Texto escrito por Santiago Cao para o catálogo da II edição do Festival MOLA (Mostra Osso LatinoAmericana) de Performances Urbanas, acontecido de 10 à 20 de maço de 2013 em Arraial D`Ajuda e Trancoso- Porto Seguro- Brasil.
Neste ensaio, Cao reflete sobre os conceitos de "relação" e "dominação", e daí se pergunta sobre as possibilidades da Performance como arte relacional.
1. D(en)ominar. (Des)cobrir. Esquecer.1
Santiago Cao2
Descobrir a Costa do Descobrimento ou (Des)cobrir-nos na Costa do Descobrimento?
«Descobrir», segundo a Real Academia Espanhola, é “destampar o que está tampado ou
coberto”, ou seja, tirar algo que cobre alguma coisa ou algum assunto. Assim denominada
esta ação, podemos nos perguntar sobre o que é aquilo que, estando sobre, impede que
vejamos o oculto. Serão as denominações - aquelas palavras tão úteis - as que colocamos
por cima das coisas para não vê-las? E o que são as denominações? Como se denominam
as coisas?
«Denominar» é uma palavra-verbo, mas «d(en)ominar» é uma ação. E se d(en)ominar é
dominar em, qual é o espaço en-tre a Palavra e a Ação?
Quando denomino uma coisa, por exemplo, uma cadeira, eu a domino em sua forma pre-conhecida
de “cadeira”, mas ao d(en)ominá-la também me d(en)omino. Se essa cadeira
está ali para que me sente, quem eu sou? Sou quem se senta na cadeira. Eu a domino e me
domino num jogo de papéis bem definidos. Não poderá ser - entre outras possibilidades -
alimento e, por isso, não serei eu quem vai comê-la. Ao menos não dentro dos modos e
1 Texto escrito para o catálogo da II edição do Festival MOLA (Mostra Osso LatinoAmericana) de
Performances Urbanas, acontecido de 10 à 20 de maço de 2013 em Arraial D`Ajuda e Trancoso- Porto
Seguro- Brasil.
2 Santiago Cao (Buenos Aires, Argentina, 1974) mora na atualidade em Salvador de Bahia, Brasil. É
Mestrando em “Processos Urbanos Contemporâneos” na Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da UFBA
(Universidade Federal da Bahia), Brasil. Possui Graduação em Artes Visuais pelo IUNA (Instituto
Universitário Nacional da Arte) de Buenos Aires, Argentina, onde também atuou do ano de 2008 ao ano de
2013 como professor da disciplina da Linguagem Visual. Cursou também o bacharelado em Psicologia e
possui experiência em poesia, teatro de rua e clown. Suas pesquisas se baseiam em torno dos Corpos nos
Espaços Públicos, dos micropoderes que neles se ativam, e alguns possíveis modos de gerar (trans)Versões
da Realidade através da Performance, as Intervenções Urbanas e de estudos filosóficos. Tem publicado em
Argentina e Brasil 4 ensaios sobre esta temática. Trabalha com especial interesse no campo das ações
duracionais, pois acredita na sua estruturação como um rito de passagem, capaz de transcender de um estado
de consciência a outro. Desde 2003, realiza ações performáticas e intervenções urbanas, as quais denomina
como Ações de (des)Velamento. Situações em que, usando seu corpo como suporte, procura assinalar um
aspecto da realidade, criando e gerando dúvidas sobre o consenso social, provocando o Espectador Sabi(d)o
a participar, tornando-o desta forma, em um Iterator. Tem realizado Palestras que chama de
(Con)Versatórios, e coordenado Oficinas-Laboratórios de Performances e Intervenções Urbanas na
Argentina, Bolívia, Brasil, Chile, Colômbia, Equador, Peru e Venezuela, utilizando-se destas ferramentas
como Práticas de (des)Velamento de Situações Cotidianas. Publicou na Argentina e no Brasil três ensaios
sobre o assunto. Participou em diversos Festivais Internacionais de Performance e Intervenção Urbana nos
mencionados países, assim como também realizou intervenções no fluxo urbano de forma independente e
autônoma desde 2003.
Mais informações, textos escritos e registros de ações:
www.facebook.com/cao.santiago
http://issuu.com/santiago_cao
http://es.scribd.com/santiago_cao
2. licenças consensualizados socialmente pelo conjunto de normas e códigos da sociedade na
qual me movimento. Mas basta que se realize um movimento qualitativo para modificar
sua potência e expandi-la para outros modos de (en-tre)vê-la. Se, por exemplo, tomo essa
cadeira e a sustento no alto de uma parede, mais alto do que posso chegar com meu
traseiro, se já não posso sentar-me nela, se esta “cadeira” já não cumpre sua função
anterior de servir de assento, que coisa é essa cadeira? E quem Sou eu frente a essa nova
coisa? Basta um movimento mínimo para liberá-la, e por isso, liberar-me dessa função
delimitada. Contudo, todo transbordamento é rápido e novamente reordenado, redefinido.
A função nominativa re(em)marca sob novas d(en)ominações reordenando e delimitando
os papéis e funções. Que coisa é aquilo no alto da parede que se assemelha a uma cadeira?
O contexto, ou seja, o texto-com, me dará uma resposta. E se estivermos em um contexto
artístico, digamos assim, essa coisa será objeto de minha contemplação. E quem serei eu?
Serei quem a contempla. E se o contexto ultrapassar o artístico?
Nesta segunda edição do MOLA, fui convidado a pensar, junto com Rose Boaretto e Bia
Medeiros, quais artistas poderíamos convidar para integrar esse Festival de Performance,
que teria como contexto o Espaço Público e um perfil marcadamente voltado à Arte
Relacional. Sendo assim, não podia deixar de levar em conta que cada pessoa que cruzasse
com alguma dessas Performances em seu caminho teria de d(en)ominar aquilo que, por
novo - desconhecido em seu cotidiano - o deslocaria, propondo-lhe uma oportunidade para
(re)pensar e (re)pensar-se em uma dinâmica que a maioria das vezes não passa dos saberes
prévios e suas respostas quase automáticas. D(en)ominações que tranquilizam. «Está
louco!», costuma-se escutar quando não há quem responda ante aquilo que lhes gera
perguntas. O que des-loca está louco. Ri-se. Busca-se o riso nos outros. Busca-se no
consenso dos Outros para assegurar-se que “esse” ou “essa” que está fazendo coisas
“estranhas” seja o louco ou a louca, e não quem “observa”.
Por isso, na hora de performar em espaços públicos, terei de saber que vou me deparar com
Ántropos com que tentarão d(en)ominar-me ao mesmo tempo que os des-loco e me des-loco.
E Ántropos é uma palavra que me interessa trazer aqui, nesse (con)texto; palavra que,
do grego ἄνθρωπος, significa Homem ou Humano. E dessa palavra deriva a Antropologia
ou ciência que estuda a realidade do homem de um ponto de vista holístico. Um ponto de
vista holístico e humano, claro. E é precisamente o que há nessa palavra o motivo de meu
interesse: (An)tropo. O Tropo é uma figura retórica que provém do grego τρέπω (trepō),
que significa mudar, alterar. E se o homem é o ser vivo que por excelência tem a
capacidade de nomear para então poder dominar, e ao mesmo tempo que nomeia, muda,
altera aquilo que era uma outra coisa antes que a palavra o domine, será o (An)tropo o ser
que tem em si a função de mudar e alterar para produzir Realidade? E serão os Performers
com suas intervenções aqueles que podem se tornar alvos das nominações para des-locar e
potencializar desse modo a liberdade de transformar(-nos) que tem todos os sujeitos em
tantos (An)tropos que somos?
Uma leitura acompanhou (pelo menos no meu caso e no de Bia Medeiros, já que foi ela
quem me propôs esta leitura) antes de e durante o MOLA. Trata-se da conferência
ministrada por Jacques Derrida em 15 e 16 de julho de 1997 e que depois de sua morte foi
3. compilada com o título “O animal que logo sou (a seguir)3”. E é a partir desse texto que
penso, ou melhor dizendo, (en-tre)penso e (en-tre)vejo os dias e as Performances
acontecidas naquele lugar. Especialmente por um acontecimento que não passou
despercebido para a grande maioria dos que compartilharam as experiências neste festival,
e que se deu no período de tempo que nos encontrávamos em Trancoso (um dos dois
povoados pelos quais o MOLA transitou), a grande maioria das Performances foram
realizadas nos e com os espaços naturais como o mar e o manguezal. Espaços que
pareciam possuir um grande poder de atração para os que performaram, deslocando o foco
de interesse no espaço urbano da vila. Essa situação nos gerou múltiplos questionamentos
em torno do conceito de Arte Relacional e contexto a intervir. O que acontece quando
aquele outro em que intervenho é um contexto natural? Quando a natureza com sua
potência me atravessa e minha Performance tem lugar lá, onde não há praticamente mais
(An)tropos que meus companheiros de festival observando e acompanhando o processo.
Posso falar de situação relacional quando me relaciono com uma árvore ou com o mar, isto
é, com um contexto natural? Aquilo pode relacionar-se comigo ou só eu me relaciono com
aquilo? E pensando no Animote4 proposto por Derrida como uma maneira de singularizar
ante a pluralização, a generalização que anula as diferenças próprias de cada animal, posso
dizer o manguezal, o mar, a praia, a montanha? Há uma essência do manguezal? Ou por
acaso esse manguezal não está conformado por múltiplas árvores, pássaros, formigas,
caranguejos etc.?
E, sobretudo, caranguejos, formigas, pássaros, árvores.
E, sobretudo, etc.
E por sobre todo etc.!
Ou seja, sobretudo, acima de tudo, como se vendo-o do alto, de onde não se veem as
diferenças, de onde tudo é uma só massa de manguezal, mar, praia, montanha. E por,
sobretudo, o Homem, o (An)tropo, que em sua distância com o outro só distingue de outros
(An)tropos como um Outro possível de relacionamento.
3 O título em português pega carona na versão brasileira do texto de Derrida: “O Animal que logo sou (a
seguir). Trad. de Fábio Landa. São Paulo: UNESP, 2002.” Em todas as demais passagens desse texto,
optamos por traduzir diretamente as citações da versão em espanhol trazidas pelo autor deste artigo e manter,
na medida do possível, os jogos de palavra típicos da linguagem derridiana, ainda que assumindo riscos de
perder as nuances semânticas, como no caso de “des-loco” e “loco”, que em espanhol remetem a lugar e a
louco, p. ex. (Nota do tradutor.)
4 Animote, entendido como o “plural de animais no singular: não há o Animal em singular geral, separado do
homem por um só limite indivisível. É preciso enfrentar o fato de que há alguns «seres vivos» cuja
pluralidade não se deixa reunir apenas na figura da animalidade simplesmente oposta à da humanidade.
Seria preciso, repito, levar-se em conta uma multiplicidade de limites e de estruturas heterogêneas: entre os
não-humanos, e separados dos não-humanos, há uma multiplicidade imensa de outros seres vivos que não se
deixam em nenhum caso homogeneizar, exceto por violência e desconhecimento interessado, na categoria do
que se denomina o animal ou a animalidade em geral. (…) O sufixo mot(e) em «animot(e)» deveria nos fazer
retrotragir à palavra, inclusive à palavra denominada nome. Abre-se à experiência referencial da coisa como
tal, como o que essa é em seu ser e, por conseguinte, a essa aposta por onde sempre se quis fazer passar o
limite, o único e indivisível limite que separaria o homem do animal, a saber, a palavra, a linguagem nominal
da palavra, a voz que nomeia e que nomeia a coisa enquanto tal, tal e como aparece em seu ser (momento
heideggeriano da demonstração que nos espera). O animal estaria em última instância privado da palavra,
dessa palavra que se denomina nome.” [Derrida, Jacques. El animal que luego estoy si(gui)endo. Ed. Trotta,
Madrid, 2008, p.65]
4. E, entretanto, há outras formas de (en-tre)ver esse relacionamento
“Na ontologia não há Um algo superior ao Ser: o Ser se diz de
tudo o que é, se diz de todo ente em um mesmo e único sentido.
Essa me parece a proposição ontológica chave. É o mundo da
imanência. Esse mundo da imanência ontológica é um mundo
essencialmente anti-hierárquico. (…)O Ser se diz em um único e
mesmo sentido que o da pedra, do homem, do louco, do razoável.”5
E se o (An)tropo é aquele que d(en)omina, que chega antes de chegar, poderíamos pensar
que se relaciona unicamente com a denominação por sobre a Coisa, ou seja, com a Coisa
d(en)ominada e não com a Coisa em Si. Portanto se sobrevoa o manguezal não vendo as
individualidades que nele convivem e que o constituem… poderíamos pensar que também
sobrevoa os Outros, nomeando-os, chegando neles antes de chegar. Então, se não me
relaciono com o Outro, mas com o Outro nomeado «Outro», pode aquilo relacionar-se
comigo ou só eu me relaciono com aquilo?
O que está aqui em jogo é o conceito mesmo de Relação e, por acréscimo, o conceito de
Arte Relacional. E, nesse jogo, en-tro mais com perguntas que com respostas. Perguntas
que só me levam a re-perguntar esperando comprender(-me) em algum ponto das tantas
maneiras possíveis de (en-tre)ver. Talvez não seja nem no início nem no final desse
questionamento, mas no en-tre onde se instale a Performance – enquanto arte relacional – a
gerar perguntas que permitam des-cobrir-nos para depois, rapidamente, esquecer e nos
esquecer no descoberto, evitando desse modo d(en)ominar-nos em uma ou outra verdade.
5 Deleuze, Giles. En medio de Spinoza (Clase IV del 21 de diciembre de 1980, “Ontología pura y filosofías
de lo Uno”). Ed. Cactus, Buenos Aires, pp.56 y 57.
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