Pequena contribuição à história dos jogos e brincadeiras
1.
2. Graças ao diário do médico Heroard, podemos
imaginar como era a vida de uma criança no inicio do
século XVII, como eram suas brincadeiras, e a que
etapas de seu desenvolvimento físico e mental cada
uma delas correspondia.
Embora essa criança fosse um Delfim de França, o
futuro Luis XIII, seu caso permanece típico, pois na
corte de Henrique IV as crianças reais, legitimas ou
bastardas, recebiam o mesmo tratamento que todas
as outras crianças nobres, não existindo ainda uma
diferença absoluta entre os palácios reais e os
castelos fidalgos.
3. Luis XIII nasceu a 27 de setembro de 1601. Seu médico
Heroard deixou-nos um registro minucioso de todos os
seus feitos e gestos.
Com um ano e cinco meses, Heroard registra que o
menino "toca violino e canta ao mesmo tempo". Antes, ele
se contentava com os brinquedos habituais dos
pequeninos, como o cavalo de pau, o cata- vento ou o
pião.
Com um ano e meio, porém, já lhe colocam um violino nas
mãos: o violino ainda não era um instrumento nobre, era a
rebeca que acompanhava as danças nas bodas e nas
festas das aldeias. De toda forma, percebe-se a
importância do canto e da música nessa época.
4. Com um ano e dez meses, somos informados de que o Delfim
"continua a tocar seu pequeno tambor, com todos os tipos de
toques": cada companhia tinha seu tambor e sua marcha
própria. Começam a lhe ensinar a falar: "Fazem-no pronunciar
as silabas separadamente, antes de dizer as palavras.
O menino tem apenas dois anos, e eis que, "levado ao gabinete
do Rei, dança ao som do violino todos os tipos de danças". Mais
uma vez observamos a precocidade da música e da dança na
educação dos meninos dessa época.
Na noite de Natal de 1604, aos três anos, o Delfim participa da
festa e das comemorações tradicionais. "Antes da ceia, ele viu a
acha de Natal ser acesa, e dançou e cantou pela chegada do
Natal." Ganha alguns presentes: uma bola e algumas
"quinquilharias italianas", entre as quais uma pomba mecânica,
brinquedos destinados tanto à Rainha quanto a ele.
5. Ele ia fazer quatro anos dentro de poucos dias e já sabia ao
menos o nome das cordas do alaúde, que era um instrumento
nobre: "Ele toca com a ponta dos dedos nos lábios dizendo: esta
é a baixa".
Nessa época, o Delfim começa a aprender a ler. Aos três anos e
cinco meses, "ele gosta de um livro com as figuras da Bíblia: sua
ama lhe nomeia as letras e ele as conhece todas".Ensinam-lhe a
seguir as quadras de Pibrac, regras de etiqueta e de moralidade
que as crianças tinham de aprender de cor.
A partir dos quatro anos, começa a aprender a escrever: seu
mestre é um clérigo da capela do castelo chamado Dumont. "Ele
mandou trazer sua escrivaninha para a sala de jantar, para
escrever sob a orientação de Dumont, e disse: - Estou
escrevendo meu exemplo e estou indo para a escola”.
6. Aos quatro anos e meio, "ele vestiu uma máscara, foi aos aposentos do Rei
para dançar um bale, e recusou-se a tirar a máscara, não querendo ser
reconhecido". Muitas vezes ele se fantasia de "camareira da Picardia", de
pastora ou de menina (ainda usava a túnica dos meninos). "Apos a ceia,
assistiu à dança ao som das canções de um certo Laforest", um soldado-
coreógrafo, também autor de farsas.
Cada vez mais, o Delfim se mistura com os adultos e assiste a seus
espetáculos. Ele tem cinco anos. "Foi levado ao pátio atrás do canil (em
Fontainebleau) para assistir a uma luta entre os bretões que trabalhavam
nas obras do Rei." "Foi levado ate o Rei no salão de baile para ver os cães
lutando com os ursos e o touro." "Foi ao pátio coberto do jogo da péla para
assistir a uma corrida de texugos." E, acima de tudo, ele participa dos
balés.
Aos seis anos, um escrevente profissional substitui o clérigo da capela:
"Ele escreveu seu exemplo. Beaugrand, o escrevente do Rei, mostrou-lhe
como escrever”. Joga o jogo dos ofícios e brinca de mímica, jogos de salão
que consistiam em adivinhar as profissões e as histórias que eram
representadas por mímica. Essas brincadeiras também eram brincadeiras
de adolescentes e de adultos.
7. As coisas mudam quando ele se aproxima de seu sétimo
aniversário: abandona o traje da infância e sua educação é
entregue então aos cuidados dos homens; ele deixa
"Mamangas", Mme de Montglas, e passa à
responsabilidade de M. de Soubise.
Tenta-se então fazê-lo abandonar os brinquedos da
primeira infância, essencialmente as brincadeiras de
bonecas: "Não deveis mais brincar com esses
brinquedinhos (os brinquedos alemães), nem brincar de
carreteiro: agora sois um menino grande, não sois mais
criança".
Ele começa a aprender a montar a cavalo, a atirar e a
caçar. Joga jogos de azar: "Ele participou de uma rifa e
ganhou uma turqueza".
8. Ele agora tem mais de nove anos: "Após a ceia, foi
aos aposentos da Rainha, brincou de cabra-cega e
fez com que a Rainha, as princesas e as damas
brincassem também".
Com um pouco mais de 13 anos, ainda brinca de
esconder. Um pouco mais de bonecas e de
brinquedos alemães antes dos sete anos, um pouco
mais de caça, cavalos, armas e talvez teatro após
essa idade: a mudança se faz insensivelmente nessa
longa sequência de divertimentos que a criança toma
emprestada dos adultos ou divide com eles.
9. Essa ambiguidade da boneca e da réplica persistiria durante a
Idade Média, por mais tempo ainda no campo: a boneca era
também o perigoso instrumento do feiticeiro e do bruxo.
No século XIX, o bibelô tornou-se um objeto de salão, de vitrina,
mas continuou a ser a redução de um objeto familiar: uma
cadeirinha, um movelzinho ou uma louça minúscula, que jamais
se destinaram às brincadeiras de crianças.
Nesse gosto pelo bibelô devemos reconhecer uma
sobrevivência burguesa da arte popular dos presépios italianos
ou das casas alemãs.
Ainda em 1747, Barbier escreve. "Inventaram-se em Paris uns
brinquedos chamados fantoches...
O teatro de marionetes parece ter sido uma outra manifestação
da mesma arte popular da ilusão em miniatura, que produziu as
quinquilharias alemãs e os presépios napolitanos.
10. Os meninos brincavam com as meninas. Dentro dos
limites da primeira infância, a discriminação moderna
entre meninas e meninos era menos nítida: ambos os
sexos usavam o mesmo traje, o mesmo vestido.
A infância tornava-se o repositório dos costumes
abandonados pelos adultos.
Por volta de 1600, a especialização das brincadeiras
atingia apenas a primeira infância, depois dos três ou
quatro anos, ela se atenuava e desaparecia.
Em geral eram jogos de cavalaria, como a caça, mas
havia também jogos populares.
11. A criança desempenhava aqui mais uma vez
um dos papéis essenciais previstos pela
tradição: as refeições de família.
Hoje em dia não temos mais idéia do lugar que
a música e a dança ocupavam na vida
quotidiana. As crianças praticavam a música
muito cedo.A mesma precocidade é observada
na prática da dança.
12. Qual era a atitude moral tradicional com
relação jogos, brincadeiras
e divertimentos, que ocupavam um lugar tão
importante nas sociedades antigas?
13. De um lado, os jogos eram todos admitidos
sem reservas nem discriminação pela grande
maioria. Por outro lado, e ao mesmo tempo,
uma minoria poderosa e cuIta de moralistas
rigorosos os condenava quase todos de forma
igualmente absoluta, e denunciava sua
imoralidade, sem admitir praticamente
nenhuma exceção.
A indiferença moral da maioria e a intolerância
de uma elite educadora coexistiram durante
muito tempo.
14. Ao longo dos séculos XVII e XVIII, porém,
estabeleceu-se um compromisso que anunciava a
atitude moderna com relação aos jogos,
fundamentalmente diferente da atitude antiga:
A utilidade social dos jogos de azar: cartas.
Os jogos esportivos são belos de se ver, mas mal
apropriados para se ganhar dinheiro:dados
Em benefício do cálculo e do esforço intelectual do
jogador:
dessa forma, certos jogos de cartas ou de xadrez.
Exercícios físicos não são tanto os jogos, e sim
todos os trabalhos manuais tarefas domésticas.
15. Daí as inúmeras cenas de crianças jogando
cartas, dados, gamão etc., que a arte
conservou até nossos dias.
16. O jogo sob todas as suas formas -
o esporte, o jogo de salão, o jogo
de azar - ocupava um lugar
importantíssimo, que se perdeu
em nossas sociedades técnicas,
mas que ainda hoje encontramos
nas sociedades primitivas ou
arcaicas : quadras de péla, as
salas de bilhar e as pistas de
boliche.
17. Os humanistas do Renascimento, em sua reação
antiescolástica, já haviam percebido as
possibilidades educativas dos jogos. Mas foram
os colégios jesuítas que impuseram pouco a
pouco às pessoas de bem e amantes da ordem
uma menos radical com relação aos jogos.
Assim disciplinados, os divertimentos
reconhecidos como bons foram admitidos e
recomendados, e considerados a partir de então
como meios de educação tão estimáveis quanto
os estudos.
18. Admitiu-se cada vez mais a necessidade dos
exercícios físicos.
No fim do século XVIII, os jogos de exercícios
receberam uma outra justificativa, desta vez patriótica:
eles preparavam os rapazes para a guerra.
Compreenderam-se então os benefícios que a
educação física podia trazer a instrução militar. Nessa
época, que assistiu ao nascimento dos nacionalismos
modernos, o treinamento do soldado tornou-se uma
técnica quase cientifica. Estabeleceu-se um
parentesco entre os jogos educativos dos jesuítas, a
ginástica dos médicos, o treinamento do soldado e as
necessidades do patriotismo.
19. No fim da Idade Média,os jogos de desafio
estavam em grande moda.
Esse tipo de brincadeira se originou nos costumes
da corte. Em seguida passou para a canção
popular e para as brincadeiras infantis. Mas os
adultos e os jovens que já haviam deixado a
infância não abandonavam inteiramente esses
jogos.
20. Uma estampa de Epinal do século XIX, representa
ainda esses mesmos jogos, mas se intitula "Jogos de
Outrora", o que indica que a moda começava a
abandoná-los e que eles se tornavam provincianos,
quando não infantis ou populares: a cabra-cega, o
jogo do assobio, a faca na bacia com água, o
esconde-esconde, o passarinho voa, o cavaleiro
gentil, o homem que não ri, o pote do amor, o
rabugento, a berlinda, o beijo embaixo do castiçal, o
berço do amor.
Alguns desses jogos se tornariam brincadeiras de
criança, enquanto outros conservariam o caráter
ambíguo e pouco inocente que outrora fizera com que
fossem condenados pelos moralistas.
21. Na primeira metade do século XVII. Sorel distingue as
brincadeiras de salão dos "jogos de exercício" e dos "jogos
de azar".
Os dois últimos são "comuns a todo tipo de pessoa, não
sendo menos praticados pelos criados do que pelos
senhores, são tão fáceis para as pessoas ignorantes e
grosseiras como para as pessoas cultas e sutis". Os jogos de
salão, ao contrário, são jogos de espírito e de conversação".
Em principio, "eles só podem agradar a pessoas de boa
condição, educadas na civilidade e na galanteria, capazes de
compor discursos e réplicas, cheias de julgamento e saber, e
não podem ser jogados por outros".Na realidade, porém,
nessa época, os jogos de salão também eram comuns às
crianças e ao povo, às "pessoas ignorantes e grosseiras".
.
22. No século XVII, havia uma distinção entre os jogos dos adultos e
dos fidalgos, e os jogos das crianças e dos vilões.
A distinção era antiga e remontava à Idade Média. Mas na Idade
Media, a partir do século XII, ela se aplicava apenas a certos jogos,
pouco numerosos e muito particulares: os jogos de cavalaria. Antes
disso, antes da constituição definitiva da idéia de nobreza, os jogos
eram comuns a todos, independentemente da condição social.
Partimos de um estado social em que os mesmos jogos e
brincadeiras eram comuns a todas as idades e a todas as classes.
O fenômeno que se deve sublinhar é o abandono desses jogos
pelos adultos das classes sociais superiores, e, simultaneamente,
sua sobrevivência entre o povo e as crianças dessas classes
dominantes.
É notável que a antiga comunidade dos jogos se tenha rompido ao
mesmo tempo entre as crianças e os adultos e entre o povo e a
burguesia. Essa coincidência nos permite entrever desde já uma
relação entre o sentimento da infância e o sentimento de classe.