O documento resume a crítica de Nietzsche ao Cristianismo. Ele via o Cristianismo como uma religião que nega a vida e celebra a moral dos fracos, impedindo o homem forte de exercer sua força. Além disso, Nietzsche criticava o ascetismo cristão como uma negação da vida, e o desprezo ao corpo presente no Cristianismo e no Platonismo. Ele propunha uma afirmação da vida terrena e do corpo através de sua filosofia.
3. Nietzsche ao longo da sua vida e de todos os seus escritos, é visto como aquele que
pretende derrubar todos os ídolos seja o Estado, a moral, a filosofia e principalmente aquilo que
segundo ele, é a religião movida a ódio e ressentimento, o Cristianismo. A negação da vida e a
celebração da moral dos escravos seriam elementos constituintes da religião cristã. Pois, o estímulo
a caridade, o perdão, a compaixão impede o homem forte de exercer sua própria força e faz com
que o forte seja considerado mal, e o fraco, ou seja, aquele que não tem condições de exercer a
força por conta da sua fraqueza seja considerado bom. O cristianismo, entendido por Nietzsche,
não somente como religião, mas como força cultural, pelos valores que ele impregnou em toda a
civilização ocidental, principalmente na Europa é alvo de seus ataques mais fortes: “... o cristianismo,
a religião transformada em negação da vontade de viver!” (Ecce homo, pág 97). O homem superior
que sempre afirma, que não nega a vontade, que pratica a força, cuja moral está para além de mal,
encontra no cristianismo a sua antítese, a sua maior oposição, não permitindo que o super homem
venha surgir. As tábuas de valores do cristianismo seriam mais uma das cargas pesadas carregadas
pelo espírito transformado em bestas de cargas como diria Zaratustra. Valores morais que não
permitiria ao homem ir além de si mesmo. Em o Anticristo Nietzsche afirma:
Não devemos enfeitar nem embelezar o cristianismo: ele travou uma guerra
de morte contra este tipo de homem superior, anatemizou os instintos mais
profundos desse tipo, destilou seus conceitos de mal e de maldade
personificada a partir desses instintos o homem forte como réprobo, como
degredado entre os homens. O cristianismo tomou partido de tudo que é
fraco, baixo e fracassado: forjou seu ideal a partir da oposição a todos os
instintos de preservação da vida saudável! (O anticristo, cap V)
O cristianismo é visto como um novo platonismo, uma religião onde o mundo inteligível,
espiritual, é que norteia os rumos e as ações dos homens, afastandoos do seu sentido mais
intrínseco, que é o sentido da terra. O platonismo cristão teria provocado uma tensão nos espíritos
dos homens na Europa, fazendo com que o homem europeu de moral nobre, aristocrática, se
transformasse num homem servil, ressentido e que nega o sua própria vocação. Nietzsche, pela
boca de Zaratustra conclama: “Eu vos exorto, meus irmãos! Permanecei fiéis a terra e não acrediteis
naqueles que vos falam de esperanças supraterrestres, são envenenadores, quer o saibam ou não! (
assim falava Zaratustra, prólogo, cap III)
Nietzsche critica também o militarismo nos costumes cristãos, e apesar de antireligioso até
elogia o budismo, dizendo que suas necessidades tem um clima mais ameno e que há mais gentileza
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4. e liberalidade nos seus costumes. Tendo em vista que, no budismo, diferente do que acontece no
cristianismo, o homem não tem que lutar contra o pecado. A perfeição é algo alcançável e não uma
busca desesperada, que para ser atingida plenamente pelos cristãos, além de uma vida ascética (que
é uma própria negação da vida), o individuo ainda precisa se conformar que não será alcançada
definitivamente aqui, na dimensão terrestre e sim no mundo espiritual através da graça de Deus.
O ascetismo cristão é a própria morte do homem. Pois nele o mesmo não pode viver com
toda a força dos seus instintos, é a própria negação da vida na vida. O homem não supera a si
mesmo, e é só passividade, nuca atividade. No cristianismo, o homem não cria, ele é sempre criado
e dependente dos atos do seu criador. Para Nietzsche o homem cristão é um blasfemador da terra
quando tem em maior conta, às entranhas do insondável que o verdadeiro sentido da terra.
Sabemos que na religião cristã, também por causa da influência do platonismo, na sua
tradição, o corpo é visto quase sempre apenas como um invólucro, que aprisiona a alma e não
permite que ela se liberte. A alma pertence ao mundo inteligível, imutável e eterno. Enquanto que o
corpo é visto como inferior pertence ao mundo físico, mutável e ilusório. (Platão, Fédom). É comum
na religião cristã, algumas cerimônias de auto flagelação, que demonstram como o corpo é encarado
com sendo de uma categoria inferior, pois representa apenas a aparência, limitação, prisão.
Nietzsche, na sua filosofia vai combater com toda a veemência esse tipo de pensamento. O
desprezo ao corpo em nome de uma alma estaria a serviço das mesmas forças que um desprezo do
mundo por um além. Este desprezo ao corpo decorre justamente da fraqueza do próprio corpo.
Para Nietzsche, aquilo que se chama alma e sentidos nada mais seriam do que instrumentos do
próprio corpo. O corpo seria uma espécie de grande razão, “uma multiplicidade com um único
sentido”. Todo o resto existe em função dessa grande razão que é o próprio corpo. O corpo possui
sua própria razão e seus próprios caminhos que vão muito além do entendimento humano. O
pensamento também é uma função do corpo. Às vezes, porém, essa função se volta contra ele
próprio. Os desprezadores do corpo não seriam uma menção somente ao cristianismo, mas ao
platonismo e toda e praticamente toda a metafísica. No discurso dos transmundanos Zaratustra
afirma que os deuses aos quais se deveria se dedicar à vida em nome da salvação eterna são
criações humanas. Uma criação humana que se apresenta como vinda de um além e que nos exige a
vida. Este deus é na verdade um fantasma. E Zaratustra ao pensar sobre isto, faz com que o
fantasma desapareça. Este deus é um valor e Zaratustra cria outro valor, um valor que seja
afirmativo da vida. Nietzsche dirá que este deus transmundano, que nega a vida e o corpo, que nega
a terra e o homem, é uma criação de pessoas decadentes, pessoas que sofriam e não tinham
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5. explicação para o seu sofrer. O sofrer sem sentido fez com que tais sofredores criassem um deus
que fizesse sofre a todos. os corpos doentes dos homens foi que fez esse deus. Zaratustra diz:
“Foram os enfermos e os moribundos que menosprezaram o corpo e a
terra, inventando coisas celestes e as gotas de sangue redentor... queriam
fugir da sua miséria e as estrelas estavam demasiado longe para eles. Então
suspiraram: oh! Se houvesse caminhos celestes para furtivamente deslizar
para outro ser, outra felicidade! Então inventaram seus artifícios e suas
beberagens sangrentas “( Assim falava Zaratustra, pág 44.)
Para Nietzsche, pela boca de Zaratustra era a demência da razão, a coisa que aproximava
de Deus, enquanto que a dúvida era pecado. Zaratustra conclama aos seus seguidores que escutem
a voz do corpo, não a voz doente dos desprezadores, mas a do corpo sadio, pois seria a voz mais
leal e mais pura a que fala do sentido da terra. Os desprezadores do corpo não conduzem ao
superhomem, que é o homem que afirma, que apregoa uma nova humanidade, que rejeita as tábuas
de valores e que cria as sus próprias tábuas. É o tornarse do homem a si mesmo.
Outra questão importante tratada por Nietzsche e que é um dos pilares do cristianismo é a
compaixão. A compaixão é um valor cristão que esconde uma insatisfação consigo mesmo, uma
incapacidade de alegrarse com a vida e uma multiplicação da dor. Ao invés de se compadecer do
sofrimento, o melhor é alegrarse e minimizar a dor. Sobre a compaixão:
Previnovos, pois contra a compaixão. É dela que, para os homens, ainda
surge uma nuvem carregada. Na verdade, eu entendo muito bem de nuvens
carregadas. Mas lembraivos também destas palavras: todo grande amor
está ainda acima de toda compaixão porque aquilo que ele ama quer
também criálo. (Zaratustra, pág)
A compaixão é um valor cristão que esconde uma insatisfação consigo mesmo, uma
incapacidade de alegrarse com a vida e uma multiplicação da vida. Ao invés de se compadecer do
sofrimento, o melhor é alegrarse e minimizar a dor. Se o homem sempre buscou razões para o
sofrimento e, para tanto, criou religiões e justificativas fantásticas, seu erro foi sempre pouco e se
alegrado com a vida. Para Nietzsche a compaixão tem ação depressora, o homem perde quando se
compadece, e, através da perda de força causada pela compaixão o sofrimento tende a aumentar e
ser também contagioso, nele o homem pode perder toda a sua energia vital. A compaixão também
contraria a lei da evolução, que é a lei da seleção natural. Tendo em vista, que, ela preserva tudo o
que está maduro para perecer e luta em prol dos desterrados e malogrados de todos os tipos. Dá a
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6. vida um aspecto sombrio. (O Anticristo, VII).
A própria palavra cristianismo para Nietzsche seria na verdade um grande mal entendido.
Para ele, só existiu um cristão e ele próprio morrera na cruz, no caso, Jesus. O evangelho pregado
enquanto doutrina, foi sepultado na própria cruz do salvador. O que dali em diante se chamou de
evangelho (boas novas) seria de fato a negação do próprio evangelho de Jesus, Nietzsche chamaria
de “às más novas”, um Dysangelium.
A fé na salvação vista como sinal distintivo do cristão, além de um erro, é considerada uma
grande estupidez. Apenas, a prática cristã, a vida vivida por aquele que morreu na cruz é cristã. Isto
não quer dizer, porém, que somente Jesus foi cristão. Embora Nietzsche reconheça a dificuldade de
encontrar verdadeiros cristãos na história. Ele fala:
Hoje tal vida ainda é possível, e para certos homens até necessária: o cristianismo, primitivo,
genuíno, continuara sendo possível em quaisquer épocas...não fé, mas atos; acima de tudo um evitar
atos, um modo diferente de ser...Estados de consciência, uma fé qualquer, por exemplo, a aceitação de
alguma coisa como verdade como todo psicólogo sabe, o valor dessas coisas é perfeitamente
indiferente de quinta ordem se comparado ao dos instintos: estritamente falando, todo conceito de
causalidade intelectual é falso. Reduzir o ato ser cristão, o estado de cristianismo, a uma aceitação da
verdade, a um mero fenômeno de consciência, equivale a formular uma negação do cristianismo. De
fato, não existem cristãos. O “Cristão” – aquele que por dois mil anos passouse por cristão – é
somente uma autoilusao psicológica. Examinado de perto, parece que, apesar de toda a sua ‘fé”, foi
governado apenas pelo seus instintos – e que instintos! Em todas as épocas – por exemplo, no caso de
Lutero – fé nunca foi mais do que uma capa, um pretexto, uma cortina por detrás da qual os instintos
faziam seu jogo – uma engenhosa cegueira a dominação de todos os instintos.
A moral cristã é entendida, portanto, como força inimiga da vida, da vontade de potencia e
uma influencia apolínea que desvirtuou a humanidade por quase dois mil anos. A normatização da
doutrina da igreja é na verdade, para Nietzsche, a perversão do evangelho de Cristo, um
revolucionário por essência. Os canhões de Nietzsche são voltados, portanto, muito mais para o
cristianismo como uma religião formal e força cultural, que para a pessoa de Jesus Cristo.
Outra personagem que merece uma atenção especial em termos de agressividade
nietzschiana é o apostolo Paulo. Ele estaria a frente de todo o movimento decadente do cristianismo,
que teria o objetivo de deixar a humanidade enferma, em confundir os valores de “bom” e “mau”,
“verdadeiro” e “falso” de uma maneira que seria perigosa a vida e também a falsificava. Para
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7. Nietzsche, Paulo corrompia o verdadeiro sentido do salvador quando apregoava a doutrina do
julgamento e da segunda vinda, a doutrina da morte como sacrifício, e a doutrina da ressurreição.
Sobre Paulo ele diz:
Paulo, com aquela insolência rabínica que permeia todos os seus atos deu um
caráter lógico a essa concepção indecente deste modo: “Se Cristo não
ressuscitou dentre os mortos, então é vã toda a nossa fé – e de súbito
converteuse o Evangelho na mais desprezível e irrealizável das promessas, a
petulante doutrina da imortalidade do individuo... e Paulo a pregava como
uma recompensa! (O anticristo, XLI)”.
O instinto sacerdotal de Paulo teria desvirtuado toda a essência do evangelho de Cristo.
Seus valores, seus ensinamentos, seu exemplo, sua vida teria sido reduzido, por esse grande
“falsário”, a tudo aquilo que lhe fosse útil. Paulo encarnaria o tipo oposto ao “Portador da boa
nova”, representaria o gênio do ódio, a visão do ódio e a lógica do ódio. Seria na concepção de
Nietzsche um “disangelista”.
A denúncia é, portanto, que através do cristianismo de Paulo o ascetismo triunfou sobre a
força renovadora do Evangelho. Cristo reformou a religião judaica, estendendoa para outros
povos, unificados pela sua palavra, pregando o otimismo, o Deus do amor e a permissão, por
exemplo, ao questionar o costume dos saduceus de respeitar o sábado como dia santo: “O sábado
foi estabelecido por causa do homem, e não o homem por causa do sábado; de sorte que o filho do
homem é Senhor também do sábado” (Marcos 2;28) Jesus se posicionou contra o servilismo
repetitivo diante de uma lei esvaziada de sentido, foi um renovador da lei judaica, propôs uma
alternativa de liberdade e fartura, como observado no milagre da multiplicação dos pães.
Observadas algumas das doutrinas cristãs ferozmente combatidas por Nietzsche, a
impressão que temos é que o autor, tido e declarado como ateísta, sempre teve pavor do
cristianismo e toda a forma de religião. Vimos que muitas vezes Nietzsche esboça até certa simpatia
com o budismo e o islamismo, que seriam religiões mais amenas e menos militaristas que o
cristianismo.
É conveniente lembrar que sua biografia nos revela dados importantes e acontecimentos
históricos, cuja influencia não pode ser desprezada. O pai, Karl Ludwig era pastor luterano e o
menino Nietzsche tinha um forte sentimento religioso. As chaves de interpretação da filosofia
nietzschiana são várias e até hoje não é consensual. Será que os intérpretes tradicionais de Nietzsche
têm de fato os pressupostos para a sua melhor compreensão? Foram na verdade espíritos livres?
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8. Não está descartada inclusive a possibilidade de Nietzsche ter sido um cristão, desiludido com a
deformação nas bases do genuíno Evangelho. Deformação atribuída ao apóstolo Paulo. O certo é
que Nietzsche colocouse como um grande e indispensável desafio ao cristianismo. Teria sido
Nietzsche um cristão autêntico? Ou quem sabe um cristão ressentido? Quando lemos, por exemplo,
o seu Zaratustra, parece que estamos diante de um quinto evangelho, a forma como foi escrito, suas
metáforas, suas parábolas são muito semelhantes aquilo que vemos nos quatro primeiros livros do
novo testamento. O mais comum é vêlo como um antievangelho. Sua pregação é de fato uma
antipregação e ele Zaratustra é um profeta que não tem a pretensão de ser seguido, pois prega a
independência de toda consciência. O fato é que para Nietzsche Jesus era um dos poucos homens
da história que ele classificaria como “espírito livre”, não um salvador, um deus, mas um
revolucionário. Enfim, podemos concluir que ambos (Nietzsche e Jesus) se colocam como seres
messiânicos com uma missão explicita na terra. Jesus veio salvar os homens dos seus pecados,
trazer a esperança de uma nova vida, pregar a humildade e o amor. Enquanto Nietzsche veio
proclamar a morte de deus e anunciar a vinda do super homem. Ou seja, falar de uma nova
humanidade, do além do homem, da transvaloração de todos os valores, do dizer sim do homem
para si mesmo, da afirmação, da criação de novos valores acima de bem e mal.
Apesar de toda a critica contundente de Nietzsche em relação ao cristianismo, é conveniente
lembrar que, não foi o cristianismo quem inventou o ascetismo, por exemplo. Antes de haver
cristianismo já havia essa postura registrada na cultura de muitos povos. Por isso, Nietzsche não
deve ser encarado como um ateu comum, um mero iconoclasta. Não é Zaratustra, por exemplo, que
mata Deus, ele apenas proclama. Quem matou Deus foi à modernidade, o homem moderno.
Zaratustra tem o desejo de ir além do mero niilismo. O próprio niilismo é criticado por Nietzsche
várias vezes. O que Nietzsche critica de fato no cristianismo é a formação do tipo cultural formado e
forjado pela concepção cristã no homem ocidental. Formação essa que deixou marcas tão fortes
inclusive no próprio Nietzsche. A morte de Deus deixa um vazio enorme que não é simplesmente
preenchido pelo niilismo. Até porque Nietzsche não compartilha do desalento e da passividade do
niilista, que por acreditar que nada faz sentido se entrega e desiste de viver. O grande desafio para o
autor é encontrar uma maneira de fazer a vida valer a pena pelo que ela é, sem recorrer as
esperanças cristãs e sem definhar no niilismo.
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