1. Chagas Das Almas
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Themístocles Silva Neto mqwertyuiopasdfghjklzxcvbn
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Dedicado a minha irmã Kitty,
uma pessoa por quem sinto
um orgullho especial nesta vida.
QNC, Silva, Themístocles ISBN Reg. 348.398 Livro 462 Fl. 58 - 08/08/2014.
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Prefácio
Num momento em que a obsessão pelo corpo perfeito, pela carreira de sucesso e pelo consumo do último lançamento – seja do smartphone ou do sapato – preenchem as redes sociais e nossos dias vazios, Themístocles Silva Neto rompe barreiras, revelando as feridas do tempo em que vivemos. Nessas crônicas, as chagas de nossas almas, tantas vezes disfarçadas ou ocultas, são denunciadas pelo escritor que, ora brincando com palavras, ora fazendo humor com sua própria dor, as expõe sem anestesia ou esperança de cura.
Nascido em Petrópolis, cidade imperial que se esforça por manter o brilho do tempo em que era cidade veraneio da antiga capital federal, o autor passeia por seus bairros antigos, ladeiras e escadas sem espaço para o colorido fantasioso. As Chagas Crônicas das Almas nos
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mostram que estamos todos em um mesmo barco, rumo a reviver mágoas não curadas, enfrentar a solidão e questionar nossa existência, muitas vezes distanciada do ponto de partida, quando tínhamos certezas que se perderam nos imprevistos da jornada.
Deixando qualquer hipocrisia de lado, partimos nesse voo de crônicas rápidas que nos ajudam a lembrar o que éramos e abrir os olhos para o que nos tornamos, enquanto percebemos na paisagem e no passageiro ao lado que, no que diz respeito a sonhos, frustrações e lembranças, o espaço-tempo faz pouca, ou talvez, nenhuma diferença.
Apertem os cintos, hora de decolar.
Adelia Di Buriasco.
(Professora e amiga)
Recomenda-se ler seguindo a sequencia.
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Sexo, Drogas e Rivotril
Andei me cuidando, parei até com o Rivotril! Depois de fracassar com a dieta da lua, voltei à dieta da rua. Italiano de queijo e presunto é massa! Junto, Coca-Cola, além de churros, tipo assim: sobremesa. Tirei férias mês passado e fui com a família para Holambra-SP. Conheci uma moça, Inês, num acidente. Tropecei numa tulipa, foi inesperadamente. Torci o tornozelo. Ao menos comia croissant de salame fino e sobre à mesa nada de chulos, doces vulgares do Cebolinha. Dia seguinte tive alta do hospital local e voltei no primeiro voo, que o anterior estava lotado. Ponte aérea São Paulo-Rio de Janeiro. Que medo! Prefiro buzum Castelo-Cascadura sem barrinha de cereais! De volta também à
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Niterói, engessado, retornava das férias ao Clube de Remo, de volta ao rink. Me pediram uma programação de eventos para o inverno, desanimado, comecei propondo um swing... Muito sexo! Perca o emprego, mas não perca uma parca rima! Claro que isso é mentira. Voltei à rotina de casa- pastelaria-trabalho-casa. O Falabela me ajudou a abandonar a TV Globo, a começar por sua Falafeia de abertura num programa churros sobre sexo e afros. Só pode gente tipo ele e Mala fala, se você disser isso, vai para a cadeia, vai entender! Desconfio que estou com LER. Causa? O controle remoto no eterno nada de bom para ver. Ler! Tentei sim retomar aos livros, desisti. Faz mais de um ano que não pratico, atrapalha para escrever. Me sinto cover sei lá de que ou quem. O que sei é que sinto isso, porém.
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“Ai porém!”, resolvi ouvir mais música e neste relato chato estou com o magnífico Paulinho da Viola nos ouvidos. Isso é a coisa que faz jus aos dias, aliás, sempre fora, parece. É tarde e já se foi o sábado. Vou deitar e, ao acordar, devoraremos dois frangos assados com a pele bem tostada, hum! É a tradição brasileira semanal da celebração do dia de ação de desgraças: Domingão do Faustão e depois do Mengão, que já tem a quarta especial após a novela. Tudo com bastante colesterol da sambiquira, - adoro! – “esta parte é minha!” Sambiquira é o nome popular da cloaca ou se preferirem, o anus da galinha. Perdão a grosseria. Melhor ir de Wikipédia: “Sambiquira é a porção terminal do corpo das aves no formato de um apêndice
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triangular, ela abriga uma...” Basta de hipocrisia, né? Isso tudo é cú!
Depois veio uma das canções chatas do Carlos Lira. Mas tudo bem que samba eu queria, menos indigesto que sambiquira. Arrotei a noz moscada por algumas horas. Entrava a segunda-feira e fui dormir. Puto, pois o meu Botafogo caiu para o Z4. No dia seguinte tinha labuta. De casa para o trabalho, recheando-o com massas assadas e fritas com queijo, carne e doce de leite. Tudo misturado, sabemos se vomitado. O colega Roney voltou de férias logo depois e pediu para assinar no meu gesso. Sobrava espaço, prova de que há alguma evolução na sociedade, ponta de esperança. É justo, só estava faltando ele, pensei. Deixei correr a Last.fm no computador e uma enorme coincidência! Terminando esta frase ouvi:
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“Naquela mesa está faltando ele e a saudade dele tá doendo em mim”, isso na voz marcante de Léo Batista, digo, Nelson Rodrigues, perdão, Gonçalves.
Acordei muito sensível no dia seguinte, sabe? Meu estomago também, repleto de ácidos, gazes e sons de bolhas desagradáveis como aqueles transcendentais que fazem fundo em sessões de Shiatsu. No almoço deste mais um dia, resolvi pegar leve com um pirezinho e salada de alfaces. Me senti indo para a lua novamente e quando terminei maldisse Armstrong e Collins. Esqueci o outro. Retornei à minha mesa de trabalho e botei para tocar “What a Wonderful World” e “Take a Look at Me Now” como que para me redimir deste atentado contra o orgulho de humilde nação norte-americana.
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Escureceu. Marquei o ponto e fui embora. A caminho doutro, uma barraca de churros, assombração! Hesitei, mas acabei comendo. Cheguei em casa e resolvi eu mesmo arrancar o gesso. Sobrou até para o forro! Dia seguinte chamei o pedreiro para remendar tudo. Ele que, aliás, faria melhor trabalho no meu pé. Descobri que enfaixaram e lambuzaram o lado errado e que tudo não passou de uma tola luxação. Liguei a TV. Na Band passava “O último tango em Paris”. Enjoado com a gordura poliinsaturada daquela iguaria fálica, quase regurgitei na cena da manteiga. Depois de um sal de fruta Eno, até lacrimejei. Fui dormir e sonhei que comia uma galinha com muita gula. Não era coincidência, pois acordei com uma baita dor nas costas e não fui trabalhar. Minha amada esposa me
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levou o prato do almoço na cama, dizendo: ”Querido, preparei um ensopadinho de sambiquira com batatas delicioso para você! ”Pela primeira vez comecei a repensar sobre meus conceitos céticos acerca da teoria da conspiração. Que tudo começou com FHC introduzindo o Frango à dieta da classe média brasileira de então. Me vi metido nas drogas, muitas drogas!
Na terça tudo normal. De volta ao Clube, estava feliz, sentimento de superação, meio isso. Olhei várias pessoas velejando no frescor da Bahia, de remos em punho, lindo. Tive uma sensação de ginecologista... Trabalhando onde os outros se divertem. Liguei o computador, a rádio Atena 1 tocava “ouro de tolo” do Raul e a vida seguiu em frente entre trilhas sonoras, enredos e auroras baixo-astrais. Coca,
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massa, churros, TV e vez por outra, uma sensaçãozinha de medo. De morrer? Ora, não! De viver! Me deu vontade de mandar tudo para puta que pariu, mas graças a deus, voltei com o Rivotril!
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Eclipse do amor
Infante, a impressão que tinha era de que alguém ou alguma coisa além da minha compreensão desligava um botão lá em cima e apagava o sol no cair da tarde. Como as chaves que me lembro de meu pai mexer na caixa de luz quando os fusíveis ainda eram de louça. Depois, mais atento, metido a filósofo grego, com atentas observações e interesse na matéria científica, desconfiava que a lua fosse o sol à meia luz, que ambos fossem o mesmo astro em estados diferentes, mas nada egoísta, só generosidade e exação, achava. De dia o sol fazia seu papel de trabalhador. No inverno era ameno para agasalhar os pobres descobertos de boas lãs e calorias de nozes a avelãs. No verão, severo aos operários,
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como o Seu Gumercindo que trabalhava lá em casa e suava em bicas, um amigão para sempre em trabalhos esforçados. Mas que isso era para o bem comum, como os diretores da escola se faziam enérgicos com a gente para educar e formar caráter, mais postulados... Este ainda discorria sobre o fato de que todas as noites, findo o expediente, o Astro Mor se transformava em Lua para usufruir do descanso e levar o lazer e o amor aos homens. Não pressupunha o gênero imposto pelos artigos definidos, posto que mal terminasse o abecedário. O conto de fadas celestiais fazia-me crer que ele se travestia de Pierrot, que me fascinavam nas matines de carnaval no Petrô, referindo-me ao clube da cidade neste depoimento galáctico retrô. Só que agora artista a levar a beleza e a leveza das
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existências românticas e sensíveis de alma como sentia o protótipo do meu ser, apesar de angústias esparsas de fragilidade no final das tardes, sujeitos a pancada de rua em meio aos moleques da irmandade até o alvorecer. Lua. Via suas manchas em forma de lágrimas no rosto redondo e reluzente na escuridão da abóboda circense. Ele. Fosse minguante ou nascente. Estas fases discretas pareciam a de uma meretriz que mostra apenas o decote ou as coxas, criando as melhores expectativas em seus ensaios lunáticos sensuais. Se cheias, luas nuas... Quanto às estrelas, colombinas, anãs, Anas e Marias, anos-luz, anos-lua de mim. Para mais de três. Convidadas para o magnífico espetáculo quando as nuvens negras, raios e trovões não tomavam a cena como vilões vindos de supersônicos aviões. Vruuum!
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Mas observando a chuva, seu poder de acalanto, com o tempo desconfiava que seus anunciadores não pudessem ser do mal, que eram como os cães da casa ao lado, lindos pastores que ladravam muito, mas não mordiam em seus mantos alemães malhados.
Esta alegoria combinava com o abajur que minha mãe deixava aceso no quarto para melhor segurança das minhas madrugadas de passarinho em repouso de azas a voar. Descansando de muita alegria até o despertar, com o relógio analógico em nosso ninho, que não havia nesta época os digitais, é claro e isso sim lógico. Agora sem Anas dos Lenos ou qualquer outra constelação do zodíaco, vinham sonhos animados e coloridos da imaginação juvenil, onde os pesadelos invariavelmente
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são vencidos por algum super-herói abstrato e tudo mais, e tudo bem, pois que nunca faltava o mocinho das ilusões do menino tolo. Criança passageira do trem da infância, profunda e com a cabeça sempre a mil por hora num vagão, noutras instancias de um infinito que desconhece distancias...
Um dia conheci um eclipse, entendi que dois astros formam um tipo de maré de sizígia, que é nada mais do que a soma da força gravitacional entre os astros envolvidos, quando as lágrimas oceânicas são as mais rasas, aprendera no ginásio com a saudosa tia Lígia e comovido. Embriagues nostálgica mental e orgânica de avejão em pus. Pus-me a rever... revival sim... e como vivo! E assim vou, coisa e tal...
O fato é que a esta altura estava ciente de que ambos, Sol e Lua, eram sujeitos
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distintos nas orações, que nem estas como súplicas, fossem com as vestes das mais coloridas, continuaria dando pano para manga com o sabor doce de uma rosa ou caiana. Remete-me e remendo com alvitres de Ana, que caía na minha na escola! Bela menina, mas nem sabia o que é dar bola! Só nas peladas, digo, no futebol na quadra. Ah! Mas aí me deram uma porrada no joelho. Até hoje não posso mais jogar. Como não ter ar triste? Bem, nem tudo pode ser considerado ideal... Voltemos ao espaço sideral.
Um dia, deitado na cama, antes da pestana emplacar, momento em que a cabeça se põe mais a pensar, quando não vi, já era candidato a rapaz, - tinha até buço - recomecei a viajar na velha cauda do cometa, na onda gulosa astronômica. De
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repente parei. Senti-me ridículo, pueril com a imagem deliciosa que interrompera lá atrás e, ainda que perdido em uma nebulosa deixei prosseguir o filme dando fim à órbita mental.
Na relatividade do tempo, será que um eclipse não passa de um encontro casual entre o Sol e a Lua, tão emocionalmente envolvidos? Encontro para um abraço fraterno e quente. Breve, sem espera e de sempre. Coisa singela, inocente... Fraternidade de um Deus limpo e todos uníssonos com o mundo. Abençoado e a abençoar, dignos de olimpo. Celebrando com louvor os sentidos e instintos. Dos homens ao milagre da vida em esplendor. Da graça dos céus, da terra e do mar... O todo conjugando o verbo amar... Este
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fenômeno raro de louvor... Eclipse de um Grande Amor!
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Menino Jesus
Aos 13 anos de sua era, num dia qualquer, Jesus fazia companhia a José em sua carpintaria:
― Filho, me passe a estopa.
― Sim, senhor. ― Respondeu o menino entregando-lhe a bucha.
― Já disse Jesus, me chame de pai! Falou José enquanto fazia a limpeza final de uma cruz de cedro.
― Desculpe pai, eu não sei o que acontece, mas vou me acostumar... Senhor, ou melhor, pai, quando é que o tio Batista vem nos visitar novamente?
― Não sei. Teu primo... Está bem, tio... É um andarilho, ninguém nunca sabe o seu paradeiro. Mas por que você quer saber?
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― É que eu gosto de conversar com ele.
― Este negócio de você ficar dando ouvidos as ideias desatinadas de João, não me agrada. Aquele vive nas nuvens!
― Nada pai. Aliás, ele diz que eu serei uma pessoa muito importante, sabia?
― É. Mas para isso, você tem que continuar frequentando a escola.
― Eu detesto ir à escola e não gosto do mestre Esaú.
― Já disse para não falar assim, você tem de respeitar seus professores.
― Mas ele só fala coisas horríveis sobre Javé, eu fico com medo. E outro dia disse que os homens ainda voarão e ele me colocou de castigo.
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― Você ainda é novo para compreender o Livro. Ah...! Prodígio, prodígio. ― fala baixo para si.
― Eu sou um garoto normal!
― Não, óbvio...! Bem... ― José se cala e balança a cabeça para os lados com reprovação condescendente.
― O que foi Sen... quer dizer, pai?
― Ah sim. Aquela história do menino que caiu dentro do rio semana passada.
― O meu amigo Judas? O que é que tem pai?
― Todo mundo anda falando que você o curou. Ouça filho, só Deus opera milagres, entendeu? E realmente como aquele corte estancou e cicatrizou em minutos é mais uma de suas providências.
― Eu sei. Eu sempre digo que aquilo foi obra do Pai, quer dizer, do Senhor...
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Deus. Eu apenas pulei na água para socorrê- lo e passei minha mão na ferida da sua testa para tirar a areia.
Esquecendo o assunto, José levantando a cruz, fala com esforço cansado:
― Ajude-me a levantar isto aqui.
― Nossa! Pai, como é pesado.
O silêncio toma conta da oficina e logo o menino o quebra com sua irresistível tagarelice:
― Pai, o Senhor, quer dizer, o papai nunca me falou como é uma crucificação.
― Esqueça isso filho!
― É para punir os bandidos não é?
― Sim, e também os hereges.
― Como aquele Sócrates, o homem da velha Grécia que o tio falou?
― Mais ou menos isso, aquele homem era perturbador da ordem estabelecida e foi
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condenado a tomar veneno, não havia crucificação naquela época.
― Sei... Será mesmo que ele era do mal? Veneno... Não dá tudo na mesma?― E é verdade que os condenados têm que carregar isso até o calvário?
― É.
― E depois?
― Hum meu filho... Está bem, então escute:
Depois eles são pregados vivos na cruz, ela é suspensa, afixada na terra, no cume do calvário e em meio a uma sangria desatada, o réu permanece lá até morrer!
O menino fica atônito, se arrepia e emenda:
― Deus me livre!
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Os Ursos
Casa nova é uma delícia! Para as crianças um universo a se explorar, enquanto os adultos posicionam móveis, desembalam caixas e arrumam as coisas. Mudança cansa, mas traz esperança. Parece que os velhos teréns são novos, os cheiros de mofo promovidos a jasmim e que das dificuldades de inquilino possam vir milagres, ilusões tolas sem fim, a cada casa par ou impar, que foram quase trinta! Porém, os baixinhos nem reconhecem isso, só um peso no ar vez por outra lhes alcança as preocupações das pessoas adultas fazendo sentir uma sensação ruim no peito, mas também que basta um peido que ladra ou uma coceirinha na cabeça de dois dias sem banho, que logo passa. Aí só alegria,
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nirvana... Eles só se preocupam em perscrutar os novos arredores onde os mistérios brincam de esconde-esconde. “Onde vai dar aquele buraco escuro da lareira? Será que sai direto em tele transporte para o país da Alice? Ou no porão escuro do Conde Drácula?” O vampiresco da Sessão Coruja que todo mundo evita que a gente veja tarde da noite. É, mas que sempre damos uma escapadinha masoquista para bisbilhotar tipo o “Moita”, de espreita e esguelha na lateral das portas entreabertas e rangedoras num imenso pé direito, - ao contrário do nosso despertar de um incerto dia.
O nome da nova rua, Avenida Barão do Rio Branco, se fosse Conde, tanto faz, seria tudo igual, meio obscuro... Contudo, o Rio parecia sugestivo... De águas lácteas! No
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fim, nada tão lúdico, apenas nobre e justo quando aprendemos na escola se tratar de homenagem, ruas afora no imenso Brasil, a um grande homem servidor de nossa diplomacia no passado. E o seu título familiar simplesmente contemplou a capital do Acre, oxalá minhas sandálias, bolas de futebol e bodoques!
A imensidão é subjetiva no espaço- tempo, tudo parece ser muito maior para as crianças, no caso eu e meu irmão no segundo andar daquela “mansão.” E foi assim que descobrimos um verdadeiro tesouro numa noite de lua cheia, apesar do clima mais propício a juntar os filmes adultos da TV em preto e branco com as lendas dos lobisomens! Mais um dia de estágio de rotina, um anoitecer antes de dormir, quando os carrinhos, o pegas-
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varetas e todas as ferramentas de trabalho, maravilhoso trabalho escravo de brincar, vão para seus respectivos compartimentos, graça a desgraça diária da mamãe certamente. Aténs de colocarmos a cabeça no travesseiro, debruçamo-nos na janela de nosso quarto cuja vista dava à esquerda para a moageira de trigo. Ela era escrava, pois que trabalhava dia e noite, sete dias por semana, denunciavam as luzes brancas internas e o som das máquinas. De repente, ao erguer a cabeça no ócio infantil, cutuco meu irmão e aceno com queixo.
Bem a nossa frente, resplandecidos pela luz do céu noturno a meio breu, abóboda em miríade estrelada, - ou apenas minha memória agora enluarada...? - Nos deparamos com dois ursos gigantes! Medidas de infante? Lembro-me bem da
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trilha que vinha suave do quarto ao lado, Panis e Circenses dos Mutantes. Para que se tenha uma ideia, os animais vinham do chão do primeiro andar do nosso quintal, até uns dez metros ou mais acima de nossas cabeças, que já estavam a alguns pés do segundo andar. Eles eram verdes. Não! Eram pretos... pretos? Nada! Ora, eram marrons, como não?! Dependia da intensidade da luz celeste e da luminosidade das nossas fantasias. Às vezes uma coisa, às vezes outra, não importa. Nunca saíam do lugar, apenas mexiam parte de suas cabeças e troncos fartos de pelos grossos que se estendiam por seus corpos troncudos, revezando os lados com misteriosa maestria, cujo regente parecia ser o vento frio do outono da serra como a executar a Sinfonia ao Luar. Uma valsa em compasso
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terno, ternaríssimo, sempre a nos espiar com zelo. Neste balanço a nos ninar com esmero, até pesarem nossas pálpebras. Pode-se dizer que passaram a ser parte diária do ritual, páreos em nossa mútua simpática e risonha contemplação entre comentários sem pé nem cabeça, afetos aos ursos. Assim fora por várias noites que se seguiram nos primeiros meses do lar que ainda cheirava a cera nova.
Adotamos em segredo os animalaços como nossos bichos de estimação, relegando a amada cadelinha Biriguda, que tinha as duas cores da imagem da TV. Tudo bem, ela era de todos da casa, e Kitty dava conta de muito amor como sempre.
Como casa nova à noite dá aquele friozinho na barriga até que a gente se acostume com seus barulhos e fantasmas
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próprios; e o papai leva um tempinho a nos garantir a confiança de super-herói que logo há de imperar deliciosamente; resolvemos tomar nossos ursos como nossos protetores e passamos as chamá-los carinhosamente de ursões. Eram dois irmãos, como nós, bem chegados, sempre lado-a-lado. Tivemos que assumir posse cada um de um. Eu, claro, que era mais novo, fiquei com o ursão menor, o da esquerda. Até tentei o outro... porra... com o Omar era perda de tempo... Moca na cabeça, essas coisas... me inclui fora dessa! O que importa é que eu amava meu ursão caçula, afinal, à minha imagem e semelhança. Cada um feliz com o seu. Como não era pudim de leite, tamanho não era documento, digo, motivo para se sair na porrada.
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Um dia, depois da escola, armando cabana no quintal, chegaram uns homens no portão perguntando pelo responsável. Informamos que mamãe foi à feira e papai foi trabalhar. É, isto mesmo, o desfecho desta história é tão bizarro, quanto certas canções de ninar!
― “Aí, nós somo da prefeitura” ― disse um “armário”, ladeado de uns caras não menos fortes, como o “Poderoso Thor”, que víamos com empolgação na TV caixotão. Ainda por trás, um baita caminhão.
Na casa dos sete a nove anos a gente sabia mais ou menos o que era prefeitura, mas não tínhamos muita simpatia não, porque o papai sempre falava coisas como: “Este salário da prefeitura é uma merda!”; “Assim eles vão cortar nossa água!” Eu
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pensei se seria necessário todo aquele aparato para tirar água de nossas torneiras ou prender o papai por ele falar mal da coisa... Ou algo mais legal, generosidade, trazendo seu pagamento na porta!Sei lá... Afinal, todo mundo se referia à instituição como algo importante. “O Senhor Prefeito!” Hoje é de dar gargalhadas!
O fato é que nosso irmão mais velho estava em casa. Ouviu o burburinho, foi até lá falar com os brutamontes e abriu o portão para eles. Queria eu ser mais prodígio e pedir um mandado, colocá-los para fora! Os brutamontes vieram para prender nossos bichos! Ele, nosso brother, saia da puberdade no auge de sua beleza e masculinidade. Preocupado com sua guitarra, sua esbelta cabeleira e a mulherada, não estava nem aí para mais
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nada, que dirá nossos ursões. Ordenou a execução com autoridade. Saca autoridade de adolescente, a galera fora e dois pentelhos? Lembro-me da gente fazendo juras de vingança com as narinas abertas: "Vamos arrebentar as cordas de sua maldita guitarra!" Como trama de alta conspiração infantil. Não me lembro se cumprimos a missão. Creio que o Omar sim, talvez até antes do evento, com motivo menos grave, faço pausa para rir...
Mas hoje percebo que ele fez o que podia fazer um adolescente, vítima da própria condição, nada mais do que algo de pouca consciência, ebulição de hormônios incandescentes, não julgo meu amado irmão mais velho, não carece de perdão.
Mas não dá para esquecer o que de suposta ordem de prisão, fora uma
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execução. Surpresa foi ver do outro lado do muro o vizinho entusiasmado. Se metendo, dava palpites técnicos de como fazer, o melhor ângulo para mover aqui e amarrar as cordas acolá. Baixinho narigudo filho da puta! Soubemos depois que foi ele quem denunciou nossos animais de estimação, entrando com papéis por escrito na repartição, acho que isso. Sob a alegação de que eles - imaginem se nossa ira não era justa por tal insulto – justo eles, nossos ursões, lhes roubavam o sol da manhã. Quando que nossos amigos protetores, heróis da noite, reis das florestas e jardins, crias da natureza, amigos das crianças, poderiam roubar alguma coisa de alguém? Principalmente o sol! E como o Astro Rei podia pertencer ao vizinho? Seria o Sol, sua luz, a exemplo da água, propriedade da
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prefeitura?Ah! Vinha cobrada junto na conta da tal Light?! Que porra é essa, Omar, meu irmão?!
Assistíamos pávidos o assassínio. Começou pelos multibraços à foiçadas. Suas vestes nobres verdes sangue azuis, como que caindo ao chão de saibro de chamar atenção aos urubus. Depois os machados em suas canelas de pau inertes que sangravam seiva cheirosa das linhagens mais briosas. Ambas começaram a desfalecer seus corpos num dia quente. Começamos a perceber a impotência de nossas indagações repletas de ingênuas dúvidas, súplicas em meio às lágrimas que tentavam se esconder nos cantos dos olhos presentes. Uma mistura de dor pelo ato literal de defloração, com a vergonha do rótulo de que é maricas chorar à toa. Um
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choque de espanto e comoção, tipo Malásia Airlines, aquele avião... De boa?
Percebo só agora o que só vi uma vez, cortar-se um bem pela raiz, nunca ouvira ou vira mais tal estupidez. Só agora... Que as pessoas investidas de uma autoridade estéril se fazem donas dos bens naturais que não passam de uma generosa concessão da mãe natureza. Seja nas praças e bosques públicos, seja nas propriedades particulares ou florestas virgens tropicais. E mais, arbustos de cativeiro, animais, ilhas, praias, campos, seus solos férteis e vistas deslumbrantes como que privatizando tudo ao seu bel poder. Mais filhos da puta!
Em menos de uma hora, as duas árvores estavam abatidas e totalmente mortas, bem assentadas no caminhão. Amarradas com a mesma fealdade qual
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galinhas que se trás da feira para o domingo um molho pardo. Eu, meu irmão e a Biriguda – ela, xereta que sempre fora – nós três, esticamos nossos pescoços miúdos com forçosa limitação, quietos e engasgados. Assistimos à partida do veículo suntuoso, dando adeus com as pequenas patas da imaginação, já que as outras amparavam nossos corpos nas grades do portão. Até que o carro sumiu de vista do outro lado da via, depois de virar a curva da ponte da Avenida Barão do Rio Branco... Agora nome sem qualquer importância.
A nossa cachorrinha fez fiu, fiu baixinho e depois correu pra dentro de casa se enroscando na cadeira verde onde o papai a chamava...
Por longo tempo, a casa nova se encolheu e a novidade se perdeu entre
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mentes. A não lua nascia mais em nossa janela, fossem as noites mais belas. Ou talvez simplesmente, de almas denegridas, começamos a perder a mácula dos imberbes e o brilho nos olhos para os dotes de natureza tão bela, aprendendo a lamber feridas como a nossa cadela.
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Nem aí...
Não estou nem aí, só lá...
Mas quem está? Se é que é para ser e estar.
Gastar sola não, sol há, vem a mim sem que eu vá.
Entretido comigo mesmo percebo as luzes sombrias dos pixels vindas da TV. Em nível inconsciente vejo que passa o jornal da noite anunciando aos berros as tragédias do dia de ontem e amanhã. Tudo em alta definição, isso, os atos que se auto definem sem qualquer vergonha de si mesmos. Países que invadem e tentam tomar uns aos outros, plebe e gleba, roubando o que eles têm de melhor e impondo seus ritmos de horror. Egos infecundos se exteriorizando
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ao máximo, clamando audiência, atenção, qual Narciso em seu espelho alagado. Enquanto isso, sem dar a menor importância, nem às vitimas, tento o contrário, me interiorizar, sair do ar. Sendo absorvido pelo branco leitoso da tela que poupa árvores, trocando silício por celulose e, oxalá, com toda impessoalidade do hi- tec, nem tudo está perdido. Inspiro-me em Keith Jarrett em seu “My song”, onde sai de “si” e flutua sobre o piano fundindo- se a um estado de espírito elevado, produzindo acordes que se alternam entre o alto e baixo tom em melodia onde percebo não haver mais um “eu” nem um referencial. Ele parece ser o criador e a criação. Já vi minha irmã assim no palco, como se não fosse mais minha parente tão próxima, mas um ser de luz maior que isso.
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Capto nas entranhas também o suor profícuo do David Gilmour solando em sua guitarra em tons rosa-floyd. Tudo que me vem e não é pouco, coloca o panorama beligerante em estado ainda mais insignificante, já que na realidade deles, promovem tanta dor a terceiros inocentes, ou neste reality show talvez não haja simplórios, mas só culpados pela maldição de serem o que são. São? Só um artista em sua ilusão de cosmo pensado, passivo de luzes cintilantes que me recocheteiam em seus aspectos e me fazem senti-las em reflexo. Não há mais futuro ou passado. Ouço "umas e outras" do Chico de Holanda... Vem-me uma vaga cauda passageira como de um cometa raro, Halley de raciocínio, interferência daquele mundo externo, tamanha minha perplexidade
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diante de uma idealização e concepção genial. Ele é de um grupo onde o degrau do talento se sobe em paços mais largos. Por extensão vejo a música de minha terra de referencia no orbe da praticidade de sua dialética física e cronológica, como um berço esplendido e infinito de ideias e arranjos em acordes desbundantes. Eu treino, me esmero e chego a ter lampejos no meu escrever. Não me vejo perto do estado dos supracitados, nem do Matthew McConaughey, óbvio... Sou aprendiz de feiticeiro, que espera um dia se encantar com o repleto de tudo um pouco, bastando produzir um suspiro, já me contentaria um tanto. Esta poção de que se apoderam os ricos de verdade, independentes das cifras que sabem e fazem por merecer ou não, mero detalhe. Eles em seus gozos múltiplos
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espasmódicos levam conforto e apazíguo aos entes sensíveis entre pátrias. Tornam-se seletos seres humanos de ressalva que justificam a existência e permanência do nosso bicho cambiante neste mundo de até então. Portanto, sou fã e viciado da boa arte que nunca me é bastante. Para aquele resto, estou nem aí, me alieno como um ignorante... e daí?
Onde estou? Não sei onde, viajando de carro, jatinho ou de bonde. Sei que ouço Shine on the crazy diamond...
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Aquele abraço
Na volta da escola, tempo único em que reinava o auge da minha vitalidade criativa e emocional, era almoçar e depois ir pra rua. A rua é um cenário em preto e banco, tem uma dimensão de lembranças e fantasias de paisagens e personagens esparsas: a família, os amigos, aquele bêbado emblemático, os comerciantes e, em cor, apenas o bouganville no topo da praça, onde tudo girava em torno de seu encanto. Ainda tenho nos ouvidos a trilha sonora que vinha da minha casa, defronte: Genesis, Pink Floyd, Chico de Holanda e tanta coisa boa de um mundo progressivo que meus irmãos tocavam, fazendo sonoplastia da minha vida às alturas. A gente só dava alguns passos de volta da praça até em casa
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quando a mamãe gritava da janela: ― Criança, vem lanchar! ― Engolíamos uma xícara de café com leite e pão com manteiga, já com os pés apontados pra porta, prontos para retornar a praça e seus arredores.
Foi numa dessas cercanias, a escadaria da fábrica velha, que eu fiz um novo amigo, uma amiga desta vez, uma menina. Começou de uma brincadeira qualquer, mas no passar dos dias passei a dividir o futebol e o trole por ficar ali com ela, muitas vezes rodeado de crianças menores, suas primas, batendo papo até começar a escurecer. Era interessante, a gente tinha uma empatia por certa maturidade maior do que o normal para a nossa idade. Conversávamos sobre problemas pessoais, sobre nossas famílias, tantas dificuldades financeiras. E outras
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preocupações entre as bobagens e brincadeiras que culminavam na despedida com o seu tradicional: ― “Tchauzinho viu.” ― Balançando para cima e para baixo os três dedinhos centrais da sua destra mãozinha fina, branquinha e delicada. Eu achava um barato.
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Lembrei-me de tudo isto e relato porque estou muito chateado, triste mesmo, pela perda do Filó, seu irmão que faleceu há quase um mês. Ele regulava com meus irmãos mais velhos que faziam programas mais adultos, mas que também habitavam o mesmo palco, a praça. Inteligente, sensato, boa pinta, me impressionava como espécie de ídolo. Me bateu pesado hoje. A vida foi perversa com ele dando-lhe de presente, na casa dos 40, uma esclerose múltipla que
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mutilou sua rotina, tirou-lhe trabalho, mulher, lazer e entrevou-o por mais de dez anos. Vida filha da mãe!
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De vez em quando ela me avisava que seu namorado vinha da Fazenda Inglesa, bairro perto, subindo em direção ao Moinho Preto. Na primeira vez, achei natural, na segunda me incomodei bastante, até que na terceira ela disse: ― Vou terminar com o Roberto. ― Eu conheci o garoto, achava ele bacana. Então, ainda que fosse a minha iniciação também na hipocrisia, aconselhei- a a repensar. Mas ela não me ouviu, assim estava claro que nossa empatia tinha transbordado em alguma coisa maior.
Passados quase um mês, ainda como grandes amigos contidos, estávamos a dois
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dias do carnaval. O Petropolitano era o clube que a classe alta e os esmerados da média, como nós, frequentavam na época e que tinha os melhores bailes da cidade. Na sexta-feira combinamos nos encontrar na matinê do dia seguinte, sábado, baile de abertura. Só me lembro de que o tempo parecia não passar e àquelas alturas estava em tamanho estado de ansiedade que mal consegui dormir, como numa sexta-feira treze.
Sempre fora na maioria dos anos, meu primo Fred e eu chegamos ao baile levados por minha amada tia Téia, que também se foi há pouco. Entramos na matinê, numa tarde de viúva ou espanhol, tanto faz, que cheirava a ozônio e lança perfume num delírio onde o aroma era de fazer lisonja à própria natureza. Ao primeiro pé portão
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adentro, minhas pupilas já giravam em todos os graus, como se tivesse maluco ou com um baita cisco nos olhos. Entramos no primeiro salão e ao som da “cabeleira do Zezé”, empinei o nariz e rodopiei nas pontas dos pés sobre as cabeças do Batman, do Homem Aranha, de odaliscas e fantasmas, mas nada de avistar minha fantasia preferida, como um Pierrot em busca de sua Colombina. A tia nos levou para comer um salsichão. A gente tinha que esperar um ano para comer aquilo que tinha um sabor estratosférico. Porém, confesso, de tanto girar a cabeça no bar de fora, nem apreciei a coisa direito. Depois fomos para o segundo salão, desta vez tocava daqueles sambas enredo que não se produzem mais. “E os jagunços lutaram até o final”, que não seria eu quem desistiria de vencer minha
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causa em pleno carnaval. Nem por isso o salão do meio me conteve em partir logo para o terceiro, o da piscina, que a essa altura, do tempo e do som, não me lembro de mais nada se não de uma sensação de profunda tristeza e frustração. Minha tia e meu primo, para evitar o tumulto da saída, me chamaram para ir embora e eu disse que iria de ônibus. Aí já eram quase seis e meia da tarde e até as sete eu fiquei rodando em circulo, revezando entre o pátio e os três salões, como um zumbi, até que ouvi o “ai, ai, ai, ai, tá chegando a hora” e tive que acompanhar a multidão junto à orquestra que tradicionalmente fechava o baile tocando e caminhando para a rua até esvaziar o clube e encerrar a matinê. Eles tinham que limpar toda aquela sujeira de confetes e serpentinas para o badalado baile
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noturno dos adultos, O Baile de Máscaras, que nos despertava a maior curiosidade.
Já na rua, bem abatido, peguei à direita em direção ao ponto de ônibus, de repente senti baterem no meu ombro por trás. Olhei numa direção e não reconheci ninguém, virei sentido oposto com tranco de fazer jus a um baita torcicolo e, para minha surpresa, ali estava ela. Como eu, com os olhos espantados e a boca a falar de pronto:
― Putzzz! Onde você estava? Passei o baile todo te procurando! ― Levava na voz um tom hesitante entre alegria e irritação. E eu com vibrato não menos prejudicado, rebati: ― Meu Deus, eu também!
E quase que por instinto, demos um abraço...
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Aquele abraço... Ah! O abraço do primeiro amor, de nada combinado, não contaminado, sem interferência das sujeiras adultas. Abraço amaciado, de súplica, de afago em pleuras impossíveis de qualquer ausculta. Abraço inquieto e rotundo, maior que o mundo. De quase santas volúpias, como os das núpcias. Nunca vou me esquecer daquele abraço, o melhor abraço, que apesar de nem tão forte, de bem tão simples, tão generoso aos nossos braços. Emanante de um calor humano que, se de ínfimos segundos, parecera de um ano. O que restara de foliões em nossa volta, pareciam inertes e sublimes feito estátua de carrara. Como se reinasse a tão ingênua e tola paz sonhada e todo o mundo fosse feito de homens felizes, tamanha alegria e
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harmonia sobejavam nossas almas aprendizes.
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Depois rachamos um táxi e seguimos de braços dados, entregues, eco do abraço, fomos para casa. Até então só isso, ou melhor, tudo isso. Depois de volta à vida, sua rotina, de volta à praça, a escadaria da fábrica velha, seus arredores. Que continuou sendo cenário, porém de paixão e amor agora selado, ensaiando e encenando o primeiro beijo, dos mal aos bem beijados. Das saladas mistas com marmelada, dos casamentos na igrejinha com a ajuda dos amigos e dos primos, por eles celebrados e abençoados, no meio do mato lá em cima do morro, que quase tocava o veludo azul das tardes de outono. No meio, tantas risadas e criancices num tempo sem
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perigos, drogas e maldades, onde podíamos ficar na rua com a anuência de nossos pais, amáveis donos, até tarde demais. Tudo era motivo dela largar bonecas e cabanas e eu a bola e o bodoque, numa fase em que os hormônios vêm a galope. Nos escondíamos em cantos proibidos para nos amassar e molhar em gemidos, nada daquilo, só beijos, mãos e todos os sentidos se descobrindo em cantos baldios, escadas escuras e degraus levando nossos corpos aos quarenta graus. Sim, teve o primeiro baile à noite. Ah, ela naquele vestido num tom de fazer lisonja ao que fiz de tecido, aquele de outono. E o cineminha na cidade? "E o vento levou", me lembro do filme. Do nome só, é claro. Ah, não trocaria nada disso por uma viagem para fora, como hoje sonham os entrevados na TV e
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computadores por um voo para ver o Mickey. Enfim, quase um ano assim de intenso, em estado de praça. Até que, por fim, veio uma banalidade, o amor se contaminou e para um lado foi-se a minha menina e para outro o menino meu. Ela dos meus olhos e eu dos seus. E como tudo na infância e tudo na vida, nosso sonho se arrefeceu.
À Sônia Fecher
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Filhos das horas
Quando eu tinha cinco anos, veio a tia rica do Rio e disse para mamãe com altivez: ― Está na hora desse menino largar a chupeta! ― Mamãe pressionada, retirou-me a chupeta, não me perguntou se eu queria ou me preparou, simplesmente, sufocada, repetia os argumentos da titia: ― Nesta idade não se usa mais chupeta!
Quando eu tinha 15 anos, vozes ecoavam nos corredores: ― Está na hora deste menino cortar os cabelos e largar essa guitarra, está na hora de estudar mais. ― Levaram-me ao barbeiro na marra, fizeram chantagens e barganhas com a minha Gibson e me mudaram de colégio, que adorava. Nunca sentaram comigo e ponderaram, perguntaram se eu gostava
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disso ou daquilo, ou o porquê disso e daquilo. Nem insinuavam se havia algo que me incomodava ou sobre o que eu sonhava e pensava da vida, mesmo que fossem tolices. Para me corrigir e direcionar devagarzinho, ao ritmo da minha imaturidade.
Aos 16 anos: ― Está na hora deste menino perder a virgindade! ― disse o tio Agnelo. Como eu via que meus colegas já contavam vantagens ou mesmo inventavam suas experiências sexuais, eu começava a me achar estranho, diferente, talvez doente. Meu tio, provavelmente combinado com meu pai, também pressionado, já que às vezes lhe pedia algum dinheiro emprestado, me levou num puteiro. Não me disse como e onde colocar isso naquilo, como começar, o mais difícil. Mas a senhora lá sabia,
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parece, e eu fiz o tal sexo, levando tempos à frente para descobrir que o ato era uma coisa boa.
Aos 17, outro tio falou que abriu uma vaga de auxiliar administrativo na filial de sua imobiliária na cidade vizinha, perguntou ao papai se tinha algum interesse de encaixar um dos filhos. Não sei por que papai me escolheu, podia remanejar um irmão, mas não, fui eu. E não sentou comigo, perguntou se eu queria, só disse: ― Esta na hora de você começar a trabalhar! ― Logo eu, o mais novo, mais inexperiente, ir para um lugar diferente. Senti medo, mas também uma sensação boa de desafio, novidade, sobretudo, liberdade. Lá, trabalhei, me diverti, sofri e chorei, até que um dia conheci uma menina e pela primeira vez me apaixonei, era da minha
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idade e a engravidei, ou melhor, nos engravidamos. As famílias em alvoroço, uma merda daquelas. Mas ela abortou. Fodido - voltei e me diziam: ― Isso era hora de arrumar filho? Como você foi fazer uma coisa dessas? ― E eu calado, pensava confuso, encabulado: “Se soubesse não faria. Como devo aprender, onde?” E o mais irônico: ― Você não tem juízo?! ― Fiquei dias largado nos cantos de casa, sem minha chupeta, minha guitarra, meus cabelos longos, minha amada e, isolado, só escola, certamente. Me davam o necessário, o de sempre: casa, comida e roupa lavada, vez por outra, não sou ingrato, uma acariciada. Uns me ignoraram, decepcionaram. Papai e mamãe, às vezes, sentiam algum remorso e vinham complacentes com palavras vazias e um
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irmão, por sorte, me compreendia e me consolava com a maior, mais maldita e mais incoerente sensação que tinha: a culpa. Bagagem de chumbo que levamos nas costas até a maturidade. Epa! Maturidade? Tem como eu ter esse negócio?! Engraçado... Os tios sumiram.
Parecia de castigo, como que na geladeira, até que descobrissem o que fazer com aquilo, ou melhor: o que está na hora de se fazer agora com isso? Quem sabe me colocar num avião para Bósnia e este exploda no ar? Segui estudando e caminhando para os 18 já tinha identidade, digo, a carteira. Arrumei um estágio. No segundo mês, preenchi uma nota fiscal errada, pequeno prejuízo. O chefe me chamou dizendo que precisava de alguém
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mais preparado e fui dispensado. Como começar preparado?
― Está na hora de você sair das abas dos pais! Está na hora de cuidar sozinho da própria vida! ― preciso mencionar quem dizia?
No entanto, passei no vestibular para o Rio e por sorte um amigo me conseguiu um trabalho numa livraria. Me mudei. Comecei a tocar a vida lá. Saía nas noites, boates, inferninhos. Fodi muito e bebi muito, me droguei a valer. De putas a uísque on the rocks, saudades dos undergrouds da vida vadia! Participei de passeatas, carreatas, micaretas e ia sempre pro Maraca, fazia o que bem queria. Fui a Londres desbravar os pubs! Ganhei e perdi de tudo: empregos, mulheres, dinheiro. Larguei a faculdade por
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negócios, decolei e aterrissei, arremeti e me esborrachei.
Num fim de semana em casa, vinte e tal na cara, visitando a galera, um deles estava lá. Me disse: ― Esta na hora de você se casar. ― Puto, retruquei: ― Como você? Então está na hora de trair e fingir amar uma mulher oficial, que legal! ― Meu pai me chamou atenção, mandei todo mundo à merda, peguei minhas coisas, bati a porta e fui embora. Um amigo de trabalho, muito bacana, religioso, me disse: ― Acho que está na hora de você aceitar Cristo. ― Cansado daquela vida, pensei com carinho. Afinal ele emendou: ― Funcionou comigo. ― De repente o vi por inteiro: medíocre, conformado, robotizado. Não emplaquei naquilo. Quase um ano depois, me acalmei e,
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mais centrado, de novo me apaixonei e me casei. Tive filhos... Aí que aprendi de verdade a perdoar meus pais, amigos, até os tios. Pois acertei e errei muito, demais com eles, mas sempre tentei ser diligente numa coisa, em ver cada um como uma pessoa única, uma personalidade, respeitando seus tempos. Tento ser bússola em vez de relógio a lhes impor meus horários e os da sociedade com toda sua ansiedade.
De bons contatos, entrei para a vida política. Vivi bons tempos de prestígio, queridos, amigos, status e orgulho dos melhores Rolex. Tipo assim: O lugar certo na hora certa, saca? Quando bem sucedido nisso, eu disse em alto e bom som: ― Então essa vai ser minha profissão ― Estava viciado, quando percebi, era como meu amigo, apenas que meu cristo era o meu
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líder partidário. Verdade quem diz que política é como religião, jogo e drogas, pois que é tudo a mesma merda. Entrei de cabeça, me filiei, balancei bandeiras, gritei nos “cultos” e um dia logo após uma vitória triunfal, eu, me achando parte importante daquilo, fui traído. Como nunca me ensinaram nada, só me informavam a hora das coisas, também não sabia sequer roubar e ser mau caráter para me adaptar a eles, o que tão simplesmente era necessário, desde que se soubesse a hora certa... Ah, ah, ah... Mentira, que isso é vocação.
Na casa dos quarenta e tal me vi desempregado, claro. Podem rir do que vou dizer, porque é mesmo engraçado. Descobri que existe também a fase do “não é mais a hora”. - Você está velho para o mercado de trabalho. ― me disse na lata um empresário
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frio e calculista numa entrevista. Entediado, certo dia, tive vontade de comer uma moça mais jovem que me dava bola no caixa do mercado. Um colega me disse: ― Não está mais na idade disso, correr atrás de meninas. ― como se eu quisesse fazer disso um ofício. Agora a situação é mais delicada e por isso as pessoas também, as reprimendas vem como telefone sem fio, aquela brincadeira de criança, dos familiares, amigos... Ah! E agora dos primos. Isso, os filhos dos tios, isso mesmo! ― Já passou da hora de depender da esposa, dos filhos! Já passou da hora de pedir dinheiro emprestado! ― A cada acusação, sentença, penso nas putas e digo, puto: “Ah! Filhos d...! Das horas!”
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Enfadonha
A minha mulher emplacou num emprego, carteira assinada, essas coisas. Isto fez com que eu, já trabalhando em casa, tomasse as rédeas de sua manutenção. Uma experiência natural nestes tempos feministas, onde se torna cada vez mais comum os homens dividirem as tarefas domésticas e o sustento da casa com as mulheres. Confesso que tem sido um ensaio excitante.
Eu sempre pensei que a intuição feminina para perceber detalhe no nosso comportamento fosse um atributo especial só delas. Mas não, entendi que a rotina de um “ser” ou “estar sendo” “do lar” é pobre de expectativas a ponto de quaisquer banalidades não passarem despercebidas.
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Assim, não me contive e devolvi a ela uma daquelas brincadeirinhas insinuantes, que já ouvira coisa parecida algum dia, repletas de ironia e verdade:
“Nossa, quanta produção, quem é o felizardo?” Ridículo... Bem...
Dedico a parte da manhã para cuidar das coisas do lar. Começo lavando a louça. Essa tarefa dura mais ou menos uma hora, porque a minha louça é pré-aquecida com água fervendo. Não, eu não quero ser melhor do que ela não. Apenas tenho pavor de gordura e procuro ser muito caprichoso em todas minhas empreitadas. Depois limpo o fogão, varro o chão e passo o pano. Outro dia me peguei falando pras crianças:
― Cuidado com a minha cozinha!
Mas estas coisas enfadonhas eu resolvo às quintas-feiras com o meu analista.
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Descobri um prazer sem igual, aliás, mais do que isso. Posso dizer que uma experiência telúrica: catar feijões. Isto mesmo, depois da faxina na cozinha, eu dei uma geral na sala e nos quartos até retornar à cozinha para fazer o almoço. Catar feijão é uma terapia para a gente, sabe? Há um processo de transe que está quase me fazendo entrar em contato com o cosmo. Mas tem um efeito colateral: meu processo de seleção de pedras e caroços estragados é muito rígido. Chego ao ponto de, às vezes, chamar um dos meus filhos para uma segunda opinião. Mas a minha mulher outro dia brigou comigo porque um quilo de feijão só estava dando para uma refeição:
― Você tem que economizar! ― Disse ela em tom grave como via o meu pai fazer com a minha mãe.
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O problema maior tem sido adequar às crianças. Todas na casa dos vinte. Tenho usado o método de argumentação comparada. É mais ou menos assim:
― Se eu não obedecesse ao meu pai, levava uma surra! Certa vez, quando a sua avó ficou doente, nós tivemos que assumir todas as tarefas da casa! ― ou ainda ― Lá em casa as coisas não eram como hoje não, Coca-Cola todo dia? Nada, só de vez em quando! Papai trabalhava muito, eram muitos filhos.
Até que um dia tive que ouvir um deles dizer:
― Caraca...!Pai, sua infância deve ter sido uma merda, hem?
Como eu sou da geração diálogo, ou seja, dos otários que achavam que os pais eram muito repressores e agora vemos que
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eles até pegavam leve demais, em vez de ficar puto, ri batata baroa.
Outro dia saí para comprar vela nova para o filtro. Sinto pela confissão patética da minha condição de classe B com passaporte para C que ainda abastece a casa de água potável com aquele rudimentar objeto de barro. Resolvi entrar num bazar de 1,99. Não achei a peça, mas saí com algumas coisinhas interessantíssimas. Um descaroçador de azeitonas “três por vez”, uma colher de pau de um metro e, para finalizar, uns incensos de citronela, que estavam uma bagatela.
Em seguida, fui ao mercado comprar alguns itens, apenas para manutenção da despensa. De repente, me vi sem os óculos e perguntando a um rapazinho o preço da lata de milho. Exato, estendi a lata aos seus
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olhos. Depois, sem nenhuma justificativa comentei com uma idosa dona de casa, então colega, sobre o absurdo do aumento do preço dos tomates.
Mas essas coisas enfadonhas eu resolvo às quintas-feiras com meu analista.
Passaram-se três meses e a coisa começou a virar rotina. O trabalho de casa já me tomava também o turno da tarde. Roupas na máquina e óleo nos móveis... Meu amigo Douglas, editor do jornal, me mandou um correio eletrônico:
― E aí cara, você não tem mandado nada!
A situação financeira continuava crítica e eu comecei a maldizer as tarefas do lar. Um mau humor se instalou em mim. No final do mês piorava e se misturava a um estado de muita sensibilidade, chorava
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copiosamente defronte à pilha de louças. Segundo meu analista eu estava com TPS, ou seja, tensão-pré-salarial, algo já consagrado e que consta inclusive na literatura médica. Além disso, ele achava que o excesso das demandas do lar veio a produzir uma crise de identidade masculina em mim e, assim, aumentando o estresse. Mas a coisa foi ficando mais grave, comecei a surtar. Um dia, sentado à mesa com os feijões derramados para catar, gritei e varejei tudo no chão. ― Ele está possuído pelo diabo. ― disse meu vizinho, o Pastor Besouro, vim saber depois.
Neste dia, passando a crise fui fazer os pastéis do almoço e quando descaroçava as azeitonas, o aparelho quebrou no segundo grupo de um trio das melhores portuguesas. Varejei o objeto longe, acertei o basculante
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quebrando um de seus vidros. Em seguida peguei o gato em flagrante se aproveitando da minha distração, com a boca na carne moída sobre a pia e que ia preparar para fazer a porra do pastel. Peguei a colher de pau de um metro e quebrei na traseira do bicho, que largou o naco e saiu grunhindo. Em alto estado de ansiedade, sentei e respirei fundo, lembrei-me daqueles ensinamentos dos tempos inúteis de yoga, ou yôga...? Dane-se! Inspirar e expirar pelo abdomem, é isso. Ah! Acendi um incenso de citronela!
Logo, já havia preparado a carne com o que foi possível e recheei os pastéis. Comecei a fritura. Num certo momento me deu remorso e fui me acertar com Fernando, o gato. Ele me esnobou por dois dias até vir massagear minha barriga agulhando-a à
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noite na cama. Fernando foi uma homenagem ao Gabeira cometida por minha filha na fase da esquerda festiva, o bicho já está com treze anos! Enfim, nesta, queimei a primeira leva.
Na segunda, senti uma baita coceira no olho direito. Fui ao banheiro, um mosquito me picou, ardia a coisa. Passei álcool, ardeu dentro dele. Voltei para cozinha, queimou a segunda leva e óleo estava preto. Fui trocar e percebi que esqueci este item lá no mercado e no final das contas o prato principal foram ovos estrelados. À noite, eu e minha mulher conversamos sobre o dia e a possibilidade de se contratar uma empregada, ou ainda, sobre uma possível internação minha em regime de urgência. Porém, o orçamento ainda não permitia nenhuma das duas coisas e eu abominava a
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ideia de ter uma doméstica me inquirindo o dia inteiro como aprenderam com as serviçais das novelas das nove.
Ao cair das tardes devia ir para o computador escrever meu artigo, mas estava tão cansado que acabava indo para frente da TV. Foi assim por vários dias até que percebi que não conseguia ficar um deles sem assistir a tal novela. E, em seguida a morbidez: Desastres aéreos na Discovery Chanel. De manhã me prendi ao programa da Ana Maria Braga, que receitas! Em contrapartida rezava pelo passamento do louro... E do pastor que ainda repetia os salmos 23 todas as noites!
Mas essas coisas enfadonhas eu resolvo às quintas-feiras com meu analista.
Passados mais dois meses, a situação começou a melhorar e conseguimos
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contratar uma empregada, consenti sem resignação. Enfim, pude me dedicar só ao trabalho e me livrei definitivamente das tarefas domésticas. Dona Maria não era o ideal, mas além de ser tímida e falar muito pouco, era muito prestimosa e limpava meus livros. Cozinhava direitinho, embora suas almôndegas não chegassem aos pés das minhas. Um dia, meu amigo Douglas me ligou e eu o convidei para almoçar. Era uma segunda-feira, me lembro pelo tédio dos domingos de Fausto Silva e Luís Penido na rádio Tupi, transmitindo mais um desastre do meu Botafogo contra o Quinze de Piracicaba no brasileirão, serie B. Pedi que a Dona Maria fizesse berinjelas recheadas, que sabia que ele gostava, pois elogiava as da minha mãe nos velhos tempos. Em resumo: foram as piores que já
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comemos na vida. Elegantíssimo com sempre fora, meu amigo disse sobre meus eufemismos: “Você é exigente demais.” Depois da vergonha, Douglas foi embora e eu fui falar com ela. À moda de uma perua enlouquecida, com vaidade desmedida, típica das classes opressoras, perdi as estribeiras e proferi alto e grosseiramente para ela:
― Caramba Dona Maria, mas que merda! Onde diabos a senhora arranjou esta merda de receita? Malditas berinjelas empapadas!
Percebi que passei de “dono de casa” ao correspondente masculino de uma Madame do núcleo do mal das novelas que via. Passada meia hora fui pedir desculpas, mas em vão. Ela pediu as contas, peremptoriamente! Isso pesou à minha
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consciência, como se perdesse uma turbina precisando arremeter com urgência. Daí passei a contar cada dia como um presidiário, fazendo um xis no meu postite de tela, torcendo que chegasse logo quinta- feira!
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Sombra da Carne
“A sombra do teu corpo é o corpo da tua alma.” (Oscar Wilde)
Minha fiel companheira, onde se encontra quando preciso de ti em estado de maior escuridão como agora? Onde andas sombra da carne?
Momento em que a luz arde em meus olhos na saída do cárcere. O sol nasce redondo de novo e ao contrário dos canalhas injustiçados não vejo bondoso seu esplendor de aurora.
Ah...! Quanta ilusão! Não saímos por bom comportamento, foi apenas uma transferência para outra ilha suja, apenas isso. O amor não passa de um grilhão maldito.
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Por que não te sinto então comigo? Éramos cúmplices nos deleites e delitos, e na hora do trabalho forçado, tu foges da plantação dos cogumelos contaminados.
Tentei te segurar quando caindo ajoelhado. Escorregadia de lama imoral. Driblou-me habilmente no piso árido diagonal.
Vejo-me aqui andando nas horas de pátio a te caçar para agasalhar-me como sempre, jogado como um regurgitado acido- lácteo ainda quente. Tentando decolar com uma turbina incandescente.
Espera! Vi-te branca...! Como assim? Vi nuanças de faces e gestos, e listas brancas de tuas vetes! Quem fala sou eu?! Deus! Vejo-me agora, uma mancha escura no poço da ala dos dementes!
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Não sou eu alma em sombra quem partiu, a mente... Ei corpo da carne! Fastuosa, com todo este aparato cultural de segurança máxima, como fugiu passando as grades eletrificadas de fios de seda da alta tensão e falsidade? Nem eu conseguiria, entrementes!
Como me deixou aqui sozinha, pedaço de mancha rota e escura sem uma réstia de claridade ao bem de minha tênue e sutil identidade? Sem poder sequer me distinguir... A escuridão geral me engoliu, às vezes, acho que a gente nunca se entendeu, se sentiu.
Está bem, foragido de mim, isto refletirá opaco em ti muito e, porém, corpo de carne... Perdidos, somos dois lados covardes, presas da mesma caça, continuamos alvos fáceis. Nosso coração
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que apanha e dói parará logo. A ti espera uma gaveta qualquer onde descansará inerte sua carcaça e poderá sempre dormir um pouquinho até mais tarde... Quanto a mim, caberá dar continuidade à agonia da vigília com o buraco-negro a querer me sugar como tu, na maldição da eternidade...
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Janeiro
Saímos do mês da confraternização e da virada com requintes pirotécnicos decretados pelos homens e entramos no primeiro dia do ano com muita preguiça. Espíritos placebos se curando em vão. Dormimos, levantamos, beliscamos das sobras do réveillon, caímos no sofá, soltamos gases nobres e arrotamos muito, tudo cheirando a quebra nozes, assistimos qualquer besteira na TV, cochilamos de novo e quando vimos já estamos no dia 02, nos arrumando com pressa para trabalhar, entrando na rotina. Pegamo-nos xingando o motoboy no trânsito a caminho do escritório. Pode até ser a mesma toupeira que desejamos feliz natal e um próspero ano novo quando foi entregar o pedido da
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farmácia, o “kit ressaca” num dos porres da véspera da véspera.
Nossos filhos descansam da escola, da faculdade e se entregam mais aos jogos e redes sociais na gosma da vida sedentária. Algumas pessoas tiram férias da labuta, do chefe que rima e, se guardaram a féria para isso, fazem viagens aos paraísos. Edens fiscais ou tropicais. Na primeira ou segunda classe de um avião inseguro, tanto faz. Dos simples anseios menores aos grandes sonhos, os maiores, quando não, as viagens na maionese... Por vezes estragada, acamados num hospital com uma intoxicação anunciada por uma puta cólica estomacal. Há de tudo, para todos os ponderáveis e imponderáveis desígnios da existência mundana.
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Começamos a construir e transferir os planos do ano velho para o que virá. As promessas feitas à beira mar, degustando um manjar ou adorando Iemanjá. Quiçá! É um mês morno. Faz sol escaldante aqui e chove a rodo acolá. É o terror dos bombeiros e ambulâncias. Mês de transtorno e de esmero é também este tal de janeiro!
Ao mesmo tempo são 31 dias de superação, temos que pagar o pato, a ceia e os excessos que as vitrines de ontem nos aliciaram. Também há uma trégua pacificadora. Os jornais não trazem muitas novidades, os algozes hibernam para conspirar sobre os golpes do ano bom. Nos corruptos é como se visse estampado na testa um "fechado para balanço" sobre o exercício anterior da putaria. Parece que até
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os assaltantes descansam neste tempo de ironia. E os artistas? Nada há de novo, melhor nos contentarmos com nossos dinossauros atemporais, prediletos em nosso mp3 ou descansar os sentidos, melhor, ou talvez.
Janeiro pode ser definido como um mês acanhado, pois que vive no liame de seu ascendente e descendente, de farturas e faltas, dependendo da classe a que se está inserido e da cotação do dólar para os bem cotados e nascidos. O que nada acrescenta aos que vivem no black, na marginalidade periférica, os assalariados e suas senhoras, cuja moeda é do lar, louça e roupa para lavar.
O subsequente é de alegrias e pândegas que se anuncia a todo vapor na euforia do carnaval. Este mais democrático na divisão
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do estado de espírito festivo e alto astral, algum consolo, menos mal. Enfim, janeiro é como um irmão do meio, que vive à sobra do dezembro e do fevereiro. Mas o réveillon deveria ser comemorado mesmo é no último dia das águas de março, em meio a seu mormaço. Aí, passadas as vinte e quatro horas da mentira, que jocosamente nos lembram de que tudo fora pura ilusão, realmente começa o ano, a vida à vera. E o princípio das frustrações, repletas de ansiedade e solidão, nascentes junto à plenitude e beleza da prima dela.
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À beira mar
Sou otimista. Com boa, muito boa vontade mesmo, ainda me restam dez ou quinze anos de vida. Uma adolescência... Mas que voa. Bate as azas no destino. Que bom, ele arruma tudo e ainda me promete a eternidade. Não importa que ela exista de fato, apenas que eu acredite agora.
Agora é o que assusta. Exato, o agora. O que passa, tenho que jogar para trás, jogar fora.
Fora bom quase tudo, mas não vivi intensamente, fugi, ponho na conta do fado e da sina e pago num além, onde pegarei um voo cego para onde nem sei, e o culpado sempre será o piloto, claro, o mordomo da pinguela aérea... neste caso, eu... Quanta falsidade.
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Falsa idade não posso mais esconder, algumas rugas me entregam, mas se há algum viço ainda, rogo que não me digam. Mendigam amor, os muitos mal quitados, não eu, contento-me em fingir que tudo deu certo, como planejado.
Planos errados talvez, mas vivo das sobras de felicidade dos meus. Até os ajudo, porque dá menos trabalho e não afronta minha coragem.
Coro a minha imagem se o novo e um projeto de felicidade me invadem, hesito, pois assim me foi ensinado, por isso nunca amei plenamente, tampouco sei, de fato, quem me amou de verdade.
Verdes imagens de imaturidade doem em mim, porque realmente quase tudo é assim de fato... Vacilo muito. Palavras são
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perigosas, podem ter farpas, principalmente as ditas com ternura e amabilidade.
Habilidades de amar, que me orgulho muito, mas não suporto elogios, se não me puno pelos meus pensamentos que só me fazem alimentar culpa. Eu nasci para ter donos e o meu coração em tudo está repleto, doo o amor e doo a dor.
Doador universal, mas também de renúncias e solidão, sinto falta de mim, contudo, insisto. Se eleito, renuncio a tudo que me lembra de quem sou e em que idade. A opinião alheia e a opressão dos meus profetas são como administrar sem verve uma monumental cidadela.
Cidade bela do interior, de praia, onde me delicio e sou feliz com a brisa do mar e o sol ameno que reflete em minha face, mesmo sem saber qual delas. Até que venha
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a grande onda negra para me levar, me pegando distraído e à beira mar.
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Vastidão
Maior. Tudo cada vez maior. Tamanho em metros quadrados e polegadas dá sensação de poder. Principalmente porque se necessita de mais empregados para mandarmos e humilharmos na manutenção de nossos caprichos e sujeiras, isso é gratificante. Se bem que é legal ser do tipo que diz que lhes tratamos como se fossem iguais. Melhor: “como se fossem da família”. Dever de casa sobre hipocrisia dos mais bem nascidos.
Eficientes intentos para distanciarmo- nos dos desafetos e, sem que nos demos conta, também dos afetos, pensem comigo: Cada um dentro de casa com seu computador, seu telefone e sua TV com seu combo no tão sonhado “quarto só para
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mim”, ali onde levamos a xícara ou prato e comemos de olhos vidrados nas atividades virtuais e os sabores ficam todos iguais. É pratico e acaba com aquelas brigas que até me lembro de como deliciosas antigamente. Pelo canal da TV, futebol e novela com os irmãos! Por fim, nos colocamos vizinhos uns dos outros dentro do próprio lar.
Tem aquele vaivém agonizante de desejo por bens tecnológicos a ocupar os espaços vazios da casa (da casa?). Sofremos com a expectativa de comprar o aparelho último tipo, o High Tech, e entramos em histeria interior até adquirirmos. Aí sentimos o prazer de estar construindo um bem imóvel de primeiro mundo, quanto conforto. Mas logo o novo modelo já foi lançado no mercado, ele é mais atraente, tem um recurso que nos dará menos
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trabalho e empenho, da mais tempo para muitos idiotas, incluindo se aqueles que querem aumentar o pênis.
A TV insiste em nos perseguir, exibindo seu status e na rua há cartazes e pôsteres com fotos nas lojas descrevendo seus benefícios sensacionais. Quando chegamos ao trabalho, um colega fala sobre ela com entusiasmo, pois já comprou um protótipo antes de você. Irrita isso, instiga mais para devolver o esnobismo. Enfim, ele, um produto, ou ela, uma coisa, sussurra em seus ouvidos e brilha nos seus olhos a toda hora, dentro e fora de casa. Aquelas parafernálias que adquirimos antes de ontem, nas semanas passadas, já não dão o mesmo prazer, o novo sempre vem e os queremos porque somos pra frente, tipo os dos lá de fora. Contudo, esta girândola arde
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em qualquer língua, todos os idiomas. Café quente, sem aroma.
Obras na casa, casa na praia... Também é necessário manter isso sempre em andamento, bastante poeira o ano inteiro. É mais prático do que uma empreitada na cachola. Ah! Investir em filiais e franquias! Aumenta o lucro, embora as despesas também, mas é mais trabalho, mais horas para o fim e menos para o meio, ou seja, os filhos ou o companheiro que engorda a olhos vistos! Não passamos de criadores de porcos.
Ainda assim sobra tempo para o lazer, não há dúvida. Disney uma vez por ano com as crianças e por elas. Não, por todos nós, aquelas comprinhas... Convenhamos... A família de classe media desabando como um aeroplano da TAM.
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Mas somos diligentes, nunca nos esquecemos da vovó com saudades e sempre dizemos: ― Um dia desses vou visitá-la, aquele bolo de cenoura...! Embora, é fato, algumas vezes reclamamos alto: ― “Porque vovó Leda cisma em continuar morando no interior...? Teimosa!” ― Mesmo sendo bem mais perto que Miami, 120 km de carro. Yes, nossa charanga é importada, comprada em prestações que sabemos quando acaba, ao contrário de nós, nossa existência que pode ir antes delas.
Quando sentimos que estamos naquela fase boa, a casa com a churrasqueira e sauna com as obras encerradas, os negócios indo de vento em popa e aquela TV citoplasmática de 180 polegadas, o “enfim, comprei”! Juntamos a família e os amigos para a inauguração. Um terço não vai
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porque tem tudo que temos; outro terço vai porque não tem e temos. Outros não aparecem se somos do tipo que ficamos babando em nossas conquistas, fotos de Miami, além de morarmos longe pra cacete.
Enquanto isso, a galera jovem fica trancada em seus quartos jogando Playstation. Alguém vai levar picanha e coração lá para eles, que, ironicamente, conhecem até as vísceras, embora nunca tenham visto uma galinha na vida se não que à moda Touch Screem.
Naquela cerveja saideira, uma série que se insere numa quantidade que já perdemos a conta e o sabor, quando sobraram, se muito, umas oito pessoas ouvindo às alturas nosso novo CD dos sambas de enredo que as escolas já compuseram para fevereiro, o
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telefone toca. É a vizinha da vovó anunciando que ela morreu.
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Como dizer não
Ah! Santo Deus! Como dizer não?! Eles são um casal de amigos tão amáveis. Mas chega. Não suporto mais as pessoas que vivem das minhas gentilezas, sugando da minha alma para desfilarem as suas tediosas e cacetes. Não, nesta nós não vamos. Não precisa de muito, uma resposta como uma puta dor de cabeça está bem ao nível do convite deles para irmos tomar um vinhozinho e ver suas fotografias da última viagem à Paris. Junto ao convite ainda vem àquela recomendação: ― Olha, não precisa trazer nada, não. ― Protocolo que faz parecer querer se afirmar: "somos melhor de vida que vocês". Há de chegar o dia em que responderei: ― Nem travesseiros? ― A porra da hesitação, do adiamento. Respondi
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com uma mentira dizendo que ia consultar a Barbara, pois achava que ela tinha comentado alguma coisa sobre outro compromisso amanhã; quer dizer, abri mais o leque para inventarmos uma desculpa e disse que ela tinha ido ao mercado, com a palma da mão em sua boca, pois ela estava ao meu lado, e que então ligaríamos mais tarde. Sim, o “ligaríamos” era já uma informação subjetiva de que estava jogando a roubada para a mulher, óbvio. Ela sempre mais complacente que eu: ―Vamos sim, é tão raramente e passa rápido. ― argumentou. Não, discordei, sou pela teoria da relatividade, citei Einstein: ― “Três segundos sentados numa boca acesa do fogão parece durar muito mais que um delicioso beijo de meia hora numa rapariga.” Não, não passará rápido, parecerá
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uma eternidade. Entrarei com o resto que sobrou de minha jovialidade e sairei com incontinência urinária, dores reumáticas e demonstrando sinais de esclerose. Fecharei com um mico ao sair: ― Onde diabos colocaram minha bengala? ― Bem, acabei percebendo que antes da árdua incumbência de ligarmos para eles para dar uma desculpa, teria que convencer a mulher.
Usando minha humilde habilidade de cronista e junto pegando emprestada uma veia perdida como ator, como que a hipnotizando, disse: ― Imagine querida? Nós vamos chegar lá, primeiro aquele poodle asqueroso. Amanhã promete chuva, a primeira coisa que vamos fazer é ir ao banheiro limpar o barro das calças feito pelas patas imundas daquele animal mimado. Eles já têm até as toalhinhas
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prontas, bordadas com o nome dele: Michel. Só para isso. Viado! Depois o Naldão abre o vinho, pois aquelas pastinhas malditas já estarão expostas. Claro, bem previsível: salaminho, tremoços, ovos de codorna, azeitonas e molho rosê. Ah!... E sacanagem, é claro! Não, quem dera! É aquela porra daqueles palitinhos com mozzarella, salsicha e azeitona. No final, quando o trigésimo álbum vier a ser mostrado, chega o gorgonzola e já estamos empapuçados, estratégia mesquinha. O Naldão desagradável, não segura os bocejos escancarados como se quisesse mandar a gente embora. Ou esse é o melhor lado dele? Verdade, quem adora essa porra mesmo é a Márcia. É sempre assim. Tem todo um ritual. Primeiro a gente fala de futebol, eu e Naldão. Ele é Flamengo
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doente, sem redundância. É, dizem que tem coisas que só acontecem com o botafogo, e com botafoguenses também. Depois ele vem elogiar o Lula, que nos tempos da escola chamava de analfabeto e vagabundo. E vocês na cozinha. Enquanto ela disserta a rotina de seus filhos com orgulho e elogios, você tenta falar algo sobre os nossos e ela interrompe. Porra, cá entre nós querida: Eles são bonzinhos à beça, mas são chatos pra caralho! O máximo que você vai conseguir dizer é “tem certeza que não quer uma ajuda com a louça?” E sabe que ela vai responder? “Que nada, amanhã a empregada vem e lava tudo boba!” Numa mistura de gentileza e ostentação.
Começa as fotos, primeiro álbum. A descrição é minuciosa, pois em Paris é a primeira vez que eles foram. Ah! Um caso
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que um começa a contar sobre um motorista de táxi mal educado, o outro interrompe e corrige:
― Não “benhê”, isso foi indo para Sainte-Chapelle.
― Tenho certeza que não foi "moreca". Foi indo para Notre-Dame.
A gente ali, esperando eles chegarem a conclusão sobre um fato que não nos interessa bosta nenhuma. Dá vontade de dizer nas entrelinhas: ― Tudo bem gente, quanto tempo para chegar daí à Torre Eiffel? ― Sim querida, só você entenderia o duplo sentido. No álbum, não, em Paris. Pois que claro, sabemos que a Torre e o Louvre terão um álbum exclusivo cada um. Mas antes vem o Palácio de Versalhes, óbvio, e sei lá por que, a narrativa deles sobre as fotos segue o estilo barroco do
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monumento. Narrarão em rococó! Disse depois a Barbara que ainda não estávamos juntos quando fui, faz uns sete anos, numa chatice desta, era a primeira viagem para Disney. Mais fácil, pois podia jocosamente pedir para pular o Pateta e o Mickey, já que são personalidades consagradas. Essa merda é a mesma coisa que, se por obra do acaso, assim como sortudos acertam a mega-sena, seis fatores me levassem a comer a Shakira. Porra! Imagine eu chamando a turma do pôquer para contar: ― Gente! Pegar naquelas ancas... Ah...! E a vagina dela... é perfeitinha, só falta falar! ― Cacete, eles podem se orgulhar, achar interessante, mas nunca vão saber exatamente o que é comer a Shakira, caralho! Barbara pede calma. Ok. Vejo-a desanimada, mas ainda há um resto de
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humanidade nela que me diz: ― Tem certeza que não devemos ir?
Dou meu último suspiro, penso e tento meu argumento fatal.
― Sabe como termina? Ao fim do último álbum, sempre sobram algumas páginas que ficam em branco, certo? Eles completam com fotos de família. É uma mistura das sobras dos eventos dos álbuns completos, então misturam dez do aniversário de um ano do Marquinhos, quinze do natal e aqueles infames dos encontros de casais. Dá saudades de Paris! Você vai ter que ver pessoas feias, que nunca viu na vida e ainda sendo informada: ― Essa aqui ó, é a Carmem, enteada do meu sobrinho por parte do Naldinho. Olha a tia Roseli! Lembra dela, não? Tadinha ela agora está com diabetes e perdeu o pé. ―
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Foda-se a tia Roseli! Moooorram todos ali. Podiam estar todos no avião para Paris e a nave cair.
Deu certo! Mas acho que exagerei. Barbara lacrimejando pediu: ― Pare! Eu não posso mais, por favor, pare! ― Revelando também certo talento na dramaturgia. Depois confabulamos, fizemos uma espécie de brainstorming, esfregávamos as mãos, ríamos, nos arrepiávamos. Parecia haver um prazer mórbido e malicioso em criar uma desculpa, até que... Vamos ligar!
― Oi Márcia...?! Pooooxa, chaaaato, chato mesmo, mas desculpe, se vocês tivessem ligado antes. Pois é, combinamos em levar as crianças ao cinema e depois comermos algo. Sabe como são os filhos né... Que? Imagina se eles aceitam ir junto!
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“Programa careta”... Ah! Os seus meninos também...? É tudo igual, né? E a gente ainda tem que assistir ao filme que eles escolherem... “Duro de matar 5”, é mole? Duro de assistir 5, isso mesmo... Ah! Ah! Ah...! '' Claro, McDonald’s, aquelas porcarias. Nem fala... um vinhozinho neste frio... Só de pensar me dá água na boca! Então, e as fotos! Não, nunca, nem Paris nem nada, só região dos lagos... (grgr)... Mas vamos marcar depois tá... Olha, a vó vem passar um mês aqui em casa sabe, a dona Graziela, vó do Thêmis. O clima da serra neste inverno castiga ela, tadinha... Mas no mês que vem... pô, já está certo Márcia. Manda um abraço pro Naldão. Olha, o Thêmis também tá aqui mandando um abração (não é verdade, mas é de praxe,
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não só nossa, dos leitores também, vem não!). ― Tchau!
Sim, a Barbara ligou né. O plano foi perfeito. O exercício da mentira e da hipocrisia fora executado com primazia. E ainda ganhamos um mês com a vovó, sim, a velha e boa vovó que tanto matei no tempo da escola e do trabalho. Sempre a nos servir. Até já falecida. Ressuscitamos e matamos. Que bom que eles não sabiam de tal finitude ocorrida há quase um ano. Que Deus a tenha.
A sensação de alívio só veio mesmo no dia seguinte. Levantei radiante naquele sábado. Fui à cozinha e Barbara estava lavando a louça (grrr) e os meninos tomando café papeando. De repente, me deu na telha: ― Galera, que tal sairmos hoje para assistir o novo Duro de Matar 5 e
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depois comer no Mac?! Eles se entreolharam. E depois para mim, como se eu tivesse dito alguma barbaridade, (sem trocadilhos com a mulher), tipo: ― Onde diabos colocaram minha bengala?
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Psico bélica
Meu testamento será covardia e fracasso, só farei jus a uma parede fria e sem epitáfio. Mas não quero como pena a eternidade. Quem tanto deseja e sente-se dono de tudo merece serenidade, pois que cumpriu apenas o que lhes deram de identidade, angústia. Que eles deem então a não finitude aos hipócritas. Quão agonizante isso! Será a morte mais perigosa que a existência mórbida que não possamos ter paz em vez de viver buscando luz na obscuridade? Não quero existir bastante, pois que isso é o que basta. Prefiro ser aí um bastardo... Portanto, não julgo um suicida, o mais passional dos criminosos, que faz à vista o que eu e muitos fazemos a prazo com a vida. Todos sentindo que se
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expirou o prazo de validade das boas aventuranças. Que não vale a idade, se vai idade, moça idade para fazer o certo e consagrado, ou seja, reeducação alimentar, deixar de fumar, se embriagar e ser comedido, além do tedioso exercício físico, não, nada compensa. Só o crime. Todo mundo no fim está fodido. Se não vale a pena (dos outros) é porque não se é tão feliz assim quanto se ostenta. Vai chegar o dia em que a expectativa de vida do homem será a meia era! Aos 50 e pouco, já era! Oxalá! Imaginemos quão perfeito se ajustaria o mundo se a morte se desse aos por aí. Como a média de hoje, os cidadãos de 70 passasse a longevos, morrendo lúcidos e com maior dignidade. Um Nieymeier menino. Poderia enumerar as vantagens que são muitas, mas deixo a seu
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cargo esta criatividade... Chega disso! Quem viveu covardemente, há de morrer covardemente. Imprudência? Não. Os obituários estão cheios de pessoas prudentes que se intoxicavam de saúde ou preferiam os automóveis, ultraleves estraçalhados no chão. Eu no máximo, sou meio “deprê” com a vida. Mas rio e me divirto muito. Somadas as partes e divididas pelo mesmo valor, meu produto é zero, apenas torpor, mas este repleto de amor. Envelhecer é uma sina, apenas serve para aprender um pouco a morrer. Eu não passo de um ego, mais impotente que um cego, já que esse consegue até ver a fisionomia de seus filhos crescendo. Com o tato, magnífico intento! Eu não. Encho minha cabeça com palavras e desperdiço olhares, todos os sentidos... Tidos... Como sãos,
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são? Muitos, sem sequer acompanhar o crescimento dos filhos com todos os sentidos. A labuta é vossa escravidão e se dizem “olho vivo” por ganharem bastante dinheiro que no fim é para dar o melhor ao rebento e morrer empilhado de renúncias. Quem dá mais? O cego de poucas posses ou eles, ditos em boas condições de saúde, “homens de visão” e suas donas com casacos de visom? Todos remelentos pelas manhãs, pois não. Embora os meus pensamentos com minha voz e a voz dos outros que me lembro, em qualquer língua, sejam mudos, telepáticos, porque tanto barulho? Da vontade de auto induzir-me ao coma, esse processo mágico do corpo para se entrar em off-line. Isto me parece um déjà vu, que pra mim está mais para “à être vu”. Já vi também, sem prévio aviso, a luz
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de Einstein curvar-se a Deus com elegância e reverência, há poesia na ciência, sua magnificência. Talvez esse seja seu único propósito e ele se esqueceu da arte universal, só isso. Como as cordas no átomo que vibram em harmonia como a lira entoando belas melodias em milagres de vida quântica, a física romântica. Todo dia 24 de novembro, faço meu ritual beato, presto um minuto de silencio às Sete Quedas, brutalmente extintas por assassinato. No fim, em dez mil e tal, estaremos esquecidos, o foco será a caça dos rastros do Homo digital. Portanto quero viver minha boemia, liberdade pessoal, como quem vive uma anarquia, um cio espiritual, repleto de romance sensual, como os vampiros, nos undergrounds das noites num pub ou hospital. Melhor do que
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a sobriedade da melancolia, onde fico tentando escrever explicações com pena de lágrimas em livros sem páginas e capa dura de edições ordinárias. Cansam-me o melindre alheio, pessoas feitas de cristal que se comportam como bibelôs e temos que falar outra língua, dialeto, repleto de eufemismos e cuidados, por fim mudando quase o sentido da prosódia, linguagem de criança, como um contador de histórias. Dispenso o glamour, a futilidade no auge da mais fiel sedução. Outra dependência, como a devoção. Não crio mais expectativas. A expectativa é uma boa atriz que rouba a cena do fato. Eu queria ser competente em motivar a ação, contemplar a ação e saber criar atividades. Mas nasci sem dom. Estou cansado de euforia, como quem vive de estabilizantes aromatizados artificialmente.
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Minha mente mente, somente. Mas tenho sempre à mão um caqui verde para dar àqueles que me acusam de não ter sido maduro na jovialidade. Sou um grão de areia vigente... E assim vejo e sempre vi gente, muita gente. Nesta magna e soberba terra, filha órfã de pais celestiais, menina dos olhos das razões universais. Ouso atirar a pedra que ninguém quis atirar... Se já tiver morrido, que seja um meteoro na vastidão do infinito. Minha sina é se ferrar?
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Alívio ou humilhação?
Fomos às compras naquele sábado. Qualquer sábado ora. O que diriam nossos primatas ancestrais ao ver tão triste ritual para busca de alimento. Um lugar superlotado de seres da mesma espécie se esbarrando uns nos outros em meio à poluição sonora dos caras que anunciam ou denunciam aquilo que você pode comprar com aquela voz sensacional, sensual, em tom pra lá de original. E carrinhos congestionando o tráfego dos amplos corredores... da morte! Ainda tem sempre aquele fedelho que faz “vrum”, rápido como um maldito Concorde, até acertar o ferro inferior dianteiro do seu veículo “de brinquedo” no seu calcanhar. Se voasse
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deceparia cabeças em acidentes aéreos surreais. Como eu queria beliscar um deles.
Começamos sempre pela seção de hortifrutis. É a tática de começar pela pior parte, se é que, a exemplo de programação de TV local, há alguma melhor parte.
Resolvi ensacar uma dúzia de laranjas Bahia, que apesar do preço pareciam suculentas. Uma senhora ao lado, como parte do rito completo dos humildes, me pede para ler o preço da banana na tabuleta. Ela ouve, me agradece e não leva. Provavelmente sente-se saudosa como eu, dos bons tempos em que banana era sinônimo de coisa barata.
Depois das frutas e legumes, fomos ao setor de carnes. Aquele, cuja fila não nos distingue muito daquelas que os seus
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“fornecedores” entram para ser degolado nos matadouros, com lágrimas que antecipam o golpe fatal, no nosso caso, o preço. Tomamos uma decisão sofrida, daquelas que podem render várias consultas no analista, tamanha culpa que produzem: pedimos uma peça de filé mignon.
Enquanto isto, ao meu lado, uma mocinha pedia dois bifes de chã, um coração de boi para o cachorro – provavelmente o seu marido – e perguntou o preço do bucho ao atendente simpático do açougue. Virou-se com a bolsa como quem esconde a humilhação nela, depois voltou para o atendente e disse: ― Não vou levar o bucho não, é só isto mesmo. ― Fiquei chocado ao confrontar minha visão da situação do país promovida em propagandas institucionais no horário nobre
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da TV: Escolas bem acabadas com crianças de boa dentição, incluindo negros, além de índices de crescimento animadores que encerram com slogans de entusiasmar o cidadão. Parece que a gente está na Suíça. Então, vai ver aquela mulher não passa de uma incompetente ou irresponsável, não é mesmo?
Não podíamos sair sem levar algumas coisas para as crianças. Assim, terminamos na seção de laticínios. Enquanto pegava duas bandejas de iogurte, um senhor bem ao meu lado, paletó surrado e chapéu não menos, tipicamente aspecto de aposentado do INSS, que carrega documentos em saco plástico, pegava e devolvia, analisando preços, vários produtos na seção. Bem, hoje os supermercados têm uma política Apartheid nas arrumações das prateleiras:
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De um lado as seções dos produtos nobres, estes que a mesma publicidade da noite na TV vende com famílias cheirosas, e do outro, os produtos baratos, com corante vermelho sangue, cheiro de cachorro molhado e uma série de substâncias que nunca aparecerão em nossas autópsias.
Mas o mais desagradável foi ver um menininho na seção de chocolates enquanto eu pegava três caixas de bombons. Ele demonstrava as dores de suas renúncias com um biquinho de choro preso na garganta e a cabeça baixa, puxando com a pontinha dos dedos a manga da blusa da mãe discretamente, enquanto na outra segurava uma réplica de brinquedo ordinária de aviãozinho comercial. Certamente aprendera que só assim podia se manifestar, ao contrário dos berros e
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escândalos dos riquinhos, apesar de saber que, no máximo, ganharia um Batom Garoto nas conveniências de última hora dos caixas, feitas para... Para os donos dos supermercados ganharem mais em cima da gente, povo que adora quinquilharias, é claro.
Demos sorte naquela hora que talvez seja a pior das compras, ou seja, a fila para pagar, ela nos dá tempo para lembrar o que faltou. Devolver o que culpou, se arrepender e refletir que aquele carrinho só durará pouco mais de uma semana frente a minha voracidade e a das crianças. E ainda pagamos taxa de esgoto, ca-ce-te!
Já terminando a vítima da frente, vejo atrás de mim, e aos lados: A mulher cegueta, a mocinha envergonhada, o senhor aposentado e o menininho relegado. De
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repente começou a dar uma sensação desconfortável ao perceber meu carrinho cheio de guloseimas, supérfluos. Sentia como se eles me olhassem a pensar: “Você é o culpado por tudo.” Suava, rezava para a caixa contabilizar o mais rápido possível nossos itens. Para piorar, ainda tive que ouvir a mocinha do caixa falando para outra colega ao lado em alto e bom tom: ― Olha só fulana, isto aqui é que é champignon ó, que te falei outro dia, nunca provei, tenho a maior vontade, mas olha o preço.
Até que, enfim, a minha mulher entrega para ela o cartão para pagar aquela quantia que achava que todos em volta esticavam o pescoço para ver, com mórbida curiosidade como faz o povão quando, por exemplo, cai um carro dentro do rio.
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De repente, eu e meus fantasmas fomos pegos de surpresa com a minha mulher me puxando abruptamente, mandando a gente sair rápido dali. Largamos tudo e, lá fora com ela me empurrando táxi adentro, perguntei atônito:
― O que é que aconteceu, mulher? ― No que ela arrematou: ― Nosso cartão foi recusado...
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Hello Horooy
Se verter-me às lembranças dos fatos bem assinalados, sobra réstia de sucesso na obscuridade do mundo das sombras. O real não é palpável, posto que história escrita por escribas endinheirados só discuta a parte que nos cabe de liberdade, que para alma está para vida como o mundo está para o estreito de Gibraltar. Sentados nas confortáveis poltronas de suas esquizofrenias não diagnosticadas, bebem muito uísque doze anos e fumam charutos cubanos, quanta ironia, discutem em gargalhadas as cifras e saldos de extratos milionários e o que pensam em ilusão apenas de sobras mais gigantes sobre os legados de seus nomes. Depois vão vomitar o que nós também vamos limpar. Por isso
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eu ouço agora Alice Cooper, sem entender a língua deles, pouco importa, mas destilando da melodia a rebeldia que brota nas entranhas de seus olhos pintados em maquiagem preta, junto aos solos metálicos rebeldes com causa. Outro tipo de sombra, contra os males do mundo, as vistas das cavernas, denunciando que todos nós estamos presos nas correntes dela, os contempladores, apenas com a promessa da vida eterna, tolos é o que somos. Acendo o cigarro e ouço mais músicas de roque pauleira e progressivas. Junto, vêm da janela, sons de bombas e torpedos tipo de guerra, ecoadas do morro perto e de destino incerto. O amor é isso em sua versão cinzenta, paixão por matar. Não choro mais por estas coisas e digo sem cerimônia que me lixo para cada ser humano anônimo. Eu
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quero nomes! Se não há, não há crime, a exemplo dos corpos para a justiça. Esta impessoalidade é insuportável, logo, não desperdiçarei mais lágrimas para números de “cepeéfes”. Isso não é frieza, é cansaço. Sei que o mal não se abate só ao lado, mas o egoísmo está se impregnando em mim, é a “alma do negócio”, não estou isento por ler muito, sou o mesmo nefasto, eu também construo o mundo. Tramas familiares entoam a dor dele também. Não, nada é tão ruim só da porta para fora, o mesmo ocorre na casa de hoje e de outrora, quando os pais me acordavam com canções em francês. Cada um é sobra de barro ou argila facilmente moldado para servir. Servil. Não! Ser vil, cada qual é em verdade, da velhice à mocidade. Ingênuos, um dia achamos que nos juntamos e entre canções
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de Chico e Caetano mudaremos o mundo. Depois passa o tempo e somos também parte “deste mundo”, eles são. Esperando por um céu, onde sempre julgamos merecer, mesmo sendo mais um reles e abjeto estar em estado de vir a ser. Não importa à física, que aqui devemos pegar um avião para viajar de um lado para o outro totalmente oposto do globo, espaço e tempo percorrido por um corpo bípede saudável ou extenuado. Para lá se vai e pronto, tele transporte arbitrário, sem qualquer explicação. Ida e volta, rodando em círculos em vão.
Alguns guardam e insistem com o que chamam de ideologia, mas são sempre rotulados e amputados pela massa pensante. Aqueles que pensam a vida sem a arte. Corrige-se: Gente que processa ideias com
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lógica. Como eu aqui e sequer respeitando o tempo dos verbos, para mim desprezíveis, já que em maioria a serviço do asco e do cobiço. Não fumo maconha e não bebo, mas me sinto meio doidão. Defeco sacos de bosta para a sensibilidade do futuro e me abstraio olhando o quadro do Magritte à minha frente, fixado na parede amarelada pela tinta e a nicotina que lhes conferem cor peculiar de cream-cracker, tom pastel, destes fritos com óleo saturado, em seguida vem a tosse, muita tosse. Mas isso já me acontece também no campo, com o ar puro no pomar na casa da minha irmã. Overdose de oxigênio! Na verdade, o quadro não me diz nada e é delicioso como uma romã, nem sei por que, talvez apenas pelo fato de me fazer esquecer em ínfimo e precioso hiato de pensar em bela manhã ou antes de ir me
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deitar, me abstraindo com os olhos fixos na distração. Pelos homens de charuto, nos perdemos de nossos focos e das velhas prioridades, vamos para cama para despertar bem cedinho para viver, dormir, acordar, viver, dormir... Isto já é morrer, apenas chega uma hora em que não nos levantamos mais. Simples assim.
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Ah, se não fossem cortar a minha luz!
A fila do banco estava de lascar, minha senha era 264 e o torturador eletrônico marcava 167.
Ah! Se não fossem cortar a minha luz!
Não tinha jeito, era esperar ou esperar. A vantagem é que numa agonizante fila de banco sobra tempo para muitas reminiscências. Comecei a me lembrar da época em que os bancos tinham uma fila separada para cada caixa. Eu era jovem, mas já me irritava em ficar em pé muito tempo. No final do mês, em dias de pagamento, ficava furioso e me contentava em brincar comigo mesmo vendo um careca da fila ao lado ir ficando para trás. Mas às vezes, quando faltavam dois antes de mim,
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tinha aquele office boy pentelho, com um malote cheio de pagamentos e cheques para depositar e o careca acabava, quando não se ladeando a minha poliposition, saindo antes de mim da agência. Eu ainda via um sorrisinho sarcástico no canto de sua boca, provavelmente produto da minha mente, e pensava: “filho da mãe!”
De repente perdi a distração com o sujeito da frente a me falar cochichando: ― É um absurdo não é mesmo? Trezentas pessoas na fila e apenas dois caixas para atender!
― Verdade mesmo. ― Respondi. Nesse momento passa um gerente e o sujeito acena para ele: ― E aí, tudo bem amigo?
Passados mais quarenta minutos, outro sujeito, agora o que estava atrás de mim,
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resolveu perder as estribeiras: ― Caramba, este banco é uma bosta!
No que num ato impensado, da mais absoluta infelicidade, aticei com um magnífico clichê: ― É, se fosse na Argentina, todo mundo já estava protestando na gerência.
Pra quê? O cara se empolgou:
― É isto mesmo, vamos lá!
Saímos da fila: ele, eu (o idealizador, como não ir?) e mais dois ou três adeptos da causa em direção à elite opressora do sistema capitalista. Até que surge um cara de meia-idade, terno, gravata e bigode, o gerente, quem mais? Que logo vai de encontro ao sujeito em que nos amparávamos, não perdendo tempo convidou-o logo para um café:
― Em que posso ajudá-lo?!
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Como é extraordinário este feeling dos gestores experientes para identificar e eliminar líderes de uma iminente rebelião. Isto mesmo. Perdemos nosso mártir para o sistema, ou melhor, para um café fresquinho num box com cadeiras confortáveis.
O pior de tudo é que eu e os três dissidentes do levante tivemos que voltar de cabeça baixa para o final da fila.
Ah, se não fossem cortar a minha luz!
Eu continuava puto porque já era correntista do banco, mas não passava de duas estrelas há quase dois anos. Verdade, uma agência bancária é o protótipo perfeito do capitalismo. Olho à minha direita e vejo uma fila para clientes Plus – dizia a placa. Uma perua e um senhor muito bem vestidos encabeçavam um caixa exclusivo, enquanto
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os outros estavam lotados. Depois, olho à minha esquerda e vejo uma fila destinada a gestantes, crianças de colo, deficientes e idosos. Nela havia uma linda moça que supus estar no primeiro mês de gravidez, com o resultado do teste de urina da farmácia na bolsa para qualquer eventualidade. Depois outra de meia-idade suando em bicas ao segurar uma criança de nove ou dez anos no colo. Na terceira posição, um cara com uma bengala que devia ter se contundido na pelada do fim de semana. Por fim, um idoso com tudo em cima, que se disputássemos um confronto de check-ups, certamente me daria uma surra.
Este banco não era daqueles que punham cadeiras para a gente esperar, talvez porque se tratasse de mais humilde