Faceli - Direito - 2° Período - Integradora I - Preâmbulo nas Constituições
STF e Mutação Constitucional
1.
2. DIREITO JUDICIAL CRIATIVO
ATIVISMO CONSTITUCIONAL E JUSTIÇA INSTITUINTE
AS NOVAS PERSPECTIVAS DO STF EM SEDE DE CONTROLE DIFUSO
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3. FICHA CATALOGRÁFICA ELABORADA PELA BIBLIOTECA CENTRAL
UNIVERSIDADE FEDERAL DE SERGIPE
Pereira, Ricardo Diego Nunes
Direito judicial criativo : ativismo constitucional e justiça instituinte
as novas perspectivas do STF em sede de controle difuso de constitu-cionalidade
/ Ricardo Diego Nunes Pereira. – São Cristóvão : Editora
UFS, 2012.
290 p.
ISBN 978-85-7822-243-7
1. Direito constitucional. 2. Direito processual. I. Título.
CDU 342:347.9
P436d
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4. DIREITO JUDICIAL CRIATIVO
ATIVISMO CONSTITUCIONAL E JUSTIÇA INSTITUINTE
AS NOVAS PERSPECTIVAS DO STF EM SEDE DE CONTROLE DIFUSO
São Cristovão, 2012
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5. UNIVERSIDADE FEDERAL DE SERGIPE
REITOR
Prof. Dr. Angelo Roberto Antoniolli
VICE-REITOR
Prof. Dr. André Maurício C. de Souza
EDITORA DA UNIVERSIDADE FEDERAL DE SERGIPE
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Rosemeri Melo e Souza
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Veruschka Vieira Franca
UFS Cidade Universitária “Prof. José Aloísio de Campos” Jardim Rosa Elze 49100-000 -
São Cristovão-SE
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6. Como “uma andorinha só não faz verão”
– relembrando Aristóteles (384-322 a.C.) –
agradeço a minha família e a minha amada
Milka.
A todos que contribuíram, muito grato.
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8. APRESENTAÇÃO
Honrado com o convite para apresentar o autor e sua primeira obra
jurídica, o faço guiado por várias razões. A primeira delas, por acreditar
no jovem estudioso e inteligente que é o Ricardo Diego. Além desta
razão, o seu livro, fruto do seu trabalho de conclusão do curso de bacha-relado
junto à Universidade Federal de Sergipe, é resultado de uma bem
realizada pesquisa e aborda um dos temas mais fascinantes do direito
constitucional contemporâneo, discutindo o papel do Supremo Tribunal
Federal como Corte Constitucional a partir das suas próprias decisões,
onde se destaca a aplicação da mutação constitucional em um processo
de criação informal de norma constitucional admitida pela teoria e a efe-tividade
do controle de constitucionalidade.
A jurisdição constitucional tem uma importância fundamental no
processo da concreção das normas constitucionais e na defesa da or-dem
constitucional, assim é que sempre serão bem vindos estudos que
possam contribuir para a compreensão do fenômeno jurídico pela via
das decisões judiciais, implicando uma análise da nova hermenêutica
constitucional, o ativismo do Supremo Tribunal Federal e as novas teo-rias
que buscam a efetividade dos princípios e normas constitucionais.
Este livro, que analisa as decisões dos Ministros Gilmar Mendes e
Eros Grau acerca do novo sentido que deram ao disposto no art. 52,
X, da CF de 1988, contribui para a compreensão da ampliação da atu-ação
do STF, o que reforça o seu papel de Corte Constitucional pela
via do controle difuso de constitucionalidade.
Concluindo, a obra merece ser lida e bem acolhida no meio juríd-ico
nacional, pois credencia o autor como um novo talento que por
certo ainda irá contribuir e muito com o seu trabalho para a ciência
jurídica, especialmente no campo do direito constitucional.
José Anselmo de Oliveira
Juiz de Direito do TJSE. Mestre em Direito Constitucional pela
Universidade Federal do Ceará. Professor da Escola Superior da Mag-istratura
de Sergipe. Professor da Pós-graduação da Estácio-FASE.
Membro da Academia Sergipana de Letras, cadeira 21. Poeta. Autor
de livros e artigos jurídicos.
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10. A Constituição de 1988 foi feita com características
de instrumento de transformação da realidade nacional.
Será assim na medida em que se cumpra e se realize
na vida prática. Uma Constituição que não se efetive
não passa de uma folha de papel, tal como dissera Las-salle,
porque nada terá a ver com a vida subjacente. As
leis que ela postula serão as garras e as esponjas que a
fazem grudar na realidade que ela visa a reger, ao mes-mo
tempo que se impregna dos valores enriquecedores
que sobem do viver social às suas normas.
Que se cumpra para durar e perdurar, en-riquecendo-
se da seiva humana que nutre e imortali-za,
se antes disso o processo de reformas neoliberais,
de interesse dos detentores do poder, não a liquidar,
pela desfiguração sistemática.
José Afonso da Silva
(Poder Constituinte e Poder Popular, 2000, p. 259)
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12. SUMÁRIO
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19
97
143
209
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245
257
Introdução
Mutação Social e Jurídica:
Considerações Propedêuticas ao Estudo da Mutação
Constitucional e a Nova Hermenêutica
Mutação Constitucional e Poder Constituinte Difuso:
Fundamentos Para a Nova Perspectiva do STF em Sede
de Controle Difuso
A Jurisdição Constitucional e o Controle de Constitu-cionalidade
Direito Judicial Criativo (Beta):
Previdência de um Modo de Direito (Ativismo Constitu-cional
e Justiça Instituinte)
Conclusão
Lista de Abreviaturas
Referências
Anexos
Como Mecanismos de Garantia da Con-stituição
e da Democracia e Cidadania
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14. Introdução 13
INTRODUÇÃO
Ao longo do trabalho jurídico, considera-se para estudo a
relação entre a maior efetividade das normas constitucionais e a
nova perspectiva do Supremo Tribunal Federal em face da juris-dição
constitucional, onde se analisa o novo paradigma que pre-tende
inovar a feição do Supremo em sede de controle difuso de
constitucionalidade, fundamentando, ao final, um autêntico Direito
Judicial Criativo, o qual traz concepções inovadoras, tais como Ativ-ismo
Constitucional e Justiça Instituinte.
Essa nova abordagem acerca dos limites da jurisdição con-stitucional
no tocante ao controle difuso dá-se frente à inop-erância
do Poder Legislativo1 – recorde-se que o próprio Senador
Garibaldi Alves (PMDB-RN) afirma que “o Congresso está na UTI”2
–, ressurgindo o debate no Supremo Tribunal Federal sobre a sua
1 A título de exemplo, basta observar que, em março de 2009, foi noticiada, no portal
eletrônico do Supremo Tribunal Federal, uma opinião que bem reflete a situação atual
do Poder Judiciário e do Poder Legislativo. A Senadora Fátima Cleide (PT-RO), refer-indo-
se ao tema dos direitos dos homossexuais (objeto da ADPF 132), afirmou que o
Supremo, mais uma vez, vai assumir o lugar do Congresso, que não consegue votar
leis específicas sobre questões homossexuais: “Temos muitas dificuldades de avançar;
são mais de 40 projetos de lei (sobre esse tema) no Congresso Nacional e infelizmente
naquela Casa nós não conseguimos avançar, de forma que a jurisprudência tem nos
mostrado que a Justiça sempre garante os direitos”.
2 Cf. ALVES, Garibaldi. O Congresso na UTI. Veja, São Paulo, n. 2054, 2 abr. 2008. p. 11-15.
Entrevista. O seguinte trecho dessa entrevista é revelador da situação atual do Con-gresso:
“O Congresso deixou de votar, de legislar, de cumprir sua função. É uma agonia
lenta que está chegando a um ponto culminante. Essa questão das medidas provisó-rias
é emblemática da crise do Legislativo, que não é mais uma voz da sociedade, não é
mais uma caixa de ressonância da opinião pública. Está meio sem função. O Congresso
está na UTI, e ninguém do mundo político percebe que esse desapreço pelo Poder Le-gislativo
é uma coisa que está minando as suas bases de sustentação e que a qualquer
hora poderá haver um momento de maior tensão, de crise entre os poderes. À medida
que o Legislativo abre mão de suas prerrogativas, o Executivo [e o Judiciário] invade
espaços. Precisamos inverter essa tendência. [...] Essa leniência [agora referindo-se à
corrupção que assola o Congresso] tira a autoridade do Legislativo”. Essa situação é tão
crítica que o Senador Cristóvão Buarque (PDT-DF) disse, de forma radical, que, no ritmo
que se vai, logo alguém proporá a convocação de um plebiscito para decidir se não é
o caso de o Brasil fechar o seu Congresso. Para evitar tal situação, o Deputado Federal
Michel Temer (PMDB-SP), para quem “o Legislativo só é enaltecido quando o país está
saindo de um regime autoritário”, defende que “o Congresso, porém, precisa reagir e
promover uma recuperação ética [...]”. Cf. TEMER, Michel. É preciso reagir agora. Veja,
São Paulo, n. 2109, 22 abr. 2009. p. 17-21. Entrevista.
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15. 14 Direito Judicial Criativo
possibilidade ou não. Leva-se em consideração, para tanto, a teo-ria
da transcendência dos motivos determinantes e, especialmente,
os estudos da Mutação Constitucional, que significa, consoante
Uadi Lammêgo Bulos (1997, p. 57), um processo informal de mu-dança
da Constituição, dando-lhe novos sentidos e conteúdos até
então não alcançados pela sua simples letra, seja pela interpre-tação,
seja por meio da construção (construction), ou mesmo dos
usos e costumes constitucionais.
Observa-se, destarte, que a hermenêutica e a interpretação são
figuras importantes para a correta apreensão do conceito de Mu-tação
Constitucional, motivo pelo qual se reserva um capítulo inteiro
à sua análise (tanto da hermenêutica jurídica quanto da hermenêu-tica
constitucional, especialmente esta).
Tal discussão deve-se, principalmente (mas não somente, con-forme
será visto a partir da análise da tendência de abstrativização do
controle concreto), à Reclamação 4.335-5/AC, onde o Ministro Relator
Gilmar Mendes, seguido de Eros Grau (hoje aposentado), impende
uma mutação no sentido normativo do art. 52, X, CF/88, que deve-ria
ser lido normativamente da seguinte maneira, a repúdio da atual
redação e da norma derivada: “compete privativamente ao Senado
Federal dar publicidade à suspensão da execução, operada pelo Supre-mo
Tribunal Federal, de lei declarada inconstitucional, no todo ou em
parte, por decisão definitiva do Supremo”.
Sendo assim, em resumo, as decisões em âmbito de controle di-fuso
passariam a ter os efeitos ditados pelo Supremo – com possibili-dade
de dar os mesmos efeitos de uma decisão proferida no controle
concentrado (erga omnes e vinculante) –, e não ficar aguardando a
boa vontade do enfermo Congresso Nacional para suspender a lei
declarada inconstitucional. Os efeitos extraídos das discussões trava-das
nos votos dos Ministros já repercutem no mundo jurídico, com
publicações de Teses3 e outros trabalhos científicos, como este, além
de acirrados debates em palestras a respeito do tema.
3 Refira-se, por oportuno, à Tese de Doutorado do professor Lucas Gonçalves da Silva,
da Universidade Federal de Sergipe – UFS, cujo título foi obtido em 2009, com ori-entação
de André Ramos Tavares: Mutação Constitucional pela Justiça Constitucional:
Tipologia e Limites. O referido professor também fez estudos sobre a Hermenêutica e
Interpretação Constitucional (mestrado em direito) e O papel do Supremo Tribunal Fede-ral
na garantia dos direitos fundamentais.
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16. Introdução 15
Há, basicamente, que se discutir acerca de qual seria o sentido ex-traído
da norma do art. 52, X, CF/88, que diz, textualmente, que “compete
privativamente ao Senado Federal suspender a execução, no todo ou em
parte, de lei declarada inconstitucional por decisão definitiva do Supremo
Tribunal Federal”, permitindo-se, ao final, com base forte na hermenêu-tica
constitucional, uma alteração no sentido normativo do dispositivo.
O problema, entretanto, forma-se à medida que se faz o questiona-mento
sobre a legitimidade daquilo propugnado pelos Ministros Gilmar
Mendes e Eros Grau, ou seja, é necessário saber se esse novo quadro está
condizente com o ordenamento jurídico-constitucional brasileiro.
Poder-se-ia pensar, inicialmente, que toda abordagem estaria es-gotada,
de certo modo, em razão da adoção, pela Emenda Constitu-cional
45/04, da Súmula Vinculante (art. 103-A, CF/88) – sem falar nos
outros instrumentos trazidos ultimamente para dar efetividade ao
princípio constitucional da razoável duração do processo, instado no
art. 5º, LXXVIII, CF/88, que foi acrescido também pela Emenda 45/04,
tais como a Lei de Repercussão Geral (Lei 11.418/06)4, no âmbito do
STF, a Lei dos Recursos Repetitivos (Lei 11.672/08), no âmbito do STJ5,
e, mais recentemente, o II Pacto Republicano6.
Quimera. Até porque muda a estrutura tradicional do controle
difuso, argumentos de peso são colocados pelos que dizem ser sub-versor
o posicionamento de mudança de sentido do art. 52, X, CF/88,
dentre eles a violação do princípio da Separação dos Poderes, a fun-damentação
por uma Mutação Inconstitucional e a caracterização do
Poder Judiciário como um poder constituinte permanente, ilegítimo
e autoritário (“ditadura do Judiciário”), ao dar a função ao Senado Fed-
4 Essa lei foi questionada por meio da ADI 4175, pois restringiria o acesso do cidadão
ao STF, porém foi indeferida a inicial pelo Rel. Min. Carlos Britto, DJE 06/02/2009, por
falta de pertinência temática quanto ao autor.
5 Consoante noticiado em janeiro de 2009, no portal eletrônico do STJ, o Min. Luiz Fux,
agora do STF, defende que este Tribunal Superior adote também a Súmula Vinculante
e a Repercussão Geral para selecionar as causas que irão a julgamento, o que demon-stra
a tendência atual em busca da efetividade e celeridade, enfim, da economia pro-cessual,
pela qual se persegue, com ponderação, a obtenção de maior resultado com
o menor uso de atividade jurisdicional.
6 O I Pacto Republicano, assinado em 2004, gerou toda a modernização do sistema da
Justiça e reformulação das leis. O II Pacto Republicano tem três objetivos principais: a
proteção dos direitos humanos e fundamentais, a agilização e efetivação da prestação
jurisdicional e a promoção de maior acesso à Justiça.
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17. 16 Direito Judicial Criativo
eral de mero chancelador das decisões do Supremo. Nesse sentido,
pode-se citar Lenio Luiz Streck, Marcelo Andrade Cattoni de Oliveira
e Martonio Mont’Alverne Barreto Lima (2007), além de Marcelo Nov-elino
(2009), Pedro Lenza (2011), Wellington Márcio Kublisckas (2009),
o professor da Universidade Católica de Petrópolis – UCP, Roberto
Wagner Lima Nogueira (2008), e o professor Mestre da Universidade
Federal de Sergipe – UFS, Carlos Augusto Alcântara Machado (infor-mação
verbal)7. Registre-se, ainda, que o Ministro Sepúlveda Pertence
julgou improcedente a reclamação e o Ministro Joaquim Barbosa não
a conheceu, mas ambos concederam habeas corpus de ofício.
De outro lado, afirmando ser autêntica a expendida Mutação Con-stitucional
no dispositivo da Carta Maior, destacam-se Dirley da Cunha
Júnior (2010) e os já referidos Ministros do Supremo, Gilmar Mendes e
Eros Grau, podendo-se mencionar ainda, pelos estudos desenvolvidos,
André Ramos Tavares (1998), além de Teori Albino Zavascki (2001, apud
LENZA, 2011) e Lúcio Bittencourt (1968, apud LENZA, 2011).
Adotando uma posição de elasticidade da atuação do Excelso
Pretório e do próprio Poder Judiciário, a alteração do sentido norma-tivo
seria uma das formas de garantir a autoridade das decisões do STF,
transformando-o, assim se entende, em verdadeira Corte Constitu-cional.
Outro ponto importante, destacado por Gilmar Mendes, passa
pela questão da própria limitação natural do instituto da suspensão de
execução da lei pelo próprio Senado, cuja eficácia não pode ser ampli-ada
quando o caso assim requeira – isso tudo será mais bem detalhado
em tópico correspondente. Ademais, tema reflexo é a necessidade de
o direito acompanhar as diretrizes sociais e a aclamação por soluções
efetivas e céleres aos problemas concretamente postos.
Acaso prevaleça essa última posição, a depender da votação da
Rcl. 4.335-5/AC, estabelecer-se-á um verdadeiro corte epistemológi-co,
isto é, uma ruptura de paradigma da Jurisdição Constitucional no
7 Palestra proferida no XVII Simpósio Transnacional de Estudos Científicos (Constitucio-nalismo
e Relações Internacionais – 06 a 10 de outubro de 2008, Universidade Federal
de Sergipe – UFS), cujo tema apresentado em 06/10/2008 pelo professor Carlos Au-gusto
Alcântara Machado foi A Constituição de 1988 como Obra Inacabada. Na opor-tunidade,
falou que não concorda com o pensamento de Gilmar Mendes, pois, como
propugnada, a mutação constitucional é, na verdade, mutação inconstitucional, apesar
de admitir ser a tendência do STF. Afirmou, ainda, que “devemos observar o direito
brasileiro de acordo com a realidade brasileira”.
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18. Introdução 17
Brasil – que, repita-se, já está ocorrendo em virtude de outros fatores
em tendência. Isso porque as decisões em âmbito de controle difuso
passariam a ter os efeitos ditados pelo Supremo, fortalecendo-se, de-starte,
como Corte Constitucional.
Uma nova concepção acerca do Controle de Constitucionali-dade,
do Poder Constituinte, do Equilíbrio entre os Poderes e do Sis-tema
Federativo está surgindo, o que pode estabelecer uma ruptura
paradigmática no plano da Jurisdição Constitucional no Brasil, tra-zendo,
como corolário, mais efetividade aos direitos e garantias con-sagrados
na Carta Magna, em virtude da extensão dos efeitos das de-cisões
para todos, mormente naquilo que diga respeito às liberdades
individuais e à cidadania, pelo que se fortalece a segurança jurídica
e a justiça, objetivos esses almejados tanto pelo Direito quanto pela
Ética, como bem lembra o Doutor em Direito, Professor Osvaldo Fer-reira
de Melo (2005), aludindo-se a Miguel Reale.
Assim sendo, é objetivo do presente trabalho o estudo detido do
complexo tema, mas que recai em assuntos conexos como, dentre vári-os
outros, o fenômeno da jurisprudencialização e do ativismo judiciário8,
hoje deveras expandido. Para tal desiderato, serão utilizadas diversas
fontes, tais como doutrina, leis e jurisprudência, e partir-se-á da prem-issa
de que o Direito não é estático, ou seja, ele sempre está buscando
soluções para pacificar o meio social, sendo feita, preponderantemente,
uma análise histórica e teleológica dos institutos jurídicos.
Com essas considerações introdutórias, vê-se que está aberta
uma nova Caixa de Pandora, donde pode transbordar, sem embargo
do maniqueísmo, tudo de bom e de mau. Comece-se, então, a mexer
nessa Caixa, tentando extrair os pontos positivos e fundamentais
da tese a ser defendida, qual seja, maior garantia dos direitos fun-damentais
insculpidos na Constituição através da mudança de para-digma
do controle difuso de constitucionalidade.
8 A omissão e atrofia do Legislativo, que muitas vezes obriga o Judiciário a “legislar”,
não é somente uma questão do Brasil. Na Lituânia, foi debatido, no 14º Congresso da
Conferência de Cortes Constitucionais Europeias, ocorrido em junho de 2008, o tema
da omissão legislativa na jurisprudência constitucional, onde, “na ocasião, o ministro
Gilmar Mendes proferiu uma palestra mostrando que a Constituição brasileira de 1988
permite ao Judiciário exercer funções legislativas em caso de omissão do Congresso
Nacional, e fez um relato da experiência da Suprema Corte brasileira no julgamento
de casos relativos ao tema”, consoante a notícia publicada em abril de 2009, no portal
eletrônico do STF.
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20. 1
Mutação Social e Jurídica:
Considerações Propedêuticas
ao Estudo da Mutação
Constitucional e a Nova
Hermenêutica
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22. 21
Mutação Social e Jurídica:
Considerações Propedêuticas ao Estudo da Mutação
Constitucional e a Nova Hermenêutica
O que é Direito? Essa é, provavelmente, a primeira pergunta a
que todos que ingressam no estudo da “ciência jurídica”1 propõem-se
a responder. Não é intento deste trabalho o aprofundamento do
tema, porém algumas palavras são necessárias, até porque é de rel-evância
para o estudo a percepção da dialética da nossa matéria.
É verdade que a lei (ou norma jurídica) é o principal objeto (ou
fonte) de análise do Direito. Recordemos, entretanto, que quando
se busca o que o Direito é devemos levar em consideração, sob
o aspecto de uma mutação social e jurídica, as transformações
por que passam, de forma constante, o seu conteúdo e sua forma,
sendo ele, por fim, o resultado de uma manifestação concreta do
mundo histórico, cultural e social2. Percebe-se, desde já, que out-ros
fatores (valores e fatos, por exemplo)3 também devem ser ob-servados
ao se estudá-lo.
Justamente por não vislumbrar o Direito como “coisa” fixa,
parada, definitiva e eterna, Roberto Lyra Filho (2005, p. 86), ob-servando
a dialética4 na sua realização, se reporta a ele, precisa-mente,
como um processo, dentro do processo histórico. Expli-ca:
“[...] cada perfil atualizado do direito autêntico é um instante
do processo de sua eterna reconstituição, do seu avanço, que vai
desvendando áreas novas de libertação [processo de libertação
permanente]” (LYRA FILHO, 2005, p. 85, grifo do autor). Assim,
conclui o referido autor que o Direito não “é”; ele “vem a ser”. E
1 Note-se que o termo ciência aqui não está empregado, como outrora se queria, a um
estudo puro do direito, sem relacioná-lo a nenhum fator externo. Ver-se-á, ao longo
deste trabalho, que a interdisciplinaridade e o estudo de fatores instáveis (fatos e va-lores)
também estarão presentes.
2 Parece natural dizer, como o faz Norberto Bobbio (1992), que o que seja fundamental em
determinada época histórica e civilização pode não o ser em outras épocas e em outras cul-turas,
não se podendo conceber fundamento absoluto a direitos historicamente relativos.
3 Miguel Reale (2002) assim se reportava ao Direito, como o conjunto indissociável
dos fatos, valores e normas, sendo expressão cultural, portanto – essa é a conhecida
estrutura tridimensional do Direito.
4 Registre-se, desde já, o que se entende por processo dialético, nas lições de Karl Pop-per
(1972, p. 345, apud COELHO, 2002, p. 99): “Na terminologia de Hegel, tanto a tese
quanto a antítese são reduzidas, pela síntese, a componentes, e portanto canceladas
(negadas, anuladas, afastadas); ao mesmo tempo, são preservadas (guardadas) e eleva-das
(a um nível superior). Hegel aproveita a ambigüidade da palavra alemã ‘aufgehoben’,
empregando-a no sentido de reduzida a componentes, cancelada, preservada e elevada”.
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23. 22 Direito Judicial Criativo
por ele “vir a ser”, entende-se que a pergunta inicial “o que é Di-reito?”
deve transmudar-se para “o que vem a ser Direito?”, já que
“é todo o processo [derivado da constante luta social] que define
o Direito, em cada etapa, na procura das direções de superação”
(LYRA FILHO, 2005, p. 83).5 6
Goffredo Telles Junior ([1971?], p. 285), em curiosa obra pub-licada
originalmente em 1970 (O Direito Quântico: ensaio sobre o
fundamento da ordem jurídica), se reportou ao Direito, em conexão
epistemológica com a Física Quântica, como “a ordenação quânti-ca
das sociedades humanas”. Essa correlação serve para simbolizar
o quanto as relações sociais reguladas pelo Direito são instáveis.
Na Física clássica (tradicional, não quântica) o que temos são com-portamentos
previsíveis (por exemplo, pode-se saber a trajetória
de uma bola antes mesmo de arremessá-la). Já na Física quântica,
é impossível prever, com absoluta certeza, a trajetória das coisas:
elas fazem todos os caminhos possíveis e ao mesmo tempo. As-sim,
como o comportamento do homem (ou grupos de homem)
não pode ser, de forma absoluta, determinado7, diz-se que as leis
humanas são leis de probabilidade, cabendo ao Direito Objetivo
5 Interessante dizer que o sistema jurídico, sofrendo influências e interações com o
meio externo, acaba por ser reflexo da sociedade em que está inserido, admitindo-se
mudanças. Por isso, concebe-se tal sistema como aberto, alopoiético, prospectivo,
heterônomo, em contraposição à ideia de um sistema fechado, autopoiético, retro-spectivo,
autônomo (embora quem assim o considere não deixa de admitir a interfe-rência
da sociedade, mas não a sua influência e interação, como o é no sistema alopoié-tico).
(SIQUEIRA JR., 2006)
6 Curiosa, também, é a ilustração da capa da obra de Roberto Lyra Filho O que é Di-reito,
publicada em 2005 pela editora brasiliense, em sua Coleção primeiros passos
(nº 62): há a imagem de dois operários carregando a estátua da deusa Justitia, que
foi tirada do seu pedestal, o que fez surgir o sol em seu lugar. Nesse caso, levando-se
em consideração o conteúdo da obra, é possível denotar a seguinte interpretação: a
saída de uma concepção estritamente positivista do direito (com os seus respectivos
“operadores jurídicos”, termo este que transmite a ideia de aplicação mecânica do di-reito),
surgindo uma nova concepção de direito (pós-positivismo) que brinda a relação
entre valores, princípios e regras, aspectos estes da Nova Hermenêutica Constitucional
e da teoria dos direitos fundamentais, edificada sobre o fundamento da dignidade
humana, que ilumina a todos indistintamente.
7 É inerente ao homem (e, por derivação, à sociedade) a contínua mudança, sendo “[...]
da natureza imutável do homem, mudar e mudar sempre”, ou dito de outra forma, “o
eu histórico é um eu permanente, mas um eu permanente em contínuo perfazimento”
(TELLES JUNIOR, [1971?], p. 277).
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24. 23
Mutação Social e Jurídica:
Considerações Propedêuticas ao Estudo da Mutação
Constitucional e a Nova Hermenêutica
quantificar e autorizar, ou não, a maneira de proceder. Ou seja, o
Direito Objetivo
é a ordenação [de determinadas interações hu-manas]
que quantifica a liberação das energias hu-manas,
para assegurar o equilíbrio das forças, e para
garantir que, a cada direito, corresponda uma obrig-ação.
É a ordenação que delimita a liberação de en-ergia,
nos campos dos homens [quanta], para que a
sociedade seja efetivamente o que ela precisa ser,
isto é, um meio a serviço dos fins humanos. (TELLES
JUNIOR, [1971?], p. 285)
Importante notar que Goffredo Telles Júnior, ao fazer essa abord-agem,
almeja a conclusão de que o Direito deve se sujeitar aos fins
a que a sociedade anseia, sendo, ainda, a disciplina especializada
em engineering social8:
Assim como essas proteínas se dirigem com
autonomia, em conformidade com os interesses fisi-ológicos
da célula, assim também o Direito, livre de
imposições absolutas, se pode dirigir pelos inter-esses
reais da sociedade, de acordo com os siste-mas
de referencia [sic] efetivamente vigorantes.
(TELLES JUNIOR, [1971?], p. 285, grifo nosso)
Esse Direito, inserido, representativamente, na harmonia do uni-verso
(do Unum versus alia; do Uno feito do diverso) e promovido
para/pelos anseios da sociedade (que dá legitimidade ao governo),
possui natureza dual, consoante aponta Túlio Lima Vianna (2008, p.
119): é, ao mesmo tempo, instrumento de dominação e de resistên-cia9;
de manutenção do status quo e de inclusão social; de segurança
jurídica e de justiça distributiva. Essa dualidade revela a já referida di-alética
na realização do Direito. Dessa forma, a Teoria Quântica do
8 Em alusão às proteínas reguladoras, produtos especializados em engineering
molecular.
9 “[...] o revolucionário de ontem é o conservador de hoje e o reacionário de amanhã”
(LYRA FILHO, 2005, p. 82).
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25. 24 Direito Judicial Criativo
Direito10 (ou, se preferir, a Teoria de um Direito não-determinista),
ao conceber o fenômeno jurídico como instrumento dual de domi-nação/
resistência, revela o caráter político que permeia todas as
decisões judiciais, que não podem ser consideradas, a priori, como
certas ou erradas – em razão da superação da ideia de uma razão
jurídica universal (no sentido de verdade absoluta)11, pelo que temos,
nos dias de hoje, uma realidade a ser compreendida12 –, “[...] mas ações
políticas que ora tutelam os interesses de manutenção do status quo,
ora os interesses de redução da tensão de poder entre opressores e
oprimidos” (VIANNA, 2008, p. 120).
A figura do juiz, assim, ganha relevo. É ele que, longe de ser ape-nas
um observador neutro para fins de se extrair o significado verda-
10 Vale dizer que a teoria do conhecimento em geral foi abalada pelo “golpe quântico”,
pelo qual a Teoria Quântica (após os outros golpes dados pela Cosmologia de Copérnico,
pela Biologia de Darwin e pela Psicologia de Freud) substituiu a racionalidade deter-minista
da Física daquele momento por uma racionalidade probabilística do “princípio
da incerteza” (Heisenberg), inaugurando uma era que pôs fim às certezas. É nesse ponto
que a verdade objetiva, natural e divina cede espaço a uma verdade subjetiva, artificial
e humana, ou seja, é o olhar do observador que irá definir o que é verdade, em um pro-cesso
de compreensão. Por isso, o referido autor diz que “a paradoxal certeza absoluta
do pensamento pós-moderno é que tudo é relativo. Não há verdades, apenas probabili-dades”
(VIANNA, 2008, p. 119). Note-se, ainda, que nas décadas de 70 e 80 do século XX,
surgiu o movimento crítico do direito, que questionava o “saber jurídico tradicional na
maior parte de suas premissas: cientificidade, objetividade, neutralidade, estabilidade,
completude” (BARROSO, 2003, p. 14/15, apud WINCK, 2007, 43). Tais acepções serão mais
bem explicadas no tópico referente à (nova) hermenêutica jurídica – subcapítulo 1.2.
11 O pensamento da pós-modernidade, relegando as verdades metafísicas e puramente
racionais de outrora, atesta o término dos “marcos de referência da certeza” (LEFORT, 1991,
p. 50, apud WINCK, 2007, p. 45), fato esse que condiz com o universo complexo, dinâmico
e instável das sociedades atuais e que reflete crises de legitimidade e na própria produção
e aplicação da justiça (WOLKMER, 1991, p. 32, apud WINCK, 2007, p. 45). A abordagem da
“verdade” passa a ser feita no plano da criação humana derivada de um processo racional
de compreensão da realidade concreta, o que corrobora o pensamento de Nietzsche de
que não há sentido em se falar de origem (Ursprung) do conhecimento humano, mas, sim,
em invenção (Erfingdung), criação deste conhecimento (FOUCAULT, 2000, p. 262, apud VI-ANNA,
2008, p. 115/116), desembocando, consoante aponta Foucault (2003, p. 27, apud
VIANNA, 2008, p. 117), em múltiplas racionalidades, cada qual com as suas “verdades”. Não
deixa de ser curiosa, quanto à analise da “verdade” e da “mentira”, a composição de Edu
Lobo e Chico Buarque, Verdadeira Embolada: Na realidade | Pouca verdade | Tem no cordel da
história | No meio da linha | Quem escrevinha | Muda o que lhe convém.
12 As coisas do mundo, inclusive os fatos sociais, são resultados de um sentido en-laçado
pelos homens, que edificam, historicamente, através de uma sucessão de es-colhas
(permitidas pela vontade, intenção, livre arbítrio, livre afirmação), um sistema
de valores (cultura) (ARON, 1982, p. 485).
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26. 25
Mutação Social e Jurídica:
Considerações Propedêuticas ao Estudo da Mutação
Constitucional e a Nova Hermenêutica
deiro da lei, cria a norma a ser aplicada ao caso concreto, através da
escolha (jurídica e política13) entre uma racionalidade de segurança
jurídica (cujos elementos são estabilidade, previsibilidade e unifor-midade)
e uma racionalidade de justiça distributiva – valores esses,
normalmente, apontados como inversamente proporcionais, com o
que não se pode concordar, pois, na verdade, há uma relação entre
eles de coordenação e de equilíbrio.
Quando nos referimos à necessidade de a norma corresponder
aos anseios da sociedade como forma de legitimação do governo14,
quer-se chamar a atenção para a própria acepção de Justiça. Não a
justiça inserida nas leis, nem aquela justiça doutrinária ideal – emb-ora,
por vezes, em ambas possa se encontrar –, mas a Justiça Social15,
a que Goffredo Telles Junior ([1971?]) invoca, em nova roupagem,
como Direito Natural. Para ele, “[...] o autorizamento das normas ju-rídicas
decorre da natureza da sociedade, uma vez que, em cada co-munidade,
certos movimentos hão de ser exigíveis, e outros hão de
ser proibidos” (TELLES JUNIOR, [1971?], p. 280/281). Assim, o Direito
Natural, nessa concepção, é o Direito que não é artificial, sendo, na
verdade, “[...] consetaneo [sic] com o sistema ético de referencia [sic],
13 Não há como se negar que o juiz, ao decidir, traz consigo todo seu arcabouço mor-al,
ético e ideológico. A própria palavra “sentença”, na acepção dada pelo Dicionário
Houaiss (2001), sugere isso, já que, originando-se do latim sententia, significa “[...] sen-timento,
parecer, opinião, idéia, maneira de ver, impressão do espírito; modo de pen-sar
ou de sentir, vontade, desejo; opinião (emitida pelo Senado)”.
14 Governo está aqui alocado como “o conjunto das funções necessárias à manutenção
da ordem jurídica e da administração pública” (MALUF, 1995, p. 27), ou, dito de outra
forma por Duguit (apud MALUF, 1995, p. 27), no sentido coletivo, “[...] como conjunto
de órgãos que presidem a vida política do Estado [...]”, e não no sentido meramente
singular de Poder Executivo.
15 Consoante o Dicionário Acadêmico de Direito de Marcus Cláudio Acquaviva (2003, p.
470/471), a Justiça Social, vinda do latim justitia, já fazia parte da ideia de justiça na época
de Platão e Aristóteles, embora o adjetivo social tenha sido incorporado no século XIX, em
razão das crises socioeconômicas. A expressão justiça social foi divulgada, inicialmente,
pela doutrina social da Igreja, sendo relacionado como princípio divino. Com a ascensão
do Iluminismo (sécs. XVII e XVIII), esse conceito tradicional começou a declinar, dando
margem ao direito natural (atributo da própria natureza humana). Após, a ideologia his-toricista
(Von Savigny) nivela os atributos da pessoa humana às concepções de cada mo-mento
histórico, enquanto o Positivismo revela ser a justiça o direito positivo (lei escrita) de
cada povo. Na verdade, em Aristóteles já se vê o moderno significado da expressão justiça
social, enunciado como o princípio da justiça distributiva, pelo qual a comunidade deve
distribuir a seus membros os bens e encargos de forma equitativa, isonômica.
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27. 26 Direito Judicial Criativo
vigente em uma dada comunidade” (TELLES JUNIOR, [1971?], p. 280),
isto é, Direito Natural é sempre um Direito Positivo que esteja de
acordo com as expectativas legítimas da sociedade16 17 (TELLES
JUNIOR, [1971?], p. 281). Essa acepção do direito enquanto corre-spondência
dos anseios de justiça da sociedade é, precisamente, de-lineada
por Roberto Lyra Filho (2005, p. 85):
O legalismo é sempre ressaca social de um im-pulso
criativo jurídico. Os princípios se acomodam
em normas e envelhecem; e as normas esquecem
de que são meios de expressão do Direito móvel, em
constante progresso, e não Direito em si. [...] Direito e
Justiça caminham enlaçados; lei e Direito é que se di-vorciam
com freqüência. Onde está a Justiça no mun-do?
– pergunta-se. Que Justiça é esta, proclamada por
um bando de filósofos idealistas, que depois a entre-gam
a um grupo de “juristas”, deixando que estes de-vorem
o povo? A Justiça não é, evidentemente, esta
coisa degradada. Isto é negação da Justiça [...]. Porém,
onde fica a Justiça verdadeira? Evidentemente, não é
cá, nem lá, não é nas leis (embora às vezes nelas se
misture, em maior ou menor grau), nem é nos princí-pios
ideais, abstratos (embora às vezes também algo
dela ali se transmita, de forma imprecisa) [...].
Com essas considerações, conclui magistralmente:
[...] a Justiça real está no processo histórico de que
é resultante, no sentido de que é nele que se realiza
progressivamente. Justiça é Justiça Social, antes
16 Kant (apud SILVA, R.P.M., 2005) considera que o direito positivo (não natural) não tem
como estabelecer o que é justo e injusto, mas apenas se determinado fato ou ato é
lícito ou ilícito sob o ponto de vista jurídico.
17 Cf. GRAU, Eros Roberto. O direito posto e o direito pressuposto. 8. ed. São Paulo: Malhei-ros,
2011. 384 p., em função de interessante cotejo entre o direito posto (leis) e pressu-posto
(princípios), mostrando-se, em síntese, a necessidade de se transcender o mero
direito posto para encontrar na realidade social as raízes do Direito, vendo-o, portanto,
num sistema sob influência de vários fatores, sejam políticos, jurídicos, econômicos
ou culturais, todos encarados de forma dinâmica, os quais também devem, por certo,
atender as demandas sociais igualmente dinâmicas.
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28. 27
Mutação Social e Jurídica:
Considerações Propedêuticas ao Estudo da Mutação
Constitucional e a Nova Hermenêutica
de tudo: é atualização dos princípios condutores,
emergido nas lutas sociais, para levar à criação
duma sociedade em que cessem a exploração e
opressão do homem pelo homem; e o Direito não
é mais, nem menos, do que a expressão daqueles
princípios supremos, enquanto modelo avançado
de legítima organização social da liberdade. [...]
Direito é processo, dentro do processo histórico
[...]. (LYRA FILHO, 2005, p. 86, grifo nosso)
Sem o fim de imersão no terreno fértil que é a discussão em
torno da Justiça, e a título de complementar tudo o que já foi ana-lisado,
apenas diga-se, com o escólio firme de Miguel Reale (2002,
p. 375/376), que não se pode separar a compreensão subjetiva da
Justiça, enquanto valor da pessoa humana, da forma objetiva, como
realização da ordem social justa (a multicitada Justiça Social18),
[...] mesmo porque o seu de cada um somente logra
sentido na totalidade de uma estrutura na qual se cor-relacionem,
deste ou daquele modo, o todo e as partes
[e] [...] porque esta ordem [social justa] não é senão
uma projeção constante da pessoa humana, valor-fon-te
de todos os valores através do tempo [...] visando a
atingir a plenitude de seu ser pessoal, em sintonia com
os da coletividade. (REALE, 2002, p. 376/377)
Para ele, “a justiça, em suma, somente pode ser compreendida ple-namente
como concreta experiência histórica, isto é, como valor fundan-te
do Direito ao longo do processo dialógico da história” (REALE, 2002,
p. 377), traço esse também assinalado, como visto, por outros autores.
Em vista de todo o exposto, o Direito pode ser concebido como
o ordenamento jurídico, ou seja, o sistema de normas ou regras ju-
18 O termo Justiça Social, além do significado posto no texto, pode-se referir também,
pragmaticamente, à ampliação de certo direito fundamental para a coletividade. Tal
sentido, interessante notar, foi utilizado recentemente pelo Presidente dos Estados
Unidos, Barack Obama, ao defender a proposta de reforma do sistema de saúde dos
EUA, pela qual haveria um sistema público universal de saúde. Na ocasião, em discurso
no Congresso, declarou que saúde para todos é uma questão de “justiça social”. Cf.
PETRY, André. Depois do palanque, vida real. Veja, São Paulo, n. 2130, 16 set. 2009. p.
108-109. Reportagem.
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29. 28 Direito Judicial Criativo
rídicas que traçam determinadas formas de comportamento, além
de ser a ciência que o estuda (Ciência do Direito e Jurisprudência19)
– concepção normativa. É, ainda, fenômeno histórico-cultural – con-cepção
fática –, que traduz um ideal de Justiça (Justiça Social, mais
especificamente) – concepção valorativa (REALE, 2002).20 Esses três
elementos (tridimensionalidade do direito) se integram de forma
dinâmica e dialética, na forma denominada por Miguel Reale (2002,
p. 67) de “dialética de implicação-polaridade”, ou seja, fato e valor
se correlacionam de modo irredutível (polaridade) e mútuo (impli-cação),
dando origem à estrutura normativa como momento de reali-zação
do Direito. Em seara constitucional, como não poderia deixar
de ser, a tridimensionalidade também está presente:
[...] as Constituições elaboradas no período pós-Se-gunda
Guerra Mundial – estruturadas no contexto
do movimento denominado pós-positivismo ou neo-constitucionalismo
– são documentos abertos que
visam congregar, especialmente através dos princí-pios
constitucionais, elementos fáticos, normativos
e axiológicos. Tal característica permite que as Con-stituições
atuais não incidam nem em um legalismo
exacerbado e tampouco na total insegurança jurídica,
bem como sejam suficientemente flexíveis e aptas a
acompanhar a dinâmica social, em constante e cada
vez mais rápida transformação. (KUBLISCKAS, 2009, p.
163, grifo nosso e itálico do autor)
É em torno desse sistema e com essas ideias que se passa ao
estudo específico do Direito Constitucional e da evolução do movi-mento
constitucionalista, abordando-se, após, aspectos da her-
19 Hoje, a Jurisprudência, entendida como as decisões judiciais reiteradas dos tribu-nais
(e mesmo resoluções administrativas), é fonte imediata do direito, ao lado da Con-stituição
Federal, leis e tratados internacionais de direitos humanos. Cf., para maiores
detalhes, o subcapítulo 1.3, acerca do tema jurisprudencialização/tribunalização.
20 Percebe-se, com Tercio Sampaio Ferraz Jr. (2003), que o Direito, como objeto, comporta
tanto uma investigação zetética (enfoque aberto) quanto dogmática (enfoque fechado).
Por isso, pode-se falar de vários focos no estudo do fenômeno jurídico, por exemplo: o
estudo do direito civil, processual ou constitucional na álea normativa; o estudo da so-ciologia
jurídica na álea fática; e o estudo da filosofia jurídica na álea valorativa.
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30. 29
Mutação Social e Jurídica:
Considerações Propedêuticas ao Estudo da Mutação
Constitucional e a Nova Hermenêutica
menêutica jurídica e constitucional e o tema acerca do fenômeno da
jurisprudencialização e do ativismo judiciário, tudo como condição
necessária e complementar para concluir-se, ao final, pela legitimi-dade
da adoção de uma nova perspectiva do Supremo Tribunal Fed-eral
em face da Jurisdição Constitucional.
Finalizando esse prolegômeno, por ora necessário afirmar que
a Constituição, sendo o Direito Objetivo maior, também deve
estar em harmonia com os Direitos Naturais dos Homens, no
sentido antes delineado de Justiça Social, modelo esse mais at-ento
à satisfação dos anseios da sociedade. Adota-se aqui, invari-avelmente,
a concepção de “Constituição Civil” de Kant, citada por
Norberto Bobbio (1992, p. 52):
Por “Constituição civil” Kant entende uma Con-stituição
em harmonia com os direitos naturais dos
homens, ou seja, uma Constituição segundo a qual
“os que obedecem à lei devem também, reunidos,
legislar”. Definindo o direito natural como o direito
que todo homem tem de obedecer apenas à lei de
que ele mesmo é legislador [até porque todo poder
emana do povo, consoante art. 1º, parágrafo único,
CF/88], Kant dava uma definição da liberdade como
autonomia, como poder de legislar para si mesmo.
Enfim, como restará mais claro à frente, visando à consagração
legítima da Constituição, entendida como o “primado do direito for-mador
da arquitetura axiológica sobre o qual se funda a sociedade”
(WINCK, 2007, p. 46), e desfazendo-se de muitas das ilusões positivas
do Direito, numa abordagem humanista e socializante21,
[...] o constitucionalismo passa a ter “uma dimensão
comunitária” ao adotar a concepção de Constitu-ição
como “ordem concreta de valores”, destarte,
os “valores compartilhados por uma comunidade
política” [ordenação cultural] devem estar conec-
21 Essa abordagem humanista e socializante condiz com a observação feita por Miguel
Reale (2002) já citada no texto, no sentido de que não há como se dissociar o aspecto
subjetivo da Justiça, envolvido na pessoa humana, e o objetivo, como realização da
ordem social justa.
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31. 30 Direito Judicial Criativo
tados a “ordenação jurídica fundamental e su-prema
representada pela constituição federal”.
(WINCK, 2007, p. 45/46)
1.1 O fenômeno constitucional e o (neo)constitucionalismo
Pode-se conceber o Estado como a organização soberana de um
povo sobre um território determinado, orientada ao atingimento de um
conjunto de finalidades. Pelo que se vê, todo Estado deve ter uma forma
de organização sob a base de uma ordem jurídica, tendo a Constituição
um relevante papel nesse sentido, ou seja, como a Lei Fundamental do
Estado. O estudo sistemático, evolucional e racional do fenômeno con-stitucional
se desenvolve a partir do surgimento das primeiras Constitu-ições
escritas, o que foi expresso pelo movimento político, jurídico e ide-ológico
denominado constitucionalismo, que desenvolveu a concepção
de estruturação racional do Estado e de limitação do exercício de seu
poder, a partir da elaboração de um documento escrito a fim de repre-sentar
a sua lei fundamental e suprema. A história do constitucionalismo
não é senão a luta do homem político pela limitação do poder absoluto:
[...] la historia del constitucionalismo no es sino la
búsqueda por el hombre político de las limitaciones
al poder absoluto ejercido por los detentadores del
poder, así, como el esfuerzo de establecer una justi-ficación
espiritual, moral o ética de la autoridad, en
lugar del sometimiento ciego a la facilidad de la au-toridad
existente. (LOEWENSTEIN, 1986, p. 150, apud
DORNELES, 2001)
A origem do constitucionalismo (moderno) é concebida com a
Constituição dos Estados Unidos, de 1787, e a Constituição da França,
de 1791, ambas de orientação liberal, cujo conteúdo estabelecia regras
acerca da organização do Estado, do exercício e transmissão do poder
e da limitação do Estado em vista dos direitos e garantias fundamentais
do indivíduo. Com base em pontos essencialmente político-liberais da
Constituição, J. J. Gomes Canotilho (1995) cunhou a expressão “Consti-tuição
ideal”, sendo que seus elementos caracterizadores, observados
por Vicente Paulo e Marcelo Alexandrino (2009, p. 5), são:
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32. 31
Mutação Social e Jurídica:
Considerações Propedêuticas ao Estudo da Mutação
Constitucional e a Nova Hermenêutica
a) a Constituição deve ser escrita; b) deve conter
uma enumeração de direitos fundamentais individ-uais
(direitos de liberdade); c) deve adotar um sis-tema
democrático formal (participação do “povo” na
elaboração dos atos legislativos, pelos parlamentos);
d) deve assegurar a limitação do poder do Estado me-diante
o princípio da divisão de poderes.
À vista disso, três são as ideias básicas do constitucionalismo
em referência: 1) a separação dos poderes; 2) a garantia dos direitos
fundamentais; e 3) o princípio do governo limitado. Com a evolução,
o Direito Constitucional não mais retratava exclusivamente es-ses
ideais liberais, fazendo com que a Constituição assumisse nova
feição: a de norma jurídica e formal, protetora dos direitos humanos.
É dizer: a forma de organização política do Estado liberal não poderia
ser retratada de per si, posto que a Constituição passou a representar
qualquer forma de organização política, não importando o regime
político ou a forma de distribuição da competência.
Modernamente, consoante aponta Vicente Paulo e Marcelo Alex-andrino
(2009, p. 2), ao lado do constitucionalismo puramente juríd-ico,
temos o político, democrático e social, em vista das exigências e
dos conflitos sociais, e, por isso mesmo, o Direito Constitucional atu-al,
com fortes marcas políticas, democráticas e sociais, não se limitar-ia
às conquistas liberais22 – embora os referidos autores destaquem
que, “[...] em todas as fases de sua evolução, o constitucionalismo
não perdeu seu traço marcante, que é a limitação, pelo Direito, da
ingerência do Estado (Governo) na esfera privada” (PAULO; ALEX-ANDRINO,
2009, p. 2, grifo do autor).
Adiante-se que está em voga o fenômeno da expansão do objeto
da Constituição (constitucionalização do direito), “[...] cujo conteúdo
material e axiológico se irradia, com força normativa, por todo o sis-tema
jurídico” (BARROSO, 2005, apud WINCK, 2007, p. 97), pelo que se
pode falar em um neoconstitucionalismo. Quanto a esse tema, diga-se,
por ora, que é fruto de duas mudanças de paradigma: a busca
22 Já foi dito que “o constitucionalismo passa a ter uma ‘dimensão comunitária’, ao adotar
a concepção de Constituição como ‘ordem concreta de valores’, destarte, os ‘valores com-partilhados
por uma comunidade política’ devem estar conectados a ‘ordenação jurídica
fundamental e suprema representada pela constituição federal’ ” (WINCK, 2007, p. 45/46).
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33. 32 Direito Judicial Criativo
da efetividade das normas constitucionais (através do fundamento
da força normativa da Constituição) e o desenvolvimento de novos
princípios e métodos hermenêuticos em sede constitucional (BAR-ROSO,
2003, p. 47, apud WINCK, 2007, p. 46/47).
Com essas considerações, passe-se a analisar as fases do con-stitucionalismo
ou, se preferir, a evolução do Direito Constitucional.
Far-se-á isso com o escólio do professor Marcelo Novelino (2009), o
qual aponta cinco fases de desenvolvimento23, a seguir comentadas.
A primeira fase é de pouco importância, não sendo raro que seja
relegada pelos autores constitucionalistas. Basta dizer, a título históri-co,
que compreende o período entre a antiguidade e o final do séc.
XVIII e passa pelos Hebreus, Grécia, Roma e Inglaterra (Rule of Law).
A segunda fase, em que o constitucionalismo é chamado de
clássico ou liberal, influenciado pelas ideias (liberais) de Locke,
Montesquieu e Rousseau, aparece em virtude do surgimento das
primeiras Constituições escritas (EUA – 1787 e França – 1791). Nessa
fase, tem-se a consolidação da supremacia da Constituição e de sua
estrutura rígida e escrita (pontos de diferenças entre as duas fases). É
a fase da chamada primeira dimensão dos direitos fundamentais,
com ampla proteção à liberdade, propriedade e aos direitos civis e
políticos. Nos Estados Unidos, firmam-se a supremacia da Constitu-ição
(que estabelece as regras do jogo político) e a garantia jurisdi-cional
(cuja proteção cabe ao Poder Judiciário, em razão da sua maior
neutralidade política). Já na França, tem-se como pedra de toque a
23 Rogério Salgado Martins (1998), numa abordagem histórica do Constitucionalismo, faz a
sua divisão em dois grandes períodos: o CONSTITUCIONALISMO CLÁSSICO (1787-1918)
e o CONSTITUCIONALISMO MODERNO (1918-...). O Constitucionalismo clássico subdi-vide-
se em cinco ciclos: CONSTITUIÇÕES REVOLUCIONÁRIAS DO SÉC. XVIII, no qual se
enquadra a Constituição Americana de 1787, a Declaração dos Direitos do Homem e do Ci-dadão
francesa de 1789, podendo ser incluída a Magna Carta; CONSTITUIÇÕES NAPOLE-ÔNICAS
autoritárias do início do século XIX; CONSTITUIÇÕES DA RESTAURAÇÃO, como
a dos Bourbons, de 1814; CONSTITUIÇÕES LIBERAIS, como a francesa de 1830 e a belga
de 1831; CONSTITUIÇÕES DEMOCRÁTICAS, iniciado em 1848. O Constitucionalismo
moderno também é compreendido num total de 5 ciclos constitucionais: DEMOCRÁTI-CO-
RACIONALIZADO, com a Constituição de Weimar de 1919; SOCIAL-DEMOCRÁTICO,
que contém as Constituições francesas de 1946, italiana de 47 e a alemã de 49; EXPERIÊN-CIA
NAZI-FACISTA; CONSTITUIÇÕES SOCIALISTAS surgidas em 1917 com a Declaração
dos Direitos dos Povos da Rússia; CONSTITUIÇÕES DO TERCEIRO MUNDO, “que caracter-izam-
se por uma tentativa de copiar as construções estrangeiras e que tombaram por terra
diante de uma realidade que não condizia com as instituições copiadas”.
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34. 33
Mutação Social e Jurídica:
Considerações Propedêuticas ao Estudo da Mutação
Constitucional e a Nova Hermenêutica
separação dos poderes e a garantia dos direitos – quanto a isso, basta
lembrar que a Declaração Universal dos Direitos do Homem e do Ci-dadão
de 1789 dispunha que “toda a sociedade na qual a garantia
dos direitos não é assegurada e nem a separação dos poderes deter-minada
não tem Constituição”.
Interessante notar que estamos tratando, ao se referir a essa
época, do Estado de Direito (liberal, por certo), que transmite a ideia de
império da lei e de Estado abstencionista (que é diferente do Estado
de polícia ou absolutista), cujas características podem ser assim resu-midas:
os direitos fundamentais correspondem aos direitos da burgue-sia
(liberdade e propriedade), sendo direitos com caráter formal e que
necessitam de lei para serem restringidos; a limitação do Estado pelo
Direito se estende ao soberano; a atuação da Administração Pública
só pode ocorrer dentro da lei (legalidade); no campo econômico, não
há intervenção do Estado (ideia de Estado mínimo de Adam Smith)24.
Identificam-se quatro concretizações desse Estado de Direito: o
Rule of Law (Inglaterra durante a Idade Média), com a substituição
do “governo dos homens” pelo “governo das Leis” e a concepção do
devido processo legal em seu caráter substantivo (processo justo e
adequado); o Rechtsstaat (Prússia), que significa o “Estado de Direito”,
em seu aspecto apenas formal, trazendo em seu bojo a percepção
da impessoalidade do poder; État Legal, que consiste no estabel-ecimento
de normas por legisladores eleitos democraticamente,
sendo o juiz, porém, mera bouche de la loi (“boca da lei”); État du
Droit, evolução do anterior e que corresponde, fielmente, ao Verfas-sungsstaat,
que é o “Estado Constitucional”.
Ao fim da Primeira Guerra Mundial, surge a terceira fase do con-stitucionalismo,
qual seja, o moderno ou social, correspondente aos
direitos fundamentais de segunda dimensão (igualdade material
e direitos sociais, econômicos e culturais). É a vez do Estado Social25,
como prestador de serviços, o qual buscava a superação de uma
desigualdade social, que estava em contradição com a alcançada
24 O Estado liberal se limita à ordem e segurança públicas, tendo três deveres, segundo
Adam Smith: proteger a sociedade contra a violência e a invasão externa; estabelecer
uma adequada administração da justiça; erigir e manter certas obras e instituições
públicas que nunca seriam de interesse privado.
25 Estado Social não se confunde com Estado Socialista, em virtude, principalmente, de
aquele manter a adesão ao capitalismo.
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35. 34 Direito Judicial Criativo
igualdade política. As características fundamentais são: intervenção
no âmbito social, econômico e laboral; papel decisivo na produção e
distribuição de bens; garantia de um mínimo de bem-estar (welfare
state), através de políticas sociais, a exemplo da distribuição do sa-lário
social; estabelecimento de um grande convênio global de esta-bilidade
econômica (pacto keynesiano).
A quarta fase se desenvolve ao fim da Segunda Guerra Mun-dial,
momento o qual nos referimos ao neoconstitucionalismo,
tema este muito discutido nos dias de hoje. Essa é a fase dos direitos
transindividuais (coletivos e difusos), representados pelas terceira
e quarta dimensões dos direitos fundamentais. A terceira dimen-são
(ou geração) traz consigo o valor fraternidade ou solidariedade,
tais como o direito à paz, ao meio-ambiente, à autodeterminação
dos povos, ao desenvolvimento e progresso. Já a quarta dimensão
incorpora a ideia de pluralidade, como o direito à democracia, à in-formação
e ao pluralismo.
Em síntese, as gerações ou dimensões dos direitos fundamentais
podem ser desenhadas na forma do seguinte quadro elaborado por
George Marmelstein Lima (2003):
Quadro 1 – Desenvolvimento das gerações ou dimensões dos direitos fundamentais
1a Geração 2a Geração 3a Geração 4a Geração
Liberdade Igualdade Fraternidade Democracia
(direta)
Direitos nega-tivos
(não agir)
Direitos a
prestações
Direitos civis e
políticos: liber-dade
política, de
expressão, re-ligiosa,
comercial
Direitos
sociais,
econômicos
e culturais
Direito ao desen-volvimento,
ao
meio-ambiente
sadio, direito à paz
Direito à
informação,
à democracia
direta e ao
pluralismo
Direitos individ-uais
Direitos de
uma cole-tividade
Direitos de toda a Humanidade
Estado Liberal Estado social e Estado democrático e social
Fonte: LIMA, George Marmelstein. Críticas à teoria das gerações (ou mesmo dimen-sões)
dos direitos fundamentais. Jus Navigandi, Teresina, ano 8, n. 173, 26 dez. 2003.
Disponível em: <http://jus2.uol.com.br/doutrina/texto.asp?id=4666>. Acesso em: 02
dez. 2009.
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36. 35
Mutação Social e Jurídica:
Considerações Propedêuticas ao Estudo da Mutação
Constitucional e a Nova Hermenêutica
Como já foi adiantado em linhas atrás, o neoconstitucionalismo26
consolida, através da mudança de paradigma, novos e importantes
princípios e métodos hermenêutico-constitucionais – que ainda
serão analisados detidamente –, com vista a dar maior efetividade
e força normativa à Constituição, constatações tais resultantes do
fenômeno da expansão do objeto constitucional.
São características desse novo movimento constitucionalista: 1)
normatividade da Constituição27, com destaque para Konrad Hesse,
em sua obra A Força Normativa da Constituição; 2) superioridade da
Constituição (escrita e rígida); 3) centralidade da Constituição, que
significa a onipresença ou ubiquidade constitucional e bem reflete
o citado fenômeno da expansão do objeto (e do objetivo) da Con-stituição.
Essa constitucionalização do direito, que é uma fase me-todológica
de renovação da Constituição, com repercussão nos out-ros
ramos do direito, dá-se por dois aspectos: a eficácia horizontal (e
não somente vertical) dos direitos fundamentais, sendo cogentes es-ses
direitos também nas relações entre particulares, e o princípio da
interpretação conforme a Constituição28, pelo que a lei, além de ser
compatível com ela, deve ser conforme, numa aplicação direta ou in-direta
do Texto Maior; 4) rematerialização da Constituição, que reflete
a nossa Magna Carta de 1988, dita prolixa; 5) maior abertura da inter-pretação
constitucional, estando superada a subsunção tão somente
lógica das regras pela configuração da ponderação, argumentação e
métodos específicos relacionados aos princípios (normativos); 6) for-talecimento
do Poder Judiciário. Esse último ponto é relevante para a
finalidade deste trabalho, em vista de hoje termos o Poder Judiciário
26 O neoconstitucionalismo se aloca no contexto do pós-positivismo, onde houve o
reconhecimento do caráter normativo dos princípios, motivo pelo qual a norma passa a
ser conjunto de princípios (agora, vinculantes e obrigatórios) e regras. São nomes dessa
fase Robert Alexy e Ronald Dworkin. Diga-se apenas que o direito pós-positivista une
elementos do jusnaturalismo (correção substancial, de conteúdo – aspecto Justiça) e do
positivismo (validade formal e eficácia social – aspecto Segurança Jurídica). Dessa forma,
o conteúdo do direito tem de ser compatível com a moral. Vale a pena dizer que, para
Alexy, o direito extremamente injusto não pode ser considerado direito.
27 Interessante correlação pode-se fazer entre a normatividade dos princípios e a nor-matividade
da Constituição, já que esta, por certo, engloba diversos princípios (nor-mativos).
28 Não por menos, conforme Luis Roberto Barroso, toda a interpretação jurídica é in-terpretação
constitucional.
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37. 36 Direito Judicial Criativo
(em contraposição ao legislador de outrora) como o principal pro-tagonista
no tocante à proteção das garantias constitucionais, num
fenômeno que é chamado, sob a mira do Estado Democrático de Di-reito,
de judicialização da política e das relações sociais.
Em relação ao Estado Democrático de Direito, atualmente, seus
meandros principais são a consagração, pelo ordenamento jurídico,
de institutos que permitem a participação do povo na vida política
do Estado (nesse sentido, a ação popular – art. 5º, LXXIII, CF/88 – e
o plebiscito, referendo e iniciativa popular – art. 14, CF/88) e a pre-ocupação
com o aspecto material e com a efetividade dos direitos
fundamentais. Quanto a isso, saliente-se que o Legislativo não está
condicionado apenas ao aspecto formal na elaboração das leis, mas
também ao aspecto material (ou seja, ao conteúdo da Constituição
e à sua força normativa, motivo pelo qual alguns autores apontam
uma evolução do Estado Democrático de Direito para o Estado Con-stitucional
Democrático). Como fácil se percebe, o próprio conceito
de democracia passa a ter um aspecto material, além do formal29,
significando a fruição de direitos básicos por todos, inclusive pelas
minorias, cabendo ao Poder Judiciário a capacidade de equilibrar
eventuais prejuízos da maioria e as garantias contramajoritárias.
Por fim, é curiosa a referência feita por Marcelo Novelino (2009),
citando José Roberto Dromi, a uma quinta fase, que não é atual, posto
que é um constitucionalismo futuro. A respeito disso, sinaliza-se uma
busca do equilíbrio entre as conquistas e concepções dominantes do
constitucionalismo moderno e os excessos do constitucionalismo con-temporâneo.
Ademais, selecionam-se alguns valores fundamentais
das Constituições do futuro, quais sejam: verdade, solidariedade, con-senso,
continuidade, participação, integração e universalização.
Visto o desenvolvimento do Direito Constitucional, ancorado no
movimento constitucionalista, mister focarmos atenção na Constitu-ição
em si. Passemos, portanto, às concepções fundamentais acerca
dela, que, consoante Marcelo Novelino (2009), são cinco: sociológica,
política, jurídica, normativa e culturalista.
A concepção sociológica (1868, Prússia), atribuída a Ferdinand
Lassalle, indica que os problemas constitucionais são problemas liga-dos
ao poder, e não jurídicos. Divide a Constituição em duas: a escrita
29 Limita-se, o aspecto formal, à constatação da participação do povo e à vontade da maioria.
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38. 37
Mutação Social e Jurídica:
Considerações Propedêuticas ao Estudo da Mutação
Constitucional e a Nova Hermenêutica
(jurídica), que significa o conjunto de normas feito pelo Poder Con-stituinte,
e a real (efetiva), ou seja, a soma dos fatores reais de poder
que regem uma determinada nação. Se a Constituição escrita não
corresponde à realidade, ela não passa de uma folha de papel. Por
outras palavras, esse enfoque sociológico traz a concepção de que
a Lex Major “[...] manifesta a emergência das forças sociopolíticas, do
poder ativo dentro de uma sociedade [fatores reais do poder]” (FER-RAZ
JR., 2003, p. 230) e, por espelhar esses fatores reais do poder, em
conformidade com a própria realidade social, seria uma Constituição
real, e não meramente algo no papel, sem qualquer eficácia.
Em relação ao sentido político (1928, Alemanha), com referência
a Carl Schmitt, a Lex Legum é vista como uma decisão política fun-damental,
não obstante as identificações sociológicas e jurídicas,
em equivalência, num sentido absoluto, ao próprio Estado. Nesse
enfoque, “a constituição é um ato de vontade [decisionismo, vol-untarismo],
não importa se corresponde ou não a anseios sociais.
É uma questão de oportunidade política [...]” (FERRAZ JR., 2003, p.
232). Acresça-se a divisão feita entre Constituição propriamente dita
(normas materialmente constitucionais) e Leis Constitucionais (nor-mas
formalmente constitucionais), sendo, ainda, ambas as acepções
formalmente iguais e materialmente distintas. Para Schmitt, a Consti-tuição
propriamente dita (material) é apenas aquilo que decorre de
uma decisão política fundamental que antecede (e.g. direitos funda-mentais,
separação dos poderes, estrutura do Estado), enquanto que
o restante seria as leis constitucionais (e.g. art. 241, § 2º, CF/8830).
Tem-se, na primeira parte do séc. XX, com Hans Kelsen, a Con-stituição
no sentido jurídico (stricto sensu), como lei fundamental, ou
seja, conjunto de normas básicas que, tecnicamente, viabilizam os
procedimentos para desenvolvimento da atividade organizada da
sociedade. O aspecto jurídico de Kelsen, assaz examinado no sub-capítulo
3.1, propugna que a Constituição não precisa buscar o seu
fundamento nem na sociologia nem na política, posto que, sendo ela
também uma lei, tal embasamento é jurídico31. A Constituição tem
o sentido lógico-jurídico, através do pressuposto da Norma Funda-
30 “Art. 242. [...] § 2º - O Colégio Pedro II, localizado na cidade do Rio de Janeiro, será
mantido na órbita federal.”
31 Embora seja feita crítica sobre esse ponto, pois não se preocupa com o conteúdo.
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39. 38 Direito Judicial Criativo
mental Hipotética, e o sentido jurídico-positivo, ao estar no topo da
pirâmide normativo-positiva, derivada do Poder Constituinte.
Além desses pontos, pode-se falar em uma concepção normativa
da Constituição, posição essa defendida, a partir de 1959, por Konrad
Hesse, em contraposição ao aspecto sociológico. Em certos casos,
admite-se que há, de fato, a sucumbência da Constituição jurídica
diante da realidade. No entanto, muitas vezes (e tal intensidade deve
prevalecer) essa Constituição escrita possui uma força normativa
capaz de modificar a realidade apontada, bastando, para isso, que
exista vontade de Constituição, e não apenas vontade de poder. Vol-taremos,
por vezes, a comentar as ideias lançadas na obra do referido
autor – A Força Normativa da Constituição.
A quinta e última concepção é a culturalista, sendo Meireles Teixei-ra
o seu expoente. Esse aspecto faz um apanhado dos outros referidos,
ao entender que o Texto Maior tem ares sociológico, político e jurídico
(além do normativo), o que nos remete ao conceito de Constituição to-tal,
isto é, com todos os aspectos – e, por isso mesmo, Canotilho refere-se
a ela como uma estrutura jurídica do aspecto político. Assim sendo,
ao mesmo tempo em que uma Constituição é resultante da cultura de
um povo, ela também é condicionante dessa mesma cultura.
Importante notar que, em todos esses sentidos, percebe-se, de um
lado, uma regra estrutural (fonte sociológica, política, jurídica, norma-tiva
e cultural da norma constitucional) e, de outro, um elemento do
sistema do ordenamento (a Constituição) (FERRAZ JR., 2003).
Em vista de todo esse estudo sistemático e evolucional do fenô-meno
constitucional, a seguinte afirmação de J. J. Gomes Canotilho
(1995, p. 245, grifo nosso e itálico do autor), aplicada diretamente ao
presente trabalho, é mais bem compreendida nesse momento do que
se fosse alocada isoladamente, sem todo o contexto acima descrito:
O direito constitucional, como conformador do
político, é necessariamente o direito de uma realidade
social, historicamente determinada. [...] Nesta perspec-tiva,
a história do direito constitucional não é apenas
nem fundamentalmente a história do texto; é tam-bém,
e, sobretudo, a história do contexto (o conjunto
de práticas constitucionais e de estratégias), o que o
coloca no cerne da própria produção histórica e social.
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40. 39
Mutação Social e Jurídica:
Considerações Propedêuticas ao Estudo da Mutação
Constitucional e a Nova Hermenêutica
1.2 Nova Hermenêutica e Interpretação Jurídica e Constitucional
O presente subcapítulo é especialmente importante para se
compreender a construção de uma nova hermenêutica que embase,
com um viés mais pragmático, as técnicas e formas de interpretação
e aplicação do direito.
Conforme prefacia Vicente de Paulo Barreto, da UERJ/UGF, a obra
de Margarida Maria Lacombe Camargo, Hermenêutica e Argumentação:
uma contribuição ao estudo do direito, tem o grande mérito de inves-tigar
a mudança de paradigma na interpretação e compreensão do
fenômeno jurídico, apontando, principalmente, a aplicação concreta-prática
do direito, em contraposição ao abstrativismo de outrora.
A referida mudança de paradigma deve-se a uma crise do direito,
no sentido de se ter presente, hoje, uma nova forma de pensá-lo e
aplicá-lo. Nesse ponto, não há que se confundir interpretar legalmente
(dogmática) uma norma e fazer autêntica hermenêutica jurídica (ze-tética).
Não. O processo hermenêutico considera a norma como parte
integrante de um sistema, o jurídico, mas também a considera além
de seu aspecto estritamente legal, para abarcar, assim, as dimensões
sociais e valorativas, que determina, assaz, a eficácia do direito.
A complexidade de uma sociedade pluralista demanda, outros-sim,
que fatores antes tidos como ajurídicos (a exemplo dos valores,
que são abordados classicamente como um conceito inerente à
Moral e à Ética) permeiem a análise do pensar jurídico, concebendo-se
uma nova metodologia, que expressam novos valores sociais e
políticos, deixando de lado a dogmática civilista clássica e relegando,
ainda mais, o brocardo medieval in claris cessat interpretatio, que não
condiz com o constitucionalismo moderno – Canotilho (1994, apud
PAULIO; ALEXANDRINO, 2009, p. 66) ensina que “toda a norma é sig-nificativa,
mas o significado não constitui um dado prévio; é, sim, o
resultado da tarefa interpretativa”.
O direito pós-moderno apresenta-se, enfim, como um mecanis-mo
de prática social e agente de mudança social. Essa nova racionali-dade
jurídica busca fundamento na tópica e retórica (argumentação)
para um completo entendimento (compreensão) do sistema jurídico
da sociedade contemporânea.
Importante observar que, na introdução do trabalho, apresenta-do
pela autora à Universidade Gama Filho como sua Tese de Douto-livro_
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41. 40 Direito Judicial Criativo
rado, ela já finca as bases de seu estudo: a argumentação, levando em
consideração o que está na lei, doutrina, jurisprudência (dogmática
jurídica e os costumes) (CAMARGO, 2003).
Aponta a insuficiência da hermenêutica tradicional e a descon-fiança
que paira sobre o direito como as molas propulsoras de uma
discussão sobre a aceitação, legitimidade e controle do mesmo.
Quanto a essa hermenêutica tradicional, esta consiste nas técnicas
de interpretação das leis (determinar o sentido e o alcance das ex-pressões
do direito). E é justamente em razão dela que costuma a
hermenêutica ser apontada como a ciência do direito que tem por
objeto as técnicas de interpretação e aplicação do direito, ideia esta,
por certo, reducionista (CAMARGO, 2003).
Mas era esse critério que dava o viés cientificista e objetivo à in-terpretação
das leis. Porém, essas técnicas não alcançam nem o seu
objetivo, a um porque o seu comando é fluido, já que não há hierar-quia
entre elas, e a dois porque tal orientação não vislumbra a dimen-são
criadora do intérprete, que tende a mais focar o problema que se
lhe apresenta do que para a lei em si.
Embora essas ponderações, os livros de Introdução ao Direito
sempre trazem técnicas de interpretação (gramatical, lógico-sis-temática,
histórico-evolutiva, axiológica ou teleológica), sem se ater
para o fato de que elas correspondem, ao fim, a uma construção de
teorias, doutrinas e movimentos acontecidos ao longo dos séculos, e
que representam uma abordagem bem maior do que a dada.
Mister ponderar que Savigny já as apontava, indicando a sua apli-cação
em conjunto, a fim de se compreender a norma jurídica. Contudo,
concluímos com Margarida Camargo (2003, p. 4) que “são, na realidade,
elementos que informam e orientam a lei sem, contudo, sobrepor-se ao
comando do problema, ou seja, à dimensão prática e concreta do caso”,
pelo que seria visto como automático entender a interpretação como
simples descoberta do sentido objetivo do texto, independente do caso
sub judice. Juiz não é máquina; é, na verdade, a viva vox iuris.
Assim, ganha relevo figuras como ponderação, razoabilidade e di-alética
na interpretação das leis, sendo, portanto, como insuficientes
a simples aplicação de determinadas técnicas, como o silogismo
puro e formal. Há necessidade, mormente no âmbito do direito con-stitucional,
como bem aponta Margarida Camargo (2003), citando
Friedrich Müller, Konrad Hesse e J. J. Gomes Canotilho, de um maior
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42. 41
Mutação Social e Jurídica:
Considerações Propedêuticas ao Estudo da Mutação
Constitucional e a Nova Hermenêutica
compromisso do intérprete com a realidade social, no sentido de
uma hermenêutica concretizadora.
Historicamente, a essência do direito sempre esteve calcada na
justiça e segurança (algo que se aponta como inversamente propor-cionais,
mas que são, na verdade, concepções complementares). De
um lado, temos a justiça formal, onde prepondera a ideia de segu-rança
do direito. De outro, o questionamento dessa “modernidade”.
Em Hobbes, Locke, Rousseau, Montesquieu e nos Fouding Fathers
(Hamilton, Madison e Jay), temos, de forma geral, a manifestação no
sentido de igualar o Estado à ordem do ordenamento jurídico posi-tivo,
onde a segurança se encontra nas leis legitimamente criadas
pelos representantes do povo e garantidas pelo poder judiciário, que
inibem o abuso de poder, mas também garante a igualdade formal
entre os homens. Assim, a teoria da separação dos poderes e a igual-dade
garantida pela aplicação da lei formam a estrutura formal e os
ideais do Estado de Direito.32
Dando um salto quântico, na pós-modernidade esse valor segu-rança
abre espaço para o valor justiça, garantido, agora, pela razoabi-lidade
das decisões de cada caso concreto. Nas palavras de Margarida
Camargo (2003, p. 64/65): “é quando as relações intersubjetivas e dialé-ticas,
capazes de viabilizar o consenso e a legitimidade das decisões
jurídicas, fazem com que se recupere a antiga retórica clássica e lhe
confira objetos novos” (lógica do razoável e nova hermenêutica).
Importante, ainda, que observemos o efeito concreto trazido
pela pesquisa jurídica de matriz jurisprudencial, a que, muito apro-priadamente,
A. Castanheira Neves (1998, apud CAMARGO, 2003, p.
9) chama de jurisprudencialismo, que se apresenta “[...] como o suces-sor
do normativismo legalista e do funcionalismo jurídico [o direito
como o meio de realizar os interesses de outras esferas de poder ou
mesmo da economia e da política]33 anteriores, e que busca enfrentar
a crise de sentido pela qual atravessa o direito” (CAMARGO, 2003, p.
9). Nas palavras do citado autor:
32 O conto O moleiro de Sans Souci, do francês François Andrieux, resenha um fato ocor-rido
na França pelo qual se demonstra o triunfo da lei sobre a força e o arbítrio. A um
chamado do rei para que se cumprisse uma ordem sua de retirada de um moinho que
maculava a imagem do seu palácio de veranei, o moleiro respondeu: “ainda há juízes
em Berlim”.
33 Cf. SALDANHA; ESPINDOLA; MACHADO, 2009.
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43. 42 Direito Judicial Criativo
O que dá sentido ao jurisprudencialismo é uma
outra perspectiva bem diferente. Designamo-la por
perspectiva do homem (do homem-pessoa), i. é, aquela
perspectiva em que o direito, com uma sua norma-tividade
axiologicamente fundada, é assumida por, e
está diretamente ao serviço de uma prática pessoal-mente
titulada e historicamente concreta [...]. (NEVES,
1998, p. 18, apud CAMARGO, 2003, p. 9)
Esse jurisprudencialismo não se confunde com a jurisprudenciali-zação,
embora tenham reflexões calcadas pelo mesmo aspecto concre-to
e criador do direito. A jurisprudencialização do direito constitucional
será tratada em subcapítulo próprio. Diga-se, por enquanto, que repre-senta
uma nova forma de ver a Constituição, ao ser revelada a criação
jurisdicional em matéria constitucional e a autoridade da Jurisprudên-cia
(direito constitucional jurisprudencial), identificando-se, outrossim, a
interpretação concretizante de certos conteúdos constitucionais. Tem o
ponto de conexão com o jurisdicionalismo à medida que ambos levam
em consideração os efeitos concretos das decisões judiciais.
Em um apelo distintivo, que não pode ser considerado absoluto,
pode-se dizer que a jurisprudencialização está para o enfoque jurisdi-cional
e jurisprudencial (no sentido das decisões, no caso, das Cortes
Constitucionais) assim como o jurisprudencialismo está para a análise
fenomenológica do decidir jurídico (concreto)34. Este, como juridici-dade,
influencia aquele35. Enfim,
[...] o Jurisprudencialismo toma o direito como um con-stitutivo
e sempre novo pensamento comprometido
com o decidir concreto; um pensamento problemático
34 “É a focalização e análise fenomenológica do ‘decidir jurídico’ em sua intencion-alidade
específica, revelando a prioridade do caso para a abordagem metodológica
do direito (abordagem esta por isso mesmo ‘microscópica’), que afasta desde logo
quaisquer concepções em que o direito figure como um mero (já) dado, normativo
ou fático, preexistente (seja lá como este objeto seja pensado: uma norma positiva
emanada do legislador estatal ou do costume, ou fruto da razão ou da natureza, ou de
Deus, ou um conjunto de fatos reveladores de uma ordem social), o qual cumpriria ao
pensamento jurídico ‘apreender’. Ao mesmo tempo, revela inequivocamente a racion-alidade
que governa e a autonomia que caracteriza o direito.” (COELHO, 2006, p. 4)
35 “O modelo de jurisdição – sustenta CASTANHEIRA NEVES – determina-se pelo mod-elo
de juridicidade que lhe é contemporâneo” (COELHO JUNIOR, 2005).
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44. 43
Mutação Social e Jurídica:
Considerações Propedêuticas ao Estudo da Mutação
Constitucional e a Nova Hermenêutica
pertencente ao presente e voltado para o futuro, por
força de sua historicidade mesma. (COELHO, 2006, p. 2)
O modelo do jurisprudencialismo traz a perspectiva do homem-pessoa
convivente no seu direito, no seu dever e na sua responsa-bilidade36,
em contraposição ao normativismo (perspectiva do legal)
e ao funcionalismo (perspectiva do social). Destarte, esse novo para-digma,
com o esgotamento daquele positivista, reveste de especial
importância os princípios jurídicos37 (que tem relação estreita com os
36 “Na investigação [...] do decidir concreto demonstra-se o prius metodológico do caso so-bre
a norma. O direito não é tido na conta de um objeto pré-constituído, mas como um
problema de validade, como pensamento jurídico emergente sempre em/com situações
humanas concretas que desafiam o homem a uma resposta de validade, que é uma re-sposta
sobre si mesmo, uma resposta em que o homem se decide na convivência. [...] O
direito é uma decisão/afirmação fundamental do homem em sua historicidade, que não
está lá desde sempre mas é posto por força do próprio homem” (COELHO, 2006, p. 9 e 12).
37 Os princípios, como é cediço, são mandamentos de otimização que se servem da propor-cionalidade
e da razoabilidade. Diversamente das regras (embora ambos façam parte
do gênero “norma”), onde os conflitos são resolvidos pelos clássicos critérios hierárquico,
cronológico e de especialidade, a hipótese de colisão de princípios soluciona-se por meio
da proporcionalidade (também chamado de razoabilidade, de proibição de excesso ou do
devido processo legal em sentido substantivo, embora alguns diferenciem proporcionali-dade
de razoabilidade – já que o teste da (ir)razoabilidade (teste Wednesbury) é menos in-tenso
do que o da proporcionalidade, afastando-se tão somente os atos absurdamente irra-zoáveis
–, como Humberto Ávila (2009) e Luís Virgílio Afonso da Silva (2002, apud CARDOSO,
2009). Mas, diga-se, o STF considera a proporcionalidade abrangente da razoabilidade).
Essa regra da proporcionalidade foi desenvolvida pelo Tribunal Constitucional alemão a
partir do paradigmático processo do caso Lüth – que diz respeito a um pedido de boic-ote
público a um filme chamado Unsterbliche Geliebte (“Amada Imortal”), envolvendo esse
caso questão acerca da livre manifestação de opinião –, estabelecendo os seus elementos:
adequação (o meio é adequado ao fim, revelando-se apta a medida a ser tomada), necessi-dade
(não há outra medida que impeça tal prejuízo) e proporcionalidade em sentido estrito
– ponderação (averiguação das vantagens e desvantagens da adoção da medida, devendo
haver um equilíbrio, uma ponderação entre o grau de restrição e o grau de realização do
princípio contraposto). O legado do caso Lüth se espraia, por exemplo, nos conceitos ref-erentes
à dimensão objetiva dos direitos fundamentais (eficácia irradiante desses direitos
– Ausstrahlungswirkung), à eficácia horizontal dos direitos fundamentais (Drittwirkung) e à
necessidade de ponderação, em caso de colisão de direitos – fala-se, ainda, em constitu-cionalização
do direito privado, filtragem constitucional, interpretação conforme os direi-tos
fundamentais, etc. Cf. também, para maiores detalhes sobre o caso Lüth e seus efeitos,
citando, inclusive, a decisão na íntegra da Corte Constitucional alemã: LIMA, George Mar-melstein.
50 Anos do Caso Lüth: o caso mais importante da história do constitucionalismo
alemão pós-guerra. Direitos Fundamentais, 13 maio 2008. Disponível em: <http://direitos-fundamentais.
net/2008/05/13/50-anos-do-caso-luth-o-caso-mais-importante-da-historia-
-do-constitucionalismo-alemao-pos-guerra/>. Acesso em: 30 nov. 2009.
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45. 44 Direito Judicial Criativo
direitos fundamentais), estruturados de forma normativa, pelo que
se permite o desenvolvimento reclamado pelas transformações so-ciais,
num sistema aberto de valores que se interagem uns com os
outros, a depender do caso concreto posto a julgamento (perspectiva
jurisprudencial). Os princípios jurídicos – sustenta Inocêncio Mártires
Coelho (2003, p. 98, apud COELHO JUNIOR, 2005) – são produzidos
[...] em dois tempos e a quatro mãos: primeiro são
formulados genérica e abstratamente pelo legislador;
depois se transformam e se concretizam, natural-mente,
em normas de decisão que, a partir deles, são
criadas pelos intérpretes e aplicadores do direito.
É dessa forma que A. Castanheira Neves (1998, p. 13, apud COEL-HO
JUNIOR, 2005) ensina que a atual praxis caracteriza-se, funda-mentalmente,
pela “transformação irreversível do sentido das leis
e pela assunção deliberadamente programática de uma estratégia
político-social no todo da realidade social”, não mais se admitindo
aquele juiz que não fala, ou melhor, que somente emite sons com
as palavras do legislador. É dizer: o magistrado, antes mero bouche
de la loi, assume papel ativo na garantia de direitos que não se
ache necessariamente na lei ou mesmo nela se encontre abstrati-vamente,
à espera de que lhe seja dado conteúdo. Tal fenômeno ju-rídico
articula-se mediante os seguintes vetores, bem apresentados
por Sergio Coelho Junior (2005), e que servem de parâmetro para
todo o trabalho, em razão da disseminação da Jurisdição Constitu-cional
e fortalecimento do Poder Judiciário:
a) A todo momento, emergem conflitos das
mais variegadas naturezas, para os quais o legislador
não pode dar resposta. Trata-se de uma “explosão de
litigiosidade”, que não se manifesta somente em ter-mos
quantitativos;
b) O advento da sociedade de massa, orientada
pelo e para o mercado, o qual no terreno jurídico tem
por colunas os institutos do contrato e da responsa-bilidade.
É o mercado, e não mais a lei, que faz fun-cionar
as engrenagens da sociedade. Prova disso são
a onipresença das relações de consumo, a aplicação
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46. 45
Mutação Social e Jurídica:
Considerações Propedêuticas ao Estudo da Mutação
Constitucional e a Nova Hermenêutica
analógica de seu estatuto às mais variadas situações e
a flexibilização das relações de trabalho (prevalência
do pactuado sobre o legislado);
c) A dissolução de um consenso moral, especial-mente
no que tange à relações de família, profunda-mente
alteradas (sob muitos aspectos em boa hora)
pelo reconhecimento da união estável, pela vedação
de distinção entre os filhos havidos ou não na con-stância
do matrimônio dos pais, pela emancipação
da mulher, pelo reconhecimento dos direitos da cri-ança
e do adolescente;
d) A disseminação da Jurisdição constitucional,
mediante a qual se rompe o dogma rousseauísta da
soberania do legislador;
e) A universalização da justiça e dos direitos fun-damentais,
máxime com o advento do direito comu-nitário,
veio contribuir para a preeminência do julga-dor.
E não se está somente falando da jurisdição das
próprias cortes comunitárias, mas sobretudo dos juízes
internos que fundamentam suas decisões em normas
de direito supranacional ou na jurisprudência daque-les
tribunais, de que é exemplo a Corte de Estrasburgo;
f) A tutela coletiva dos novos direitos, envolven-do
questões relativas ao meio ambiente, ao consumi-dor,
à informação, à livre concorrência, ao patrimônio
genético etc., sempre a exigir do juiz soluções que
não raro desconhecem tratamento nos textos legais,
seja no aspecto material, seja no instrumental, onde
as categorias clássicas forjaram-se sob a ótica dos
direitos individuais. Destarte, não são apenas os in-divíduos,
que dele se socorrem como último recurso,
mas a sociedade ela mesma transfere suas incapaci-dades
à instituição judiciária.
Delinear-se-á o tema da jurisprudencialização e do ativismo ju-diciário
mais adiante. Voltemos, por ora, porém, à análise hermenêu-tica
encampada por Margarida Camargo.
A autora propõe uma investigação do direito através de uma teo-ria
da argumentação da hermenêutica jurídica, que leve em conta
o estudo tópico-retórico-dialético num processo de compreensão e
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concretização da norma, com concentração na idéia da lógica do ra-zoável
(Perelman) e Nova Retórica.
Para ela, os termos hermenêutica – que advém do deus Hermes,
da mitologia grega, que detinha o conhecimento e era capaz de deci-frar
corretamente as mensagens divinas – e interpretação jurídica nos
remetem ao processo de aplicação da lei, que é feito pelo Poder Ju-diciário.
Tal norma jurídica encontra-se jungida a valores que devem
ser compreendidos e o processo de interpretação e aplicação das leis
correspondem a uma situação hermenêutica (Gadamer) relacionada
a uma situação histórica, da qual fazem parte o sujeito (intérprete) e
o objeto a ser interpretado (fato e norma).
Assim, hermenêutica jurídica caracteriza-se como o processo de
interpretação e aplicação da lei que desemboca na compreensão to-tal
do fenômeno que requer solução (problema concreto que clama
por solução razoável, justa).
Diferem-se ciências empíricas (naturais) da do espírito (que dizem
respeito às relações humanas). Estas necessitam de compreensão,
porque proferem conhecimentos. Dizem respeito, também, a relação
histórica e de liberdade que se estabelecem no campo da variedade
e da probabilidade. Por isso mesmo se diz que o intérprete, aí, é um
ser historicamente orientado e que faz parte de uma tradição. “A nor-ma
jurídica constitui-se, assim, em um fazer humano, carregado de
sentido [valores]” (CAMARGO, 2003, p. 17).
Dessa forma, o direito – a sua existência –, enquanto significação,
depende de concretização ou da aplicação da lei em cada caso jul-gado,
através da relação fática entre compreensão e interpretação,
no âmbito da experiência em um vasto campo de possibilidades
(hermenêutica como filosofia prática; Gadamer). Isso se aplica tanto
ao direito objetivo (ratio legis) quanto ao direito subjetivo (intenção
do autor numa situação específica).
A hipótese lançada pela autora é a de que esse processo de com-preensão,
no direito, se concretiza por meio da argumentação, que
torna possível, tecnicamente, a interpretação. Essa argumentação, em
instaurado o pensamento dialético, seria a técnica que viabilizaria o
acordo sobre a escolha do significado (dentre as várias possibilidades)
mais adequado, verossímil às partes historicamente presentes.
Assim dispõe Margarida Camargo (2003, p. 22): “[...] o direito con-siste
na realização de uma prática que envolve o método hermenêu-livro_
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Mutação Social e Jurídica:
Considerações Propedêuticas ao Estudo da Mutação
Constitucional e a Nova Hermenêutica
tico da compreensão e a técnica argumentativa”. Logo, compreensão
e concretização encontram-se relacionadas, onde a realidade do di-reito
confunde-se com a realidade de sua compreensão.
Nessa interpretação devem ser considerados os pré-juízos (topoi;
Heidegger) e as provas concretas e opiniões amplamente aceitas
(“auditório universal”). Busca-se, com isso, a verdade, não inques-tionável,
mas aquela persuasiva e responsável.
Falamos muito em hermenêutica e interpretação como se sig-nificassem
a mesma coisa. Não são. A hermenêutica se comporta
como ciência que se preocupa com as técnicas próprias da atividade
interpretativa, inserida, aquela, por vezes na lógica formal, por outras
vezes na fenomenologia de Husserl e Heidegger.
Gadamer, ao questionar a problemática da compreensão das
ciências do espírito, aborda a análise da “consciência da história efe-tiva”
e do “horizonte histórico”. Essa historically effected consciousness
significa a consciência da situação hermenêutica, ou seja, do momen-to
de realização da compreensão. Já o projeto do horizonte histórico
é um momento na realização da compreensão, baseado na ideia de
tradição (formada dos princípios, lei, doutrina e jurisprudência, com
forte carga de legitimidade do poder): “compreender é operar uma
mediação entre o presente e o passado”, numa relação de confronto
entre o novo (experiência) e o antigo (costume). (GADAMER, 1998,
apud CAMARGO, 2003, p. 34)
Dessa forma, conclui que a tarefa da hermenêutica é refletir sobre a
dinâmica da própria interpretação, compreendendo o objeto com base
em uma certa tradição. Ou seja, a interpretação como comportamento
reflexivo-dialético-histórico-linguístico diante da tradição, de forma a
aflorar o verdadeiro significado do texto. Completa Margarida Camargo
(2003), ao afirmar que “o indivíduo compreende-se a si mesmo através
da consciência que tem de sua situação histórica”. Richard Palmer (1970,
p. 216, apud CAMARGO, 2003, p. 38) assim sintetiza o pensamento de
Gadamer: “as chaves para a compreensão não são a manipulação e o
controle, mas sim a participação e a abertura, não é o conhecimento,
mas a experiência, não é a metodologia mas sim a dialética”.
Como mais adiante será repetido, na hermenêutica atual há uma
prevalência da “vontade objetiva da lei (rectius: da Constituição)” so-bre
a “vontade subjetiva do legislador”, e por isso mesmo cabe ao
intérprete o importante papel de adequar a significação da lei ao mo-livro_
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49. 48 Direito Judicial Criativo
mento presente de aplicação da mesma, dentre um leque de possibi-lidades,
revelando-a ao mesmo tempo em que a concretiza (existen-cialismo
de Gadamer). Afirma Gadamer (1983, apud CAMARGO, 2003,
p. 44) que “aplicar o direito significa pensar conjuntamente o caso e
a lei de maneira tal, que o direito propriamente dito se concretize”.
“E de concretização em concretização temos, como resultado,
um franco projetar da jurisprudência” (CAMARGO, 2003, p. 44, grifo
nosso). Nesse ponto, o pensamento tópico tem como base o acordo,
o que “democratiza” o pensamento.
Pondere-se que Descartes, ao contrário, prega o cartesianismo,
que vai de encontro a tudo aqui já dito, posto que reprova a influên-cia
dos costumes e valores, que “contaminam a pureza e a clareza do
raciocínio” (CAMARGO, 2003, p. 49).
O direito, como obra humana, está impregnado de valores, seja na
intenção do legislador ou mesmo no processo de aplicação da lei próp-rio
do juiz, seja levando-se em consideração aqueles valores incorpora-dos
à tradição histórica, o que faz com que ele deva ser compreendido.
Nesse processo, há que se falar da pré-compreensão, que significa
uma antecipação daquilo que se compreende, pela expectativa cria-da
pelo intérprete frente a seu objeto. Dentro dessa interação dialé-tica,
depreende-se a figura do “círculo hermenêutico”, que coloca em
movimento a interpretação. Não é por menos que se afirma: “os pré-juízos
de um indivíduo são muito mais que seus juízos; a realidade
histórica do seu ser” (viés ontológico-existencialista) (GADAMER,
1992, apud CAMARGO, 2003, p. 57).
A autora finaliza o primeiro capítulo distinguindo a hermenêu-tica
jurídica dos demais campos hermenêuticos, ao dizer que aquela
tem uma característica que lhe é peculiar, qual seja, utilização no
processo de compreensão, além da tradição histórica, da tradição es-pecificamente
jurídica (regras e princípios), que desemboca na ideia
da dogmática, que tem a grande vantagem de preservar a segurança
nas relações sociais, “pelo quantum de previsibilidade que oferece ao
controle de suas ações, mais do que em qualquer outra área do con-hecimento
[...]”. (CAMARGO, 2003, p. 58/60)
Percorreremos, nesta parte, que corresponde ao segundo capí-tulo
da obra de Margarida Camargo, a análise de diversos movimen-to/
teorias lançados ao longo dos séculos acerca da interpretação do
mundo jurídico, “da exegese à jurisprudência de valores”.
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Mutação Social e Jurídica:
Considerações Propedêuticas ao Estudo da Mutação
Constitucional e a Nova Hermenêutica
A essência do direito sempre esteve calcada na justiça e seguran-ça
(algo que se aponta como inversamente proporcionais, mas que
são, na verdade, concepções complementares). De um lado, temos
a justiça formal, onde prepondera a ideia de segurança do direito.
De outro, o questionamento, feito pela autora, dessa “modernidade”.
Em Hobbes, Locke, Rousseau, Montesquieu e nos Fouding Fa-thers
(Hamilton, Madison e Jay), temos, de forma geral, a manifes-tação
no sentido de igualar o Estado à ordem do ordenamento
jurídico positivo, onde a segurança se encontra nas leis legitimam-ente
criadas pelos representantes do povo e garantidas pelo poder
judiciário, que inibem o abuso de poder, mas também garante a
igualdade formal entre os homens. Assim, a teoria da separação dos
poderes e a igualdade garantida pela aplicação da lei formam a es-trutura
formal e os ideais do Estado de Direito.
Dando um salto quântico, na pós-modernidade esse valor seguran-ça
abre espaço para o valor justiça, garantido, agora, pela razoabilidade
das decisões de cada caso concreto. Nas palavras de Margarida Cama-rgo
(2003, p. 64/65): “é quando as relações intersubjetivas e dialéticas,
capazes de viabilizar o consenso e a legitimidade das decisões jurídicas,
fazem com que se recupere a antiga retórica clássica e lhe confira obje-tos
novos” (lógica do razoável e nova hermenêutica). Mas isso se deveu
a uma grande discussão ao longo do tempo, que passaremos a abordar.
A Escola da Exegese surge com o objetivo de interpretar os
grandes códigos, como o de Napoleão. Na verdade, impunham uma
atividade restrita do poder judiciário nessa tarefa interpretativa, pois
propugnava a observância severa e restrita aos termos da lei, à gra-maticalidade.
O juiz seria, assim, mero aplicador do texto legal, neu-tro
e objetivo. É a época do dogma da razão, que vai de 1804 a 1880,
quando do declínio, ou seja, da onipotência do legislador.
Mas muitas vezes os juízes se defrontavam com casos de lacunas,
e por isso François Gény faz sua crítica ao defender a “livre investi-gação
científica”, onde o juiz, naqueles casos, deve fazer uma análise
sobre os fatos sociais. Livre porque não está adstrita a uma autori-dade
positiva; científica porque encontra suas bases nos elementos
sólidos e objetivos da ciência. Assim, permite-se uma procura do di-reito
fora do texto legal. Esse foi o cientificismo de base sociológica.
Em contraposição à filosofia das luzes, surge, na Alemanha, a
Escola Histórica do Direito, que propugna por manifestações es-livro_
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