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A Crítica ao Cristianismo em Friedrich Nietzsche.

Robério Santiago Lopes

Universidade Federal do Ceará
Departamento de Filosofia
História da Filosofia Contemporânea

1
Robério Santiago Lopes

A Crítica ao Cristianismo em Friedrich Nietzsche

2
Nietzsche  ao  longo  da  sua  vida  e  de  todos  os  seus  escritos,  é  visto  como  aquele  que
pretende  derrubar  todos  os  ídolos  seja  o  Estado,  a  moral,  a  filosofia  e  principalmente  aquilo  que
segundo  ele,  é  a  religião  movida  a  ódio  e  ressentimento,  o  Cristianismo.  A  negação  da  vida  e  a
celebração  da  moral  dos  escravos  seriam  elementos  constituintes   da  religião  cristã. Pois, o estímulo
a  caridade,  o  perdão,  a  compaixão  impede  o  homem  forte  de   exercer  sua própria força e faz com
que  o  forte  seja  considerado  mal,  e  o  fraco,  ou  seja,  aquele  que  não  tem  condições  de  exercer  a
força  por  conta  da  sua  fraqueza  seja  considerado   bom.  O   cristianismo,  entendido  por  Nietzsche,
não  somente  como  religião,  mas  como  força  cultural,  pelos  valores  que  ele  impregnou  em  toda  a
civilização  ocidental,  principalmente na Europa é alvo de seus  ataques mais fortes: “... o cristianismo,
a  religião  transformada  em  negação  da vontade de viver!”  (Ecce homo, pág 97). O homem superior
que  sempre  afirma,  que  não  nega  a  vontade,  que  pratica  a  força,  cuja moral está para além de mal,
encontra  no  cristianismo  a  sua  antítese,  a  sua  maior  oposição,  não  permitindo  que  o  super  homem
venha  surgir.  As  tábuas  de  valores  do  cristianismo  seriam  mais  uma  das cargas pesadas carregadas
pelo  espírito  transformado  em  bestas  de  cargas  como  diria  Zaratustra.  Valores  morais  que  não
permitiria ao homem ir além de si mesmo. Em o Anticristo Nietzsche afirma:
Não  devemos  enfeitar  nem  embelezar  o  cristianismo:   ele  travou  uma  guerra
de  morte  contra  este  tipo  de  homem  superior,  anatemizou  os  instintos  mais
profundos  desse  tipo,  destilou  seus  conceitos  de   mal  e  de  maldade
personificada  a  partir  desses  instintos  ­  o  homem  forte  como  réprobo,  como
degredado  entre  os  homens.  O  cristianismo  tomou  partido  de  tudo  que  é
fraco,  baixo  e   fracassado:  forjou  seu  ideal  a  partir  da  oposição  a  todos  os
instintos de preservação da vida saudável! (O anticristo, cap V)

O  cristianismo  é  visto  como  um  novo  platonismo,  uma  religião   onde  o  mundo  inteligível,
espiritual,  é  que  norteia  os  rumos  e  as  ações  dos  homens,  afastando­os  do  seu  sentido  mais
intrínseco,  que  é  o  sentido   da  terra.  O  platonismo  cristão  teria  provocado  uma  tensão nos espíritos
dos  homens  na  Europa,  fazendo  com  que  o  homem  europeu  de  moral  nobre,  aristocrática,  se
transformasse  num  homem  servil,  ressentido  e  que  nega  o  sua  própria  vocação.  Nietzsche,  pela
boca  de  Zaratustra  conclama: “Eu vos exorto, meus irmãos! Permanecei fiéis a terra e não acrediteis
naqueles  que  vos  falam  de  esperanças  supraterrestres,  são  envenenadores, quer o saibam ou não! (
assim falava Zaratustra, prólogo, cap III)

Nietzsche  critica  também  o  militarismo  nos  costumes  cristãos,  e  apesar  de  anti­religioso até
elogia  o  budismo,  dizendo  que  suas   necessidades  tem  um  clima  mais ameno e que há mais  gentileza
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e  liberalidade  nos  seus  costumes.  Tendo  em  vista  que,  no  budismo,  diferente  do  que  acontece  no
cristianismo,  o  homem  não  tem  que  lutar  contra  o  pecado. A perfeição é algo alcançável e não uma
busca  desesperada,  que  para ser atingida plenamente pelos cristãos, além de uma vida ascética (que
é  uma  própria  negação  da  vida),  o  individuo  ainda  precisa  se  conformar  que  não  será  alcançada
definitivamente aqui, na dimensão terrestre e sim no mundo espiritual através da graça de Deus.
O  ascetismo  cristão  é  a   própria  morte  do  homem.  Pois  nele  o  mesmo  não  pode  viver  com
toda  a  força   dos  seus  instintos,  é  a  própria  negação  da  vida  na  vida.  O  homem  não  supera  a  si
mesmo,  e  é  só  passividade,  nuca   atividade. No cristianismo, o homem não cria, ele é sempre criado
e  dependente  dos  atos  do  seu  criador.  Para  Nietzsche  o  homem  cristão  é  um blasfemador da terra
quando tem em maior conta, às entranhas do insondável que o verdadeiro sentido da terra.
Sabemos  que  na  religião  cristã,  também  por  causa  da  influência  do  platonismo,  na  sua
tradição,  o  corpo  é  visto  quase  sempre  apenas  como  um  invólucro,  que  aprisiona  a   alma  e  não
permite  que  ela  se  liberte.  A  alma  pertence  ao  mundo  inteligível,  imutável  e  eterno. Enquanto que o
corpo  é  visto  como inferior pertence ao mundo físico, mutável e ilusório. (Platão, Fédom). É comum
na  religião  cristã, algumas cerimônias de auto flagelação,  que demonstram como o corpo é encarado
com  sendo  de  uma  categoria  inferior,  pois  representa  apenas  a  aparência,  limitação,  prisão.
Nietzsche,  na  sua   filosofia  vai  combater  com  toda  a  veemência  esse  tipo  de  pensamento.  O
desprezo  ao  corpo  em  nome  de  uma alma estaria a serviço das mesmas forças que um desprezo do
mundo  por  um  além.  Este  desprezo  ao  corpo  decorre  justamente  da  fraqueza  do  próprio  corpo.
Para  Nietzsche,   aquilo   que  se  chama  alma  e  sentidos  nada  mais  seriam  do  que  instrumentos  do
próprio  corpo.  O  corpo   seria  uma  espécie  de  grande  razão,  “uma  multiplicidade  com  um  único
sentido”.  Todo  o  resto  existe   em função dessa grande razão que  é o próprio corpo. O corpo possui
sua  própria  razão  e  seus  próprios  caminhos  que  vão  muito  além  do  entendimento  humano.  O
pensamento  também  é  uma  função  do  corpo.  Às  vezes,  porém,  essa  função  se  volta  contra  ele
próprio.  Os  desprezadores   do   corpo  não  seriam  uma  menção  somente  ao  cristianismo,  mas  ao
platonismo  e  toda  e  praticamente  toda  a  metafísica.  No  discurso  dos  transmundanos  Zaratustra
afirma  que  os  deuses  aos  quais  se  deveria  se  dedicar  à  vida  em  nome  da  salvação  eterna  são
criações  humanas.  Uma  criação  humana que se apresenta como vinda de um além e que nos exige a
vida.  Este  deus  é  na  verdade  um  fantasma.  E  Zaratustra  ao  pensar  sobre  isto,  faz  com  que  o
fantasma  desapareça.  Este  deus  é  um  valor  e  Zaratustra  cria  outro  valor,  um  valor  que  seja
afirmativo  da  vida.  Nietzsche dirá que este deus transmundano, que nega  a vida e o corpo, que nega
a  terra  e   o   homem,   é  uma  criação  de  pessoas  decadentes,  pessoas  que  sofriam  e  não  tinham
4
explicação  para  o  seu  sofrer.  O  sofrer  sem  sentido  fez  com   que  tais  sofredores  criassem  um  deus
que fizesse sofre a todos. os corpos doentes dos homens foi que fez esse deus. Zaratustra diz:

“Foram  os  enfermos  e  os  moribundos  que   menosprezaram  o  corpo  e  a
terra,  inventando  coisas   celestes  e  as  gotas  de  sangue  redentor...  queriam
fugir  da  sua  miséria e as estrelas estavam demasiado longe para eles. Então
suspiraram:  oh!  Se  houvesse  caminhos  celestes  para  furtivamente  deslizar
para  outro  ser,  outra  felicidade!  Então  inventaram  seus  artifícios  e  suas
beberagens sangrentas “( Assim falava Zaratustra, pág 44.)
Para  Nietzsche,   pela  boca  de  Zaratustra  era  a  demência  da  razão,  a  coisa  que  aproximava
de  Deus,  enquanto  que  a  dúvida  era  pecado. Zaratustra conclama aos seus seguidores que escutem
a  voz  do  corpo,  não  a  voz  doente  dos  desprezadores,  mas  a  do  corpo sadio,  pois seria a  voz mais
leal  e  mais  pura  a  que  fala  do  sentido  da  terra.  Os  desprezadores  do  corpo  não  conduzem  ao
super­homem,  que  é o homem que afirma, que apregoa uma nova humanidade, que rejeita as tábuas
de valores e que cria as sus próprias tábuas. É o tornar­se do homem a si mesmo.
Outra  questão  importante  tratada  por  Nietzsche  e  que  é  um  dos  pilares  do  cristianismo  é  a
compaixão.  A  compaixão  é  um  valor  cristão  que  esconde  uma  insatisfação  consigo  mesmo,  uma
incapacidade   de  alegrar­se  com  a  vida  e  uma   multiplicação  da  dor.  Ao invés de se compadecer do
sofrimento, o melhor é alegrar­se e minimizar a dor. Sobre a compaixão:

  Previno­vos,  pois  contra  a  compaixão.  É dela que, para os homens, ainda
surge  uma nuvem carregada. Na verdade, eu entendo muito bem de nuvens
carregadas.  Mas  lembrai­vos  também  destas  palavras:  todo  grande  amor
está  ainda  acima  de  toda  compaixão  porque  aquilo  que  ele  ama  quer
também criá­lo. (Zaratustra, pág)
 

A  compaixão  é  um  valor  cristão  que  esconde  uma  insatisfação  consigo  mesmo,   uma

incapacidade   de  alegrar­se  com  a  vida  e  uma  multiplicação da vida. Ao invés de se compadecer do
sofrimento,  o  melhor  é  alegrar­se  e  minimizar  a  dor.  Se  o  homem  sempre  buscou  razões  para  o
sofrimento  e,  para  tanto,  criou  religiões  e  justificativas  fantásticas,  seu  erro  foi  sempre  pouco  e  se
alegrado  com  a  vida.  Para Nietzsche a compaixão tem ação depressora, o homem perde quando se
compadece,  e,  através  da  perda  de  força  causada  pela compaixão o sofrimento tende a  aumentar e
ser  também  contagioso,   nele  o  homem  pode  perder  toda  a  sua  energia  vital.  A compaixão também
contraria  a  lei  da  evolução,  que  é  a  lei  da  seleção  natural.  Tendo em vista, que, ela preserva tudo o
que  está  maduro  para  perecer  e  luta  em prol dos desterrados e malogrados de todos os tipos. Dá a
5
vida um aspecto sombrio. (O Anticristo, VII).
A  própria  palavra  cristianismo  para  Nietzsche  seria  na  verdade  um  grande  mal  entendido.
Para  ele,  só  existiu  um  cristão  e  ele  próprio  morrera  na  cruz,  no  caso,  Jesus. O evangelho pregado
enquanto  doutrina,  foi  sepultado  na  própria  cruz  do  salvador.  O  que  dali  em  diante  se  chamou  de
evangelho  (boas  novas)  seria  de  fato  a  negação do próprio evangelho de Jesus,  Nietzsche chamaria
de “às más novas”, um Dysangelium.
A  fé  na  salvação  vista  como  sinal  distintivo  do  cristão,  além  de um erro, é considerada uma
grande  estupidez.  Apenas,  a  prática  cristã, a vida vivida por aquele que morreu na cruz é cristã. Isto
não  quer  dizer,   porém,  que  somente Jesus foi cristão. Embora Nietzsche reconheça a dificuldade de
encontrar verdadeiros cristãos na história. Ele fala:

Hoje  tal  vida  ainda  é  possível,  e  para   certos  homens  até  necessária:  o  cristianismo,  primitivo,
genuíno,  continuara  sendo  possível   em  quaisquer  épocas...não  fé,  mas  atos;  acima  de  tudo  um  evitar
atos,  um  modo  diferente  de ser...Estados de  consciência, uma fé  qualquer, por exemplo, a aceitação  de
alguma  coisa  como  verdade  ­  como  todo  psicólogo  sabe,  o  valor  dessas  coisas  é  perfeitamente
indiferente  de  quinta  ordem  se  comparado  ao  dos  instintos:  estritamente  falando,  todo  conceito  de
causalidade  intelectual  é  falso.  Reduzir  o  ato  ser  cristão,   o  estado  de   cristianismo, a  uma aceitação da
verdade,  a  um  mero  fenômeno  de  consciência,  equivale   a  formular  uma  negação  do  cristianismo.  De
fato,  não  existem  cristãos.  O  “Cristão”  –  aquele  que  por  dois  mil  anos  passou­se  por   cristão   –  é
somente  uma  auto­ilusao  psicológica.   Examinado  de  perto,  parece  que,  apesar  de  toda  a  sua  ‘fé”,  foi
governado  apenas  pelo  seus  instintos  –  e  que  instintos!  Em todas as  épocas – por exemplo, no caso de
Lutero  –  fé  nunca  foi  mais  do  que  uma  capa,  um  pretexto,  uma   cortina  por  detrás da qual os  instintos
faziam seu jogo – uma engenhosa cegueira a dominação de todos os instintos.

A  moral  cristã  é  entendida,  portanto,  como  força  inimiga  da  vida,  da vontade de potencia e
uma  influencia   apolínea  que  desvirtuou  a  humanidade  por  quase  dois  mil  anos.  A  normatização  da
doutrina  da  igreja  é  na  verdade,  para  Nietzsche,  a  perversão  do  evangelho  de  Cristo,  um
revolucionário  por  essência.  Os  canhões  de  Nietzsche  são  voltados,  portanto,  muito  mais  para  o
cristianismo como uma religião formal e força cultural, que para a pessoa de Jesus Cristo.
Outra  personagem  que  merece  uma  atenção  especial  em  termos  de  agressividade
nietzschiana  é o apostolo Paulo. Ele estaria a frente de todo o movimento decadente do cristianismo,
que  teria  o  objetivo  de  deixar  a  humanidade  enferma,  em  confundir  os  valores  de  “bom”  e  “mau”,
“verdadeiro”  e  “falso”  de  uma  maneira  que  seria  perigosa  a  vida  e  também  a  falsificava.  Para
6
Nietzsche,  Paulo  corrompia  o  verdadeiro  sentido  do  salvador  quando  apregoava  a  doutrina  do
julgamento  e  da  segunda  vinda,  a  doutrina  da  morte  como  sacrifício,  e  a  doutrina  da  ressurreição.
Sobre Paulo ele diz:

Paulo,  com  aquela  insolência rabínica que permeia todos  os seus atos deu  um
caráter  lógico  a  essa  concepção  indecente  deste   modo:  “Se  Cristo  não
ressuscitou  dentre  os  mortos,  então  é  vã  toda  a  nossa  fé  –  e  de  súbito
converteu­se  o  Evangelho  na  mais desprezível e irrealizável das promessas,  a
petulante  doutrina  da  imortalidade  do  individuo...  e  Paulo   a  pregava  como
uma recompensa! (O anticristo, XLI)”.

O  instinto  sacerdotal  de   Paulo  teria  desvirtuado  toda  a  essência  do  evangelho  de  Cristo.
Seus  valores,  seus  ensinamentos,  seu  exemplo,   sua  vida  teria  sido  reduzido,  por  esse  grande
“falsário”,  a  tudo  aquilo  que  lhe  fosse  útil.  Paulo  encarnaria  o  tipo  oposto  ao  “Portador   da  boa
nova”,  representaria  o  gênio  do  ódio,  a  visão  do  ódio  e  a  lógica  do  ódio.  Seria  na  concepção  de
Nietzsche um “disangelista”.
A  denúncia  é,  portanto,  que  através  do  cristianismo  de  Paulo  o  ascetismo  triunfou  sobre  a
força  renovadora  do  Evangelho.  Cristo  reformou  a  religião  judaica,  estendendo­a  para  outros
povos,  unificados  pela  sua  palavra,  pregando  o  otimismo,  o  Deus  do  amor  e  a  permissão,  por
exemplo,  ao  questionar  o  costume  dos  saduceus  de  respeitar  o  sábado como dia santo: “O sábado
foi  estabelecido  por  causa  do homem, e não o homem por causa do sábado; de sorte que o filho do
homem  é  Senhor  também  do  sábado”  (Marcos  2;28)  Jesus  se  posicionou  contra  o  servilismo
repetitivo  diante  de   uma  lei  esvaziada  de  sentido,  foi  um  renovador  da  lei  judaica,  propôs  uma
alternativa de liberdade e fartura, como observado no milagre da multiplicação dos pães.
Observadas  algumas  das  doutrinas  cristãs  ferozmente  combatidas  por  Nietzsche,  a
impressão  que  temos  é  que  o  autor,  tido  e  declarado  como  ateísta,  sempre  teve  pavor  do
cristianismo  e  toda  a  forma  de  religião. Vimos que muitas vezes Nietzsche esboça até certa simpatia
com  o  budismo  e  o  islamismo,  que  seriam  religiões  mais  amenas  e  menos  militaristas  que  o
cristianismo.
É  conveniente  lembrar  que  sua  biografia  nos  revela  dados  importantes  e  acontecimentos
históricos,  cuja  influencia  não  pode  ser  desprezada.  O  pai,  Karl  Ludwig  era  pastor  luterano  e  o
menino  Nietzsche  tinha  um   forte  sentimento  religioso.  As  chaves  de  interpretação  da  filosofia
nietzschiana são várias e até hoje não é consensual. Será que os intérpretes tradicionais de Nietzsche
têm  de  fato  os  pressupostos  para   a  sua  melhor  compreensão?  Foram  na  verdade  espíritos  livres?
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Não  está  descartada  inclusive  a  possibilidade  de  Nietzsche  ter  sido  um   cristão,  desiludido  com  a
deformação   nas  bases  do  genuíno  Evangelho.  Deformação  atribuída  ao  apóstolo  Paulo.  O  certo  é
que  Nietzsche  colocou­se  como  um  grande  e  indispensável  desafio  ao   cristianismo.  Teria  sido
Nietzsche  um  cristão  autêntico?  Ou  quem sabe um cristão ressentido?  Quando lemos, por exemplo,
o  seu  Zaratustra,  parece  que  estamos diante de um quinto evangelho, a forma como foi escrito, suas
metáforas,  suas  parábolas  são  muito  semelhantes  aquilo  que  vemos  nos  quatro  primeiros  livros  do
novo  testamento.  O  mais  comum  é  vê­lo  como  um  antievangelho.  Sua  pregação  é  de  fato  uma
antipregação  e  ele  Zaratustra  é  um  profeta  que  não  tem  a  pretensão  de  ser  seguido,  pois  prega   a
independência  de   toda  consciência.  O  fato  é  que  para  Nietzsche  Jesus  era  um  dos poucos homens
da  história  que  ele  classificaria  como  “espírito  livre”,  não  um  salvador,  um   deus,  mas  um
revolucionário.  Enfim,  podemos  concluir  que  ambos  (Nietzsche  e  Jesus)  se  colocam   como  seres
messiânicos  com  uma  missão  explicita  na  terra.  Jesus  veio  salvar  os  homens  dos  seus  pecados,
trazer  a   esperança  de  uma  nova  vida,  pregar  a  humildade  e  o  amor.  Enquanto  Nietzsche  veio
proclamar  a  morte  de  deus  e  anunciar  a  vinda  do  super  homem.  Ou  seja,  falar  de  uma  nova
humanidade,  do  além  do  homem,  da  transvaloração  de  todos  os  valores,  do  dizer  sim  do  homem
para si mesmo, da afirmação, da criação de novos valores acima de bem e mal.
Apesar  de toda a critica contundente de Nietzsche em relação ao cristianismo, é conveniente
lembrar  que,  não  foi  o  cristianismo  quem  inventou  o  ascetismo,  por  exemplo.  Antes  de  haver
cristianismo  já  havia  essa  postura  registrada  na  cultura  de  muitos  povos.  Por  isso,  Nietzsche  não
deve ser encarado como um ateu comum, um mero iconoclasta.  Não é Zaratustra, por exemplo, que
mata  Deus,  ele  apenas  proclama.  Quem  matou  Deus  foi  à  modernidade,  o  homem  moderno.
Zaratustra  tem  o  desejo  de  ir  além  do  mero  niilismo.  O  próprio  niilismo  é  criticado  por  Nietzsche
várias  vezes.  O que Nietzsche critica de fato no cristianismo é a formação do tipo cultural formado e
forjado  pela  concepção  cristã  no  homem  ocidental.  Formação  essa  que  deixou  marcas  tão  fortes
inclusive  no  próprio  Nietzsche.  A   morte  de  Deus  deixa  um  vazio  enorme  que  não  é  simplesmente
preenchido  pelo  niilismo.  Até  porque  Nietzsche  não  compartilha  do  desalento  e  da  passividade  do
niilista,  que  por acreditar que nada faz sentido se entrega e  desiste de viver. O grande desafio para o
autor  é  encontrar  uma  maneira  de  fazer   a  vida  valer  a  pena  pelo  que  ela  é,  sem  recorrer  as
esperanças cristãs e sem definhar no niilismo.

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A crítica ao cristianismo em nietzsche

  • 3. Nietzsche  ao  longo  da  sua  vida  e  de  todos  os  seus  escritos,  é  visto  como  aquele  que pretende  derrubar  todos  os  ídolos  seja  o  Estado,  a  moral,  a  filosofia  e  principalmente  aquilo  que segundo  ele,  é  a  religião  movida  a  ódio  e  ressentimento,  o  Cristianismo.  A  negação  da  vida  e  a celebração  da  moral  dos  escravos  seriam  elementos  constituintes   da  religião  cristã. Pois, o estímulo a  caridade,  o  perdão,  a  compaixão  impede  o  homem  forte  de   exercer  sua própria força e faz com que  o  forte  seja  considerado  mal,  e  o  fraco,  ou  seja,  aquele  que  não  tem  condições  de  exercer  a força  por  conta  da  sua  fraqueza  seja  considerado   bom.  O   cristianismo,  entendido  por  Nietzsche, não  somente  como  religião,  mas  como  força  cultural,  pelos  valores  que  ele  impregnou  em  toda  a civilização  ocidental,  principalmente na Europa é alvo de seus  ataques mais fortes: “... o cristianismo, a  religião  transformada  em  negação  da vontade de viver!”  (Ecce homo, pág 97). O homem superior que  sempre  afirma,  que  não  nega  a  vontade,  que  pratica  a  força,  cuja moral está para além de mal, encontra  no  cristianismo  a  sua  antítese,  a  sua  maior  oposição,  não  permitindo  que  o  super  homem venha  surgir.  As  tábuas  de  valores  do  cristianismo  seriam  mais  uma  das cargas pesadas carregadas pelo  espírito  transformado  em  bestas  de  cargas  como  diria  Zaratustra.  Valores  morais  que  não permitiria ao homem ir além de si mesmo. Em o Anticristo Nietzsche afirma: Não  devemos  enfeitar  nem  embelezar  o  cristianismo:   ele  travou  uma  guerra de  morte  contra  este  tipo  de  homem  superior,  anatemizou  os  instintos  mais profundos  desse  tipo,  destilou  seus  conceitos  de   mal  e  de  maldade personificada  a  partir  desses  instintos  ­  o  homem  forte  como  réprobo,  como degredado  entre  os  homens.  O  cristianismo  tomou  partido  de  tudo  que  é fraco,  baixo  e   fracassado:  forjou  seu  ideal  a  partir  da  oposição  a  todos  os instintos de preservação da vida saudável! (O anticristo, cap V) O  cristianismo  é  visto  como  um  novo  platonismo,  uma  religião   onde  o  mundo  inteligível, espiritual,  é  que  norteia  os  rumos  e  as  ações  dos  homens,  afastando­os  do  seu  sentido  mais intrínseco,  que  é  o  sentido   da  terra.  O  platonismo  cristão  teria  provocado  uma  tensão nos espíritos dos  homens  na  Europa,  fazendo  com  que  o  homem  europeu  de  moral  nobre,  aristocrática,  se transformasse  num  homem  servil,  ressentido  e  que  nega  o  sua  própria  vocação.  Nietzsche,  pela boca  de  Zaratustra  conclama: “Eu vos exorto, meus irmãos! Permanecei fiéis a terra e não acrediteis naqueles  que  vos  falam  de  esperanças  supraterrestres,  são  envenenadores, quer o saibam ou não! ( assim falava Zaratustra, prólogo, cap III) Nietzsche  critica  também  o  militarismo  nos  costumes  cristãos,  e  apesar  de  anti­religioso até elogia  o  budismo,  dizendo  que  suas   necessidades  tem  um  clima  mais ameno e que há mais  gentileza 3
  • 4. e  liberalidade  nos  seus  costumes.  Tendo  em  vista  que,  no  budismo,  diferente  do  que  acontece  no cristianismo,  o  homem  não  tem  que  lutar  contra  o  pecado. A perfeição é algo alcançável e não uma busca  desesperada,  que  para ser atingida plenamente pelos cristãos, além de uma vida ascética (que é  uma  própria  negação  da  vida),  o  individuo  ainda  precisa  se  conformar  que  não  será  alcançada definitivamente aqui, na dimensão terrestre e sim no mundo espiritual através da graça de Deus. O  ascetismo  cristão  é  a   própria  morte  do  homem.  Pois  nele  o  mesmo  não  pode  viver  com toda  a  força   dos  seus  instintos,  é  a  própria  negação  da  vida  na  vida.  O  homem  não  supera  a  si mesmo,  e  é  só  passividade,  nuca   atividade. No cristianismo, o homem não cria, ele é sempre criado e  dependente  dos  atos  do  seu  criador.  Para  Nietzsche  o  homem  cristão  é  um blasfemador da terra quando tem em maior conta, às entranhas do insondável que o verdadeiro sentido da terra. Sabemos  que  na  religião  cristã,  também  por  causa  da  influência  do  platonismo,  na  sua tradição,  o  corpo  é  visto  quase  sempre  apenas  como  um  invólucro,  que  aprisiona  a   alma  e  não permite  que  ela  se  liberte.  A  alma  pertence  ao  mundo  inteligível,  imutável  e  eterno. Enquanto que o corpo  é  visto  como inferior pertence ao mundo físico, mutável e ilusório. (Platão, Fédom). É comum na  religião  cristã, algumas cerimônias de auto flagelação,  que demonstram como o corpo é encarado com  sendo  de  uma  categoria  inferior,  pois  representa  apenas  a  aparência,  limitação,  prisão. Nietzsche,  na  sua   filosofia  vai  combater  com  toda  a  veemência  esse  tipo  de  pensamento.  O desprezo  ao  corpo  em  nome  de  uma alma estaria a serviço das mesmas forças que um desprezo do mundo  por  um  além.  Este  desprezo  ao  corpo  decorre  justamente  da  fraqueza  do  próprio  corpo. Para  Nietzsche,   aquilo   que  se  chama  alma  e  sentidos  nada  mais  seriam  do  que  instrumentos  do próprio  corpo.  O  corpo   seria  uma  espécie  de  grande  razão,  “uma  multiplicidade  com  um  único sentido”.  Todo  o  resto  existe   em função dessa grande razão que  é o próprio corpo. O corpo possui sua  própria  razão  e  seus  próprios  caminhos  que  vão  muito  além  do  entendimento  humano.  O pensamento  também  é  uma  função  do  corpo.  Às  vezes,  porém,  essa  função  se  volta  contra  ele próprio.  Os  desprezadores   do   corpo  não  seriam  uma  menção  somente  ao  cristianismo,  mas  ao platonismo  e  toda  e  praticamente  toda  a  metafísica.  No  discurso  dos  transmundanos  Zaratustra afirma  que  os  deuses  aos  quais  se  deveria  se  dedicar  à  vida  em  nome  da  salvação  eterna  são criações  humanas.  Uma  criação  humana que se apresenta como vinda de um além e que nos exige a vida.  Este  deus  é  na  verdade  um  fantasma.  E  Zaratustra  ao  pensar  sobre  isto,  faz  com  que  o fantasma  desapareça.  Este  deus  é  um  valor  e  Zaratustra  cria  outro  valor,  um  valor  que  seja afirmativo  da  vida.  Nietzsche dirá que este deus transmundano, que nega  a vida e o corpo, que nega a  terra  e   o   homem,   é  uma  criação  de  pessoas  decadentes,  pessoas  que  sofriam  e  não  tinham 4
  • 5. explicação  para  o  seu  sofrer.  O  sofrer  sem  sentido  fez  com   que  tais  sofredores  criassem  um  deus que fizesse sofre a todos. os corpos doentes dos homens foi que fez esse deus. Zaratustra diz: “Foram  os  enfermos  e  os  moribundos  que   menosprezaram  o  corpo  e  a terra,  inventando  coisas   celestes  e  as  gotas  de  sangue  redentor...  queriam fugir  da  sua  miséria e as estrelas estavam demasiado longe para eles. Então suspiraram:  oh!  Se  houvesse  caminhos  celestes  para  furtivamente  deslizar para  outro  ser,  outra  felicidade!  Então  inventaram  seus  artifícios  e  suas beberagens sangrentas “( Assim falava Zaratustra, pág 44.) Para  Nietzsche,   pela  boca  de  Zaratustra  era  a  demência  da  razão,  a  coisa  que  aproximava de  Deus,  enquanto  que  a  dúvida  era  pecado. Zaratustra conclama aos seus seguidores que escutem a  voz  do  corpo,  não  a  voz  doente  dos  desprezadores,  mas  a  do  corpo sadio,  pois seria a  voz mais leal  e  mais  pura  a  que  fala  do  sentido  da  terra.  Os  desprezadores  do  corpo  não  conduzem  ao super­homem,  que  é o homem que afirma, que apregoa uma nova humanidade, que rejeita as tábuas de valores e que cria as sus próprias tábuas. É o tornar­se do homem a si mesmo. Outra  questão  importante  tratada  por  Nietzsche  e  que  é  um  dos  pilares  do  cristianismo  é  a compaixão.  A  compaixão  é  um  valor  cristão  que  esconde  uma  insatisfação  consigo  mesmo,  uma incapacidade   de  alegrar­se  com  a  vida  e  uma   multiplicação  da  dor.  Ao invés de se compadecer do sofrimento, o melhor é alegrar­se e minimizar a dor. Sobre a compaixão:   Previno­vos,  pois  contra  a  compaixão.  É dela que, para os homens, ainda surge  uma nuvem carregada. Na verdade, eu entendo muito bem de nuvens carregadas.  Mas  lembrai­vos  também  destas  palavras:  todo  grande  amor está  ainda  acima  de  toda  compaixão  porque  aquilo  que  ele  ama  quer também criá­lo. (Zaratustra, pág)   A  compaixão  é  um  valor  cristão  que  esconde  uma  insatisfação  consigo  mesmo,   uma incapacidade   de  alegrar­se  com  a  vida  e  uma  multiplicação da vida. Ao invés de se compadecer do sofrimento,  o  melhor  é  alegrar­se  e  minimizar  a  dor.  Se  o  homem  sempre  buscou  razões  para  o sofrimento  e,  para  tanto,  criou  religiões  e  justificativas  fantásticas,  seu  erro  foi  sempre  pouco  e  se alegrado  com  a  vida.  Para Nietzsche a compaixão tem ação depressora, o homem perde quando se compadece,  e,  através  da  perda  de  força  causada  pela compaixão o sofrimento tende a  aumentar e ser  também  contagioso,   nele  o  homem  pode  perder  toda  a  sua  energia  vital.  A compaixão também contraria  a  lei  da  evolução,  que  é  a  lei  da  seleção  natural.  Tendo em vista, que, ela preserva tudo o que  está  maduro  para  perecer  e  luta  em prol dos desterrados e malogrados de todos os tipos. Dá a 5
  • 6. vida um aspecto sombrio. (O Anticristo, VII). A  própria  palavra  cristianismo  para  Nietzsche  seria  na  verdade  um  grande  mal  entendido. Para  ele,  só  existiu  um  cristão  e  ele  próprio  morrera  na  cruz,  no  caso,  Jesus. O evangelho pregado enquanto  doutrina,  foi  sepultado  na  própria  cruz  do  salvador.  O  que  dali  em  diante  se  chamou  de evangelho  (boas  novas)  seria  de  fato  a  negação do próprio evangelho de Jesus,  Nietzsche chamaria de “às más novas”, um Dysangelium. A  fé  na  salvação  vista  como  sinal  distintivo  do  cristão,  além  de um erro, é considerada uma grande  estupidez.  Apenas,  a  prática  cristã, a vida vivida por aquele que morreu na cruz é cristã. Isto não  quer  dizer,   porém,  que  somente Jesus foi cristão. Embora Nietzsche reconheça a dificuldade de encontrar verdadeiros cristãos na história. Ele fala: Hoje  tal  vida  ainda  é  possível,  e  para   certos  homens  até  necessária:  o  cristianismo,  primitivo, genuíno,  continuara  sendo  possível   em  quaisquer  épocas...não  fé,  mas  atos;  acima  de  tudo  um  evitar atos,  um  modo  diferente  de ser...Estados de  consciência, uma fé  qualquer, por exemplo, a aceitação  de alguma  coisa  como  verdade  ­  como  todo  psicólogo  sabe,  o  valor  dessas  coisas  é  perfeitamente indiferente  de  quinta  ordem  se  comparado  ao  dos  instintos:  estritamente  falando,  todo  conceito  de causalidade  intelectual  é  falso.  Reduzir  o  ato  ser  cristão,   o  estado  de   cristianismo, a  uma aceitação da verdade,  a  um  mero  fenômeno  de  consciência,  equivale   a  formular  uma  negação  do  cristianismo.  De fato,  não  existem  cristãos.  O  “Cristão”  –  aquele  que  por  dois  mil  anos  passou­se  por   cristão   –  é somente  uma  auto­ilusao  psicológica.   Examinado  de  perto,  parece  que,  apesar  de  toda  a  sua  ‘fé”,  foi governado  apenas  pelo  seus  instintos  –  e  que  instintos!  Em todas as  épocas – por exemplo, no caso de Lutero  –  fé  nunca  foi  mais  do  que  uma  capa,  um  pretexto,  uma   cortina  por  detrás da qual os  instintos faziam seu jogo – uma engenhosa cegueira a dominação de todos os instintos. A  moral  cristã  é  entendida,  portanto,  como  força  inimiga  da  vida,  da vontade de potencia e uma  influencia   apolínea  que  desvirtuou  a  humanidade  por  quase  dois  mil  anos.  A  normatização  da doutrina  da  igreja  é  na  verdade,  para  Nietzsche,  a  perversão  do  evangelho  de  Cristo,  um revolucionário  por  essência.  Os  canhões  de  Nietzsche  são  voltados,  portanto,  muito  mais  para  o cristianismo como uma religião formal e força cultural, que para a pessoa de Jesus Cristo. Outra  personagem  que  merece  uma  atenção  especial  em  termos  de  agressividade nietzschiana  é o apostolo Paulo. Ele estaria a frente de todo o movimento decadente do cristianismo, que  teria  o  objetivo  de  deixar  a  humanidade  enferma,  em  confundir  os  valores  de  “bom”  e  “mau”, “verdadeiro”  e  “falso”  de  uma  maneira  que  seria  perigosa  a  vida  e  também  a  falsificava.  Para 6
  • 7. Nietzsche,  Paulo  corrompia  o  verdadeiro  sentido  do  salvador  quando  apregoava  a  doutrina  do julgamento  e  da  segunda  vinda,  a  doutrina  da  morte  como  sacrifício,  e  a  doutrina  da  ressurreição. Sobre Paulo ele diz: Paulo,  com  aquela  insolência rabínica que permeia todos  os seus atos deu  um caráter  lógico  a  essa  concepção  indecente  deste   modo:  “Se  Cristo  não ressuscitou  dentre  os  mortos,  então  é  vã  toda  a  nossa  fé  –  e  de  súbito converteu­se  o  Evangelho  na  mais desprezível e irrealizável das promessas,  a petulante  doutrina  da  imortalidade  do  individuo...  e  Paulo   a  pregava  como uma recompensa! (O anticristo, XLI)”. O  instinto  sacerdotal  de   Paulo  teria  desvirtuado  toda  a  essência  do  evangelho  de  Cristo. Seus  valores,  seus  ensinamentos,  seu  exemplo,   sua  vida  teria  sido  reduzido,  por  esse  grande “falsário”,  a  tudo  aquilo  que  lhe  fosse  útil.  Paulo  encarnaria  o  tipo  oposto  ao  “Portador   da  boa nova”,  representaria  o  gênio  do  ódio,  a  visão  do  ódio  e  a  lógica  do  ódio.  Seria  na  concepção  de Nietzsche um “disangelista”. A  denúncia  é,  portanto,  que  através  do  cristianismo  de  Paulo  o  ascetismo  triunfou  sobre  a força  renovadora  do  Evangelho.  Cristo  reformou  a  religião  judaica,  estendendo­a  para  outros povos,  unificados  pela  sua  palavra,  pregando  o  otimismo,  o  Deus  do  amor  e  a  permissão,  por exemplo,  ao  questionar  o  costume  dos  saduceus  de  respeitar  o  sábado como dia santo: “O sábado foi  estabelecido  por  causa  do homem, e não o homem por causa do sábado; de sorte que o filho do homem  é  Senhor  também  do  sábado”  (Marcos  2;28)  Jesus  se  posicionou  contra  o  servilismo repetitivo  diante  de   uma  lei  esvaziada  de  sentido,  foi  um  renovador  da  lei  judaica,  propôs  uma alternativa de liberdade e fartura, como observado no milagre da multiplicação dos pães. Observadas  algumas  das  doutrinas  cristãs  ferozmente  combatidas  por  Nietzsche,  a impressão  que  temos  é  que  o  autor,  tido  e  declarado  como  ateísta,  sempre  teve  pavor  do cristianismo  e  toda  a  forma  de  religião. Vimos que muitas vezes Nietzsche esboça até certa simpatia com  o  budismo  e  o  islamismo,  que  seriam  religiões  mais  amenas  e  menos  militaristas  que  o cristianismo. É  conveniente  lembrar  que  sua  biografia  nos  revela  dados  importantes  e  acontecimentos históricos,  cuja  influencia  não  pode  ser  desprezada.  O  pai,  Karl  Ludwig  era  pastor  luterano  e  o menino  Nietzsche  tinha  um   forte  sentimento  religioso.  As  chaves  de  interpretação  da  filosofia nietzschiana são várias e até hoje não é consensual. Será que os intérpretes tradicionais de Nietzsche têm  de  fato  os  pressupostos  para   a  sua  melhor  compreensão?  Foram  na  verdade  espíritos  livres? 7
  • 8. Não  está  descartada  inclusive  a  possibilidade  de  Nietzsche  ter  sido  um   cristão,  desiludido  com  a deformação   nas  bases  do  genuíno  Evangelho.  Deformação  atribuída  ao  apóstolo  Paulo.  O  certo  é que  Nietzsche  colocou­se  como  um  grande  e  indispensável  desafio  ao   cristianismo.  Teria  sido Nietzsche  um  cristão  autêntico?  Ou  quem sabe um cristão ressentido?  Quando lemos, por exemplo, o  seu  Zaratustra,  parece  que  estamos diante de um quinto evangelho, a forma como foi escrito, suas metáforas,  suas  parábolas  são  muito  semelhantes  aquilo  que  vemos  nos  quatro  primeiros  livros  do novo  testamento.  O  mais  comum  é  vê­lo  como  um  antievangelho.  Sua  pregação  é  de  fato  uma antipregação  e  ele  Zaratustra  é  um  profeta  que  não  tem  a  pretensão  de  ser  seguido,  pois  prega   a independência  de   toda  consciência.  O  fato  é  que  para  Nietzsche  Jesus  era  um  dos poucos homens da  história  que  ele  classificaria  como  “espírito  livre”,  não  um  salvador,  um   deus,  mas  um revolucionário.  Enfim,  podemos  concluir  que  ambos  (Nietzsche  e  Jesus)  se  colocam   como  seres messiânicos  com  uma  missão  explicita  na  terra.  Jesus  veio  salvar  os  homens  dos  seus  pecados, trazer  a   esperança  de  uma  nova  vida,  pregar  a  humildade  e  o  amor.  Enquanto  Nietzsche  veio proclamar  a  morte  de  deus  e  anunciar  a  vinda  do  super  homem.  Ou  seja,  falar  de  uma  nova humanidade,  do  além  do  homem,  da  transvaloração  de  todos  os  valores,  do  dizer  sim  do  homem para si mesmo, da afirmação, da criação de novos valores acima de bem e mal. Apesar  de toda a critica contundente de Nietzsche em relação ao cristianismo, é conveniente lembrar  que,  não  foi  o  cristianismo  quem  inventou  o  ascetismo,  por  exemplo.  Antes  de  haver cristianismo  já  havia  essa  postura  registrada  na  cultura  de  muitos  povos.  Por  isso,  Nietzsche  não deve ser encarado como um ateu comum, um mero iconoclasta.  Não é Zaratustra, por exemplo, que mata  Deus,  ele  apenas  proclama.  Quem  matou  Deus  foi  à  modernidade,  o  homem  moderno. Zaratustra  tem  o  desejo  de  ir  além  do  mero  niilismo.  O  próprio  niilismo  é  criticado  por  Nietzsche várias  vezes.  O que Nietzsche critica de fato no cristianismo é a formação do tipo cultural formado e forjado  pela  concepção  cristã  no  homem  ocidental.  Formação  essa  que  deixou  marcas  tão  fortes inclusive  no  próprio  Nietzsche.  A   morte  de  Deus  deixa  um  vazio  enorme  que  não  é  simplesmente preenchido  pelo  niilismo.  Até  porque  Nietzsche  não  compartilha  do  desalento  e  da  passividade  do niilista,  que  por acreditar que nada faz sentido se entrega e  desiste de viver. O grande desafio para o autor  é  encontrar  uma  maneira  de  fazer   a  vida  valer  a  pena  pelo  que  ela  é,  sem  recorrer  as esperanças cristãs e sem definhar no niilismo. 8
  • 9. 9