O documento discute os desafios na pesquisa sobre mulheres consideradas "masculinizadas". A pesquisadora descreve como construiu o objeto de estudo se inspirando no "tipo ideal" de Max Weber, através da interação com as mulheres e da cultura local. Ela também debate o termo "mulher masculinizada", criticado por reforçar estereótipos. A pesquisadora analisa a recepção deste termo em diferentes contextos acadêmicos e militantes, concluindo que é importante desnaturalizar as noções de masculinidade e feminilidade.
“Não me acho masculinizada, mas sim arrojada”: Os desafios na pesquisa sobre mulheres masculinizadas
1. “Não me acho masculinizada, mas sim arrojada”: Os desafios na
pesquisa sobre mulheres masculinizadas
Suely Aldir Messeder UNEB-BA-BRASIL
RESUMO
A pesquisa sobre a vivência de mulheres masculinizadas enfrenta um desafio que tem a
ver diretamente com a própria configuração deste universo. Nesta comunicação
pretende-se descrever a construção deste universo, cujo procedimento metodológico
inspira-se no tipo ideal weberiano, ou seja, a composição das características que
constituem este universo de mulheres depende da interação entre o conhecimento da
cultura local e a vivência da pesquisadora com estas mulheres, bem como com a própria
aceitação destas mulheres como masculinizadas. No decorrer desta escrita, se por um
lado, deseja-se descrever as características destas interlocutoras, por outro lado, coteja-
se revelar as críticas positivas ou negativas que são tecidas em função do uso do termo
“masculinizada”, quer seja pela teoria de gênero, quer seja pela teoria queer, quer seja
pelo movimento social, quer seja por mulheres com as diversas práticas sexuais e/ou
identidades políticas.
Palavras chaves: masculinidade de mulher, antropologia e ato performativo
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2. “Não me acho masculinizada, mas sim arrojada”: Os desafios na
pesquisa sobre mulheres masculinizadas
Na ocasião da gravação do vídeo intitulado Fio das masculinidades em parceria com
Ministério Público da Bahia, tive oportunidade de ouvir de uma das garotas, a seguinte
frase: - Ele me reconheceu depois, ele não acreditava que era capaz de fazer esse
serviço, muito homem não faz...mas ele, meu chefe, chegou a mim e disse isso.
(Carmem, 29 anos). Esta frase foi revelada sob forte emoção, enquanto a entrevistada
desaguava-se em lágrimas diante das pessoas que estavam nos bastidores da filmagem.
Éramos em torno de cinco pessoas, além da câmera1.
Esta cena, auge daquela entrevista, reverbera como que sinalizando uma possível chave
para compreensão do universo escolhido para entabular o diálogo nesta investigação, de
forma bastante potente. Quer seja em sua relação na produção de uma subjetividade
subalternizada, quer seja em sua relação de uma subjetividade resistente. Muito mais do
que falar acerca de um sujeito jurídico, ou de um sujeito que se insurge para ser
inteligível na matriz da heterossexualidade compulsória, racializada e classista, estou
convencida que este é um terreno que dificilmente será reconstituído numa zona de
conforto para quem quer que seja o leitor/a deste texto.
Para adentrarmos nas masculinidades em corpos femininos tentarei articular
teoricamente as ideias desenvolvidas por Butler (2001), Connell (1995) e Halberstam
(2004) sobre ato performativo e masculinidades. Na seção seguinte reporto-me a três
situações, cuja interlocução tem a ver com os meus/minhas colegas de trabalho em
Congressos de Ciências Humanas, com as militantes que participaram da II
CONFERÊNCIA LGBT DA BAHIA e com as mulheres não militantes entrevistadas.
No decorrer deste texto estarei no cotejo das seguintes questões: Por que falar
masculinidades em mulheres incomoda tanto? Será que de fato reforça o preconceito?
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Este vídeo sobre a vivência das mulheres masculinizadas foi o ponto de partida para a parceria entre o
Ministério Público da Bahia- GEDEM e a Universidade do Estado da Bahia (UNEB). A parceria engloba os
dois projetos Masculinidades em corpos femininos e suas vivências: um estudo sobre os atos
performativos masculinos reproduzidos pelas mulheres nas cidades de Alagoinhas, Camaçari e Salvador,
e Masculinidade em corpos femininos: tecendo articulações entre pesquisa, extensão e políticas
públicas sobre e com estas mulheres, aprovados pelo Edital MCT/CNPq/SPM-PR/MDA nº 20/2010 -
Relações de Gênero, Mulheres e Feminismo / Edital nº 20/2010 e o Edital 021/2010 – Apoio à
Articulação Pesquisa e Extensão- FAPESB, respectivamente.
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3. Será que nós da antropologia sempre reforçamos ou criamos os estereótipos? Será que o
termo masculinidade deve ser exclusividade dos homens no sentido do órgão genital?
Será que falar em masculinidades em mulheres é um ataque às feminilidades.
1. A DISCIPLINA NO OLHAR – A RE-CONSTRUÇÃO DE GÊNERO VIA A
PERSPECTIVA DESCONSTRUCIONISTA
Para compreender como ocorre a construção desse universo de pesquisa, remontamos à
ideia weberiana de realidade social e de abstração desta realidade construída pelo
cientista social. Assim como Weber (1991), entendo o mundo social como um infinito
fluxo de eventos que se dão no tempo e no espaço. Em outras palavras, o mundo social
é uma realidade que escapa a qualquer descrição ou síntese exaustiva e ao final, permite
apenas relatos parciais e incompletos que são abstraídos da realidade de diferentes
modos.
Em nota de rodapé, no meu livro Ser ou não ser: uma questão para pegar a
masculinidade reporto-me as lições de Weber sobre a construção do tipo ideal para
construir os tipos ideais do “verdadeiro homem” e da “bicha”. Lá reflito claramente que
“o tipo ideal não é elaborado pelo pensamento puramente conceitual, mas antes criado,
modificado e aperfeiçoado através da análise empírica de problemas concretos,
contribuindo, por sua vez, para que essa análise tenha maior precisão” (pg.48,2009).
Como na ocasião, explico-me novamente, o tipo ideal não é meramente um tipo
descritivo, mas este último pode ser transformado no primeiro, através da abstração e da
combinação de determinados elementos. Desta forma, opero com a ideia do tipo ideal,
considerando a possibilidade de encarar as relações de gênero como ato performativo.
Então, para apreender a realidade que tem a ver com as masculinidades vividas em
corpos femininos, sigo a trilha de Butler sobre o conceito “La performatividad no es un
acto único, sino una repetición y un ritual que logra su efecto mediante su naturalización
en el contexto del cuerpo”. (2001, p. 15)
Desta forma encaramos que a naturalização não é uma lei antecipada que pode
conformar as categorias de homem/mulher, mas sim, que a lei da naturalização requer
3
4. um árduo trabalho de repetição e reprodução de manejo dos corpos e dos desejos. Desta
interpretação é preciso indagar, portanto, o que é ato performativo. Para ela, o ato
performativo é uma prática discursiva, no sentido que se trata de um ato lingüístico,
neste sentido sujeito a interpretação, com efeito, o ato performativo deve ser executado
como uma obra de teatro apresentado a um público, ou seja, na interação com outros,
segundo normas pré-estabelecidas. Daí indaga-se por que gênero é performativo?
Vejamos como nos contesta Butler:
Así, dentro del discurso heredado de la metafísica de la sustancia, el género
resulta ser preformativo, es decir, que constituye la identidad que se supone
que es. En este sentido, el género siempre es un hacer, aunque no un hacer
por parte de un sujeto que se pueda considerar preexistente a la acción.
(2000, p. 58)
Esses atos são, para Butler, performativos, pois “a essência ou a identidade que
pretendem expressar são fabricações manufaturadas e sustentadas por signos corpóreos
e outros meios discursivos” (194). Os atos performativos de gênero e sexualidade são
regulados por normas que estabelecem como homens e mulheres devem agir – o que
Butler identifica como heteronormatividade. Essas regras limitam as potencialidades
dos gêneros circunscrevendo-os a um binarismo castrador. Este binarismo produz a
ideia de dois corpos sexuados, cuja masculinidade, era imaginada como universal,
diferentemente da feminilidade. Almeida (2003) em seu livro Senhores de si: uma
interpretação antropológica da masculinidade chega à conclusão de que foram os
estudos desenvolvidos pela teoria feminista e a teoria gay e lésbica que efetivamente
levaram ao questionamento da masculinidade. O autor considera que o androcentrismo
da antropologia é meramente um reflexo de todas as estruturas, incluindo, portanto as
dos saberes, da sociedade que a produz. O autor se apropria dos estudos de Connell,
sublinhado que a masculinidade deve ser entendida numa estrutura de gênero, nunca
como um objeto natural.
No texto intitulado “Navegando em busca do giro na heterossexualidade compulsória:
A construção teórica-metodológica dos atos performativos masculinizados” descrevo
mais detalhadamente o conceito de masculinidade desenvolvida por Connell, e verifico
4
5. como o autor revela a existência das múltiplas masculinidades, e como estas podem
variar histórica e culturalmente. Para ele, os principais padrões de masculinidade que
imperam atualmente no ocidente, são: a hegemonia/dominação, a subordinação, a
cumplicidade e a marginalização/autorização.
Entretanto, o problema que passa despercebido por Connell é efetivamente denunciado
através da leitura de Butler, a teoria de gênero nos leva inevitavelmente ao contrato
heterossexual, no qual somente duas figuras o protagonizam: o homem e a mulher.
Neste sentido, a masculinidade vivenciada pelas mulheres não se encontram no
arcabouço teórico desenvolvido em Connell, daí reside a dificuldade de entender que a
masculinidade em corpos femininos é também um tipo de masculinidade, e não uma
masculinidade artificial, somente assim, compreendo que estamos radicalmente,
levando a sério a desnaturalização dos corpos sexuados.
Para dar início às reflexões que têm fortemente surgido com o conceito masculinidade
de mulher, vejamos o que nos diz Halberstam (2004):
"La masculinidad de MUJER" se me ocurrió como un término que estaba
implícito en muchos de los diversos debates sobre el género, la
performatividad de género, el constructivismo, etc, pero que nunca se
mencionaba como tal. Lo que en realidad quiero decir en mi libro es que a
pesar de que se está casi universalmente de acuerdo que el haber nacido
MUJER no produce automáticamente la femineidad ni el haber nacido varón
la masculinidad, parece que muy poca gente se está dando cuenta o está
pensando sobre los efectos materiales que conlleva el disociar el sexo del
género y esto ha sido particularmente obvio en la esfera de la masculinidad.
Al significar la femineidad en general el efecto del artificio, la esencia de la
"performatividad" (si se puede decir que lo performativo tiene esencia), nos
resultará más fácil entender que es transferible, móvil, fluida. Pero la
masculinidad tiene una relación totalmente diferente con la performance, lo
real y lo natural y parece que es mucho mas difícil fisgonear y desmontar lo
masculino y las características asociadas a los varones que lo femenino y las
características asociadas a las MUJERES.(pg.1)
5
6. Na interpretação dos dados que tem a ver diretamente com uso do termo, aprecio o
quanto, de fato, é significativo entender, desmontar, deslocar o masculino da lei
naturalização.
2. O DIÁLOGO ENTRE A TEORIA E OS ACHADOS EMPíRICOS
Nesta seção irei discorrer sobre três situações distintas no que diz respeito ao emprego
do termo mulher masculinizada, que tem sido criticado e também acolhido em espaços
diferenciados, quer seja no ambiente acadêmico, quer seja no ambiente da militância,
quer seja com as mulheres interlocutoras da pesquisa. As duas primeiras foram já
mencionadas no texto E PRECISA ISSO?! : Desconstruindo o fio das
masculinidades nas vivências de mulheres masculinizadas na infância, na Escola e
no Mundo do Trabalho. Aqui proponho uma discussão mais aprofundada sobre esta
tipificação. Vejamos como se desenrola o debate, as inquietações geradas pelo uso do
termo, tendo três interlocutores em posições estruturais distintas.
2.1 No contexto acadêmico
Em 2010, na RAM (Reunião de Antropologia do Mercosul) e no CONLAB ( Congresso
Luso Afro Brasileiro de Ciências Sociais - Diversidades e (Des)Igualdades) fui
interpelada pelos meus colegas insatisfeitos com o uso do termo. Na RAM, no texto
apresentado, fiz uma referência muito rápida de que o universo de pesquisa a ser
considerado englobava os microempresários homens e as microempresárias mulheres
masculinizadas. O foco de análise era a relação entre os microempresários e os seus
clientes e funcionários LGBT. Mas mesmo assim, a crítica tecida pelo coordenador do
Grupo de Trabalho centrou-se no uso termo mulher masculinizada. Para ele, o fato de
ter mencionado o termo sem maiores explicações promovia um estereótipo negativo
nestas mulheres, e reforçava a dicotomia.
No ano seguinte apresentava no CONLAB a discussão teórica sobre o corpo na
perspectiva da antropologia feminista e da teoria queer, bem como relatava a seleção do
universo destas mulheres. A polêmica mais acirrada nesta apresentação foi quando
6
7. anunciei como ocorria a seleção do universo de pesquisa, ou melhor, como se construía
o tipo ideal de mulher a ser investigada. Este tipo ideal de mulher masculinizada
decorria efetivamente a partir da minha percepção sobre mulher masculinizada, das
confusões do senso comum sobre o gênero da pessoa, das indicações feitas por
amigos/as e a rede de relações destas mulheres, bem como a própria aceitação da
mulher como masculinizada. Vejamos a cena descrita no GT que incitou um debate
caloroso:
Neste momento narro, como se deu um encontro, desenrolava-se na praia,
estava com grupo de amigos/as, quando avistei de longe uma mulher bastante
magra, em seu o rosto ressaltava uma sombra de bigode, suas roupas eram
soltas e folgadas no corpo. Ela caminhava em nossa direção, em seu corpo
atravessava uma faixa que sustentava um recipiente que se apoiava em suas
costas. Era uma vendedora de caldo de sururu. Todos que estavam comigo
duvidavam que fosse uma mulher. Segundos depois, iniciei uma conversa
com ela, apresentei-me como professora da Universidade do Estado da Bahia
e perguntei se podia entrevistá-la. Então marcamos o dia, mediante a troca de
telefones. (MESSEDER, S, 2011, diário de campo)
Para o antropólogo português que coordenava este GT, mulher com bigode não significa
necessariamente mulher masculinizada, uma vez que em Portugal podemos identificar
no lugarejo X, várias senhoras com bigode. Para ele significava também um descuido
por parte das destas mulheres. Para uma francesa que estava na plateia, em sua primeira
vinda à Bahia, acreditava que todas as mulheres baianas fossem “putas”, por conta de
suas roupas, e acrescentou que o trabalho exercido pelas mulheres poderia ser um
critério ou uma forma de masculinizá-las. Além disso, em tom acusatório afirmava que
esta investigação acentuava os estereótipos destas mulheres. Desta forma, relativizar é
necessário, mas ao mesmo tempo, no exercício de relativizar compreende-se que as
verdades são contextualizadas.
Segundo Halberstam (2001) o conceito masculinidade de mulher, não descreve uma
identidade, provavelmente descreve um espaço de identificação. A autora nos conta que
em seu livro retrata sobre as “marimachos, butch, mujeres heteosexuales masculinas,
safistas y tribades del siglo XIX, invertidas, trangénericas, stone butch y soft butch, drag
kings, cyber butch, atletas, mujeres com barba, y la lista no se para ahí” (pg.7)
7
8. As mulheres masculinizadas a serem selecionadas para participarem desta investigação
antes de cederem as suas entrevistas assinam o termo de consentimento, cujo título da
pesquisa já delata que elas vivenciam no seu cotidiano a masculinidade em seus corpos.
2.2 No contexto do Movimento Social LGBT
Na II Conferência de Políticas Públicas e Direitos Humanos de Lésbicas, Gays,
Bissexuais, Travestis e Transexuais (LGBT) no estado da Bahia, as mulheres não
aceitaram suas identificações como mulheres com estereótipos masculinos, elas
agenciaram para si uma identidade como mulheres masculinizadas. Entretanto, nesta
mesma conferência contaram-me que mulheres lésbicas identificadas com a
feminilidade desejavam a continuidade na escrita do estatuto, ou seja, mulheres com
estereótipos masculinos.
Este desacordo reporta-me a reflexão de Halberstam (2004) sobre como o termo
masculinidade de mulher representa três tipos de intervenção na teoria e na prática do
gênero. A primeira tem a ver com a polaridade feminilidade e masculinidade. Para ela, o
conceito de ato performativo pode ser menos útil para a masculinidade, uma vez que
esta com frequência se apresenta como o não performativo. A segunda intervenção tem
a ver com a ideia de que a masculinidade nos estudos culturais é compreendida como
um efeito social, cultural e político corporificada e com privilégios, neste caso reduz-se
a masculinidade hegemônica. A terceira, acredito ser a mais pertinente com a cena
ocorrida na Conferência, a autora tece comentários acerca de dois termos, mulheres
identificadas-com-varão e mulheres identificadas com mulheres.
Segundo, nos conta a autora, o feminismo dos anos 70, cunhou o termo para descrever
as condutas de mulheres heterossexuais que se identificam com e através do seu par
masculino e também com as lésbicas butch. Entretanto, nos diz Halberstam, o termo
serviu para castigar as mulheres lésbicas mais visíveis e fora do armário, desta forma, a
historia da masculinidade de mulher coincide ligeiramente com a historia do feminismo
lésbico, uma vez que a palavra lésbica foi utilizada para designar a de historia de
mulheres identificada com mulheres.
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9. No V SEMINÁRIO DO FÓRUM BAIANO LGBT tive oportunidade de perguntar
como duas mulheres masculinizadas sentiam-se em relação ao termo, como resposta
obtive a curiosidade de entender a pesquisa e o telefone de ambas para entrevistá-las.
2.3 No contexto da interlocução com mulheres masculinizadas não militantes
No diálogo com as mulheres tipificadas como mulheres masculinizadas, deparei-me
com duas situações. De um lado, nas entrevistas com as mulheres que fazem sexo com
outras mulheres percebi que não havia resistência, entraves, desconforto ao referir-me a
elas como mulheres masculinizadas. Inclusive elas foram incentivadas a falarem sobre
suas impressões sobre a pesquisadora, e daí pude reconhecer que também sou vista
como “bofe”, mas um bofe gay, porque uso vestido. Por outro lado, até o momento
presente, conversei apenas com duas mulheres reconhecidas como masculinizadas que
não possuem experiências sexuais com outras mulheres. Uma delas retrucou-me, com
um olhar questionador: - Não me sinto masculinizada, mas sim arrojada, e completa -
acho que o termo valoriza o masculino, será que uma mulher não pode ser mais forte? A
segunda revelou que não se preocupa com o termo: “uma vez que de fato eu me acho,
mas me visto como perua, eu sei da minha aparência mais forte, as pessoas até pensam
que sou lésbica”.
Nas citações das mulheres que não possuem práticas sexuais com outras mulheres duas
questões podem ser depreendidas. A primeira revela a preocupação com a possibilidade
de o termo mulher masculinizada ser uma essência que designa o macho como
proprietário de qualidades masculinas, ou seja, a ideia de que existem qualidades
masculinas intrínsecas ao macho. A segunda tem a ver com a coerência entre sexo,
gênero e desejo sexual.
Em relação às mulheres masculinizadas navego numa área bem fronteiriça com a
transexualidade. Recentemente li um texto publicado em 2001: “Transexualismo
masculino”, e nele a autora tece algumas comparações entre o masculino com o
feminino nos revelando o seguinte:
Em relação às mulheres transexuais existem algumas diferenças, como, por
exemplo: não existem mulheres travestis. Ou são ou não são transexuais.
Outra diferença é que as mulheres, transexuais ou não, têm sempre pequena
9
10. frequência de masturbações, de modo que é arriscado usar isto como um
indicador de que evitariam seus órgãos genitais. Impulso sexual: é muito
baixo nos transexuais, diferentemente dos travestis.
Das sete mulheres masculinizadas que fazem amor/sexo com outras mulheres
entrevistadas, apenas uma revelou o desejo de realizar a mastectomia, mas sem alterar a
genitália. Contrariando a afirmação acima, todas elas se vestem no “estilo masculino”:
Acho que eu assumi o meu estilo mesmo, porque eu gosto. É.. meio
masculinizada, né? Como se diz... Lembro quando eu tinha doze anos eu já
gostava de brincar com coisa de menino, roupa de menino, mas eu só fui
assumir mesmo, com uns dezessete anos (Amélia, 20 anos, branca, cursando
a faculdade)
Assim, desde infância 11 anos, 12 anos, eu sempre tive esse jeito
masculinizado, porém, não era lésbica, não me via assim como lésbica, era
julgada assim por colegas “ah mulher-homem” “machão” “não sei o quê”,
mas eu me inspirava no meu irmão. Era... lá em casa éramos 3, eu , Bárbara e
meu irmão. E eu achava a figura dele, o modo dele se vestir o modo dele
andar, o jeito dele, copiava. Nunca gostei de brincar de boneca... essas
coisinhas com menina, sempre joguei bola, fura-pé essas coisas de menino,
mas não era lésbica, não tinha inclinação para envolvimento com mulheres.
(Janaína, 42 anos, negra, ensino médio completo)
Nos depoimentos vimos que existe a afinidade com o ato performativo masculino, elas
não se enquadram com o percurso supostamente naturalizado do ato performativo
feminino repetido por mulheres. Além disso, ambas afirmam que o desejo por mulheres
ocorreu posteriormente. Nestas relações interpessoais amorosas, as mulheres
masculinizadas flexibilizam a sua forma de vestir, vejamos a fala de Janaína:
Ela falava de eu andar de tênis, de andar de bermuda, camisa de botão,
colocou no meu guarda-roupa batas e eu passei a amar, a andar de batas, eu
adoro, mas eu andava bem masculinizada e ela tinha vergonha de mim. Sofri
muito com esse relacionamento. Nós saíamos e ela fazia de conta que nós não
tínhamos nada. Nós nos dávamos muito bem em casa, eu e ela, mas na frente
dos amigos dela, ela tinha vergonha. Aí sempre ela falava mesmo
abertamente pra mim que não gostava do meu jeito, que ela jamais se
envolveria com um bofe, que no meio do grupo dela, ela preferia que a gente
não demonstrasse ter algum envolvimento. E aí eu me sentia... eu aceitava
porque gostava dela, mas me sentia super mal com as coisas que ela me dizia.
Eu mesmo, sempre tentava achar que ela tinha razão, que era muito feio, ela
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11. dizia que era feio, que mulher sapatão era feio, que mulher poderia gostar de
mulher, mas não precisava se vestir de homem, eu dizia pra ela que assim era
o meu jeito, eu me sentia bem, mas eu tentei mudar. Parei de usar um monte
de coisas, parei de usar camisa de botão, porque ela dizia: - Ah camisa de
botão é coisa de pastor evangélico! E passei constrangimento entre os amigos
dela porque às vezes em rodas de amigos eles diziam assim: “Ah você dizia
que não gostava de bofe? Agora está com um bofão”. Tinha uma amiga dela
que me chamava de “Roque Balboa” por causa do filme. Aí eu fiquei na
dúvida do meu jeito se eu mudava se não mudava depois que nós terminamos
nosso relacionamento eu me senti mais a vontade para voltar o que eu era, o
que eu sou na verdade.
Interessante neste depoimento é que o ato performativo masculino reproduzido pelas
mulheres masculinizadas sofre um processo de naturalização, elas sentem-se como
verdadeiros homens, são bofes. A feminilidade é sentida de forma estranha, ela é
tomada como artificial, como uma ficção se for repetida por elas. Muito embora,
possamos verificar neste universo de mulheres masculinizadas nuances de feminilidade,
que provoca desconforto no grupo de mulheres bofes:
As pessoas me empurraram pra essa condição de bofe, como eu te falei
anteriormente, meus colegas costumam dizer que eu sou aviadada, por um
detalhe ou outro por usar roupa curta, roupa. (Rosa, 43 anos, negra, ensino
médio completo)
CONSIDERAÇÕES FINAIS
O deslocamento provocado na discussão sobre masculinidades em corpos femininos
promete o desafio do cruzamento analítico entre os discursos hegemônicos e discursos
não hegemônicos, sobretudo, nos permite pensar quem são os nossos/as interlocutores,
quem são os/as produtores/as, ou melhor, quem são “aqueles” ou “aquelas” que estão
reproduzindo tais atos performativos, e, quem são aqueles/as que estão produzindo
conhecimento sobre tais atos. Por enquanto, mantenho o emprego do termo mulher
masculinizada, muito embora, seja consciente de que com o uso deste termo estou sendo
refém da tecnologia de gênero, ao tempo em que também tenho consciência de que a
masculinidade como ato performativo não possui um sexo biológico correspondente.
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12. Na seção “A disciplina no olhar” faz-se a alusão ao texto “O trabalho do antropólogo:
olhar, ouvir e escrever”. A intenção era ser transparente na constituição deste olhar que
precede ao mergulho no trabalho de campo, uma vez que nosso olhar está condicionado,
ora pela perspectiva essencialista, ora pela perspectiva construcionista, ambas
naturalizam a lei do gênero, ou seja, tomam como ponto de partida o sexo biológico.
Entendemos que a teoria social pré-estrutura o nosso olhar e sofistica a nossa
capacidade de observação.
Desta forma, busco entender os tipos de subjetivações construídas e depreendidas neste
diálogo com as mulheres tipificadas como masculinizadas a partir da perspectiva
desconstrucionista e não-essencialista. Busco verificar como a raça, o sexo, o gênero e a
classe são performados e se reproduzem socialmente como estruturas performativas,
estruturadas e estruturantes, ligadas à reprodução social desigual, como a produção do
social em contextos contingentes, cenários híbridos, históricos e abertos.
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