O documento apresenta um conto sobre um homem chamado João Almeida que sofre de problemas de memória após uma overdose de absinto. Ele tem dificuldades em reter informações e distingue significados de palavras. O conto também apresenta a história de Morfino, um homem misterioso que suga os sonhos das pessoas.
2. Autor de Reflexivas numa mesa de boteco
Livro registrado e catalogado. Reprodução proibida.
Belo Horizonte
Março 2007
Agradeço à Deus.
3. aonde iria ao clube da esquina, tomar um café com bytes em
Se eu fosse virtual
companhia de Milton e Lô Borges.
Ah, se eu fosse virtual! Se eu fosse virtual, teria memória sem
“Chegou o tempo em que ou você é alguém@onde.oque ou você não é
limites e poderia guardar tudo do passado e do presente. Então, me
ninguém”
presentearia com um álbum dos Mutantes. Seria amigo de Vinícius, de
Chico e de Janis Joplin. Com Lennon e McCartney, Pena Branca e
Se pudesse ser uma coisa, uma outra coisa, eu queria ser um
Xavantinho, formaria uma banda larga inusitada e tocaríamos juntos
software, digital, virtual. Não seria muito exigente. Bastava ser virtual.
em MP3.. Seria virtual, mas com sentimentos e, com Noel e
Se eu assim fosse, eu dominaria as dimensões do tempo e do espaço e
Adoniram, choraria melosas canções de amor numa rádio digital.
viajaria pelo planeta digital e me deliciaria congestionando o tráfego
Mesclaria Pixinguinha e Marisa Monte em uníssono, cantando Rosa,
na Trafalgar Square. Literalmente passearia pelos sites literários e
em poesia não em prosa, para fazer alguém feliz. Se eu fosse virtual,
num dia de sol enviaria um e-mail a Castro Alves e num navio
Bach me ensinaria que na música, a nota codifica o som, e eu o
negreiro, navegaríamos por mares nunca dantes navegados em
explicaria que na informática, o bit codifica a ação.
companhia de Camões e Robinson Crusoe. Também por e-mail,
Se eu fosse virtual e cometesse crimes, Dostoievski seria meu
convidaria Helena e Capitu para ir à Espanha assistir a uma tourada e
advogado e meus castigos minimizados. Poderia até ser processado,
mais tarde, em casa de Almodóvar, descansaríamos numa cama para
mas por processadores, que me mandariam pra Alcatraz. Lá eu
três.
escreveria minhas memórias do cárcere e um postal eletrônico para
Nas terras da Rainha, pesquisaria na Enciclopédia e com
Marco Polo. Planejaria uma fuga lá para o reino de Khan, a quem eu
pontualidade Britânica iria ao chá das cinco com Shakespeare e
contaria de minhas andanças pelas terras do sem fim. Depois, criaria
Sherlock. Convidaria Rimbaud para um bate papo na Gallerie La
um portal de games para jogar Dama com as Camélias e enviaria
Fayette e numa sexta à tarde me conectaria com Belo Horizonte,
4. flores virtuais para Madame Bovary. Digitalizaria o amor, para que amor. Entenderia grego, português, inglês e outras línguas porque
minha musa não guardasse de mim apenas impressões digitais e armazenaria todas as línguas na memória. Entraria nos arquivos do
FBI, do DOPS, do SNI e da CIA, de onde hackearia informações sigilosas e
fundaria com Gullar a Academia Brasileira de Bytes. Não seria um
as compartilharia com Henfil e Betinho. Criaria uma comunidade alternativa
Highlander, mas seria imortal.
no Orkut e Raul Seixas seria o síndico. Em uma página de poesia, jogaria
Se eu fosse virtual, simularia o meu Taj Mahal, onde leria As
conversa fora com Drummond, depois andaríamos por uma rua qualquer de
mil e uma noites em uma só, deitado confortavelmente em minha rede.
Itabira, e no meio do caminho, nos assentaríamos em um banco de dados
Iria ao Louvre e admiraria cada píxel da Mona Lisa. Materializaria-me junto
também qualquer para escrever às crianças.
ao túmulo de Salvador e o tiraria dali para meu alívio e para a persistência
Se eu fosse virtual, programaria com Júlio Verne, dez voltas
de sua memória. Gravaria em placas homenagens a Sebastião Salgado,
ao redor da Terra, à velocidade de um download, num Led Zeppelin
Picasso e Caetano constatando que a Guernica é aqui. Aprenderia com
amarelo. Buscaria no Google, um trabalho para Marx e trocaríamos
Freud sobre Édipo e o Ego num site de psicologia e entenderia que quando
informações sobre workgroups. Após o almoço, Newton me ofereceria uma
os sonhos assumem forma concreta, surge a beleza. Seria menino e correria
maçã e eu o convidaria a ensinar física aos engenheiros da Apple por
Brasil afora em busca de pica-paus amarelos ou de uirapurus cantantes.
videoconferência. Se eu fosse virtual, ao envelhecer, não me preocuparia
Pularia carniça nas pinceladas de Portinari em companhia de Bardi e me
com a forma física e nem sofreria cirurgias plásticas ou lipoaspiração. No
deixaria deslizar nas curvas generosas de Niemeyer. Imprimiria elogios de
máximo, Ivo Pitangui me atenderia em uma clínica de upgrades e eu sendo
louvor á brasilidade de Macunaíma e Mário de Andrade me convidaria para
velho, não morreria. Bastaria um update, um download, e eu me
um banquete antropofágico em casa de Tarsila, numa mensagem com a
Muiraquitã em anexo. renovaria como a Fênix.Tudo isso seria possível se Deus, o criador,
Se eu fosse virtual, conversaria com Da Vinci em código e fosse programador e, se no ato de me criar, tivesse feito um software,
compilaria com Einstein o quântico dos contos . Instalaria-me com não um escritor. Ah, se eu fosse virtual.
Clarice em uma rede e a ouviria explicar sobre como (d)escrever o
5. longo dia de trabalho, resolveu reler aquele fim do Oeste Causticante.
Conto inflamado
Não conseguiu se concentrar e ligou a TV. Estavam mostrando a cena
Era uma vez um homem. Não. Não era uma vez um homem. É em que Jody conversava com o terrorista irlandês que estava
a vez de um homem. Um homem simples, porém determinado e que encarregado de matá-lo. Adormeceu sentindo um torpor suave e vez
passava a vida vivendo fatos e experimentando decisões. Esse homem por outra um mosquito o perturbava e ele espantava o mosquito com o
era João Almeida, 43 anos, deputado e advogado. Separado pai de Clarim Diário que estava amassado perto da poltrona. Novamente o
duas filhas, uma lésbica e ele com problemas de memória. mosquito aparecia com seu zumbido supersônico e passeava próximo
Às vezes até brincava com coisas mais complexas, mas no ao seu ouvido com vôos rasantes. Ele se contorcia espantava o
fundo sua vida era muito simples. Tudo ia bem ate o dia em que teve mosquito novamente e logo se esquecia. Se sua memória ajudasse,
uma overdose de absinto com Bauhauss. Foi na casa do Trindade. A mandaria o mosquito para Pasárgada para atormentar o Rei, mas
casa rodava, as pessoas também rodavam e elas eram meio retorcidas e esquecia-se facilmente das coisas desde aquela noite do absinto. Sua
de um colorido meio misturado como tintas numa aquarela. Mas o que memória de curto prazo estava avariada e a avaliação médica dizia que
o intrigava mesmo era a sensação de que flutuava e que tudo se certamente depois de alguns meses isso iria melhorar. Esqueceu-se até
movimentava em câmara lenta. E que gosto amargo era aquele na da TV ligada e João adormecia e acordava na sua incansável batalha
boca? Um misto de amargo e adocicado. Pela primeira vez na vida contra o mosquito. De fato o que estava acontecendo era que ele se
João entendeu o significado do que era agridoce, e olhe que já tinha esquecia do mosquito e quando se lembrava tinha medo de mata-lo.
recorrido ao Aurélio várias vezes. A vida apresenta fatos e fatores que Mas como pode um homem vivido e experimentado se deixar
apenas podem ser compreendidos quando vividos e o agridoce era um amedrontar por um Anopheles Nyssurhynchus? Mas tinha, tinha medo
deles. do mosquito e dos finais tristes dos filmes. Isso porque os fins de filme
Dois meses depois João voltava a trabalhar e depois de um sempre o deixavam confuso, já que se esquecia do que levara o filme
6. àquele final.A soma dos seus medos era tão intensa que se assustava Atração sanguínea
até mesmo com um ser desprezível e efêmero que vive por apenas três
dias.
Alto, magro e esguio, Morfino andava pela redondeza do
João mantinha o significado das coisas fixo na memória e
Maletta com um ar de preocupado. Sabia que seria um zeninguém se
associava o significado ás palavras, então o problema era que como
não conseguisse uma nova vítima para seu plano. Morfino não
uma máquina, ele não conseguia mudar o significado de acordo com o
aparentava ter a idade que tinha, era muito mais velho e era impossível
contexto. A semântica era uma verdade absoluta dentro do que ele
determinar com quem se parecia. Diziam à boca miúda que era a cara
apreendia e isso não mudava, porque se algo era ambíguo, ele
do Herchovich e que, mesmo feio, era um sedutor sem limites. Desde
assimilava logo o mais geral, não conseguia abstrair das palavras um
que aparecera na região, dizia-se advogado, mas ninguém sabia ao
sentido diferente do que encontrava no dicionário.
certo o que fazia ou de onde viera. Era uma incónigta. Diziam que
João nunca sabia o que guardar e o que descartar e vivia a
Mazinho foi parar no Galba Veloso por causa do distinto após
confundir as coisas. Não sabia se Nero era um programa ou um
conhecê-lo
político como ele. Não sabia ainda que uma reação química resultante
Um dia, bêbado no boteco do Sapão, deixou escapar um dos
de comburente, combustível e fogo resultam em modificações na
seus muitos segredos: Morfino não sonhava. E isso acontecia há
natureza da matéria. E essa reação química tinha nome: combustão.
muitos anos. Deixou transparecer também que vinha de longe, sempre
Num lapso de lembranças semi-adormecidas, se apossou do jornal e
viajando para “ganhar a vida”. Morfino mora bem, mora em Santa
ateou fogo, ciente de que a fumaça espantaria o inseto repugnante. O
Teresa e gosta muito do à bolonhesa da esquina da praça. Se pudessem
único problema era que o sofá em que estava deitado era de tecido
averiguar sua vida, os taxistas descobririam que por não sonhar,
sintético e listrado
Morfino, sugava mentes alheias para viver dos sonhos das vítimas.
Ninguém sabia, mas Ele era um vampiro decadente. Filho do demo.
7. Em Santa Teresa Morfino conhecia vários taxistas, dentre esses Subitamente sente um toque no ombro. Era Adão.
Adão, um ex-funcionário público aposentado, barrigudo e careca. -Diz ai ô Morfino gente boa, que cara é essa de desanimado
Adão era o que alguém poderia considerar como sendo peça rara e homem?
sortudo. Usava roach, perfume da Avon, corrente de ouro e toda quinta - Nada, só estou de veneta mesmo, tomando um ar.
cortava cabelo no Mercado Central. Além do táxi, Adão tem uma -Rapaz você não dorme? Vi você ontem à noite andando pela
coceira gostosa no pé esquerdo e uma namoradinha de parar o trânsito. praça por horas.
Morfino nunca a tinha visto quando um domingo, andando pela praça -Sofro de insônia. Isso é coisa antiga e, além disso, gosto da
viu Adão conversando com uma morena gostosa que chamava a noite.
atenção até de outras mulheres. Adão parecia bêbado pela mulher e a - Morfino, cê não me engana, acha que não vi como comia
despia com os olhos. Os olhares dos outros taxistas também pareciam minha mulher com os olhos?
desnudar aquela Vênus cor de ébano. Morfino enlouqueceu, ia chegar O vampiro se assustou e fingiu não entender o tom de ironia.
perto para se deliciar da visão, mas Adão deu algum dinheiro a tesuda -Ela é bonita. Cara sortudo você. Tem pelo menos uns 25
e ela se foi rebolando pela Mármore. anos?
De manhã Morfino não sonhou, mas desejou aquela mulher -Nada cara, ninfetinha a Natasha. Mas fica comigo pela grana,
como se ela fosse a última do planeta. Bebeu algum vinho, fumou dois ela não me ama. Mas mete como ninguém e não me amola. É tudo que
Cadillacs e se deitou na varanda do apartamento. Maquinava uma um velho como eu poderia querer.Só tem um problema. Ela me leva
forma de se aproximar da morena, que imaginava, além de bela teria toda a féria do fim de semana. Isso é osso. E eu que tenho que pagar as
muitos sonhos a realizar. À noite Morfino se levantou e foi ao Spa- prestações do carro, fico apertado.
ghetto, o bar que fica em frente ao ponto de táxi. De lá de dentro, Nesse momento os olhos fundos do ladrão de sonhos brilharam e ele
podia ver o ponto e o movimento da praça. arriscou alto:
8. -Tá desistindo dela? Podemos dar um jeito nisso aí. Mas vai ter -Putaquiupariu, isso é muito mais do que consegui em 25 anos
que me ouvir. de repartição e 15 de táxi.
O taxista, que era ganancioso até os ossos abanou a cabeça e ouviu o Feitos os acertos, Morfino foi pra casa arquitetar o plano de ataque e
plano do vampiro. Adão entrou no táxi e foi pra Lagoinha tomar uma Original pra
De salto alto, saia curta jeans e bustiê, Natasha mora num comemorar o negócio da China.
prédio invadido em Santa Efigênia. Ela como toda jovem, sonha em Fim de semana seguinte se encontram na Casa do Conde num
ser famosa, além de ser fã da Luciana Gimenez. O que a faz mais festão com muitos convidados e show do Martinho da Vila. Morfino
orgulhosa e a destaca das amigas é um book feito na Sonora, ter sido se aproxima de Adão. Adão se afasta de Natasha e acerta os últimos
musa do boteco do Caixote e amante de Adão, o que lhe rende algum detalhes com o capiroto. Ela lindamente num coladinho de barras
dinheiro. plissadas aparece e se insinua para o servo de Satã. Adão sai de
Natasha estava muito feliz porque Adão a levaria à final do fininho e vai pra mesa onde está servido o frango ao molho pardo.
concurso Comida de Buteco, na Casa do Conde. Ajuntou seu Enquanto o garçom lhe oferece um chouriço à palito, Morfino trava
dinheirinho e foi à Paraná comprar um vestidinho na Binoca. Mas uma conversa sem conteúdo com a ninfeta. Natasha está apalermada
Natasha estava se cansando de Adão porque ele não se resolvia com a por aquele homem que ela não saberia definir como bonito ou
ex-mulher e nem assumia Natasha definitivamente. charmoso, mas que a amarrava com as cordas da simpatia.
Já Morfino, sabia bem o que queria e como o conseguir. - Lingüiça de boi com arroz branco, vinho chapinha ou sangue
Assim, sentindo o cheiro da cobiça no espírito do taxista, lhe oferece de boi.
seu opala Comodoro e uma suíte no JK de frente pra Raul Soares em -Nada não, prefiro só uma cachacinha com chouriço. E você
troca de uma noite de amor com a beldade. Adão aceitou sem Natasha o que prefere?
hesitação: Morfino tentava ser boa-praça enquanto Natasha recusava a comida.
9. -Ô seu Morfino, que tal a gente dar uma andadinha por ai? e por fora e os bicos dos seios se endurecem. Rebola e dá gritinhos de
Aqui tá meio cheio né? dor. Após longos minutos de peleja o vampirão uiva orgásmico. A
- Sem formalidades mocinha. Pode me chamar de Morfino. moça enfraquece e cai como um lençol, desmaiada e pálida. Pobre
Foram para o lado esquerdo do pátio onde havia galpões vazios e corpo de vestido preto. Morfino se sente renascido. Agora é alto, forte
algumas velhas peças de locomotiva. e tem uma tez saudável e corada. O galpão fede a enxofre e fumaça.
De dentro do galpão ouvem a música vindo de fora e o Lá fora a festa rola sem parar e o antes magro morcegão vai
Esquerdo convida a moça pra dançar, beijando-a com volúpia. andando, ajeitando as calças com as mãos e toma um táxi pro
Morfino é esperto, ele sabe que ela cairá no seu plano e tira uma aeroporto. Dentro do galpão Natasha é apenas uma mistura de sexo e
garrafinha com ungüento de dentro do paletó. Enquanto dançam ele pano preto rasgados. Está careca e desfalecida. Está morta.
fala palavras indecifráveis no ouvido da moça. Bêbada, Natasha acha A polícia chega com a sirene das veraneios zoando e com os
graça e se deixa levar pelo príncipe da escuridão. Assim que abre a braços do lado de fora. Descendo das viaturas, abrem o galpão e
garrafinha o demo esfrega o líquido nos cabelos da moça, que já está sentem o cheiro forte de coisa queimada. No Boletim de Ocorrência
se contorcendo de prazer. Natasha quer sexo, Morfino quer sonhar. Policial redigida pelo soldado Sanguinetti pode-se ler: “cadáver
Usa uma navalhinha de inox pra raspar os cabelos dela e ela o lambe encontrado inerte em decúbito ventral, causa mortis desconhecida.
no peito magro e incolor. O cinzento joga o resto do chouriço no chão Acusado foragido do local, modus operandi também desconhecido.
e põe os cabelos da morena dentro do prato e ateia fogo. Natasha Ausência de sangue no local e no corpo da vítima”.
apresenta os seios redondos à mostra e rasga o vestido ao meio,
Morfino aspira a fumaça do prato e entra em transe, transando, nu. Segunda feira de manhã, em uma kitchenete no edifício JK
Natasha passa a retorcer o corpo como se estivesse possuída e está. Adão se diverte lendo no Diário da Tarde as notícias do seu Leão do
Morfino se contorce de prazer e renovo. Natasha é rasgada por dentro Bonfim e tomando uma cerveja gelada. No Rio, numa clínica em
10. Santa Teresa, um paciente alto e com cara de polaco está sentado em X imagem de Y ou deslocamento ou a degola
uma máquina de hemodiálise e lê no jornal a notícia sobre um
assassinato em Belo Horizonte. Estou um ser periférico, deslocado do mundo real e sinto-me
-Como se sente senhor? perdido num labirinto cretino. Minha vida é um caleidoscópio mas
A enfermeira não sabe, mas, para ele a hemodiálise é apenas um ritual. sobrevivo de desbotadas lembranças. Minha mente é seccionada em
Em sua cadeira o polaco relaxa: duas e tenho dificuldade em me entender. Criei uma sub-língua mental
-Não quero a cura, só quero trocar de alucinações. para me comunicar com um Eu que eu mesmo descobri. Esse eu é meu
amigo e meu inimigo, eu o amo e o odeio. Somos dois e somos um,
Abel e Caim, bem e mal, sim e não. Gêmeos da mesma placenta,
quase siameses. Se um lado meu é superficial, o outro é profundo,
visceral e sobrevive à minha revelia.
Há poucas pessoas com quem mantenho contato. Durkheim,
Freud, Borges e Eu. Sei ler em vários idiomas, mas o alemão revolve
minha alma. Meu único hábito é a leitura, às vezes me entrego à
contemplação. O meu outro ser, aquele que está em meu corpo, é
amante da música. Meu mundo se resume a um quarto e sala, um
banheiro, uma pequena biblioteca e um jardim nos fundos da casa.
Morei em vários lugares, mas meu canto preferido é Intuí. Meu
habitante, vou chamá-lo X, perdeu a capacidade de falar, mas se
comunica comigo no inconsciente. Tem um gato, um canário e já
11. morou em Barbacena. Temos dois quadros em casa. O grito e A persistência da
Quando deixei minha casa e fui morar comigo mesmo, minha memória. Amamos esses quadros e embora tenham características
mãe cuidava de um fantoche que pensava ser um filho. Meu pai a estilísticas bem diferentes, descobrimos que ambos sintomaticamente
trocou por meu tio, depois se suicidou. Das lembranças que minha nos representam. Há vezes em que X quer se livrar de mim e evoca
mãe me deixou, a que mais aprecio é a gaiola onde guardo minhas Münch olhando o quadro. Ele acha que há algo querendo sair daquela
fotos. Passo horas observando-as. Por vezes me surpreendi em figura retorcida. Metáfora. Algo que quer se libertar. X já tentou o
monólogo regurgitando poemas de Pessoa que nunca li, mas sei que suicídio, mas eu impedi. Não posso permitir que se vá. Somos co-
são dele. X acha que sofro de esquizofrenia, mas ele é egocêntrico existentes. X é carne da minha carne. Somos areia e deserto.
demais pra conhecer minhas verdades. A biblioteca é meu Éden e Recipiente e conteúdo, cada um a seu tempo.
passo horas cheirando meus livros. X acha isso repugnante, prefere se Um dia, ao me barbear em frente ao espelho, notei que X
deitar na rede que habita o jardim e ouvir Bach. X ainda insinua que estava estranho. Eu molhava o rosto e X afiava a navalha. Era sempre
sou um relapso, um degenerado. Ele, que em outra vida foi um assim. Barbear era um ritual no qual cada um de nós tinha uma função,
caçador, é discípulo de Baco e ama as mulheres. X é impulsivo, diz como um ato comunitário. Ouvíamos o epílogo das valsas nobres e
que tem ânsia de viver, mas é egoísta. Ás vezes, simplesmente ignora sentimentais de Ravel e X tremia muito, parecendo nervoso. Súbita e
minha presença e passa horas inerte, absorto. Eu não sou impulsivo, determinadamente, X tomou a navalha na mão direita, levantou meu
mas tento estar racional. Demoro dias para tomar uma decisão. Com o rosto com a mão esquerda e se degolou num único golpe.
passar dos anos, X tornou-se indecifrável. Passa muito tempo
narrando mentalmente caçadas que fizera no passado. Isso me assusta.
Acho que ele era tão violento quanto um gladiador. Cismo até que
gostava de ver sangue.
12. Não via o filme, pois estava vazia de si mesma, mas sabia que
Encontro marcado
era de má qualidade. – Que me importa qualidade se a solidão me
(livremente inspirado no poema Anônimo de Ana Cristina César)
consome? Indagou a si mesma. Qualquer filme servia.
Atentou-se ao filme no momento em que ouviu um casal à sua
Desceu rápido a Tupinambás e tomou a Bahia sem nem olhar
frente gemer. Nem se importavam com as outras pessoas. Enquanto se
pra trás. Estava decidida. Iria ver um filme, qualquer que fosse.
consumiam no chupa e lambe, Cicciolina se contorcia de prazer com
Precisava mesmo era espairecer. A briga fora muito séria. Porque ele
Rocco. O telefone vermelho. Era esse o nome do filme. Não deu
tinha feito aquilo? Ela o queria como homem, ele a queria como
importância ao fato, mas notou que chorava. O homem na sua fileira
amante. Mas brigaram, brigaram feio no Parque Municipal. Ela se
parecendo pressentir isso, se aproximou. Ela sentindo, permitiu e ele a
sentiu só e desesperada saiu correndo deixando-o no parque. Ela
abraçou carinhosamente. Ela retribuiu como se precisasse proteção.
andava a toa e queria ver um filme. Ela era assim, amava cinema
Ela sabia que o filme não importava, e se amanteigava nos braços dele.
embora não soubesse nada além das estórias por trás da tela. Gostava
Ela sentia que o cinema cheirava a desinfetante barato. Teve náusea.
mesmo era de um prazer momentâneo.
Ela chora mais ainda e ele a aperta junto dele. Ela aceita reconhecendo
- Onde tem um cinema por aqui? Perguntou a um transeunte
o perfume dele e se acariciam por longos minutos. (...)
que distribuía santinho do Valdivino do bordéu.O homem apontou em
O desejo escorre pra fora dela. Estão arfantes e suados quando
uma direção desconfiado. Ela entrou pelo corredor rápida e ofegante.
os créditos sobem na telona enquanto ela se sente mais mulher, mais
Passou em frente a escritórios de contabilidade e a um cartório. Viu o
confiante.
cinema e sem nem mesmo perguntar o nome do filme comprou um
Levantam-se e saem do cinema abraçados e calados. Junto
ingresso do velho que estava à portaria.
deles saem outras pessoas que não se conhecem na penumbra. Velhos,
Entrou e assentou-se numa das ultimas fileiras. O filme já tinha
noivos, negros, albinos, açougueiros e gordos. Trombadinhas e
começado. Um homem estava sentado na outra ponta da fileira.
13. morféticos. Todos viram o mesmo filme. Todos pulsando de desejo. Eu quero encontrar um amor
Ao chegar fora do cinema vê pela primeira vez o rosto do homem. Era “Somos feito da mesma matéria que os sonhos”
ele. Ele mesmo. O amante do parque. William Shakespeare
Sorriem e ela diz enquanto caminham:
-Essa cidade é mesmo muito movimentada. Quero ler um livro, apenas mais um. Aquele que me indique o
Atrás deles, em azul e vermelho brilha a placa do Cine Regina. caminho para encontrar um grande amor. Não precisa ser desses
amores de novela, nem daqueles para a vida toda, mas precisa ser
amor. Através de várias viagens, sou um cidadão do mundo mas
desconheço o amor. Tenho dividido os últimos anos de minha vida
entre os discos de bolero, meus livros e um grande sonho. Nunca
encontrei um grande amor. Sempre fui rodeado por sentimentos
passageiros, nunca amor. Quero mesmo é viver nos poemas de
Vinícius, porque acredito que lá o amor é um sentimento concreto,
embora isso possa parecer paradoxal. Quero amar.
Queria um amor denso, que durasse míseros 5 minutos, mas
que enquanto durasse fosse realmente amor. Alguém para se importar,
brigar, concordar e discordar, elogiar e criticar. Quero um amor
simples como um algodão doce, porque viver já é muito complicado.
Que meu amor não se importe se eu usar aquela camiseta amarelinha a
semana toda. Que meu amor goste de planta, arte, bicho, de cinema e
14. de conversar sobre tudo, mas que, sobretudo, me perceba quando eu falar Instinto cibernético
sobre nada. Que esse amor me dê carinho e respeito e que faça sexo num ato
“Porque, cientificamente não existem sentimentos”
de amor. Que meu amor seja amigo e que fale de política e me explique
quem é Deus, mesmo se não O conhecer. Quero um amor capaz de tornar
Aquilo não nascera, passara a existir Era fruto de tecnologia de
semântica a palavra família. Para ser meu amor não precisa ter dinheiro,
ponta e fora criado por um grupo de estudantes e profissionais
nem fama ou corpo de modelo. A idade não importa, basta me dar amor.
fissurados por ficção científica e robótica.A princípio, era apenas uma
Que me faça sentir o coração como se sente um calo ou um espinho na
série de implantes corporais instalados no corpo de um gato em coma.
carne. Que me faça também ter certeza de que está ali, não precisa me
Depois, circuitos eletrônicos foram gerados para serem integrados a
entender, mas que eu saiba que me ouve, pois sei que sou mesmo
sistemas inteligentes que formavam órgãos artificiais, funcionais. O
complicado. Que meu amor me ligue num domingo de manhã sem razão.
Que nesse telefonema não se importe se eu não disser nada, mas que me gato sofrera cirurgias plásticas, e através da infusão de drogas e de
sinta. Quero um amor sem vergonha, sem timidez. Não precisa ter soluções mudança genética, a turma do GENEthicat pôde criar uma interface
desde que me ajude a sobreviver aos problemas. Quero um amor pra andar cerebral e por conseqüência, uma inteligência artificial que era que um
de mãos dadas pela rua, pela Bahia, que me faça descer pra floresta com
complexo sistema neural fecundado por um chip de computador. Com
desejo. Que meu amor seja suave e selvagem, paradoxal, mas nunca prolixo.
os recursos da robótica deram movimento ao ser híbrido e com ajuda
Que não me sufoque nem me entristeça, mas que me faça sentir homem,
de computação gráfica simularam mundos virtuais que foram
antes do fim do meu ciclo. Quero um amor romântico, shakespereano, um
mecanicamente instalados no cérebro-processador do animal. A
amor Ágape, Eros. Quero um amor Amor.
nanotecnologia ajudou na fusão das ligações eletrônicas com as
Quero um amor, mas que meu amor não seja efêmero, afinal,
terminações nervosas graças à células-tronco modificadas. Neurônios
não se pode amar com pressa.
foram substituídos por microchips e glândulas por circuitos integrados.
Após três anos de noites mal dormidas, experimentos diversos e muita
15. dedicação, o embrião do projeto estava finalmente pronto. O gato já GENEthicat. Dividiram as áreas de pesquisa por área e assim cada um
podia andar e emitir sons. Tudo ainda muito mecânico e artificial. Mas poderia se dedicar a uma parte do projeto sem se responsabilizar por
ainda havia um problema, a pele e a carne do animal apodreciam com tudo. A partir daí, Plânquio, estudante de medicina, ficou responsável
muita facilidade. Decidiram então trocar a pele por tecido e a carne pela estética e parte biológica; Nickel, letras, responsável pela parte
por estopa, mas ambos entravam em combustão após alguns minutos neurolinguística e de seleção de conteúdo a ser implantado; Cádmio,
de testes. Cádmio testou e sugeriu o uso de kevlar para substituir a químico e professor, responsável pela definição e análise dos materiais
pele e de silicone pastoso em lugar da estopa. A partir daí, os a serem usados; Mercon, engenheiro mecânico e professor de
movimentos do bicho tornaram-se mais objetivos e suaves, menos matemática, cuidava da anatomia e da cinética do robô e Cúrio e
mecânicos. Aos poucos os cientistas iam aperfeiçoando o projeto de Berílio, que eram estudantes da computação, ajudavam com o
tal forma que em pouco tempo teriam um robô tão perfeito quanto um conhecimento em eletrônica, lógica e processamento de dados.
gato real. Cádmio era o mais velho. Formara-se há 15 anos e o projeto era seu
Enquanto amantes da tecnologia, aqueles amigos buscavam grande sonho. Casara-se e tinha em sua única filha, Olga, a inspiração
nos estudos meios para aperfeiçoar o robô. Cádmio, Nickel, Mercon, para trabalhar. Olga era pequenina, cinco anos se tanto. Seus cabelos
Plânquio, Cúrio e Berílio se encontravam ás sextas-feiras e durante a vermelhos contrastavam com a pele alva e sardenta. Adorava brincar
semana se dedicavam aos experimentos. Encontraram-se pela primeira com Mícron, um gatinho preto, vira-latas que ganhara de um vizinho.
vez há três anos após contatos por e-mail através de um site que citava Cádmio anotava todos os detalhes da relação afetiva que Olga,
Asimov e Hawking. Influenciados pelas idéias cyberpunks, os amigos desenvolvia com o gatinho. Olga era muito calada, parecia guardar
achavam mesmo que seria possível aproveitar o conhecimento segredos infantis. Cádmio ficava várias horas observando o
tecnológico existente para criar um andróide bem próximo de um gato comportamento da menina.. Um dia, Olga brincando no laboratório da
natural. Nos encontros decidiram criar o grupo de pesquisa chamado GENEthicat, achou o gato do projeto e o fez beber leite. Colocando
16. um copo na boca do animal-robô, deixou leite derramar na boca do Após reestruturar a criação do robô e longos meses de
bicho e no corpo do animal. Como o robô estava desligado e não pesquisa, finalmente chegaram a uma nova proposta para o projeto.
respondia aos estímulos e indagações da menina, ela o apertava contra Novos materiais foram incorporados e novas idéias haviam surgido.
o peito e chorava diante da imobilidade mórbida do bicho. Desistiu de Reconstruiriam o gato, mas dessa vez ele teria inteligência autônoma e
brincar com o robô após alguns minutos. Dias mais tarde, ao entrar no seria tão real quanto possível. Mercon havia recriado a estrutura óssea
laboratório, Cádmio e os amigos descobriram o módulo jogado a um com cromo molibdênio, um metal ultra-resistente e muitas vezes mais
canto totalmente molhado em leite e quebrado. Após alguns minutos leve que o aço. A pele seria mesmo kevlar, porém um pouco mais fino
constataram que quase todos os chips estavam avariados e os circuitos e o silicone pastoso foram substituídas por fibras de silicone estriado.
e articulações começavam a oxidar em função do contato com o Para o cérebro, Cúrio e Berílio haviam redesenhado o
líquido. Esse episódio fez com que o grupo pensasse na própria microprocessador e apenas esperavam de Nickel o tipo de conteúdo
segurança e sigilo do projeto GENEthicat. Decidiram não trabalhar no que seria implantado. Plânquio havia descoberto um meio de clonar o
projeto pelos próximos meses, período este que dedicaram à pesquisas cérebro animal e com auxílio da eletrônica reproduzí-lo. Havia
e à experimentação de materiais. Mercon desenvolveu um sistema também uma nova unidade de processamento que cuidava
mecânico de segurança que impedia a entrada de pessoas estranhas no essencialmente da parte cinética e que ocupava o lugar de coração. Na
laboratório. Cúrio e Berílio configuraram a rede de computadores do parte final de montagem do animal-robô, puseram garras de titânio,
grupo de modo a evitar invasões de hackers. Agora tinham uma resistente à oxidação. Duas webcams substituíam os olhos e enviavam
Ethernet, ou seja, uma rede que não poderia ser acessada por pessoas imagens para o cérebro-processador que as interpretava em até 256
de fora da própria rede. Isso aumentou o grau de sigilo e segurança do cores e calculava tudo em 3D, assim o robô teria noção de espaço.
projeto. Decidiram também por não mais permitir a alunos e curiosos Uma tinta impermeável fora usada para pintar a pele de kevlar em
visitar o laboratório. preto e o gato ficou parecido com uma pantera. Nickel apresentou o
17. conteúdo a ser inserido na memória do animal. Havia informações várias línguas e o robô obedecia e respondia com movimentos e sons.
sobre movimentos, hábitos felinos e um banco de dados com O gato era capaz de identificar sons, imagens, pessoas e sua
informações lingüísticas. Foi incluído um sistema áudio-sensorial, que inteligência artificial lhe permitia calcular movimentos e ter vontade
permitia ao robô emitir sons e obedecer a comandos de voz. Havia própria. Podia, por exemplo, andar em duas ou quatro patas, arrastar-
ainda uma seção que agrupava todas as anotações que Cádmio havia se ou deitar, de acordo com a necessidade. Era também capaz de
feito baseado nas ações e reações do gatinho preto e de Olga. Tudo foi assimilar formas e tinha capacidade de análise do ambiente graças às
inserido num micro-disco rígido acoplado ao cérebro-processador. simulações geradas no cérebro-processador. O GENEthicat estava
Agora tinham um robô ágil, com inteligência autônoma e rápida, mas quase aprovado, o projeto funcionava perfeitamente. Tudo estava
faltava a fonte de energia. No projeto anterior haviam usado pilhas pronto e o teste final deveria ser com pessoas, afinal o gato é um
recarregáveis, mas a capacidade de sustentar a carga elétrica era animal doméstico. Resolveram testar a docilidade do animal deixando-
reduzida. Duas pequenas células fotoelétricas foram então instaladas o com Olga por uma semana, já que Mícron, o gatinho dela, havia
na parte superior da cabeça, atrás das orelhas. Este equipamento sumido. Queriam desenvolver as habilidades lúdicas e ativar uma
absorvia energia solar e assim abastecia o bichano por até 3 dias. Este possibilidade de tornar o bicho menos máquina e mais animal.
sistema contava também com um dispositivo de economia de energia Durante este período, Berílio e os outros pesquisadores observavam o
que utilizava um capacitor e baterias que armazenava a carga animal durante muitas horas e lançavam as notas num computador que
excedente produzida nas células fotoelétricas. Todo o corpo do robô gerava gráficos e calculava resultados. Isso tudo formava um arquivo
era revestido de material impermeável. que o grupo consultava para melhorar a performance do robô. A cada
A primeira experiência foi com uma bola de borracha, que o dia o gato, chamado de Genésio, tinha suas habilidades apuradas e
híbrido abraçava, corria atrás e fazia rolar. Depois colocaram o gato- surpreendia as pessoas com suas capacidades e suas ações. Genésio
robô numa cama elástica. Um computador emitia ordens sonoras em possuía agilidade e rapidez incomuns e a memória do bicho era
18. impressionante. Olga adorava brincar de jogos de memória com os amigos. A criatura híbrida era fria. Muito fria. A menina era
figuras coloridas com o gato, que sempre acertava onde estavam os inocente. Pegou o pescoço do animal-robô com as mãozinhas e tentou
pares. Já Cádmio o fazia descobrir uma bola de meia escondida dentro fazê-lo de boneca. Pôs um vestidinho no bichano e com uma tesoura
de um copo, que virado era embaralhado com outros quatro. O animal tentava cortar o rabo do bicho. O bichano não gostou. Pulou na mesa
era capaz de reconhecer textos de autores clássicos pela simples leitura de ferramentas e de lá se arremessou contra Olga com as unhas em
que Nickel fazia em voz alta. O gato confirmava o autor assentando-se riste. Eram unhas fortes, afiadas como navalha. Matou a filha de
no nome correspondente escrito no chão. Além disso o gato parecia ter Cádmio sufocando a menina e cravando as garras no pescoço dela.
gosto por autores específicos e, por exemplo, miava alto ao ouvir Ficou brincando com os cabelos de Olga como se fosse um novelo de
textos de Poe e Baudelaire. lã. A tecnologia havia criado tudo, mas Genésio, o gato que era
De acordo com autores cyberpunks, movimento cultural que perfeito, não tinha alma.
apresentou ao mundo a possibilidade dos andróides, os replicantes são
robôs feitos à semelhança do homem, graças à evolução das
descobertas na área da genética. Têm inteligência artificial
independente e são mais fortes e resistentes que os próprios criadores,
porém são frios e pragmáticos, incapazes de se deixar levar pelas
emoções. O problema é que alguns replicantes atingiam tal grau de
autonomia que se tornavam incontroláveis. Genésio era assim. Um
gato que não era gato. Um robô que era mais que um robô. Um
replicante. Por apenas alguns minutos Cádmio o deixou brincando
com Olga enquanto comemorava o sucesso do projeto inovador com
19. separam jamais. Por exemplo, eu garanto que nem todo Geraldo que
Investigação sobre nomes próprios no português brasileiro
você conhece é Magela, mas quase todo Magela é Geraldo. Carlos
Nos longínquos anos de antigamente, vovó e suas comadres Alberto, Roberto Carlos, Pedro Paulo, Lúcio Mauro e assim vai
costumavam batizar os filhos, com os nomes de santos contidos na indefinidamente.
Folhinha Mariana. A criança era nomeada de acordo com o nome do Existem ainda os nomes mistos: Mariângela, Analu, Luciana,
santo do dia. Daí vieram Cosme e Damião, Mateus e Marcos, Pedro e Anamaria, Claudianderson, Neivan. Mas o que o brasileiro gosta
Tiago (muito antes dos sertanejos) e surgiram verdadeiras pérolas mesmo é de misturar nomes importados com nomes mais comuns.
como as Ana Lúcias, os Antonio Sebastiões e a interminável série de Alguns anos atrás, um jornal de grande circulação publicou uma nota
combinações possíveis e impossíveis para Maria, os infinitos Josés na seção policial onde se lia: “João Michael foi morto a facadas na
(Disso e Daquilo), Joões e outros mais. Rocinha”. Mas ainda há os casos de Marylin de Souza, Antonio Roger,
Apenas considerando os nomes dos santos e a maluca Juan Florisvaldo, John Rodrigues, Lorraine Michele, Uochinton
criatividade matri-paterna, podemos apresentar vários nomes Almeida. Nota-se ainda que brasileiro tem também a mania de nomear
engraçados, feios, bonitos, ridículos, insignificantes, curtos, longos, filhos homenageando personagens famosos: Romário de Oliveira,
malucos, comuns. Mas podemos também selecionar alguns dados que Frank Benevides Sinatra, Tomas Jéferson Santos. Este ano constatei a
podem ajudar a compreender um pouco mais dos nomes de pessoas incrível aparição de um jogador do Guarani de Campinas por nome de
que conhecemos. Aposto que você conhece alguma Maria do Creedence Clearwater e de outro no Vitória da Bahia chamado Alan
Rosário, Maria do Perpétuo Socorro, Maria da Anunciação, Maria da Delon, tudo isso além de um Cannigia, sendo este meu vizinho.
Glória, Maria das Graças, Maria da Penha ou alguma maria assim Certa vez, num programa de rádio aqui mesmo da capital, foi
bem comum. Como era de se esperar, há também uma linha de nomes aberto um espaço para que os ouvintes falassem a respeito dos nomes
próprios que combinam com determinados sobrenomes e destes não se próprios, e apareceram uns mais esdrúxulos e engraçados que já soube.
20. Os ouvintes disseram conhecer gente por nomes estranhos como, por Charly desenvolveu esta teoria? Ah, e se você estiver curioso para
exemplo, Agesípolis, Vasco, Rudinan, Manfredso, Correlato, saber meu nome, também tenho um nome importante. Eu sou Uéris
Abrilina, Cheropita e até uma possível, mas inacreditável Urinícula. John, que vem do inglês.
Recentemente, um deputado apresentou um projeto de lei que
proíbe nome de pessoas em animais. Pobres crianças, que agora só
poderão chamar seus animais de Totó, Bilu ou Xerife, mesmo
adorando nomes como Sacha, Xuxa e Ronaldinho.
Conhecemos algumas pessoas com nomes diferentes, mas que
têm origem histórica assim como Athaíde, Austregésilo, Sócrates,
Dídimo. Conhecemos também pessoas que têm sobrenomes extensos
como Dom Pedro II, que tendo vários nomes, penso, nem ele próprio
era capaz de se lembrar. Para terminar vou falar a respeito da teoria
formulada por um amigo meu chamado Charly Darvin Oliveira :
“Toda a criança ao nascer deveria receber um apelido, ou na
pior das hipóteses um número e assim que ela chegasse a uma idade
em que pudesse responder por ela mesma, ela escolheria um nome de
acordo com sua própria vontade, afinal somos nós todos
desconhecidos como pessoas e conhecidos como números, vide CPF,
RG, cartão de crédito etc...”.
Para finalizar pergunto-me: por que será que meu amigo
21. dos escritos na parede do banheiro do bar permanece em sua mente.
James Choice
Amanhã morrerei e quero aliviar minha alma. Poe era mesmo
“Amanhã morrerei e quero aliviar minha alma(...)” Edgar Allan Poe1
instigante e obscuro.
Volta para a praça e segue em direção a um táxi parado. Decide
James caminha até a barca que atravessa o Mississipi e vai até
ir pra casa andando, mas o táxi parece atraí-lo. Caminha em direção ao
o outro lado. Desce da barca, caminha uns quinze metros, pensativo, e
carro sentindo como se fosse induzido a fazê-lo. Entra, cumprimenta o
entra à esquerda numa ruazinha estreita. Pela sétima vez naquela
motorista e pede que o leve ao mercado francês. Por instantes tem a
semana, vai ao pub inglês. Entra, vai ao balcão e pede uma dose de
impressão de que o taxista é seu conhecido. Após alguns minutos,
Everclear. Bebe vagarosamente, enquanto observa um inglês com
avista o French Quarter, desce do carro e caminha direto passando em
camisa do Red Devils e um americano magrela jogando dardos. Fica
frente a Funeral Vodoo onde uma bandinha toca Jazz. Trôpego,
no balcão por uns minutos ainda, depois entra no banheiro. Assenta-se
James vai até a estátua de mulher no fim do corredor e a beija, sem
no vaso, vê fotos de Diana e da Rainha coladas no teto e um poema de
saber porque faz isso. Sente o gosto frio de metal na boca, mas não se
Baudelaire colado atrás da porta. Jean ama Jane, Mary esteve aqui,
importa. Volta ao táxi. O motorista no lado esquerdo do carro tenta
Yankees campeões, fora Bush, são alguns dos muitos rabiscos bêbados
conversar. James se deixa levar pelo bate papo enquanto se esvai em
nas paredes. Decide ir embora e volta para a balsa. Passa por outro
pensamentos.
caminho, pela praça e entrando na Bourbon indo para a rua da casa de
Tudo estava acontecendo muito rápido. Casara-se no mês
Faukner, seu favorito. Olha para a casa do escritor em silêncio por
anterior em Salém e em seguida foi com a mulher passar o Mardi Gras
algum tempo. Tem a ligeira impressão de que está sendo seguido. Um
em New Orleans. Ficara bêbado, abandonara a mulher num quarto do
Marriot´s e fora se divertir com mulheres numa boate. Separam-se
depois de apenas sete dias de casados, fora passar a vida a limpo no
1
In O gato preto
22. maior cassino da cidade e, não se sabe se num lance de sorte, ou acaso, toda espécie de problemas. Nunca estudei, mas conheço como poucos
ganhara um milhão de dólares. Desde então, aquela era sua rotina nos a mente humana e suas fraquezas.
-Mas, você me parece familiar. Por acaso, é de Salém2,
últimos dois meses, beber e vagar pela cidade remoendo suas dores
pelos cabarés e shows baratos de jazz que sempre aconteciam pelas Massachussets?
ruas. - Minha casa é casa de muitos moradores. Moro no centro de
Solteiro repentinamente, James sofria de um mal terrível que tudo e posso dizer que sou como um rei louco de um reino perdido.
com a separação só piorou, não conseguia se decidir por nada e, agora Sem entender bem o que o taxista dizia e semibêbado, James ignora as
rico, corroia-se em dúvidas e não sabia o que fazer de seu próprio respostas e diz:
-Fiquei rico, mas sou um atolado em dúvidas. Minha vida é uma
futuro. Poderia sugerir uma reconciliação à mulher, ou ainda mudar-se
incerteza só. Quando criança, eu gostava de ler, porque sempre encontrava
para outro estado. Sempre fora assim, sem capacidade de decisão, e se
as respostas que precisava. Depois, na faculdade conheci Eve, e ela sempre
casara devido à pressão das famílias e da noiva. Na separação brigara
tomava as decisões por mim. Mas brigamos. Numa das minhas primeiras
com todos. Portanto, agora estava rico e sozinho.
decisões, fui ao cassino. Ganhei no jogo e perdi a mulher. Briguei com a
- É mesmo difícil essa decisão. Caminhos tortuosos se
família e estou perdido numa cidade que conheço. Queria dar um fim a tudo
apresentam e as decisões, essas, nunca saberemos se foram acertadas.
isso, mas não posso. Sou fraco e indeciso.
Agora que é rico, não deve voltar para sua mulher.
-As decisões dependem de você unicamente e para isso você recebeu
- Ei, como você sabe sobre mim? Pergunta James ao soturno uma dádiva, o livre arbítrio.
taxista que parecia saber ler pensamentos. -O que é o livre arbítrio quando não se sabe o que quer? Como posso
-Prazer te conhecer também, sou Lucianno. Nessa profissão
sempre se sabe mais que as pessoas pensam. Já carreguei pessoas de
todos os graus de conhecimento, de toda sorte de pensamento, com 2
Salém, nos arredores de Boston, é conhecida como a cidade das bruxas.
23. de beads4 se arrasta pelo corredor a dizer impropérios. Em New
viver se a cada momento tenho que fazer escolhas e tenho medo? Eve era
quem decidia por mim, além disso, deixo a vida ir acontecendo porque Orleans às 4 da manhã é assim, quem não está bêbado está indeciso.
acredito convictamente em destino.
-Destino, palavra doce como o mel, no entanto, dura como uma
pedra. Nem mesmo quem controla os desejos e sabe tomar decisões pode ter
certezas a respeito do destino. Veja meu caso. Eu era o filho preferido de
meu pai, o mais brilhante dos meus irmãos. Meu pai muito rico e rígido, não
aceitou minha desobediência. Foi errar uma vez e fui jogado no abismo.
Conto aos passageiros minha história e ouço seus problemas. Transporto
desejos que já foram meus. Levo pessoas e trago lembranças do passado que
decidiu meu destino. Mulheres são um perigo quando tomam decisões.
Através de uma o Mal entrou no mundo. Eve, nome oportuno.
Vagarosamente, pararam num semáforo na Jackson Square e havia
um grupo de pessoas num restaurante a comer Gambo3. James sentiu fome e
sem esperar respostas disparou perguntas ao estranho Lucianno:
-Então, já foi rico também? Fez a escolha errada? Por isso sofro,
sempre existe a possibilidade de estar cometendo um erro. Entre duas
opções, sempre pescoço cheio de beads. Uma mulher bêbada também cheia
3 4
Comida típica de New Orleans, cozido feito à base de camarão, vegetais, ervas e Colar de contas plásticas usado por turistas no carnaval (Mardi Gras) de New
pimenta. Orleans, na Louisiana, Estados Unidos.
24. Namoro virtual5 das imagens que criaram um do outro, do tempo e da nova
configuração política mundial depois da guerra, mas tudo soava muito
superficial. A verdade é que a conversa estava uma chatice. Nada a ver
“Se um cara chamado portões ficou rico vendendo janelas que vivem
com o Chat onde sempre tinham assunto.Olhavam-se envergonhados e
quebrando, acho que posso abrir minhas portas”6
ficaram horas compartilhando o suco invisível que acabara há muito
tempo. Até que ele sugeriu um programa diferente e ela aceitou.
Tudo aconteceu num cybercafé. Ela era teen e amava um chat.
Foram para o reservado, no nível de cima do bar. Haviam pcs
Ele era hacker e estudava sistemas. Marcaram um encontro na Café
conectados em cabines individuais e o som ambiente tocava “Nunca te
com Bytes, uma mistura de café, boate e ponto de encontro dos
vi sempre te amei” da Broadband, o novo mp3 que era um record nos
usuários de computador. Ela foi de micro-saia, laptop vermelho e
sites de download.
sapatos salto alto. Ele foi de walk-machine, óculos escuros, aro de
Ele se assentou de frente pra um pc compaqto, enquanto ela
tartaruga. Entrou, escaneou a área do bar e a localizou perto da
alisava os cabelos com um pentium de lítio. Ela ligou o laptop, ele já
máquina de refrigerante. Se reconheceram pelas fotos que exibiam na
estava on-line e conectaram-se. Virtualmente iniciaram o namoro
Internet. Cumprimentaram-se e ele viu que não precisava perguntar
teclando elogios, depois ele a convidou para visitá-lo em casa. Ela
como ela era. Instalaram-se numa giratória e pediram um suco natural.
tinha duas opções; não e ficar no bar e sim, continuar. Preferiu a
Tudo cooperava para o encontro e o ambiente era compatível. Falaram
segunda opção e foram para o endereço dele.
Era uma casa muito grande mobiliada com muitos arquivos e
5
Conto escolhido para a prova de redação da Universidade Estadual de Maringá, PR
algumas janelas sobrepostas, parecendo um office moderno. Na casa
em 2005.
havia um cômodo especial. Era uma área de trabalho pequena, mas
6
Brincadeira com o nome de Bill Gates e Windows; Gates = portões e Windows =
pintada em branco e azul tinha-se a impressão que era maior. Na sala
janelas.
25. ele ligou o DVD e colocou um disco no dispositivo. Era o filme “ICQ memórias uma sensação nada virtual. A ação sexual é realizada pela
– Episodio I seek you”. Assentaram-se num banco de dados que ali terceira vez, esta porém, numa webcama, que estava atrás de uma
havia e assistiam ao filme trocando carícias. Minutos depois ele disse pesada porta serial. Dormem.
que iria à despensa buscar algo para comer. Não achou o milho de Ele acorda preguiçosamente e num impulso analisa a cama à
pipoca, embora soubesse que havia armazenado mais que o suficiente. procura dela. Não encontra e rastreia o quarto. Ela se foi. Tomou
Optou por um chocolate em placas. Ela ainda estava sentada, mas não algum caminho que ele não sabia qual. Escapou de sua rede enquanto
parecia interessada no filme. Ele como que por efeito mágico tira do ele hibernava. Tudo que compartilharam estava no passado, mas não
bolso um anel de cristal liquido, que ela recebe estupefata enquanto seria esquecido como um papel na lixeira e nem ele queria deletar isso
come o chocolate. Beijaram-se contidamente, mas ele sabia que as da memória.Tinha perdido-a e teria que recuperá-la, mesmo sem saber
mulheres têm os mesmos códigos, apenas a combinação poderia ser qual foi seu erro. Ainda sonolento ele maquina uma forma de
diferente. Ela apertou a orelha dele e sussurrou algo sobre um local reconquistá-la. Talvez enviasse flores. Talvez a convidasse a ir ao
mais à vontade. Ele como em automático a arrastou para outro sitio, lá ele tinha uma torre onde poderiam simular Rapunzel. Talvez
compartimento com um wallpaper amarelinho claro. Era seu gabinete. se acendesse uma tela Jesus poderia salvar a relação. Adormeceu
Ele abriu uma pasta, tirou uma proteção antivírus e assoviou. novamente processando informações sobre como atraí-la.
Carregando-a, deitou-a na rede acoplada no cômodo e retirou o No mundo virtual é assim, após cada encontro é preciso
pesado boot que estava calçado. Amam-se virtualmente. No ápice da reiniciar.
conexão amorosa eles fazem leituras dos próprios pensamentos
através de um prolongado movimento de olho no olho. Amam-se
novamente e toda a interação é reiniciada. Todos os sentidos são
ativados pelo tato através das relações neurais. Isso traz às suas
26. medos eram ventos num milharal, sempre rápidos e passageiros. Eu
Nostalgia pueril ou fluxo e refluxo
me assustava e corria e corria e vencia. Meus inimigos eram
“Because I am a dreamer, and I dream my life again, again, again
continuamente derrotados. Sempre aparecia uma escada ou um
(...)”
precipício e eu caia e não me machucava. Nos meus sonhos havia
Ozzy Osborne
abismos e cavalos. Sempre sonhei com cavalos. Quantas vezes
sonhava, acordava, e o sonho continuava como um filme com
Quando eu era criança eu sonhava. E sonhava muito e meus
intervalo comercial! Meus sonhos eram como labirintos e davam
sonhos tinham personagens lendários e mágicos. Cenas tão reais que
voltas. Eram cíclicos, se na época eu soubesse o significado dessa
pareciam cenas vividas. Eu sonhava transcendental, mesmo sem saber
palavra. Meus sonhos eram tão imagéticos como a aquarela de
o que era isso. Sonhava natural, sonhava ficção e romance. Nos meus
Toquinho e Vinícius.
sonhos havia sempre uma ponte que caía e uma situação de perigo.
Quando criança, assim que aprendi a escrever, costumava
Havia também uma vontade louca de chegar a algum lugar
anotar meus sonhos num caderninho que se perdeu no tempo. Hoje,
desconhecido. Nos meus devaneios pueris eu voava sem ter asas e
ainda escrevo, mas não anoto o que sonhei, escrevo ilusão, crio
quando alguém me perseguia, eu corria sem sair do lugar e escapava.
fantasias. As que sonho, essas me fazem sofrer. Não tenho pretensão
Às vezes, eu ficava confuso com um rio ou uma torneira que aparecia
alguma de ser reconhecido pelo que escrevo ou sei, todavia sou
e eu fazia xixi na cama. Sonhava que estava num balanço muito alto,
assolado pelo que não sei. Sou um especialista em nada. Sei muito de
sem medo de cair, e o balançar era eterno, seguro. Sonhava com o
algo que é apenas um detalhe. O que escrevo nada tem de novo,
papai me levando pra tomar sorvetes e amanhecia com sede. Sonhava
escrevo sobre a angústia humana sobre o futuro, sobre o devir, sobre o
com a professora de matemática e amanhecia molhado.
há de ser. Muitas vezes eu tenho vontade de fazer coisas, mas, ou me
Nos meus sonhos eu tinha medo, no entanto era um medo
falta coragem, ou a profissão e a condição social me proíbem. Então
estimulante. Meus inimigos eram fortes, porém imaginários. Meus
27. escrevo e quando escrevo, sou um super herói. Enfrento o mundo. Sou vivo representando um papel que não é meu. Sou dirigido por um
invencível e, se este mundo não me basta, eu crio, sonho um outro. diretor maluco que me faz interpretar uma estória dentro da estória,
Mas a verdade é que quando sou real, tenho um medo que não é mais dentro da estória, dentro da estória. Sou um ator-fantoche e o enredo
estimulante, desafiador como noutros tempos. É um medo real. É da minha vida é um fractal. Para mim, sonhar é sofrer aos
Medo. Meu medo hoje é para além do aspecto onírico. É um dragão pedacinhos, fragmentando. Meu balançar ainda é eterno como nos
que consome meus dias a partir de cada manhã. Meu lado imaginário é sonhos de criança, mas agora tenho medo de cair. Tenho saudades dos
hoje tomado por um Bucefálo negro e ameaçador que pisoteia minhas meus sonhos infantis. Tenho lembranças das estórias ouvidas ao pé da
esperanças e meus desejos. Não acredito que sonho, entretanto, sinto cama que embalavam meu sono e desenhavam na minha memória
que sofro. Sofro de um mal chamado fluxo de consciência. Sonhar é desejos em forma de sonho. Meus sonhos hoje são pesadelos terríveis
sofrer dormindo, sofrer é sonhar acordado um sonho com um abismo como rabiscos malcriados e por isso, pelo menos mais uma vez,
real e amedrontador. Não há mais o Gato que elucida o caminho no gostaria de ouvir a mamãe dizendo:
labirinto que é meu pesadelo. Quem dá as cartas agora é um palhaço -Passe a mão na cabeça, menino, que assim você esquece o
com cara de ditador e que me assusta. Meus personagens da infância sonho.
são hoje meus vilões, cresceram comigo.
Quando era criança eu pensava que sonhar era viver uma outra
vida enquanto dormia. Hoje acredito que sonhar é como uma lei da
Física. Com ação e reação, fluxo e refluxo. O mundo real é o lado real.
O sonho é o lado avesso, upside down, e a loucura é um sonho vivido.
Sonhar é como viver em capítulos, uma estória que não tem fim e que
é contada por um narrador onipresente, onipotente. Nos meus sonhos,
28. formas e feitios e figueiras por toda parte. Havia também crianças que
Sobrevôo
jogavam futebol e amarelinha. Elas também eram pequenas, mas
A princípio pensou que estava perdido e se desesperou ao pareciam tristes. Muitas crianças corriam e não havia nenhum carro
imaginar a possibilidade de não se encontrar em meio ao nas ruas que eram muito limpas. Ele olhou mais uma vez para as
desconhecido, mas na situação em que estava não se importava nem casas e as crianças e reconheceu casas e amigos de infância. Amigos
um pouco com convenções geográficas ou mesmo com o futuro. De inocentes, casas todas novinhas e limpas.
fato ele começou a notar que o lugar era estranho, porém muito bonito Foi chegando a um lugar que dentre todos os outros ele
e agradável. Então ele ia se movimentando como se voasse e notou desconhecia. Era um atalho cheio de mato a beira da estrada ladeada
que embora não soubesse onde estava, passava por vários lugares ainda pelo rio. Era uma favela. Toda pintada em azul e amarelo e que
conhecidos. A paisagem era de uma beleza tão intensa e de uma tinha nos gatos* sombras de passarinho, pura ironia da natureza. Mas
riqueza tão táctil que sua mente lhe permitia sensações prazerosas ele nunca tinha visto uma favela. Aquela visão o perturbou porque viu
como se ele fosse ter orgasmos visuais. O lugar era muito arejado, casebres miseráveis habitados e viu pobreza e simplicidade conviver
soleado e verdejante com morros muito altos Todas as portas eram com harmonia. Os primeiros habitantes eram magros, pequenos e
azuis veludo e tinham uma maçaneta dourada. As casas eram alegres. Caminhavam e falavam numa língua que ele não conhecia,
pequeninas e estavam á beira-rio e nas pequenas pontes que podia ver, mas que, no entanto, compreendia. Á entrada do morro havia um
reconheceu imagens de animais tropicais esculpidos nos beirais. Uma portal e um grande monumento provavelmente feito de entulho no
cobra, um tamanduá ou mesmo um passarinho verde naturais. Um rio qual se destacava uma cobra com um nó próximo ao meio do corpo. O
muito colorido sibilava entre as casinhas e fazia voltas molhadas pela corpo era furado por objeto por ele desconhecido.
pequena cidade. O rio era furta-cor e era um riacho caudaloso, embora De um lado um muro cheio de pichações artisticamente
pequeno e silencioso. Ás margens do riacho havia árvores de várias coloridas e do outro uma escola amarela e com uma placa onde se lia:
29. “Escola da vila”. Nesse ponto ele pode descer ao solo e começou a se las. As portas azuis eram de longe negras e estavam todas fechadas. O
ater ás coisas que os moradores falavam, mas eles pareciam não vê-lo. que era verde parecia cinza e o rio corria em direção oposta.
Descobriu que aquelas pessoas eram favelados quanto à moradia,mas O morro, a favela, a encosta, a vila era outro mundo, outra realidade.
não quanto à atitude.Eram muito inteligentes e havia na escola um Era artisticamente construída por arquitetos e engenheiros sem
grupo de senhoras que eram encarregadas de guardar as memórias e diploma e analfabetos. Os carros, ah eles não tinham carros, tinham
estórias populares em livros. Descobriu ainda que o conhecimento do bicicletas, tinham rádio comunitária que levava e trazia noticias do
povo era muito evoluído. As pessoas velhas eram jovens e os jovens outro mundo. As crianças corriam peladas, porém vestidas de
eram conscientes. Falavam de política e de evolução das espécies entre felicidade. Subiu então aos ares e lá de cima viu o mundo, viu a cidade
as refeições e ele que nem mesmo sabia o que era fidelidade e a favela, viu o rio e o morro. Só então entendeu o que era até aquele
partidária... momento obscuro. O morro era um país diferente, uma outra
Caminhou por uma rua larga ao lado da escola e viu barracas e dimensão de felicidade.
vendas que vendiam doces, manguezada e dondó. As vendedoras
mascavam fumo e cuspiam no chão. Aquilo era para branquear os *Gato: nome dado ao emaranhado de fios que roubam
dentes. Notou que os pobres favelados não eram tristes e sempre eletricidade dos postes nas favelas.
estavam sorridentes e contando estórias.
Do alto da favela viu a parte da cidade que já tinha passado e
percebeu que era um lugar muito diferente se visto do morro. As casas
não eram tão pequenas e as árvores não eram tão bonitas mais. As
belezas que antes eram tão fascinantes agora eram encobertas pela
distância, as crianças que corriam não mais sorriam, não se podia vê-
30. comédias que outro dia impressionavam nas estantes, hoje cabem
Tecnostalgia ou notícias do mundo de lá
todos num disquinho de plástico. Plástico também não tem gosto. A
Belo Horizonte, 12 de abril de 2006
evolução é pertinente, o que incomoda é a impessoalidade. Não há
À alguém, à algum, ao século passado mais tantos saraus literários, criaram os blogs. Para que ler se a Rede
me dá tudo resumido? Enciclopédia para que? Como no sexo, só
“Caríssimos amigos os, fatos que vou narrar compreendem minha preciso de uma conexão. E a conexão também oferece prazer. Porque
rotina diária e a saudade que sinto dos anos dourados, da infância o apelo sexual agora é mais visual, voyer. Uma imagem vale mais que
alegre e do mundo menos tecnológico . “ mil carinhos. O telegrama agora pesa mais de uma tonelada, é mais
leve mandar um e-mail. Precisamos nos atualizar porque as janelas
“Assento-me numa cadeira de frente a um laptop e não há mais
foram lançadas em nova versão e esta não é mais compatível com
escrivaninha, caneta ou bloquinho de anotações. Esqueçam os cadernos de
serenatas! A reciclagem agora é também de conhecimento e o bit matou a
caligrafia, agora tenho um editor de textos que tem sempre a mesma letra,
letra cursiva. As teclas tomaram o lugar que sempre foi das canetas, do lápis.
porque a moda agora é ser virtual. Um mundo evoluído em que a
Tudo é digital, inclusive as digitais, livro, foto, diário, música e saudade.
inteligência biológica se confunde com a artificial, o proibido com o
Todo mundo tem um fotolog e posso fazer e selecionar os membros da
permitido, a ética com a estética. O mundo se rendeu à cibernética. O
minha própria comunidade. Até Da Vinci virou código. Entretanto, o
processo de criação se distanciou do Criador. Qualquer um pode ser
conhecimento é nulo se não há inspiração. Rendi-me e transformei a letra
dadaísta. É tudo um jogo de dados. A inspiração já não vem dos Céus, vem
em bit e à luz da literatura crio um hipertexto, não uso mais caneta e
do Acaso. As musas do Olimpo foram globalizadas e agora tem
papel. Não saberia dizer se as relações pessoais evoluíram ou
sobrenome ponto com. Temos sites, programas, plágio e dicionário
involuíram. O que sei é escrevi meu último texto num plano curvo de
eletrônico. As bibliotecas agora são virtuais, mas seus livros não têm
modelo variável dentro de um livro de luz! Encontro a solução táctil
cheiro. O bit é inodoro, insalubre. O Joyce e o Pessoa, as tragédias e as
31. quando digito uma palavra que já não é mais palavra, é comando.
Aperto teclas e mordo o lábio porque a caneta é inútil. Minha opinião nem
é tão importante porque minha pátria é minha Rede, e essa Rede é minha Flávio Martins da Silva, também conhecido como Nickel nasceu em
Língua. Meu cérebro agora é um periférico (hardware) ! Minha memória é João Monlevade e desde muito cedo escreve contos e poemas. Desde
fruto de uma compilação de dados extraídos de vários sites. Antes eu sabia 2003 é licenciado em Letras/ Inglês pela UFMG e publica seus contos
falar, hoje minha voz são meus dedos e minhas palavras são Words. Tenho
e poemas em sites literários do Brasil e Portugal. Desde 2000 é
convulsões e minha mente medula pelo lóbulo da minha orelha. Sou uma
professor de Língua Inglesa, trabalhando em várias escolas, dentre as
antena móvel acessível ao mundo digital. Download, upload. Envio, recebo.
quais o Centro de Extensão da Faculdade de Letras da UFMG, o
Se fujo disso, fico marginal. Minha letra é um signo, um símbolo
Centro Acadêmico de Ciências Sociais da FAFICH - UFMG e a
matemático. Lançaram mais um jogo, eletrônico, porque pôquer é
Prefeitura de Contagem.
coisa do passado, futebol com os amigos só se for online! Não moro
mais. Agora me hospedo em um provedor. Na minha antiga casa havia
uma sala que se cansou de estar, queria ser, e hoje é sala de bate papo.
Talvez esteja me tornando um homem-máquina alienado por um
Sistema que não aceita aquele menino do interior. Mas apesar disso
ainda sou capaz de chorar porque lágrima é água em estado
Impresso por conta própria. Se você quiser contactar o autor, não
sentimental (dígito não pode molhar). Se escrever ainda é arte, a
hesite:
minha escrita é uma oração pela volta ao paraíso.”
technomatics@gmail.com.
2007