMINGOS.
TADEU
Agora é guerra, meu caro.
TADEU sai da sala com passos duros, segurando o sobrinho pela manga da
camisa.
SIMÃO aparece na sala novamente seguido de sua mãe.
SIMÃO
(meio zombeteiro)
Acho que minha reputação tá manchada por aqui também.
DOMINGOS
Simão, você será preso.
D. RITA
Meu filho, preso? Como assim? Ele é seu filho, seu crápula sem
coração.
DOMINGOS
Sinto muito, vou a delegacia dizer que meu filho estava metido na
confusão e quando voltar espero que esteja com as malas prontas e
tenha feito todas as despedidas.
DOMINGOS sai de cena. D. RITA pega sua bolsinha e tira um maço de
dinheiro e entrega ao filho.
D. RITA
Pega criatura, vai embora daqui.
SIMÃO
(surpreso)
Ir embora? Pra onde?
D. RITA
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Eu sei lá meu filho. Você não tem amigos nas cidades vizinhas não?
Pega e vai embora.
SIMÃO
Mas mãe...
D. RITA
Vai embora logo antes que seu pai volte com os homens da lei. Vai
(enxotando o filho pra fora)
D. RITA senta-se na cadeira para esperar o marido. Está impaciente.
DOMINGOS volta com um policial.
DOMINGOS
(grita da porta)
Riiiiiiiiita, cadê o moleque?
D. RITA
Não sei.
DOMINGOS
Como assim não sabe?
D. RITA
(cai de joelhos aos pés do marido)
Oh, Domingos. Simão ainda é uma criança. Não pode ser preso não.
Mandei ele ir embora, vai ser um bom menino a partir de agora.
DOMINGOS
Só podia ser coisa sua mesmo. (vira-se para o policial) Muito obrigado
pela sua paciência, senhor policial. E sinto muito pelo papelão da D.
Rita. Sabe como é, essas mães tem o coração muito mole.
O POLICIAL acena com a cabeça e sai de cena.
CENA V
SIMÃO está sentado em um banco, num parque próximo de sua casa,
segurando uma flor e cantarolando para si mesmo a espera de TEREZA.
TEREZA entra em cena, apressada e senta-se ao lado dele.
SIMÃO
(vira-se para ela e toca seu rosto com o polegar)
Estou radiante de finalmente poder ver tanta beleza pessoalmente, tão
de perto. Tens um rosto tão doce e tão belo que diria se tratar de um
anjo se não soubesse que o seu pai é o Capiroto em pessoa.
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TEREZA
Não seja tão rude, Simão. Meu pai só é assim porque se preocupa
comigo...
SIMÃO cala a boca dela pondo o indicador sobre os lábios dela.
SIMÃO
Não, não vamos falar sobre o seu pai. Falaremos sobre nós dois.
TEREZA
O que, meu amor? O que falaremos sobre nós dois?
SIMÃO
(olhando sonhadoramente para cima segurando firmemente as mãos de
TEREZA entre as suas)
Sobre a nossa paixão, sobre o nosso futuro, sobre o que vai ser de nós
dois daqui pra frente. Vamos falar sobre o amor, vamos viver o amor.
Amaremos e seremos amados. Oh, esse louco e desvairado amor que se
apossou de um incauto coração.Diga, Tereza. Diga que me ama!
TEREZA
(aproximando-se mais de SIMÃO)
Eu te amo, Simão. E nada nos impedirá de vivermos juntos e felizes
para sempre.
Pausa, silêncio.
SIMÃO
A não ser o meu sobrenome...
TEREZA
Oh, meu amor. Porque insistes em entristecer-me com a tragédia de
nosso amor? Não se preocupe, deixe que de meu pai cuido eu. Agora é
tarde, devo voltar para casa antes que ele note minha ausência.
Os dois se levantam de mãos dadas e ficam de frente um para o outro.
SIMÃO
Volte, meu amor. Volta para casa, mas antes me prometa que me
encontrará aqui amanhã, para me ver antes que eu parta para Coimbra.
TEREZA
Sim, querido. Voltarei, mas agora preciso me apressar. Adeus, Simão.
SIMÃO
(beija a mão de TEREZA e a solta, ele a vê partindo)
Adeus, Tereza.
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CENA VI
D. RITA e DOMINGOS conversando na sala.
D. RITA
Mas eu já disse que preciso de um vestido novo para ir a esse
casamento...
SIMÃO entra apressado na sala.
SIMÃO
A benção, pai. A benção, mãe.
SIMÃO sai de cena. D. RITA olha admirada para o filho deixando a sala.
D. RITA
Tá vendo só? Nosso menino anda uma benção. Mal sai de casa, e quando
sai é com a irmã. Não anda mais com aqueles favelados, não teve nem
reclamação da vizinhança. Tá até chegando cedo em casa, antes
madrugava na farra. Desde que voltou de Coimbra tá parecendo uma
pessoa nova...
DOMINGOS
(impaciente)
Tá, Rita, já entendi. O menino tá direito agora. Também, depois desse
último corretivo! Só espero que não volte a aprontar em Coimbra...
D. RITA
(fazendo o sinal da cruz)
Vira essa boca pra lá, homem. Simão vai estudar, vai ficar bem de vida
e quando ele voltar encontraremos uma moça de boa família para ele se
casar.
DOMINGOS
Deus te ouça, Rita. Deus te ouça.
Saem de cena.
CENA VII
SIMÃO está a espere de TEREZA no parque. Ele está em pé, ansioso,
olhando o relógio compulsivamente, com as malas ao lado, pronto para
ir para Coimbra. TEREZA entra em cena inquieta.
SIMÃO
(abrindo os braços para abraça-la)
Oh, minha querida.
TEREZA ignora o abraço de SIMÃO.
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TEREZA
Não, NÃO TEMOS TEMPO. Temo que meu pai tenha descoberto sobre nossos
encontros. O que será de nós agora?
Os dois se olham com ternura e desespero. TEREZA dá um beijo na
bochecha de SIMÃO. TADEU entra em cena de supetão.
TADEU
Tereza! O que significa isso? (puxa a filha pelo braço tirando-a de
perto de SIMÃO) Seu verme nojento, está desvirtuando minha filha?
SIMÃO
(atônito)
Mas... mas...
TADEU
(bravo)
Mas nada. Já chega. Já vi tudo que tinha pra se ver nesta vida. Vamos
embora, Tereza, nunca mais quero vê-la perto desse Botelho
imprestável.
TADEU sai de cena pisando duro, arrastando a filha, que sai chorando.
SIMÃO fica desolado assistindo sua amada partir. DOMINGOS entra em
cena.
DOMINGOS
Simão, meu filho. O que se passa?
DOMINGOS põe a mão na testa do filho e o sente febril.
DOMINGOS
Você está febril. Tem certeza que quer partir agora?
SIMÃO
(pegando a mala) Sim, meu pai. Parece-me que não há razão para ficar.
DOMINGOS sai de cena apressadamente e quando SIMÃO está para sair de
cena logo atrás do pai, a MENDIGA aparece com um papel dobrado na mão.
Ela cutuca o ombro de SIMÃO.
SIMÃO
O que você quer?
MENDIGA
(tenta se comunicar através de sua mímica desajeitada, pois não sabe
falar)
SIMÃO
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Vamos! Diga sua velha inútil
MENDIGA
(Tenta avisar a respeito da carta, se atrapalhando no meio das
mímicas)
SIMÃO
O que é isso? Não quero porcarias de um inseto miserável
MENDIGA
(Perde a paciência diante de tamanho tumulto, abre o bilhete e
“esfrega-o” no rosto de Simão)
SIMÃO
Se eu pegar vai me deixar em paz?
MENDIGA
(Acena confirmando o combinado)
SIMÃO
Ah! Uma carta!
MENDIGA
(Faz cara de inconformada e vai embora resmungando silenciosamente)
SIMÃO
(Lendo a carta recebida)
“Meu pai diz que vai me colocar num convento por sua causa. Não me
esqueça, pois se acha que vai sair por aí fazendo a festa com qualquer
uma que aparecer pode esquecer. Vá para Coimbra. Lá entregarão minhas
cartas; E na primeira direi em que nome irá responder as minhas
cartas.”
SIMÃO fica radiante.
SIMÃO
Muito obrigado, minha senhora. (devolve o papel pra MENDIGA) Agora
preciso ir. Parto para Coimbra, mas vou na esperança de receber as
doces palavras de minha amada para alegrar meus dias.
Os dois saem de cena.
CENA VIII
TEREZA está sentada na sala de sua casa, lendo uma revista. BALTASAR
chega e senta ao seu lado. TEREZA deixa a revista de lado.
BALTASAR
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É hora de abrir o coração, prima. (pega a mão de TEREZA) Está disposta
a ouvir-me?
TEREZA
(rudemente)
Eu estou sempre disposta a ouvi-lo, primo Baltasar.
BALTASAR
Acho que nossos corações estão unidos; agora é preciso que as nossas
casas se unam.
TEREZA fica surpresa e tira sua mão das mãos dele de maneira brusca.
BALTASAR
(surpreso)
Eu disse algo desagradável?
TEREZA
Disse o que é impossível de se fazer. Está enganado se acha que nossos
corações não estão unidos. Sou muito sua amiga, mas nunca pensei em
ser sua esposa. Nem me lembrei que você pensa nisso.
BALTASAR
Quer dizer que me aborrece, prima Tereza?
TEREZA
Não. Já disse que o admiro muito, e por isso mesmo não devo ser esposa
de um amigo a quem não posso amar. A infelicidade não seria só
minha...
BALTASAR
Muito bem... Eu Posso saber... (sorri maliciosamente) quem é que me
disputa seu coração?
TEREZA
(relutante)
Que diferença faz?
BALTASAR
A diferença é que, pelo menos, saberei que a minha prima ama outro
homem... É exato?
TEREZA
É.
BALTASAR
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(levanta-se)
É com tamanha paixão que desobedece a seu pai?
TEREZA
(levanta-se pra ficar de frente com o primo)
Não desobedeço; o coração é mais forte que a mera vontade de um pai.
Desobedeceria se casasse contra a vontade de meu pai; mas eu não disse
ao primo Baltasar que casava; disse-lhe unicamente que amava.
BALTASAR
(andando de um lado para o outro da sala, TEREZA o acompanha com o
olhar)
Estou espantado com seu modo de falar! Quem pensaria que os seus
dezesseis anos estavam tão abundantes de palavras!
TEREZA
(exaltada)
Não são só palavras, primo. São sentimentos que merecem a sua estima,
por serem verdadeiros. Se eu lhe mentisse, você ficaria mais bem visto
como meu primo. Se o primo não me perdoa a sinceridade que eu tive, e
será de hoje em diante meu inimigo.
BALTASAR
Pelo contrário, muito pelo contrário... Eu lhe provei que sou seu
amigo, se alguma vez a vir casada com algum miserável indigno de si.
(sarcasticamente) Casada com algum famoso ébrio ou jogador de pau,
valentão de aguadeiros, distinto cavalheiro, que passa os anos letivos
encarcerado em Coimbra...
TEREZA leva a mão ao coração e senta-se novamente, abismada.
TEREZA
Não tem mais que me dizer, primo Baltasar?
BALTASAR senta-se novamente e põe a mão no ombro da prima.
BALTASAR
Tenho prima. Queira acalmar-se. Não cuida que está falando com o
namorado infeliz. Por hora sou seu mais próximo parente, mais sincero
amigo e mais decidido guarda de sua dignidade e fortuna. Eu sabia que
minha prima, contra a expressa vontade de seu pai, uma ou outra vez
conversara da janela com o filho do corregedor. Não dei valor ao
sucesso, e tomei-o por brincadeira própria da sua idade. Quando soube,
pasmei-me da boa-fé da priminha; depois entendi que a sua inocência
devia ser o seu anjo da guarda. Agora, como seu amigo, compunjo-me de
a ver ainda fascinada pela perversidade de seu vizinho. Não se recorda
de ver Simão Botelho suciando com a ínfima vilanagem desta terra? Não
viu seus criados e esse que vos fala com as cabeças quebradas pelo tal
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varredor de feiras? Não lhe constou que ele, em Coimbra, abarrotado de
vinho, andava pelas ruas armado como um salteador e estradas,
proclamando à canalha a guerra aos nobres e aos reis, e à religião de
nossos pais? A prima ignoraria isso?
TEREZA
Ignorava parte disso e não me incomoda sabê-lo. Desde que conheci
Simão, não me consta que ele tenha dado o menor desgosto à sua
família, nem ouço falar mal dele.
BALTASAR
E por isso persuadida de que Simão deve ao seu amor a reforma de
costumes?
TEREZA
(vira a cara pra ele e fala com arrogância)
Não sei, nem penso nisso.
BALTASAR
Não se zangue, prima. Eu hei de, enquanto viver, trabalhar por salva-
la das garras de Simão Botelho. Se seu pai lhe faltar, fico eu. Se as
leis a não defenderem dos ataques do seu demônio, eu farei ver ao
valentão que a vitória sobre os aguadeiros não o poupa ao desgosto de
ser levado a pontapés para fora da casa de meu tio Tadeu de
Albuquerque.
TEREZA
(volta-se para ele irritada)
Então o primo quer-me governar!?
BALTASAR
Quero-a dirigir enquanto sua razão precisar de auxílio. Tenha juízo e
eu serei indiferente ao seu destino. Não a enfado mais, prima Tereza.
BALTASAR se dirige a porta, pisando duro, meio contrariado. Sai de
cena. TEREZA vai andando atrás dele.
TEREZA
(irritada)
Ótimo, Baltasar. Sai, vai dar uma volta que você já me fez perder a
paciência.
TEREZA volta a se sentar, pega papel e caneta e começa a escrever
freneticamente. Algum tempo depois, a MENDIGA entra em cena.
TEREZA
(levantando-se e indo até ela com o papel)
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Ah, que ótimo que você está aqui.
TEREZA dobra o papel e entrega a ela.
TEREZA
Faz o seguinte: entrega essa carta para o mesmo rapaz. Lembra-se de
Simão, filho do corregedor aí do lado?
A MENDIGA acena (confirmando) com a cabeça.
TEREZA
Então, faz tudo direitinho. Mas não vá errar heim? Não deixa o pai ver
você aqui e não entregue pra ninguém além do rapaz.
A MENDIGA presta atenção nas instruções de TEREZA, confirmando com a
cabeça.
TEREZA
Tá, agora vai que ele tá vindo aí.
TEREZA empurra a MENDIGA para fora de cena. Senta e pega a revista,
fingindo estar distraída quando TADEU entra em cena. TEREZA ignora a
presença do pai, que senta ao seu lado.
TADEU
Hoje dará a mão a teu primo Baltasar, minha filha. É preciso que
deixes cegamente levar pela mão de teu pai. Logo que deres este passo
difícil, conhecerás que a tua felicidade é daquelas que precisam ser
impostas pela violência. Mas repara minha querida filha, que a
violência dum pai é sempre amor. Não te consultei outra vez sobre esse
casamento por temer que a reflexão fizesse mal ao zelo de boa filha
com que tu vais abraçar teu pai, e agradecer-lhe a prudência com que
ele respeitou o teu gênio, velando sempre a hora de te encontrar digna
do seu amor.
TEREZA vira a página da revista com tanta violência que faz barulho. O
pai logo percebe que ela não lhe prestava atenção.
TADEU
Não me respondes, Tereza?!
TEREZA vira-se para olhar o pai.
TEREZA
E por que haveria de te responder, meu pai?
TADEU
Dás-me o que te peço? Enches de contentamento os poucos dias que me
restam?
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TEREZA
E você será feliz com o meu sacrifício?
TADEU
Não diga sacrifício, Tereza. Teu primo é um conjunto das melhores
virtudes. Como se a gentileza e a riqueza não lhe bastassem para
formar um marido excelente.
TEREZA
E ele me quer, depois de eu ter negado?
TADEU
Se ele está apaixonado? Tenho bastante confiança em ti para crer que
hás de amá-lo muito!
TEREZA
(sarcasticamente)
Será mais certo eu odiá-lo para sempre. Eu agora mesmo o abomino como
nunca pensei que se pudesse abominar!
TEREZA se joga aos pés do pai de forma extremamente dramática.
TEREZA
Meu pai me mate; mas não me force a casar com meu primo. Evite
violência, porque eu não caso!
TADEU fica nervoso, levanta-se e tira a filha do chão.
TADEU
Ah, mas há de casar sim senhora! Se não, serás amaldiçoada para
sempre. Serás trancada num convento. Se fores uma alma vil não me
pertence, não és minha filha. Maldita sejas! Entra nesse quarto e
espera que daí te arranquem para outro, onde não verás um raio de sol.
Em lágrimas, TEREZA sai de cena. BALTASAR aparece e vê o tio furioso.
BALTASAR
Tá tudo bem por aqui?
TADEU
(triste)
Não te posso dar minha filha, porque já não tenho mais filha. A
miserável, a quem eu dei este nome, perdeu-se para nós e para ela.
BALTASAR
(passando o braço pelos ombros do tio)
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Não se preocupa, a gente dá um jeito nisso. São apenas as bobagens da
adolescência.
Os dois saem de cena.
CENA IX
SIMÃO está conversando com JOÃO DA CRUZ quando a MENDIGA se aproxima.
Ele vê a MENDIGA chegar com um papel dobrado.
SIMÃO
Trazes notícias de minha amada, cara amiga?
A MENDIGA lhe entrega o papel. SIMÃO começa a ler a carta. Silêncio
por alguns segundos. Avançando a leitura, SIMÃO fica mais furioso.
SIMÃO
(gritando)
Desgraçado!
JOÃO
(tentando acalmar SIMÃO)
O que foi, homem? Há de se acalmar, pelo amor de Deus!
SIMÃO
Acalmar, acalmar nada. (empurra a carta pra MENDIGA) Tereza me conta
que seu pai teve a audácia de lhe prometer a mão ao primo, Baltasar.
Aquele de que lhe contei que espanquei com uns amigos algum tempo
atrás em Viseu. E me conta todas as barbaridades que esse imbecil lhe
disse. As ameaças, as ofensas...
JOÃO
Mas se atreve esse rapaz...
SIMÃO
(com um pouco de doçura na voz)
Mas pelo menos minha amada me chama para visita-la essa noite, em
segredo. Poderia me acompanhar, bom amigo João?
JOÃO hesita em responder mas por fim assente com a cabeça.
CENA X
Casa dos Albuquerque. Está vazia quando SIMÃO entra.
SIMÃO
Tereza? Meu amor?
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SIMÃO vai entrando na sala. Não vê ninguém, mas ouve o barulho de algo
caindo no chão.
SIMÃO
Quem está aí? Tereza? É você?
Silêncio.
TEREZA entra em cena.
TEREZA
(com o indicador esticado em frente aos lábios, pedindo silêncio)
Shhhhh. Meu amor, você veio... (abraça SIMÃO calorosamente) Sinto
muito, foi um tremendo engano pedir que viesse aqui hoje.
SIMÃO
Porque? Não se alegras com minha presença?
TEREZA
Oh, não. Jamais pense nisso, meu amor. Mas hoje estamos recebendo
visita e corremos sérios riscos aqui. Peço-lhe que vá embora e volte
amanhã.
SIMÃO
Claro, meu amor. Só deixe-me apreciar sua beleza mais uma vez antes
que eu vá embora.
Olhar apaixonado.
TEREZA
Claro, claro, agora vá antes que alguém te veja aqui.
SIMÃO sai de cena. BALTASAR aparece.
BALTASAR
(ironicamente)
Falando sozinha, priminha? Esse romance não lhe está fazendo bem aos
miolos!
TEREZA
Ora essa Baltasar. Claro que não estou falando sozinha! Estou fazendo
uma prece. Eu hein, será que uma moça não pode pedir a Deus que lhe
proteja de assombração, feito você.
TEREZA sai de cena.
BALTASAR
(esfregando as mãos maleficamente)
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Então a priminha acha que pode me fazer de bobo? Sei muito bem que ela
está recebendo o ignóbil. Como pode? Essas moças de hoje perderam os
bons modos. Recebendo rapazes em casa sem o consentimento do pai! Mas
deixe estar que eu cuido disso. E cuido agora mesmo!
BALTASAR sai de cena.
SIMÃO entra em cena. JOÃO vem logo atrás.
JOÃO
Simão!(cutuca o rapaz nas costas)
SIMÃO vira-se para o amigo.
SIMÃO
Pois não.
JOÃO
(coçando a cabeça, hesitando em falar)
Devia ter te avisado antes, sinto muito. Preciso lhe contar algo
acerca do senhor de Castro Daire, Baltasar, esse que tanto lhe faz
ferver o sangue.
SIMÃO
(impaciente)
Pois conte logo!
JOÃO
Então, faz bem uns seis meses que ele me mandou chamar a Viseu, com um
pedido um tanto peculiar. (pausa)
SIMÃO assente com a cabeça, fazendo sinal para que prossiga.
JOÃO
Ele me pediu para que eu tirasse a vida de um homem.
SIMÃO
(confuso)
E quem é esse homem que ele queria morto?
JOÃO
Santo pai! (exclama impaciente) O homem era você, Simão! Você!
SIMÃO
(sem demonstrar surpresa)
E por que isso?
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JOÃO
Ora. Não há de negar que tens lhe dado motivo de sobra para ser
malquisto por essa gente. Primeiro o incidente da festa, depois o
senhor vem se engraçando com a prima e futura esposa do assassino.
SIMÃO
Futura esposa uma ova. Nunca que entregarei minha amada Tereza nas
mãos de criatura tão vil. (anda de um lado para o outro, pensativo,
até parar na frente de JOÃO). Amigo João me acompanha em minha
desventura?
JOÃO
Ajudarei, Simão. Mas porque simpatizo contigo e com vosso pai, ainda
que ache essa história de amor proibido uma bela duma enrascada. Devia
pedir a permissão do pai da moça.
SIMÃO nega com a cabeça.
JOÃO
Mas já que insiste, ajudo sim. Conte-me seu plano e verei o que posso
fazer por você.
SIMÃO
(de maneira maquiavélica)
Vamos à caça.
Os dois saem de cena. JOÃO volta com uma pistola e TEREZA com o seu
bastão. MARIANA entra em cena.
MARIANA
(correndo para abraçar o pai)
Pai, aonde vai?
JOÃO
(compreensivo)
Querida, não vê que temos companhia. Não cumprimenta Simão?
MARIANA vê SIMÃO.
MARIANA
(toda derretida)
Olá, Simão.
SIMÃO toma-lhe a mão e beija.
SIMÃO
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Prazer em conhecê-la, senhorita. Uma pena as circunstâncias não me
permitirem apreciar seus belos, porém tristes olhos. O que lhe aflige?
MARIANA
Aflige saber que o senhor e meu pai se enfiam em tamanha empreitada.
Para onde vão com pistolas e bastões?
SIMÃO
Lutar por amor, minha cara. Amor.
MARIANA faz cara de choro, fica meio triste.
MARIANA
Que Deus lhe abençoe então. (sai de cena correndo como quem vai
chorar)
SIMÃO
João, vai por ali procurar o canalha que eu fico por aqui vigiando.
JOÃO
Vai com calma, amigo.
JOÃO sai de cena. SIMÃO dá umas voltas pelo cenário, com o bastão
apoiado no ombro. BALTASAR aparece bem na sua frente.
BALTASAR
(aponta uma faca na direção de seu pescoço, sem aproximar-se muito)
Botelho.
SIMÃO
(pressiona a ponta do bastão no estômago do rival)
Coutinho.
BALTASAR
O que faz aqui? Sabes que é persona nom grata nas propriedades de um
Albuquerque, não? E de qualquer outra família que se preze, claro.
SIMÃO
Lamento não poder dar uma resposta a altura. (finge tristeza) Estou de
luto.
BALTASAR
(olha surpreso, levantando uma sobrancelha)
Luto? Luto por quem? Já está antecipando a sua morte?
SIMÃO
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Não, meu caro.
JOÃO aparece por trás de BALTASAR apontando a pistola para sua cabeça,
sem que o mesmo perceba.
SIMÃO
A sua morte.
SIMÃO dá uma piscadinha para o amigo. JOÃO atira em BALTASAR que cai
morto. SIMÃO se agacha perto do morto e cutuca-o com o bastão para se
certificar de que ele está morto. Olha para JOÃO. Silêncio.
CENA XI
TEREZA está na sala de sua casa, escrevendo uma carta para SIMÃO, para
se desculpar pelo incidente do dia anterior. TADEU entra e cena,
pegando a filha pelo braço violentamente.
TADEU
Criatura insolente! Pode me explicar o que anda acontecendo nessa
casa?
TEREZA
(assustada)
Papai? Está me machucando! E não sei do que está falando.
TADEU joga a filha no chão com violência e começa a gritar.
TADEU
Não sabe do que estou falando? É de meu conhecimento que mandou Simão
vir a seu encontro ontem. Como pode?
TEREZA se levanta, alisando a saia do vestido.
TEREZA
Quem lhe contou? Quanto a isso, eu posso explicar...
TADEU
Explicar? Explique então porque o corpo de seu primo está estendido no
quintal com um buraco de bala no crânio.
TEREZA
(levando a mão a testa, cambaleando)
Baltasar está morto?
TADEU assente. TEREZA desmaia dramaticamente e fica lá no chão. TADEU
não se comove com a cena. Ainda muito irritado, chega mais perto da
filha.
TADEU
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E quanto a você, mocinha, acho bom levantar e fazer as malas. Vou te
mandar para o convento.
TEREZA
(levantando-se rapidamente)
O que? Não pode fazer isso.
TADEU
Mas é claro que posso. Desde quando você está no direito de decidir
sua própria vida? Agora não lhe restam opções: seu ex-futuro marido
está morto. Vá, faça as malas enquanto eu vou a caça do assassino.
(faz menção de se retirar) Ou devo dizer: Simão Botelho.
TADEU sai de cena.
TEREZA
Não, não pode ser verdade. Preciso escrever a Simão. (rabisca
freneticamente num papel, dobra e sai de cena)
CENA XII
SIMÃO e MARIANA estão a conversar. JOÃO chega apressado com um papel.
JOÃO
(empurrando a filha de lado)
A pobre lhe trouxe algo. D. Teresa já deve estar informada do
ocorrido.
SIMÃO, desesperadamente, arranca o papel da mão do amigo.
SIMÃO
(lendo a carta em voz alta)
Querido Simão, as ameaças por fim se concretizaram. Meu pai me colocou
no convento de Viseu. Ainda que tive a sorte de conseguir alguns
papeis para escrever-lhe. Logo serei transferida para outro convento
ainda mais longe. Espero que não me esqueças, pois sempre serás meu
amado Simão. Soube da morte do crápula. Não se preocupe, sei que não
foi obra de suas mãos, mas meu pai está a sua procura com o meirinho
geral e o juiz de fora. Beijos, da amada Teresa.
SIMÃO cai aos prantos. MARIANA leva a mão ao coração.
SIMÃO
Ora essa! Vou atrás dela e tirá-la daquele convento na força. (ele
reflete por alguns segundos) Vou fazer melhor, vou fugir com ela
quando estiver indo para o outro convento. Claro, não poderia ter
ideia melhor.
SIMÃO vai se retirando mas MARIANA o impede de sair.
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MARIANA
Simão, tive uma ideia. Que tal planejar as coisas melhor? Eu tenho uma
conhecida no convento onde D. Teresa está. Porque não lhe escreve
pedindo para que se prepare? Isso pode evitar que essa semana se
transforme num evento funesto.
SIMÃO
(abraçando MARIANA ternamente)
Farias mesmo isso por mim, cara Mariana?
MARIANA
(dá um sorriso triste)
Mas é claro.
SIMÃO põe-se a escrever, dobra o papel e entrega a MARIANA.
SIMÃO
Muito obrigada, Mariana. Em você pude achar uma amiga. Muito mais,
aliás. Uma irmã.
Eles saem de cena.
CENA XIII
TERESA está ajoelhada no convento, orando e segurando um terço.
MARIANA entra apressada. TERESA se levanta.
TERESA
(ajeitando o vestido, assustada)
Pois não?
MARIANA
Venho da parte de Simão, senhora. (estende a carta para TERESA)
TERESA
Novidades? (arranca a carta da mão de MARIANA) Querida Teresa...
TERESA vai andando de um lado para o outro da sala enquanto lê a carta
para si mesma. MARIANA apenas a observa.
TERESA
(parando abruptamente ao lado de MARIANA)
Ele vai vir me sequestrar na hora que eu for transferida? Mas ele está
ficando louco? Isso é impossível! (segura nos ombros de MARIANA e a
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sacode) Moça, não dá. Você tem de dizer a ele que é perigoso. Você tem
de impedi-lo!
MARIANA
(libertando-se das mãos de TERESA)
Eu disse a ele, mas você sabe como é...
TERESA
De qualquer jeito, faça o possível. Não posso perder o amor de minha
vida numa tola empreitada. Uma pena que não posso lhe escrever:
tiraram-me papel e caneta depois que souberam para quem estava
escrevendo.
MARIANA
Mas se estou, ora essa!
TERESA
Claro, claro. Diga então a ele que não venha, pois é perigoso demais.
Diga que vá para longe, muito longe porque os homens da lei tem
certeza absoluta de que matou Baltasar e me escreva assim que estiver
em segurança, escreva para o convento de Monchique. E diga também que
eu o amo.
MARIANA
Tens sorte de ser amada por um homem como Simão.
TERESA
(aflita e tocando MARIANA para fora do aposento)
Sim, sim. Mas agora vá e entregue meu recado. Logo alguém chegará.
MARIANA sai e TERESA ajoelha-se e se põe a rezar. SIMÃO entra em cena.
TERESA levanta-se e passa os braços pelo ombro do amado.
TERESA
Simão, o que faz aqui? Não recebeu o recado? Por que veio? É perigoso
levar esse plano adiante.
SIMÃO
(se soltando do abraço)
Vim para te buscar Teresa. As paredes desse convento não são o
suficiente para me separar de você. Venha, vamos.
TERESA
Por onde você entrou, aliás?
TADEU, DOMINGOS e um POLICIAL entram em cena.
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TADEU
Ali, ali o infame. (aponta para os dois)
DOMINGOS
Prenda-o, seu guarda.
O POLICIAL vai até ele e o rende. TERESA cai aos prantos. TADEU vai
até ela e a pega pelo braço.
TADEU
Vamos, minha filha. Já temos muita dessas palhaçadas. Está na hora de
ir.
TADEU sai levando a filha. TERESA resiste um pouco, mas logo sai
puxada pelo pai.
DOMINGOS
(olhando para o filho que está de cabeça baixa com as mãos nas costas,
segurado pelo POLICIAL)
Filho, matou mesmo o sobrinho de Tadeu?
SIMÃO
(levantando a cabeça)
Matei, matei pai. Não tenho vergonha ou remorsos de dizer que matei o
algoz de tão doce criatura como Teresa.
DOMINGOS dá um tapa no filho.
DOMINGOS
Pois és um tolo. (faz sinal para o POLICIAL) Leva, leva essa criatura
daqui. Não tenho mais filho.
CENA XIV
SIMÃO todo amarrotado é jogado na cela pelo POLICIAL. Ele fica lá
deitado no chão. MARIANA entra apressada com uma garrafa de pinga e um
saco de pão, papel e caneta.
SIMÃO
(sentando no chão)
Mariana? O que você está fazendo aqui?
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MARIANA
(sentando-se ao lado dele)
Vim assim que soube que foi preso. (entrega-lhe a pinga e o pão) Não é
muita coisa, mas era só o que tinha pronto em casa. Fiquei preocupada
depois que soube que seu pai estava no momento em que foi preso e não
fez nada para ajudar.
SIMÃO
Eu não tenho pai.
MARIANA abraça SIMÃO.
MARIANA
Eu sinto muito, Simão. Mas olha, eu lhe trouxe papel e caneta.
SIMÃO pega o papel e caneta. Enquanto escrevia, chega o POLICIAL.
POLICIAL
Senhor! Aprume-se. O juiz está vindo para lhe julgar. Queira a senhora
se retirar, por favor.
SIMÃO e MARIANA se levantam, ficando um ao lado do outro. MARIANA se
agarra ao braço de SIMÃO.
MARIANA
Mas de jeito nenhum. (bate o pé no chão) Aqui estou e daqui ninguém me
tira.
POLICIAL
Tudo bem, mas tente não interferir.
O JUIZ entra.
JUIZ
Simão, tem algo a dizer em sua defesa.
MARIANA olha para ele esperançosa.
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SIMÃO
Não senhor, eu matei Baltasar Coutinho estou aqui para ser punido por
isso.
JUIZ
Pois admite isso então? Sem se importar que seu destino seja a forca?
SIMÃO
Digo que o meu coração é indiferente ao destino de minha cabeça.
O JUIZ dá sinal para que o POLICIAL e a moça se retirem, deixando
SIMÃO sozinho novamente na cela. A MENDIGA entra em cena.
SIMÃO
Pobre senhora. Lamento não ter sequer uma moeda no momento. Mas o que
tens para mim?
A MENDIGA lhe entrega a carta de TEREZA e sai.
SIMÃO
(lendo a carta)
“SIMÃO, MEU ESPOSO. Sei de tudo...Está conosco a morte. Olha que te
escrevo sem, lágrimas. A minha agonia começou há tempo. Deus é bom,
que me poupou ao crime. Ouvi a notícia da tua própria morte, e então
compreendi porque estou morrendo hora a hora. Aqui está o nosso fim,
Simão!...Olha as nossas esperanças Quando tu me dizias os teus sonhos
de felicidade, e eu que te dizia os meus!... Que mal fariam a Deus os
nosso desejos?!...Ver-nos-emos num outro mundo, Simão? Ao menos,
morrer é esquecer. Eu também estou condenada, e sem remédio. Segue-me,
Simão! Não tenha saudades da vida, não tenhas, ainda que a razão te
diga que podias ser feliz, se não me tivesses encontrado no caminho
por onde te levei a morte...E que morte, meu Deus!...Aceita-a ! Não te
arrependas. Se houve crime, a justiça de Deus te perdoará pelas
angústias que tens de sofrer no cárcere...e nos últimos dias, e na
presença da...”
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CENA XV
Simão passou 19 meses de cárcere num navio em direção à índia
almejando um raio de sol, um pouco de ar que não fosse filtrado pelas
barras metálicas. Já não tinha mais ânsia de amar e sim de viver.
Teresa pedira a Simão que aceitasse dez anos de cadeia e esperasse aí
sua redenção por ela.
“Dez anos! Em dez anos terá morrido meu pai meu pai e eu serei tua
esposa, e irei pedir ao rei que te perdoe se não tiveres cumprido a
sentença. Se vais ao degredo, para sempre te perdi, Simão, porque
morrerás, ou não acharás memória de mim, quando voltares”
Simão sem qualquer tipo de esperança, responde a carta com palavras
melancólicas
“Não esperes nada, mártir. A luta com a desgraça é inútil, e eu não
posso já lutar. Foi um atroz engano o nosso encontro. Não temos nada
neste mundo. Caminharemos ao encontro da morte. Há um segredo que só
no sepulcro se sabe. Ver-nos-emos?
As palavras únicas de Tereza, em resposta àquela carta, significativa
da turbação do infeliz, foram estas:
"Morrerei Simão, morrerei. Perdoa tu ao meu destino... Perdi-te... Bem
saber que sorte eu queria dar-te... e morro, porque não posso, nem
poderei jamais resgatar-te. Se podes, vive; Não te peço que morras,
Simão; Quero que vivas para me chorares. Consolar-te á o meu
espírito.. Estou tranquila. Vejo a aurora da paz... “Adeus até o céu,
Simão”.
No dia 10 de março de 1807, Simão recebe a intimação para sair na
primeira embarcação que levava âncora do Douro para a Índia.
Nenhum estorvo impedia o embarque da Mariana, que se apresentou ao
corregedor do crime como criada do degredo, como passagem paga por seu
amo.
CENA XVI
17 de março de 1807, saiu dos cárceres da Relação, Simão Antônio
Botelho e embarcou no cais da Ribeira, com 75 companheiros. O
magistrado, fiel amigo de D. Rita Preciosa, foi a bordo da nau
recomendou ao comandante que distinguisse o condenado Simão,
consentindo-o na tolda, e sentando-o à sua mesa. Chamou Simão de
parte, e deu-lhe um cartucho de dinheiro em ouro, que sua mãe lhe
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enviara. Simão aceitou o dinheiro, e, na presença de Mourão Mosqueira,
pediu ao comandante que fizesse distribuir pelos seus companheiros de
degredo o dinheiro que lhe dava.
DESEMBARGADOR
É demente o senhor Simão?!
SIMÃO
Nem ao menos sei quem me mandou este dinheiro
DESEMBARGADOR
Foi sua mãe
SIMÃO
Não tenho mãe. Quer vossa excelência devolver esta esmola rejeitada?
DESEMBARGADOR
Não, senhor
SIMÃO
Senhor comandante cumpra o que lhe peço, ou eu atiro o dinheiro no rio
(O comandante aceitou o dinheiro, e o DESEMBARGADOR sai de bordo
espantado da sinistra condição do moço)
SIMÃO
Onde é Monchique?
(Pergunta SIMÃO à MARIANA)
MARIANA
É acolá, senhor Simão.
(Respondeu lhe indicando o mosteiro se debruça sobre a margem do
Douro, em Miragaia)
Simão cruzou os braços, e viu através do gradeamento do mirante um
vulto.
Era Teresa que na véspera recebera o adeus de Simão, e respondera
enviando-lhe a trança dos seus cabelos. Ao anoitecer daquele dia,
pediu Teresa os sacramentos, e comungou à grade do coro, onde se foi
amparada à sua criada, Parte das horas da noite passou-as sentada ao
pé do santuário de sua tia, que toda a noite orou, Algumas vezes pediu
que a levassem à janela que se abria para o mar, e não sentia ali a
frialdade da viração. Conversa serenamente com as freiras, e despede-
se de todas, uma a uma, indo por seu pé às celas das senhoras
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entrevadas para lhes dar o beijo da despedida. Todas cuidavam em
reanimá-la, e Teresa sorria, sem responder aos piedosos artifícios com
que as boas almas a si mesmas queriam simular esperanças. Ao abrir da
manhã, Teresa leu uma a uma a cartas de Simão Botelho. Emaçou depois
as cartas, e cintou-as com fitas de seda desenlaçadas de raminhos de
flores murchas, que Simão, dois anos antes, lhe atirara da sua janela
ao quarto dela. As pétalas das flores soltas quase todas se
desfizeram, e Teresa, contemplando-as, disse:
TERESA
Como a minha vida
(Chora beijando os cálices desfolhados das primeiras que recebera)
Às nove horas da manhã pediu a Constança que a acompanhasse ao
mirante. Foi então que Simão Botelho a viu.
Ouviu-se a voz de levas âncora e largas amarras. Simão encontrou-se à
amurada do navio, com os olhos fixo ao mirante. Viu se agitar um
lenço, e ele respondeu com o seu à aquele aceno. O navio desceu ao
mar, e passou fronteira ao convento. Distintamente Simão viu um rosto
e uns braços suspensos das reixas de ferro; Mas não era de Teresa
aquele rosto; Seria antes um cadáver que subiu da claustra ao mirante,
com os ossos da cara içados ainda das herpes da sepultura.
SIMÃO
É Teresa?
MARIANA
É, senhor, é ela.
De repente aquietou o lenço que se agitava no mirante, e entreviu
Simão um movimento impetuoso de alguns braços e o desaparecimento de
Teresa e do vulto de Constança. Mais tarde adiou-se a saída para o dia
seguinte. Ao escurecer, voltou de terra o comandante, e contemplou,
com os olhos embaciados de lágrimas. O desterrado, que contemplava as
primeiras estrelas, iminentes ao mirante.
COMANDANTE
Procura-a no céu?
SIMÃO
Se a procuro no céu!
COMANDANTE
Sim!... No céu deve ela estar.
SIMÃO
Quem, senhor?
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COMANDANTE
Teresa.
SIMÃO
Teresa...! Morreu?!
COMANDANTE
Morreu, além, no mirante, donde ela estava acenando.
(O COMANDANTE bate nas costas de SIMÃO e tenta animá-lo)
COMANDANTE
Coragem, grande desgraçado, coragem! Os homens do mar crêem em Deus!
(MARIANA estava um passo atrás de SIMÃO, e tinha as mãos erguidas)
SIMÃO
Acabou-se tudo!... Eis-me livre... Para a morte... Senhor comandante
eu não me suicido. Pode deixar-me.
COMANDANTE
Peço-lhe que se recolha à câmara. O seu beliche está ao pé do meu.
SIMÃO
É obrigatório recolher-me?
COMANDANTE
Para vossa senhoria não há obrigações; há rogos: peço-lhe, não mando.
SIMÃO
Vou, e agradeço a compaixão.
SIMÃO encara MARIANA, e diz ao comandante:
SIMÃO
E esta infeliz?
COMANDANTE
Que deus o siga...
(SIMÃO recolheu-se ao beliche, e o COMANDANTE sentou-se em frente
dele, e MARIANA ficou no escuro da câmara a chorar).
COMANDANTE
Fale, senhor Simão! Desafogue e chore.
SIMÃO
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Chorei, senhor!
COMANDANTE
Eu não tinha imaginado uma angústia igual à sua. A invenção humana
não criou ainda um quadro tão atroz. Que desgraçado moço o senhor é!
SIMÃO
Por pouco tempo...
COMANDANTE
Por pouco tempo, creio eu, mas se os amigos pudessem salvá-lo, senhor,
eu dar-lhes-ia na Índia mais fiéis que em Portugal. Prometo-lhe, sob a
minha palavra de honra, alcançar do vizo-rei a sua residência em Goa.
Prometo segurar-lhe um decente principio de vida e as comodidades que
fazem a existência tão saudável como ela é na Ásia. Não o intimide a
ideia do degredo, senhor Simão. Viva, faça por vencer-se, e será
feliz!
SIMÃO
O seu silêncio, por piedade, senhor...
COMANDANTE
Bem sei que é cedo ainda para planejar futuros. Desculpe à simpatia
que me inspira a indiscrição, mas aceite um amigo nesta hora
atribulada.
SIMÃO
Aceito, e preciso dele... Mariana! Venha aqui, se este cavalheiro o
permite. Esta mulher tem sido a minha providência porque ela me valeu,
não senti a fome em dois anos e nove meses de cárcere. Tudo que tinha
vendeu para me sustentar e vestir. Se eu morrer, senhor comandante,
aceite o legado de ampará-la com a sua caridade como se ela fosse
minha irmã. Se ela quiser voltar à sua pátria, seja o seu protetor na
passagem.
(E estendendo lhe a mão disse)
O senhor promete?
COMANDANTE
Juro.
O COMANDANTE, obrigado a subir ao tombadilho, deixou SIMÃO com
MARIANA.
SIMÃO
Estou tranquilo pelo seu futuro, minha amiga.
MARIANA
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Eu já o estava, senhor Simão
SIMÃO apoiou a face sobre a mesa, e apertou com as mãos as fontes
arquejantes. MARIANA, de pé, ao lado dele, fitava os olhos na luz
mortiça da lâmpada oscilante, e cismava, como ele, na morte.
Às onze horas da noite, o comandante recolhera-se num beliche de
passageiro, e Mariana, sentada no pavimento, com o rosto sobre os
joelhos, parecia sucumbir ao quebranto das trabalhosas e aflitivas
horas daquele dia. Simão Botelho velava prostrado no camarote, com os
braços cruzados sobre o peito, e os olhos fitos na luz que balançava
pendente de um arame. À meia-noite, estendeu Simão o braço trêmulo ao
maço das cartas que Teresa lhe enviara, e contemplou um pouco a que
estava ao de cima, que era dela. Rompeu a obreia, e dispôs-se no
camarote para alcançar o baço clarão da lâmpada. Dizia assim a carta:
"É já o meu espírito que te fala, Simão. A tua amiga morreu. A tua
pobre Teresa, à hora em que leres esta carta, se Deus não me engana,
está em descanso. Eu devia poupar-te a esta última tortura; não devia
escrever-te; mas perdoa à tua esposa do céu a culpa, pela consolação
que sinto em conversar contigo a esta hora, hora final da noite da
minha vida. Quem te diria que eu morri, se não fosse eu mesma? Daqui a
pouco perderás de vista este mosteiro; correrás milhares de léguas, e
não acharás, em parte alguma do mundo, voz humana que te diga: A
infeliz espera-te noutro mundo,e pede ao Senhor que te resgate. Se te
pudesses iludir, meu amigo, quererias antes pensar que eu ficava com a
vida e com esperança de ver-te na volta do degredo? Assim pode ser,
mas, ainda agora, neste solene momento, me domina a vontade de fazer-
te sentir que eu não podia viver. Parece que a mesma infelicidade tem
às vezes vaidade de mostrar que o é, até não podê-lo ser mais! Quero
que digas: Está morta, e morreu quando eu lhe tirei a última
esperança. Isto não é queixar-me, Simão: não é. Talvez, que eu pudesse
resistir alguns dias à morte, se tu ficasses; mas, de um modo ou de
outro, era inevitável fechar os olhos quando se rompesse o último fio,
este último que se está partindo, e eu mesma o ouço partir.
Não vão estas palavras acrescentar a tua pena. Deus me livre de
ajuntar um remorso injusto à tua saudade. Se eu pudesse ainda ver-te
feliz neste mundo; se Deus permitisse à minha alma esta visão!...
Feliz, tu, meu pobre condenado!... Sem o querer, o meu amor agora te
fazia injúria, julgando-te capaz de felicidade! Tu morrerás de
saudade, se o clima do desterro te não matar ainda antes de sucumbires
à dor do espírito. A vida era bela, era, Simão, se a tivéssemos como
tu pintavas nas tuas cartas, que li há pouco! Estou vendo a casinha
que tu descrevias defronte de Coimbra, cercada de árvores, flores e
aves. A tua imaginação passeava comigo às margens do Mondego, à hora
pensativa do escurecer. Estrelava-se o céu, e a Lua abrilhantava a
água. Eu respondia com a mudez do coração ao teu silêncio, e, animada
por teu sorriso, inclinava a face ao teu seio, como se fosse ao de
minha mãe. Tudo isto li nas tuas cartas; e parece que cessa o
despedaçar da agonia enquanto a alma se está recordando. Noutra carta,
me falavas em triunfos e glórias e imortalidade do teu nome. Também eu
ia após da tua aspiração, ou adiante dela, porque o maior quinhão dos
teus prazeres de espírito queria eu que fosse meu. Era criança há três
anos, Simão, e já entendia os teus anelos de glória, e imaginava-os
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realizados como obra minha, se tu me dizias, como disseste muitas
vezes, que não serias nada sem o estimulo do meu amor.
Ó Simão, de que céu tão lindo caímos! A hora que te escrevo, tu estás
para entrar na nau dos degredados, e eu na sepultura. Que importa
morrer, se não podemos jamais ter nesta vida a nossa esperança de há
três anos? Poderias tu com a desesperança e com a vida, Simão? Eu não
podia. Os instantes do dormir eram os escassos benefícios que Deus me
concedia; a morte é mais que uma necessidade, é uma misericórdia
divina, uma bem-aventurança para mim. E que farias tu da vida sem a
tua companheira de martírio? Onde tu irás aviventar o coração que a
desgraça te esmagou, sem o esquecimento da imagem desta dócil mulher,
que seguiu cegamente a estrela da tua malfadada sorte?!
Tu nunca hás de amar, não, meu esposo? Terias pejo de ti mesmo, se uma
vez visses passar rapidamente a minha sombra por diante dos teus olhos
enxutos? Sofre, sofre ao coração da tua amiga estas derradeiras
perguntas, a que tu responderás, no alto mar, quando esta carta leres.
Rompe a manhã. Vou ver a minha última aurora... a última dos meus
dezoito anos! Abençoado sejas, Simão! Deus te proteja, e te livre de
uma agonia longa. Todas as minhas angústias lhe ofereço em desconto
das tuas culpas. Se algumas impaciências a justiça divina me condena,
oferece tu a Deus, meu amigo, os teus padecimentos, para que eu seja
perdoada. Adeus! À luz da eternidade parece-me que já te vejo, Simão
Ergueu-se o degredado, olhou em redor de si e fitou com espasmo
MARIANA, que levantava a cabeça ao menor movimento dele.
MARIANA
Que tem, senhor Simão?
(disse ela, erguendo-se)
SIMÃO
Estava aqui, Mariana?... Não vai se deitar?!
MARIANA
Não vou; o comandante deu-me licença de ficar aqui.
SIMÃO
Mas há de assim passar a noite?! Rogo-lhe que vá, porque não é
necessário o seu sacrifício.
MARIANA
Se o não incomodo, deixe-me aqui estar, senhor Simão.
SIMÃO
Esteja, minha amiga, esteja... Poderei subir ao convés?
COMANDANTE
Quer ir ao convés, senhor Botelho?
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SIMÃO
Queria, senhor comandante.
COMANDANTE
Iremos juntos.
Simão ajuntou a carta de Teresa ao maço das suas, e saiu cambaleando.
No convés sentou-se num monte de cordame, e contemplou o mirante do
Monchique, que avultava negro ao sopé da serra penhascosa em que
atualmente vai a Rua da Restauração. O capitão passeava da proa à ré,
mas com o ouvido fito aos movimentos do degredado. Receara ele o
propósito do suicídio, porque Mariana lhe incutira semelhante
suspeita. Queria o marítimo falar-lhe palavras consoladoras, mas
pensava consigo: "O que há de dizer-se a um homem que sofre assim?" E
parava junto dele algumas vezes, como para desviar-lhe o espírito
daquele mirante.
SIMÃO
Eu não me suicido! Se a sua generosidade, senhor capitão. Se interessa
em que eu viva, pode dormir descansado a sua noite, que eu não me
suicido.
COMANDANTE
Mas mereço-lhe eu a condescendência de descer comigo à câmara?
SIMÃO
Irei; mas eu, lá, sofro mais, senhor.
COMANDANTE
Não!
Replicou o COMANDANTE, e continuou a passear no convés apesar das
rajadas de vento.
MARIANA estava agachada entre os pacotes da carga, a pouca distância
de Simão. O COMANDANTE viu-a, falou-lhe, e retirou-se. Às três horas
da manhã, Simão Botelho segurou entre as mãos a testa, que se lhe
abria abrasada pela febre. Não pôde ter-se sentado, e deixou cair o
meio corpo. A cabeça, ao declinar, pousou no seio de Mariana.
SIMÃO
O Anjo da compaixão sempre comigo!
(murmurou ele)
Teresa foi muito desgraçada...
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MARIANA
Quer descer ao camarote?
SIMÃO
Não poderei... Ampare-me, minha irmã.
Deu alguns passos para a escadinha, e olhou ainda sobre o mirante.
Desceu a íngreme escada, apegando-se às cordas. Lançou-se sobre o
colchão, e pediu água que bebeu insaciavelmente. Seguiu-se a febre, o
estarrecimento, e as ânsias, com intervalo de delírio. De manhã veio a
bordo um facultativo, por convite do capitão. Examinando o condenado,
disse que era febre maligna a doença, e bem podia ser que ele achasse
a sepultura no caminho da Índia. Mariana ouviu o prognóstico, e não
chorou. As onze horas saiu barra fora a nau. As ânsias da doença
acresceram as do enjôo. A pedido do comandante, Simão bebia remédios,
que bolsava logo, revoltos pelas contrações do vômito. Ao segundo dia
de viagem, Mariana disse a Simão:
MARIANA
Se o meu irmão morrer, que hei de eu fazer àquelas cartas que vão na
caixa?
Pasmosa serenidade a desta pergunta!
SIMÃO
Se eu morrer no mar. Mariana, atire ao mar todos os meus papéis,
todos; e estas cartas que estão debaixo do meu travesseiro também.
Passada uma ânsia, que lhe embargava a voz, Simão continuou:
SIMÃO
Se eu morrer, que tenciona fazer, Mariana?
MARIANA
Morrerei, senhor Simão.
SIMÃO
Morrerás?!... Tanta gente desgraçada que eu fiz!...
A febre aumentava. Os sintomas da morte eram visíveis aos olhos do
capitão, que tinha sobeja experiência de ver morrerem centenas de
condenados, feridos da febre no mar, e desprovidos de algum
medicamento. Ao quarto dia, quando a nau se movia ronceira defronte de
Cascais, sobreveio tormenta súbita. O navio fez-se ao largo muitas
milhas, e, perdido o rumo de Lisboa, navegou desnorteado. Ao sexto dia
de navegação incerta, por entre espessas brumas, partiu-se o leme
defronte de Gibraltar. E, em seguida ao desastre, aplacaram as
refregas, desencapelaram-se as ondas, e nasceu, com a aurora do dia
seguinte, um formoso dia de primavera. Era o dia de primavera. Era o
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dia 27 de março, o nono da enfermidade de Simão Botelho. Mariana tinha
envelhecido. O comandante, encarando nela, exclamou:
COMANDANTE
Parece que volta da índia com os dez anos de trabalhos já passados!
MARIANA
Já acabados... de certo...
Ao anoitecer desse dia o condenado delirou pela última vez, e dizia
assim no seu delírio: "A casinha, defronte de Coimbra, cercada de
árvores, flores e aves. Passeavas comigo à margem do Mondego, à hora
pensativa do escurecer. Estrelava-se o céu, e a Lua abrilhantava a
água. Eu respondia com a mudez do coração ao teu silêncio, e, animada
por teu sorriso, inclinada a face ao teu seio, como se fosse o de
minha mãe... De que céu tão lindo caímos!... A tua amiga morreu... A
tua pobre Teresa... E que farias tu da vida, sem a tua companheira de
martírio?... Onde irás tu aviventar o coração que a desgraça te
esmagou?!... Rompe a manhã... Vou ver a minha última aurora... a
última dos meus dezoito anos. Oferece a Deus os teus padecimentos,
para que eu seja perdoado...Mariana..."
Mariana colocou os ouvidos aos lábios roxos do moribundo, quando
cuidou ouvir o seu nome. "Tu virás ter conosco; ser-te-emos irmãos no
céu... O mais puro anjo serás tu... se és deste mundo, irmã; se és
deste mundo, Mariana..."
A transição do delírio para a letargia completa era o anúncio
infalível do trespasse.
Ao romper da manhã apagara-se a lâmpada. Mariana saíra a pedir luz, e
ouvira um gemido estertoroso. Voltando às escuras, com os braços
estendidos para tatear a face do agonizante, encontrou a mão convulsa,
que lhe apertou uma das suas, e relaxou de súbito a pressão dos dedos.
Entrou o COMANDANTE com uma lâmpada, e aproximou-lha da respiração,
que não embaciou levemente o vidro.
COMANDANTE
Está morto!
MARIANA curvou-se sobre o cadáver, e beijou-lhe a face. Era o primeiro
beijo. Ajoelhou depois ao pé do beliche com as mãos erguidas, e não
orava nem chorava.
Algumas horas volvidas, o comandante disse a Mariana:
COMANDANTE
Agora é tempo de dar sepultura ao nosso venturoso amigo... É
ventura morrer quando se vem a este mundo com tal estrela. Passe a
senhora Mariana ali para a câmara que vai ser levado daqui o defunto.
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Mariana tirou o maço das cartas debaixo do travesseiro, e foi a uma
caixa buscar os papéis de Simão. Atou o rolo no avental, que ele tinha
daquelas lágrimas dela, choradas no dia da sua demência, e cingiu o
embrulho à cintura. Foi o cadáver envolto num lençol, e transportado
ao convés. Mariana seguiu-o.
Do porão da nau foi trazida uma pedra, que um marujo lhe atou às
pernas com um pedaço de cabo. O comandante contemplava a cena triste
com os olhos úmidos, e os soldados que guarneciam a nau, tão funeral
respeito os impressionara, que insensivelmente se descobriram.
Mariana estava, no entanto, encostada ao flanco da nau, e parecia
estupidamente encarar aqueles empuxões que o marujo dava ao cadáver,
para segurar a pedra na cintura.
Dois homens ergueram o morto ao alto sobre a amurada. Deram-lhe o
balanço para o arremessarem longe. E, antes que o baque do cadáver se
fizesse ouvir na água, todos viram, e ninguém já pôde segurar Mariana,
que se atirara ao mar.
A voz do comandante desamarraram rapidamente o bote, e saltaram homens
para salvar Mariana.
Salvem na!...
Viram-na, um momento, bracejar, não para resistir à morte mas para
abraçar-se ao cadáver de Simão, que uma onda lhe atirou aos braços. O
comandante olhou para o sítio donde Mariana se atirara, e viu, enleado
no cordame, o avental, e à flor da água, um rolo de papéis, que os
marujos recolheram na lancha. Eram, como sabem, a correspondência de
Teresa e Simão.
Da família de Simão Botelho vive ainda, em Vila-Real-de-Trás os-
Montes, a senhora D. Rita Emília da Veiga Castelo Branco, a irmã
predileta dele. A última pessoa falecida, há vinte e seis anos, foi
Manoel Botelho, pai do autor deste livro.
FIM