Três frases:
1) O artigo discute três deformações comuns do marxismo: como teleologia histórica, mecanicismo-estruturalismo e teoria do progresso linear.
2) Apresenta a concepção materialista da história de Marx, baseada no conflito de classes e na determinação estrutural da superestrutura pela estrutura econômica.
3) Explica que Marx não defendia uma visão mecânica, mas sim que a história é resultado da luta de classes dentro dos limites impostos pela estrutura econ
Um ano de posse: Obama frente al desgaste de su gobierno
Revista Contra a Corrente. N. 6
1. Sumário
03
Linha Editorial
04
Apresentação
ENTREVISTA
09
Exclusiva com o Prof. Chico de Oliveira
ARTIGO
20 Marx a Feuerbach
Três deformações do marxismo: Maria Teresa Buonomo de Pinho
marxismo como teleologia histórica,
como mecanicismo-estruturalismo e 52
como teoria do progresso linear A continuidade de um ciclo vicioso de
Cátedra Livre Karl Marx - Faculdade de Filosofia acumulação do capital via Estado:
y Letras da UNAM (México) o primeiro semestre do governo Dilma
Lucas Gama Lima e Alexandrina Luz Conceição
26
Uma re-leitura marxista de Kant: crítica 54
da razão imanentista E. P. Thompson e os livros
Antônio da Silva Câmara didáticos no Brasil
Michel Goulart da Silva
33
A quimera do princípio do direito da 61
dignidade da pessoa humana Declaração: A Frente de Esquerda
Hélio Rodrigues diante da crise capitalista
(Argentina - Eleições 2011)
39
63
O dominó europeu: Alemanha, Eurozona
A revolução espanhola e a esquerda
e a crise capitalista mundial
Gilson Dantas
comunista no Brasil
Luiz Roberto S. Lauand
46
70
Considerações acerca da influência de
Novas lições da Comuna de Paris
Feuerbach sobre Marx e da crítica de
Lenin
RESENHA
68
Para além da miséria sexual
Diana Assunção
2. Três deformações do marxismo:
ARTIGO
marxismo como teleologia histórica,
como mecanicismo-estruturalismo e
como teoria do progresso linear1
Cátedra Livre Karl Marx do século XIX, distinguindo-se da noção de um pro-
Faculdad de Filosofia y Letras da UNAM (México) gresso ininterrupto e automático. Este posicionamen-
to crítico em relação ao suposto progresso capitalista
Introdução não pode desligar-se do fato de que o marxismo sur-
giu quando a sociedade burguesa encontrava-se dila-
Neste encontro nos ocuparemos da concepção cerada pelo antagonismo de classe e o proletariado
materialista da história, buscando explicar alguns de começava a emergir no cenário.
seus aspectos metodológicos essenciais e seus con- A crítica da modernidade não é exclusiva do
tornos constitutivos, debatendo com as mistificações marxismo. O pensamento irracionalista foi outro gran-
do marxismo. Retomaremos conceitos desenvolvidos de discurso crítico e teve em Friedrich Nietzsche um
por Karl Marx, Friedrich Engels, Vladimir Lenin e León de seus maiores expoentes, o qual a partir de um pon-
Trostski, assim como por autores contemporâneos to de vista reacionário desenvolveu sua tese baseada
como Alex Callinicos e Daniel Bensaid. Partimos da pre- na vontade de poder e na crítica da noção da verdade
missa que o marxismo é uma ferramenta fundamental objetiva. O mesmo teve também sua continuidade e
e indispensável para abordar a situação do capitalismo seus tributários durante o século XX; por exemplo,
contemporâneo, já que permite compreender a dinâ- Gÿorg Lukács em A destruição da razão demonstra as
mica da situação político-social, e em particular, as vias vias de continuidade entre o filósofo alemão e George
para sua transformação revolucionária. Simmel, Martin Heiddeger e outras vertentes da so-
ciologia e da filosofia alemã do século XX que foram,
Teoria materialista do conflito e da trans- além disso, um ponto de referência para a ideologia
formação revolucionária nazista. Nesse sentido cabe dizer que durante o sécu-
lo XIX, de forma marginal ao pensamento dominante,
Marx elaborou sua teoria baseando-se na con-
surgiram distintas respostas à modernidade capitalis-
cepção materialista que encontra no conflito e na con-
ta formuladas a partir de pontos de vista antagônicos,
tradição econômico-social o motor da transformação,
mas a resposta de Marx e Engels foi a que, baseando-
diferenciando-se, desta forma, das concepções idea-
se em uma crítica negativa à razão moderna (fundada
listas que consideram que a história é o movimento
na propriedade privada), estabeleceu as chaves para
de noções abstratas e imutáveis como o Espírito, a Ra-
sua superação revolucionária. Esta superação se reali-
zão, a Cultura ou as instituições. O materialismo histó-
zou dialeticamente, recuperando o mais avançado do
rico, nesse sentido, constitui-se em uma teoria crítica
pensamento da burguesia ascendente – o que Lenin
da “modernidade” burguesa e do espírito capitalista
chamou as três fontes e três partes constitutivas do
marxismo – ao mesmo tempo em que o subverteu
Documento apresentado à III sessão da Cátedra Livre Karl
Marx, em 07/10/2008, na Faculdade de Filosofia y Letras da e o transformou nos fundamentos de uma teoria da
UNAM, México; também publicado na revista Contra la Corrien- revolução social.
te – Revista marxista de Teoria y Política no 1, dezembro de 2008.
Aqui reproduzimos na íntegra o texto Marx como crítica da ra-
zão histórica positivista, que pautou o encontro na UNAM; o tí-
Estrutura e luta de classes
tulo aqui adotado é de responsabilidade de Contra a Corrente. No Prefácio ao Para Crítica da Economia Polí-
Traduzido por Ana Carolina Ramos e Silva e revisado por Ricardo
R. A. Lima. Isto é, a economia clássica inglesa, o pensamento social fran-
UNAM (Universidade Autonoma de México). cês e a filosofia hegeliana.
3. Três deformações do marxismo: teleologia histórica, mecanicismo-estruturalismo e teoria do progresso linear
tica, Marx assinalou os fundamentos da concepção mática e sem discordâncias entre a economia, a his-
materialista da história. Nele afirmava que “[...] tanto tória e a política.
as relações jurídicas, tais como formas de Estado, não Para sustentar esta afirmação recordemos que
podem ser compreendidas nem a partir de si mesmas, nos Grundrisse, Marx nos fala da “dialética dos concei-
nem a partir do assim chamado desenvolvimento ge- tos de forças produtivas e relações de produção, uma
ral do espírito humano, mas pelo contrário, elas se en- dialética cujos limites devem ser definidos não supri-
raízam nas relações materiais de vida, cuja totalidade mindo a diferença real” (MARX, 1980: 47). No mesmo
foi resumida por Hegel sob o nome de ‘sociedade civil’ sentido, no Prefácio anteriormente citado escreve que
seguindo os ingleses e franceses do século XVIII; mas “[...] Na consideração de tais transformações é neces-
que a anatomia da sociedade civil deve ser procura- sário distinguir sempre entre a transformação mate-
da na Economia Política”. Logo depois desta crítica às rial das condições econômicas de produção, que pode
formas anteriores de interpretar a história sustenta ser objeto de rigorosa verificação da ciência natural,
que “[...] na produção social da própria vida, os ho- e as formas jurídicas, políticas, religiosas, artísticas ou
mens contraem relações determinadas, necessárias e filosóficas, em resumo, as formas ideológicas pelas
independentes de sua vontade, relações de produção quais os homens tomam consciência desse conflito e
estas que correspondem a uma etapa determinada de o conduzem até o fim” (MARX, 2000: 5). Estabelece
desenvolvimento de suas forças produtivas materiais. assim uma distinção profunda – inclusive metodológi-
A totalidade destas relações de produção forma a es- ca – entre as mudanças estruturais e os processos na
trutura econômica da sociedade, a base real sobre a superestrutura política. Esta distinção é a base para
qual se levanta uma superestrutura jurídica e política, explicar que a determinação imposta pela estrutura
e à qual correspondem formas sociais determinadas de econômica se expressa no plano político e social atra-
consciência”, a qual se expressa na maneira em que “O vés de múltiplas mediações e não como uma corre-
modo de produção da vida material condiciona o pro- lação direta ou isomórfica. Isto é o que Marx define
cesso em geral de vida social, político e espiritual. Não como determinação em última instância.
é a consciência dos homens que determina seu ser, mas Por exemplo, a crise econômica internacional
ao contrário, é o seu ser social que determina sua cons- não estabelece a priori os processos sociais e políti-
ciência. Em uma certa etapa de seu desenvolvimento, cos que se desencadearão a partir dela, eles podem
as forças produtivas materiais da sociedade entram em seguir diversos cursos a partir da ação das classes
contradição com as relações de produção existentes em disputa. Por sua vez, deve-se levar em conta que
ou, o que nada mais é do que a sua expressão jurídi- a própria dinâmica da estrutura econômica (e neste
ca, com as relações de propriedade dentro das quais caso particular a dinâmica da crise) não deixará de ser
aquelas até então se tinham movido. De formas de de- influenciada pela resposta da classe operária e dos
senvolvimento das forças produtivas, estas relações se demais setores oprimidos e explorados.
transformam em seus grilhões. Sobrevém então uma Isto nos remete ao Manifesto Comunista, onde
época de revolução social” (MARX, 2000: 4). Marx afirma que a história é a história da luta de clas-
Esta afirmação, já clássica, foi deformada com ses, na qual os homens lutam para resolver o conflito.
o intuito de atribuir a Marx uma concepção mecânica Seguindo a lógica até aqui esboçada, se a estrutura
da realidade, na qual a superestrutura política se ade- econômica impõe limites e determinações, a concre-
quava passivamente à estrutura econômica e onde a ção do processo histórico e social e a resolução dos
ação humana seguia um guia preestabelecido, similar dilemas à sua frente dependem da ação das classes
à atuação de um autômato. Entre estas generalizações em disputa.
podemos mencionar os manuais de economia política
do DIAMAT soviético. As deformações do marxismo
A concepção do revolucionário alemão estava As principais frentes de ataque contra o marxis-
longe disso. A determinação marxista se baseia no mo apresentam-no em uma versão particularmente
postulado de que os acontecimentos não são aciden- vulgar, para construir um inimigo ad hoc, altamente
tais e que o desenvolvimento histórico segue deter- vulnerável à refutação, mas que nada tem a ver com o
minadas leis. A principal delas foi assinalada por Marx pensamento de Marx e Engels.
no texto que mencionamos anteriormente. Contudo, Um exemplo deste marxismo vulgar está na
Marx em nenhum momento confunde o conceito de social democracia alemã, cuja expressão no terreno
determinação com a ideia de uma correlação auto- das idéias era o evolucionismo positivista, produto
Ressalta-se que para a tradução das passagens escritas por do reflexo provocado por um desenvolvimento ca-
Marx no Prefácio ao Para Crítica da Economia Política citadas pelo pitalista que, a finais do século XIX, parecia avançar
autor as passagens em espanhol foram cotejadas com a tradução
sem contradições. Esta época se caracterizou por uma
contida na edição brasileira: KARL, M. Para a crítica da economia
política. 2. Ed. São Paulo: Nova Cultura, 1986. pp. 23-27. (N. T.). grande expansão imperialista marcada pela transfor-
4. Contra a Corrente
mação crescente do capitalismo de livre concorrência articula e se constitui de acordo com um plano pro-
no reinado dos monopólios, de ampliação e extensão gressivo. Em A sagrada família dizem: “a história não
das relações capitalistas em nível global e de certa faz nada, não possui nenhuma imensa riqueza, não
melhoria da condição da classe operária nos países livra nenhuma classe das lutas. Quem faz tudo isso,
europeus. Sua expressão ideológica foi um marxismo quem possui e luta é o homem, o homem real, viven-
anestesiado, que no caso extremo de Eduard Berns- te, não é, digamos, a História que utiliza o homem
tein, um dos intelectuais da II internacional, implicou para elaborar seus fins, como se este fosse alheio a
na inconsequente proposta teórica de que o regime ela, a história não é senão a atividade do homem que
de monopólio se transformaria gradualmente e sem persegue seus objetivos (MARX e ENGELS, 1965: 210).
maiores dores de parto em um regime socialista. Isto Em A ideologia Alemã voltam a este tema: “Não se
representou a eliminação da noção de revolução so- pode acreditar que a história vindoura seja o objetivo
cial ou sua manutenção como ideia decorativa, mas da história passada” (MARX, 1973: 123).
não como um norte estratégico em torno do qual or- O segundo argumento, vinculado ao anterior, su-
ganizar a atividade política cotidiana. põe que o marxismo estabelece leis imutáveis, ou seja,
Da mesma maneira, com a morte de Lenin, o para estes críticos a história é um conjunto de fatos sin-
triunfo da contra-revolução burocrática na URSS e a gulares e ímpares. Neste contexto a teoria de Marx é
derrota da oposição de esquerda liderada por Trotski, desqualificada sob o argumento de que por sua estru-
surgiu uma teoria mecânica e gradualista expressa, tura lógica e por sua pretensão de estabelecer leis ge-
por exemplo, na teoria da revolução por etapas que rais não pode ser refutada e, portanto, carece de cien-
foi funcional aos interesses contra-revolucionários da tificidade. Por exemplo, Popper denegria o marxismo
burocracia stalinista. porque o considerava como uma doutrina rígida.
Recordemos, para não perder de vista a relação Mas o marxismo se distancia da concepção em-
entre os processos sociais e as ideias, que cada época pirista da história e não pretende aplicar ao estudo do
de restauração e de consolidação da dominação bur- desenvolvimento social leis férreas e rígidas, nem al-
guesa deu lugar a ideologias que ecoaram no interior cançar a previsibilidade própria das ciências naturais.
da esquerda. Na atualidade, depois de décadas de Ao contrário, se baseia nas noções de lei tendencial
ofensiva ideológica, política e social contra o marxis- (que expressa a necessidade histórica) e sua articula-
mo e a classe operária surgem teorias que apontam ção com o acontecimento ou a contingência (isto é, a
para substituição do proletariado por outros setores noção de possibilidade).
sociais na luta anticapitalista, com ideias não de luta Como dissemos anteriormente, esta tensão
pelo poder ou a suposição – própria de organizações permanente entre a necessidade e a possibilidade só
como a LCR francesa, ligada ao PRT mexicano – de se resolve no processo histórico concreto. Por exem-
que a época das revoluções operárias se esgotou. plo, a tendência inerente (necessidade) até a catás-
Hoje observamos como o lento restabelecimento das trofe do capitalismo se mostrou com toda sua força
condições clássicas da luta de classes e em particular durante a Primeira Guerra mundial. Mas não estava
a catástrofe econômica do capitalismo abrem portas escrito de antemão que isso levaria à ruína do capita-
à necessidade de recuperar a tradição marxista e a lismo e sua substituição por seu sistema social supe-
preocupação em entender a crise e as vias para sua rior, o que se delineava era uma alternativa histórica.
superação revolucionária. Por isso, Lenin ressaltou que a guerra abria caminho à
revolução, e esta poderia ser a via que tornaria possí-
Em defesa de Marx vel a solução entre alternativas distintas. Isso se efeti-
A crítica contra o marxismo parte de três ar- vou na Rússia dominada pelos czares, onde a revolu-
gumentos centrais que a seguir enumeraremos e ção se impôs mediante a tomada do poder pela classe
buscaremos contra-argumentar. O primeiro conside- operária organizada em conselhos. Mas, o resto da
ra o marxismo como uma teleologia histórica, atri- Europa seguiu outro caminho: a revolução foi esma-
buindo-lhe uma visão profética que foi utilizada para gada e o capitalismo, ainda que não tenha resolvido
prognosticar a queda do capitalismo e sua substitui- as razões de fundo da crise, logrou impor um instável
ção pelo comunismo: a história teria um telos (fim) e equilíbrio e sua dominação, demonstrando que as leis
a ele se dirigiria. Alguns representantes dessa postu- tendenciais se materializam ou não na arena da histó-
ra seriam o epistemólogo Karl Popper e o sociólogo ria. Da mesma maneira, as leis tendenciais do capital
Max Weber. – como a queda da taxa de lucro – não são absolutas,
Mas Marx e Engels são claros: longe de fundar mas atuam em um contexto complexo e se articulam
uma filosofia da História, constituem uma crítica da com contra-tendências, como por exemplo durante o
razão histórica positivista, isto é, questionam a noção
Vários autores de nossa bibliografia trabalharam estas idéias,
de que a história tem um fim preestabelecido que se as quais incorporamos na exposição desta cátedra.
5. Três deformações do marxismo: teleologia histórica, mecanicismo-estruturalismo e teoria do progresso linear
boom, ocasião em que o capitalismo obteve um au- e com a ajuda da revolução européia, via a possibili-
mento na taxa de mais-valia. dade de uma revolução que permitisse à Rússia não
Entender esta dialética entre a possibilidade e repetir o caminho da Inglaterra e comprimir a fase de
a necessidade (diferente da noção de causa e efeito desenvolvimento capitalista, mostrando uma concep-
unilateral que canonicamente se atribui às ciências ção de desenvolvimento desigual e por saltos, antípo-
naturais) não implica em uma impossibilidade meto- da a qualquer gradualismo histórico.
dológica para a abordagem científica na compreen- Sem dúvida, Marx falou que a revolução co-
são do desenvolvimento social. Como observa Trotski meçaria pelos países mais desenvolvidos e isso pode
“Tendo definido a ciência como o conhecimento dos mostrar, como afirmam alguns, a existência de duas
fenômenos objetivos da natureza, o homem teimosa perspectivas justapostas. Esta aparente contradição,
e persistentemente excluiu a si próprio da ciência, re- mais que produto de uma concepção positivista e
servando-se privilégios especiais sob a forma de pre- da excessiva influência do método das ciências natu-
tensas relações com forças supra-sensíveis (religião) rais, é o resultado do limite e das contradições que a
ou com preceitos morais eternos (idealismo). Marx evolução do capitalismo e a própria situação do mo-
privou o homem definitivamente e para sempre des- vimento operário impunham nesses anos, que limi-
ses odiosos privilégios, considerando-o como um elo tavam a possibilidade da revolução proletária. Ainda
natural no processo evolutivo da natureza material, assim, em cada conjuntura na qual esta se colocou,
ao entender a sociedade como a organização para a a perspectiva de Marx esteve longe de um normati-
produção e distribuição, ao considerar o capitalismo vismo positivista, como mostrou sua atitude frente à
como uma das etapas do desenvolvimento da socie- Comuna de Paris.
dade humana. A finalidade de Marx não era descobrir Em relação à suposição de que o comunismo
as ‘leis eternas’ da economia” (TROTSKI, 1999: 170). chegará inevitavelmente, Marx e Engels afirmavam
Em terceiro lugar, ataca-se Marx consideran- que “opressores e oprimidos se enfrentaram sempre,
do-o como um positivista histórico, baseando-se em mantiveram uma luta constante, velada algumas ve-
sua suposta noção de progresso. Para sustentar esta zes e outras franca e aberta; luta que terminou sem-
ideia argumentam, por exemplo, que Marx apresen- pre com a transformação revolucionária da sociedade
tou uma sucessão ordenada e rígida da evolução dos e a derrocada das classes em conflito” (MARX, 1998:
modos de produção, encontrando, além disso, nas 57). A noção de progresso em Marx é concreta porque
formas menos desenvolvidas da sociedade seu desti- é histórica, não se trata de um progresso homogêneo,
no preestabelecido e antecipado. E, como apontamos gradual ou pré-determinado, mas que se determina
anteriormente, atribui-se a ele a previsão infalível que concretamente: “é desigual e por saltos”, e conduz a
o capitalismo será substituído pelo socialismo. um dilema no processo social e, portanto, na possibi-
Mas Marx e Engels, assim como o marxismo da lidade da derrota ou o retrocesso histórico.
III Internacional, superaram a noção de uma história Nesse sentido, em Marx e seus continuadores
linear em seu curso e homogênea em seus momentos no século XX existe a confiança na possibilidade de
e o mesmo Marx escrevia nos Grundrisse que “o con- modificar o curso da história mediante a ação revolu-
ceito de progresso não deve ser concebido da manei- cionária. Esta concepção teórica explica sua atividade
ra abstrata habitual” (MARX, 1982: 31). militante e a elaboração de uma teoria da revolução
Essa crítica confunde a enumeração que Marx já que, superar o estágio atual da sociedade depende
realiza dos modos de produção (entre os quais efeti- – dadas certas condições – do papel da classe operária
vamente encontra distintos graus de evolução históri- e de sua capacidade para dotar-se de uma ferramenta
ca e de domínio sobre a natureza) com sua sucessão política para levar adiante esta tarefa.
pré-estabelecida e forçada. Se o stalinismo suprimiu Considerar que não há uma sucessão ferreamente pré-deter-
o modo de produção asiático para justificar um es- minada, nem um só caminho para a evolução não implica negar,
quema gradualista de revolução por etapas é porque olhando em retrospectiva, que para Marx o modo de produção
sua única menção à obra de Marx demonstrava (por capitalista representa um progresso histórico em relação ao feu-
dalismo. Diga-se de passagem, é importante enfatizar o caráter
sua contemporaneidade em relação a outros modos relativo e parcial já que os fundadores do socialismo científico
de produção como o feudal) que a evolução histórica nunca deixaram de assinalar o caráter selvagem e avassalador, em
está aberta a múltiplos caminhos. De forma similar, relação às formas sociais anteriores, que poderia assumir o capi-
deve-se considerar os escritos de Marx sobre a Rússia, talismo. Por sua vez, como afirma Daniel Bensaid, realizar essa
avaliação não significa afirmar que estava inscrita no modo de
em que, partindo das formas de propriedade comunal
produção feudal sua transformação no capitalismo e o mesmo au-
tor cita Antonio Gramsci “As formas mais desenvolvidas revelam
São referências obrigatórias as elaborações de Walter Ben- os segredos das formas menos desenvolvidas, mas isso não deve
jamin que nos anos 1930 questionava em suas Teses sobre a his- ser confundido com a ideia de que a forma mais desenvolvida era
tória a noção positivista própria da social-democracia européia e o destino, a finalidade, da forma previa”. Gramsci afirmava, por
do stalinismo. exemplo: “Seria possível formular assim a questão: toda ‘glande’
6. Contra a Corrente
Pimenta nos olhos dos outros é refresco. Na ruptura no evolucionismo gradualista da II Interna-
realidade, muitos dos críticos de Marx deveriam cional10. Trotski desenvolveu esta tese nos primeiros
olhar-se no espelho. Por exemplo, em seu ataque ao parágrafos da História da Revolução Russa, obra que
marxismo, o neoliberalismo apelou para concepções foi a base teórica para explicar porque a revolução na
certamente teleológicas, como sem dúvida fez Fran- Rússia poderia triunfar.
cis Fukuyama, que postulava O fim da história. Os que Trotski dá asas à dialética aplicada à compre-
quiseram jogar na lata de lixo da história Karl Marx e ensão do desenvolvimento histórico: a correlação
sua escola acabaram nesse lugar indigno. O regresso entre a estrutura economia-mundo imperialista e a
a Marx (ensaiado a partir de múltiplos lugares e in- estrutura nacional, a relação não sincrônica e cheia
teresses) é a busca não de uma teoria messiânica ou de contradições entre os distintos níveis da forma-
profética, mas um reconhecimento – nos fatos para ção social russa – uma economia que articula o cam-
além das intenções subjetivas de quem o faz – de po atrasado e a moderna indústria nas áreas urbanas
um aspecto chave e crucial do pensamento marxista, – unida a uma superestrutura política vinculada ao
como teoria concentrada na análise e esclarecimento capital estrangeiro e à parasitária burguesia nativa.
das leis (tendenciais) do capital e de sua tendência re- Soma-se a isto, a discordância entre as classes e os
corrente ao desequilíbrio, à crise e ao conflito. partidos, em que a burguesia atrofiada e carente
de personalidade política contrasta com uma classe
Desigualdade e descontinuidade – operária jovem e revolucionária que rapidamente se
De Marx a Trotski viu hegemonizada pelas idéias socialistas. Tais fato-
A discussão do progresso positivo nos leva à res lhe permite articular uma análise profunda pela
noção da descontinuidade e desigualdade no pensa- qual chega às seguintes conclusões: a impossibilida-
mento estratégico de Marx e dos marxistas do século de da burguesia solucionar as tarefas democráticas e
XX, como Lenin e Trotski. do país reproduzir a sucessão de etapas históricas do
Toda a obra de Marx e Engels está influenciada capitalismo francês ou inglês; além de prever a pos-
por uma concepção de desenvolvimento desigual e sibilidade de que a classe operária chegue ao poder
heterogêneo. Não somente nos parágrafos referentes como única forma de resolver essas tarefas inconclu-
ao desenvolvimento dos modos de produção já discu- sas, mas sem esquecer das distintas determinações
tidos anteriormente, mas, por exemplo, quando men- da economia, afirmando que – por seu atraso – a
ciona a “desigual relação entre o desenvolvimento da Rússia poderá chegar antes à ditadura do proletaria-
produção material e o desenvolvimento, por exemplo, do, porém mais tarde ao socialismo.
artístico” (MARX, 1980: 31), ou em suas análises sobre Esta análise – que foi a base da teoria da re-
os processos políticos e revolucionários do século XIX. volução permanente – fez escola quando estabeleceu
Quando se questiona a noção de uma adequação me- que – sob o capitalismo – o desenvolvimento histó-
cânica, aparece a noção de discordância, de anacronis- rico, longe da noção de linearidade, uniformidade e
mo e de contradição entre as distintas fases e páginas homogeneidade, é desigual e combinado, articula for-
da história e da sociedade. Essa concepção é a base mas novas e anacrônicas, comprime fases e etapas,
profunda na qual se enraíza a aposta de que triunfe a acelerando a incorporação dos desenvolvidos sem
revolução em 1871, em um país cuja estrutura econô- deixar de lado o peso do atraso das formações sociais
mica capitalista ainda é atrasada, mas que conta com retardatárias. Trotski tendia a generalizar esta ideia
a classe operária mais experiente; ou a possibilidade afirmando que isto pode ser encontrado não somente
que uma forma social anacrônica – como o mir – seja na análise social russa, mas no restante dos países de-
a base para uma transformação revolucionária. pendentes e atrasados.
Trotski será aquele que aprofunda o caminho É importante considerar que o desenvolvimen-
traçado por Marx mediante a lei de desenvolvimen- to de um marxismo vivo, em contraposição ao esque-
to desigual e combinado com a qual introduz uma matismo mecanicista próprio do stalinismo, foi uma
tarefa que assumiram também diferentes marxistas
pode pensar em se tornar carvalho. Se as glandes tivessem uma
ideologia, esta seria justamente a de se sentirem ‘grávidas’ de car- pontos vigentes e aqueles que devem ser atualizados em tal texto,
valhos. Mas, na realidade, de cada mil glandes, 999 servem de os limites da visão de Marx da revolução no século XIX, impostos
pasto aos porcos e, no máximo, contribuem para criar chouriços e pelo próprio desenvolvimento do capitalismo. Também temos re-
mortadelas” (BENSAID, 2003: 56). comendado a leitura de O pensamento político do jovem Trotski,
A expressão original em espanhol é “La paja em el ojo ajeno”, de Alain Brossat, ponto de partida e inspiração para o presente
mas aqui decidiu-se traduzi-la por uma expressão usual em portu- autor.
guês e com sentido similar (N. T.). 10 Uma das exceções foi Antonio Labriola, que antecipou teo-
90 anos do Manifesto Comunista, escrito por León Trotski, foi ricamente muitos dos desenvolvimentos posteriores da geração
um texto básico para a preparação desta cátedra e sugerido como anti-positivista que em 1917 tomou a dianteira da teoria e prática
leitura aos assistentes. Nele Trotski desenvolve, considerando os marxistas.
7. Três deformações do marxismo: teleologia histórica, mecanicismo-estruturalismo e teoria do progresso linear
latinoamericanos, entre os quais podemos citar José Referências
Carlos Mariátegui, Julio Antonio Mella, Milcíades
Peña, assim como distintos intelectuais revolucioná- Bensaid, D. Marx intempestivo. Argentina: Edi-
rios ligados à corrente trotskista. ciones Herramienta, 2003.
Callinicos, A. Contra el posmodernismo. Co-
Luta de classes e revolução lombia: El Áncora editores, 1993.
ENGELS, F., MARX, K. La Sagrada Familia. México:
Vinculada à ideia anterior está a relação entre a Editora Política, 1965.
luta de classes, os partidos e instituições dos mesmos. ______. La Ideología Alemana. México: Pueblos
O caráter desigual do processo histórico se expressa Unidos, 1973.
quando a classe operária entra em luta com suas velhas ______. Manifiesto Comunista. España: Grijalbo
organizações e não pode improvisar – nos curtos es- Mondadori, 1998.
paços de tempo de uma revolução – uma organização Marx, K. Elementos fundamentales para la crítica
que represente seu programa histórico. de la economía política (Grundrisse) 1857-1858.
Isso significa que não existe linearidade nem México: Siglo XXI, 1980.
concordância entre a luta de classes, a subjetividade ______. Contribución a la crítica de la economía
e a consciência. Por exemplo, no processo revolucio- política. México: Siglo XXI, 2000.
nário espanhol de 1936 surgiram milícias, experiências TrotskI, L. Naturaleza y dinámica del Capita-
de controle operário e tendências à auto-organização, lismo en la Economía de Transición. Argentina:
mas mesmo que a ação das massas estivesse por mo- CEIP, 1999.
mentos – nos dizeres de Trotski – em oposição direta
de 180 graus em relação a suas direções reformistas,
aquelas não puderam improvisar, no curto período da
revolução, uma direção política alternativa. No caso
da Rússia, a relação entre classe e organização política
seguiu outro caminho: em 30 ou 40 anos o nascente
movimento operário alcançou aceleradamente uma
experiência política que lhe permitiu chegar ao poder.
Isto foi possível porque nesse tempo se desenvolveu
uma organização política que nos momentos cruciais Família, escola e ordem social burguesa
da revolução pôde unir-se com a classe operária e foi
A família e a escola, com efeito, não passam,
capaz de expressar seu programa e sua perspectiva nos nossos dias, de um ponto de vista político, de
histórica. Nesse sentido, a importância da organização oficinas da ordem social burguesa, destinadas à
política não está somente em seu papel nos momentos fabricação de pessoas ajuizadas e obedientes. O
de crise revolucionária, mas em sua atuação constante pai, na sua figura habitual, é o representante das
nas fases preparatórias, que é fundamental para sua autoridades burguesas e do poder de Estado na
formação, assim como para desenvolver uma subjetivi- família. A autoridade do Estado exige dos adultos
dade revolucionária na classe trabalhadora. a mesma atitude obediente e submissa que aquela
Em sentido mais amplo, o amadurecimento das que exige o pai dos seus filhos quando são peque-
condições objetivas pode se dar antecipadamente às nos ou adolescentes. A falta de espírito crítico, a
proibição de protestar, a ausência de opinião pes-
condições políticas para a superação revolucionária do
soal caracterizam a relação das crianças fiéis à sua
capitalismo. E isso coloca a necessidade de que a clas- família, com os pais, assim como as dos emprega-
se operária se constitua como sujeito social e político dos e funcionários devotados às autoridades, com
revolucionário. Isto implica uma disposição à luta por o Estado, e na fábrica, dos operários não esclareci-
parte da classe operária, expressa em ações e em no- dos e sem consciência de classe, com o diretor ou o
vas organizações, assim como na recuperação de seus proprietário da fábrica.
sindicatos. E junto a isto, a máxima expressão deste Na medida em que se desenvolve a consci-
desenvolvimento é a construção de uma organização ência de classe na família proletária, a atitude dos
política revolucionária da classe operária. A construção pais em relação às crianças muda igualmente, mes-
desta organização política expressa e condensa em seu mo sendo, de todas as atitudes burguesas, aquela
que mais dificilmente e mais tardiamente muda.
programa e estratégia sua experiência histórica. Isto
(Wilhelm REICH, O combate sexual
pode permitir elucidar as possibilidades históricas que da juventude – COMENTADO)
– como Marx e Engels consideravam – não se resolvem
automaticamente, mas requerem a ação do sujeito,
como condição para acabar com o capitalismo e com a
pré-história que é a sociedade de classes.
8. A quimera do princípio do direito
ARTIGO
da dignidade da pessoa humana
Hélio Rodrigues do critério constitucional. O próprio Supremo Tribu-
nal Federal (STF), enquanto órgão do Estado brasilei-
O Direito é uma vida aérea, o éter da ro com competência para fazer o controle de consti-
sociedade civil (Marx) tucionalidade das leis em última instância, também
adota esse posicionamento, como se vê em vários
1. Introdução: julgamentos, expressando claramente que “(...) a
dignidade da pessoa humana precede a Constituição
Este texto submete à crítica o princípio jurídico de 1988 e esta não poderia ter sido contrariada, em
denominado de dignidade da pessoa humana, reflexo seu art. 1º, III, anteriormente a sua vigência.” (ADPF
de um jusnaturalismo do jurista brasileiro contempo- 153, voto do Rel. Min. Eros Grau, julgamento em 29-
râneo. Ao fazê-lo, busca mostrar que se trata de uma 4-2010, Plenário, DJE de 6-8-2010.). Em outras deci-
nova roupagem do direito natural e que tal princípio sões judiciais:
surge para defender tudo aquilo que constitui o que
se chama geralmente de uma ideologia. O direito ao nome insere-se no conceito de digni-
O conceito jurídico do princípio da dignidade da dade da pessoa humana, princípio alçado a funda-
pessoa humana é um conceito “a priori”. Essa fonte mento da República Federativa do Brasil (CF, art.
de conhecimento é precisamente a visão espiritual a 1º, III). (RE 248.869, voto do Rel. Min. Maurício
qual, livres de amarras sensoriais, apreende-se dire- Corrêa, julgamento em 7-8-2003, Plenário, DJ de
tamente a natureza essencial da existência e a lei que 12-3-2004.)
governa as ações. Um conhecimento deste tipo se de- Sendo fundamento da República Federativa do
nomina metafísico. Conseqüentemente, todo conhe- Brasil a dignidade da pessoa humana, o exame da
constitucionalidade de ato normativo faz-se con-
cimento, inclusive o da ciência do direito, que tem que
siderada a impossibilidade de o Diploma Maior
estabelecer normas válidas por si mesmas para ação permitir a exploração do homem pelo homem. O
de seres humanos é metafísica. E o artigo desenvolve credenciamento de profissionais do volante para
o argumento de que toda metafísica é quimera. atuar na praça implica ato do administrador que
atende às exigências próprias à permissão e que
2. Desenvolvimento: objetiva, em verdadeiro saneamento social, o en-
dosso de lei viabilizadora da transformação, bali-
2.1 O Ponto de Partida: Tornou-se hábito falar
zada no tempo, de taxistas auxiliares em permis-
em princípio da dignidade da pessoa humana e o Pon-
sionários. (RE 359.444, Rel. p/ o ac. Min. Marco
to de Chegada: Uma ciência fraudulenta. Aurélio, julgamento em 24-3-2004, Plenário, DJ de
Hodiernamente, o chamado princípio da digni- 28-5-2004.)
dade da pessoa humana é a norma jurídica principioló- A duração prolongada, abusiva e irrazoável da pri-
gica que a esmagadora maioria dos juristas brasileiros são cautelar de alguém ofende, de modo frontal,
adota como sendo o critério que dá validade ao direi- o postulado da dignidade da pessoa humana, que
to positivo. Aliás, eleva-se esse princípio para além
constitucional da dignidade da pessoa humana, Saraiva, 2002;
SARLET, Ingo Wolfgang. Dignidade da pessoa humana e direitos
Mestre em Direito e Políticas Públicas pelo UniCEUB; espe- fundamentais na Constituição Federal de 1988, Livraria do Advo-
cialista em Filosofia Política pela UFC e especialista em Direito gado, 2002; Rosenvald, Nelson. Dignidade da Pessoa Humana e
Constitucional pela UNIFOR. Hélio Rodrigues é co-organizador boa-fé no Código Civil. São Paulo: Saraiva 2005; CAMARGO, Mar-
do livro A miséria da estatística e a estatística da miséria, Achia- celo Novelino. “O conteúdo Jurídico da Dignidade da pessoa hu-
mé, RJ, 2009. mana”. In: CAMARGO, Marcelo Novelino (org.). Leituras comple-
“A dignidade da pessoa humana não é uma criação constitucio- mentares do Direito Constitucional: Direitos Fundamentais. 2ª ed,
nal, pois ela é um desses conceitos a priori, um dado preexistente Salvador: Juspodivm, pp. 113-135, 2007.
a toda experiência especulativa, tal como a própria pessoa huma- Vide o trabalho de SANTOS, Karina Martins de Araújo. O prin-
na” (SILVA, 1998). cípio da dignidade da pessoa humana sob a ótica de Ministros do
Sobre o tema, ver NUNES, Luiz Antônio Rizzatto. O princípio Supremo Tribunal Federal. São Paulo: SBDP, 2005.
9. A quimera do princípio do direito da dignidade da pessoa humana
representa – considerada a centralidade desse ou seja, as normas jurídicas que regem a sociedade
princípio essencial (CF, art. 1º, III) – significativo ve- são postas para a sociedade pela própria sociedade,
tor interpretativo, verdadeiro valor-fonte que con- sempre de modo democrático. Nessa visão vulgar, po-
forma e inspira todo o ordenamento constitucional sitivista é de alguma forma uma garantia contra a arbi-
vigente em nosso País e que traduz, de modo ex-
trariedade do Estado e do governante. É uma faceta
pressivo, um dos fundamentos em que se assen-
ta, entre nós, a ordem republicana e democrática
da segurança jurídica, da legalidade, da prévia ciência
consagrada pelo sistema de direito constitucional e existência dos princípios e das regras que regem a
positivo. (HC 85.237, Rel. Min. Celso de Mello, sociedade. E aqui começa a contradição, porque esse
julgamento em 17-3-2005, Plenário, DJ de 29-4- jurista positivista brasileiro adota para a lei posta um
2005.) No mesmo sentido: HC 98.621, Rel. Min. conjunto de princípios e regras que a orientam, con-
Ricardo Lewandowski, julgamento em 23-3-2010, creta ou abstratamente, para que ele possa compre-
Primeira Turma, DJE de 23-4-2010; HC 95.634, Rel. ender e interpretar a lei.
Min. Ellen Gracie, julgamento em 2-6-2009, Segun- Ao fazer isso, o jurista toma para si uma postu-
da Turma, DJE de 19-6-2009; HC 95.492, Rel. Min. ra tipicamente do direito natural, porque esses princí-
Cezar Peluso, julgamento em 10-3-2009, Segunda
pios – que são concepções pré-existentes, posições de
Turma, DJE de 8-5-2009.
Só é lícito o uso de algemas em casos de resistên-
classe internalizadas – são consideradas como eviden-
cia e de fundado receio de fuga ou de perigo à tes, ensinadas como doutrina nas escolas de direito
integridade física própria ou alheia, por parte do e nos livros jurídicos, proclamadas como decorrentes
preso ou de terceiros, justificada a excepcionalida- do próprio sistema jurídico ou da evolução da história
de por escrito, sob pena de responsabilidade dis- do direito.
ciplinar, civil e penal do agente ou da autoridade e Ora, não se busca defender a tese de que existe
de nulidade da prisão ou do ato processual a que uma postura neutra, livre de concepções pré-existen-
se refere, sem prejuízo da responsabilidade civil do tes ou de classe, mas sim a honestidade com a ciência.
Estado. (Súmula Vinculante 11) Adotando por ciência o conhecimento sistematica-
O Plenário do STF, no julgamento da ADI 3.510,
mente desenvolvido e metodicamente comprovado,
declarou a constitucionalidade do art. 5º da Lei
de Biossegurança (Lei 11.105/2005), por entender
as atitudes emocionais e sua expressão ficam foram
que as pesquisas com células-tronco embrionárias do âmbito da ciência. Mas isso não diz que os cientis-
não violam o direito à vida ou o princípio da digni- tas não podem ou lhes é vedado expressar atitudes
dade da pessoa humana. práticas. Simplesmente quer dizer que esse aspecto
Crimes contra o Sistema Financeiro Nacional de sua atividade não pode ser descrito como ciência.
(Lei 7.492, de 1986). Crime societário. Alegada O que significa uma exigência dirigida, em nome da
inépcia da denúncia, por ausência de indicação da honestidade, para que as atitudes e expressões sejam
conduta individualizada dos acusados. Mudança destacadas com a maior clareza possível os limites
de orientação jurisprudencial, que, no caso de cri- que separam aquela parte de sua atividade científica
mes societários, entendia ser apta a denúncia que
que pode reclamar a autoridade e a validade objetiva
não individualizasse as condutas de cada indiciado,
bastando a indicação de que os acusados fossem
da ciência e aquela outra parte que não pode preten-
de algum modo responsáveis pela condução da so- dê-lo, por jamais representar verdade absoluta.
ciedade comercial sob a qual foram supostamente Os juristas esquecem, como por exemplo, que
praticados os delitos. (...) Necessidade de individu- no domínio do direito constitucional, Hans Kelsen
alização das respectivas condutas dos indiciados. demonstrou com infatigável empenho de que modo
Observância dos princípios do devido processo le- grandes setores dele foram escritos para defender
gal (CF, art. 5º, LIV), da ampla defesa, contraditório os interesses de um regime existente. De modo ma-
(CF,art. 5º, LV) e da dignidade da pessoa humana gistral, ele pôs a nu as manipulações e as imposturas
(CF, art. 1º, III). (HC 86.879, Rel. p/ o ac. Min. Gil- que as atitudes políticas empregavam, conscientes,
mar Mendes, julgamento em 21-2-2006, Segunda
para se disfarçar de ciência, tentando atribuir, assim,
Turma, DJ de 16-6-2006.) No mesmo sentido: HC
105.953-MC, Rel. Min. Celso de Mello, decisão
forma enganosa, a autoridade que o nome de ciên-
monocrática, julgamento em 5-11-2010, DJE de cia confere.
11-11-2010. Aliás, os juristas continuam esquecidos de que
vários conceitos – como valor, funcionamento natu-
O interessante é que o pensamento jurídico ral, equilíbrio, vontade popular, representação, demo-
brasileiro, de modo eclético e vulgarizado, se auto-in- É uma simbiose com o conceito de Estado moderno, com o
titula positivista e nega ser próximo do direito natural. conceito de democracia, de legalidade. Nesse enleio de conceitos,
E orgulha-se disso. Explica-se: entende aquele pensa- os juristas apenas não aceitam o título de formalistas. Estes se-
mento jurídico por positivista uma postura que pro- riam aqueles juristas que interpretam a lei no sentido mais literal,
rudimentar, criando uma interpretação que privilegia a forma em
duz e interpreta a lei dentro um Estado democrático, detrimento do conteúdo, e por isso causam inúmeras injustiças.
10. Contra a Corrente
cracia, governo, administração econômica, bem-estar reza razoável do ser e sua justificativa numa intuição
público, harmonia de interesses, preço e juros, estabi- intelectual. Ou seja, como a razão se limitaria a um
lidade e em muitas outras partes da teoria econômica pequeno número de princípios básicos e evidentes, a
ou política – que eles retiram, usam, reproduzem e justiça da norma particular depende de poder ser con-
ensinam de teorias do séc. XVIII e XIX, mas que ações siderada como deduzida daqueles princípios básicos.
políticas afetam secreta e constantemente tais concei- A crítica já consolidada ao direito natural diz
tos, deslizando ocultos componentes que conferem à que este se apoia numa intuição intelectual ou num
doutrina um direcionamento ideológico, ao mesmo mero sentimento de evidência que, supõe, garante
tempo que essa doutrina é oferecida como uma des- a conformação dos princípios básicos e, por isso, a
crição objetiva e científica da realidade. justiça. Mas, na realidade, não passa de uma expres-
O momento atual da ciência jurídica brasilei- são dogmática e patética de uma consciência moral
ra tem marchado sob a bandeira de um absolutismo e jurídica de uma determinada época, significando, a
metafísico. O problema da ação política da instituição manifestação da classe dominante.
Poder Judiciário continua obscurecido sob o manto do É preciso investigar a origem dessa consciência
fazer justiça. Esta continua sendo considerada como moral e jurídica. Entretanto, os juristas sequer ques-
um problema relacionado com a seguinte questão: tionam do ponto de vista histórico como um produto
qual a maneira de se determinar, à luz de princípios de fatores combinados da ordem social vigente. Tal
racionais, qual a ação correta? A resposta atual cha- consciência moral e jurídica não é criticada à luz de
ma-se princípio da dignidade da pessoa humana. Esta suas conseqüências sociais, mas é aceita com reve-
metafísica caracteriza não só a teoria como também rência como um oráculo que revela ao ser humano
a prática. A ideologia tem sido proclamada e aceita a verdade moral, a lei da razão válida por si mesma
como verdade racional, e a argumentação de política para o governo de suas ações.
jurídica tem assumido a forma de deduções a partir Nos tempos atuais tornou-se hábito ensinar e
das verdades eternas da justiça e do direito natural. julgar com base no princípio da dignidade da pessoa
Portanto, ao contrário do que pregam os ju- humana, como demonstrado anteriormente, em lu-
ristas, a adoção do princípio da dignidade da pessoa gar de refletir, questionar e lutar contra a ordem so-
humana revela um ponto marcante: a arbitrarieda- cial posta. A introdução do conceito de princípio da
de. Esta advém da sua conformação com o direito dignidade da pessoa humana no debate dos confli-
natural, que é arbitrário nos postulados fundamen- tos sociais permitiu ocultar, mas não superar, um dos
tais a respeito da natureza da existência e do ser hu- defeitos fundamentais do direito: o antagonismo de
mano, e na arbitrariedade das idéias jurídico-morais classes que expressa um direito arbitrário.
desenvolvidas com base nesse fundamento. É o que No campo político sabe-se que o direito na-
se verá a seguir. tural combinado com a doutrina do contrato social
tem sido usado com sucesso para justificar todo tipo
2.2 A Base Arbitrária do Princípio da Dignidade de governo, desde o poder absoluto (Hobbes) até a
da Pessoa Humana Conforma a Ideologia. democracia absoluta (Rousseau). O direito natural
A idéia do princípio da dignidade da pessoa se pôs, também, a serviço de quem quis consolidar
humana é que a justiça do direito positivo depende a ordem existente (Heráclito, Aristóteles, Tomás de
de sua concordância com o padrão ou o ideal que se Aquino e outros) e de quem preferiu advogar a revo-
encontra na natureza humana (dignidade humana) lução (Rousseau).
ou na razão do ser humano (captação do princípio da No campo social e econômico o direito natural
dignidade da pessoa humana). O direito positivo não do séc. XVIII pregou um individualismo e liberalismo
é julgado pelos efeitos que produz na sociedade, pelo extremos. A inviolabilidade da propriedade privada
contrário, ele é julgado pela harmonia com a razão, e a ilimitada liberdade contratual foram os dois dog-
que supostamente não se confundiria com os interes- mas que o século XIX e XX herdou do direito natural,
ses das classes sociais. Vê-se, então, que o direito tem dogmas que foram afirmados na prática dos tribu-
sua meta dentro de si mesmo: realizar o ideal de justi- nais norte-americanos para invalidar muitas leis de
ça. E isso se faz em conformidade com a dignidade da caráter social. Por outro lado, o direito natural tem
pessoa humana. sido utilizado também como fundamento de uma
O princípio da dignidade da pessoa humana é moral da solidariedade (Grócio, Comte e outros) e,
uma nova faceta do direito natural. Os postulados do inclusive, na interpretação de Duguit, para sustentar
direito natural devem buscar seu fundamento na natu- a negação de todos os direitos individuais e possibi-
litar um sistema de serviços sociais.
Vide a obra já clássica, MYRDAL, Gunnar. ����������������������
The Political Element No caso brasileiro, remeto o leitor às citações
in the Development of Economic Theory, Oxford:Columbia, 1944 anteriores do STF, especialmente a decisão que trata
(especialmente p. 1045 e ss).
10
11. A quimera do princípio do direito da dignidade da pessoa humana
da proibição do uso de algemas (súmula 11), que não está fora da sociedade, o julgador está tentando ali-
foi tomada para proteger os bandidos que aparecem viar o peso da responsabilidade. Se há uma lei, inde-
nos programas “barra pesada”, e a decisão que trata pendente de escolha e arbítrio, que nos foi dada como
da lei de biossegurança, pois ambas fundamentadas verdade, ainda que seja por meio de uma apreensão
no princípio da dignidade da pessoa humana. E exem- “a priori” da razão, supostamente em decorrência de
plo clássico é o Ato Institucional nº 5, no ano de 1968. processos históricos, e que dita o procedimento cor-
O referido texto legal é inaugurado com considerações reto, então ao obedecer a lei principiológica, não pas-
acerca da “necessidade de sua publicação, embasado sa o juiz de peça obediente de uma ordem cósmica e
na defesa de que o regime institucionalizado no país fica liberado de toda responsabilidade.
em 1964 teve por fundamentos um sistema jurídico e Não obstante, isso ainda não é suficiente. A
político destinado a assegurar a autêntica ordem de- ideologia que oculta a opressão do Estado, inclusive,
mocrática, baseada na liberdade e no respeito à digni- manifestada por meio do Poder Judiciário, é a faceta
dade da pessoa humana”. adaptada da concepção do Estado neutro, agora aditi-
Ou seja, o direito natural está à disposição de vada com o princípio da dignidade da pessoa humana.
todos. Não há ideologia que não possa ser defendida Por outras palavras, como o Estado precisa se mos-
recorrendo-se à lei natural. E, na verdade, não pode- trar como um instrumento neutro, acima das classes
ria ser diferente considerando-se que o fundamento sociais, essa aparência de neutralidade passa a ser
principal de todo direito natural se encontra numa condição indispensável para que o Estado seja o lo-
apreensão particular direta, uma contemplação evi- cal onde os conflitos de classe possam ser desviados,
dente, uma intuição, que o jurista sequer submete à momentaneamente resolvidos, daí o princípio da dig-
crítica, aceitando-a com imensa inércia, cuja massa nidade da pessoa humana adentra no jogo ideológico
encefálica deve, esta sim, ser eternamente adorme- retirando a responsabilidade do Poder Judiciário de
cida e domesticada. ter tomado essa ou aquela decisão.
A evidência como critério de verdade explica O juiz, tal como um autômato, toma a deci-
o caráter totalmente arbitrário das asserções me- são correta quando conforma a sua decisão com o
tafísicas. Coloca-as acima de toda força de controle princípio da dignidade da pessoa humana, que é um
intersubjetivo e deixa a porta aberta para a imagina- princípio que não enxerga classe social e sim, indiví-
ção ilimitada e o dogmatismo, mas, principalmente duo, reconhecendo a dignidade da pessoa humana.
da ideologia que oculta à dominação e à exploração Apresentar o Estado desse modo é apresentá-lo como
de classe. neutro. A perspectiva estratégica torna-se então clara:
Aliás, um forte argumento em favor do ponto se oculta a existência de interesses de classes, apre-
de vista de que as doutrinas jusnaturalistas são cons- sentando-os encobertos pelo interesse geral. Isso é
truções arbitrárias e subjetivas é que a evidência não precisamente a ideologia que esconde a natureza das
pode ser um critério de veracidade. Explica-se: cha- relações sociais.
mar uma proposição de verdadeira é diferente, ob-
viamente, do fato psicológico de que a asserção da 3. Considerações Finais: A Quimera,
proposição seja acompanhada por um sentimento Abstração e Sujeito de Direito.
de certeza. A sólida crença na verdade de uma pro- É exaustivamente dito e repetido no direito
posição necessita estar sempre comprovada e jamais brasileiro, seja na teoria ou na prática judicial, que o
pode ser sua própria comprovação. princípio da dignidade da pessoa humana é essencial-
De qualquer modo, é importante perceber para mente um atributo da pessoa humana: pelo simples
além da arbitrariedade da postura metafísica do prin- fato de ser humana, a pessoa merece todo o respeito,
cípio jurídico da dignidade da pessoa humana, pois o independentemente de sua origem, raça, sexo, idade,
quadro se faz mais claro quando se compreende não estado civil ou condição social e econômica. Afinal,
só que as especulações metafísicas são vazias e falta como lembra SARLET (2003) foi Kant quem definiu o
sentido, mas também quais são as razões que fazem entendimento de que o homem, por ser pessoa, cons-
com os juristas persistam nelas. Ou seja, além de ar- titui um fim em si mesmo. Tal definição tem inspirado
bitrário, é importante desnudar parte da ideologia do os pensamentos filosófico e jurídico na modernidade,
princípio da dignidade da pessoa humana. posto que o atributo lhe é inerente dada a própria
Assim, o campo dos juristas relacionado aos jul- condição humana.
gadores, pode-se pensar que a adoção da metafísica Nesse sentido, a atual Ministra do STF, Carmem
está associada ao temor de ter que escolher e decidir Lúcia Antunes Rocha, ao comentar o Art. 1º da Decla-
sob circunstâncias que se alteram e sob a própria res- ração dos Direitos Humanos, que trata da igualdade
ponsabilidade. É por isso que ao buscar justificação dos seres humanos em dignidade e direitos, faz as se-
para as decisões judiciais em princípio imutável que guintes considerações:
11
12. Contra a Corrente
Gente é tudo igual. Tudo igual. Mesmo tendo cada não poderá ser a expressão de vontades e interesses
um a sua diferença. Gente não muda. Muda o in- privados, daí afasta-se da noção de classe social e se-
vólucro. O miolo, igual. Gente quer ser feliz, tem dimenta-se na dignidade humana. Desta forma, como
medos, esperanças e esperas. Que cada qual vive a o Estado é a esfera de existência exclusiva da política,
seu modo. Lida com as agonias de um jeito único,
ou seja, lugar de representação dos interesses gerais,
só seu. Mas o sofrimento é sofrido igual. A alegria,
sente-se igual. (ROCHA, 2004, p. 13)
e como a sociedade civil é o lugar onde habitam os
interesses particulares, o acesso à esfera do Estado
Portanto, o que os aplicadores do direito, por só pode ser dado aos indivíduos despojados de sua
meio do princípio da dignidade humana, estão fazen- condição particularíssima, de seus interesses, de sua
do é não refletir as diferenças que existem na socieda- classe social, daí que o acesso ao Estado (leia-se Poder
de, pelo contrário, fazem abstrações delas ao declarar Judiciário) é dado por uma qualificação jurídica gene-
que todos os seres humanos são iguais em dignidade. ralizada: dignidade humana.
Conceito, este, repita-se, captado “a priori”. Por conseguinte, ser sujeito de direito é ser in-
E isso não é tema novo. É aspecto debatido e divíduo universal que participa do Estado, que este
desenvolvido desde os escritos de Marx no livro “A reconhece a dignidade humana. Produz-se a atomiza-
Questão Judaica”, o qual levantou pela primeira vez ção política do indivíduo, agora chamado de ser com
a tese de que os seres humanos vivem uma vida du- dignidade humana. No passado recente já foi chama-
pla: como membro do Estado vive uma vida genéri- do de cidadão. Trata-se de conceber o indivíduo no
ca, enquanto que como membro da sociedade civil abstrato. E entre cidadão e ser digno de humanidade,
leva uma vida material. Exemplificando: na socieda- a obscuridade é maior. E a classe trabalhadora, dispa-
de civil um banqueiro é diferente do empregado do ratada e atabalhoada também por causa de suas lide-
banco; um engenheiro é diferente de um operário da ranças, não pode deixar perder a categoria classe para
construção civil; um rico é distinto de um pobre. Mas tornar-se um mero conglomerado de indivíduos.
como membro da comunidade política, o banqueiro,
o empregado, o engenheiro, o operário, o rico e o po- Referências:
bre são iguais. Ou seja, o Estado abstrai as diferenças
CAMARGO, Marcelo Novelino. O conteúdo Ju-
que existem entre os seres humanos e os trata como
rídico da Dignidade da pessoa humana. In: CA-
se fossem iguais. É por isso que Marx concebia o ser
MARGO, Marcelo Novelino (org.). Leituras com-
humano membro da comunidade política como um
plementares do Direito Constitucional: Direitos
ser abstrato ou como um ser que leva uma vida ideal
Fundamentais. 2ª ed, Salvador: Juspodivm, pp.
ou imaginária. Também expressava o fato, ao afirmar 113-135, 2007.
que o Estado se comportava de modo idealista com a KELSEN, Hans. Teoria pura do direito. Armênio
sociedade civil. Amado editora, Coimbra, 6º edição, 1984.
É importante dizer que, tal como Marx, a eman- MARX. Karl. A questão judaica. Centauro editora,
cipação política tem suas imensas limitações e não é São Paulo, 5º edição, 2005.
o ponto de chegada, como acreditam os ideólogos do ___________. Crítica da filosofia do direito de
Estado democrático de direito, mas é passo impor- Hegel. Boitempo editorial, 2005.
tante para a emancipação humana, inclusive, porque MYRDAL, Gunnar. The Political Element in the
não se deve perder de vista que não se poderá ir além Development of Economic Theory, Oxford:Co-
quando não se chegou, sequer, no estreito limite da lumbia, 1944
emancipação política. NUNES, Luiz Antônio Rizzatto. O princípio consti-
De qualquer modo, o ufanismo do princípio da tucional da dignidade da pessoa humana, Sarai-
dignidade da pessoa humana destaca que essa re- va, 2002
presentação política do indivíduo corresponde à re- ROCHA, Carmem Lúcia. Antunes. Direito de To-
presentação jurídica do indivíduo, cujo fundamento dos e para Todos. Belo Horizonte: Editora Fórum,
é a categoria de sujeito de direito, isto é, o indivíduo 2004,
ao qual o direito atribui as determinações da liberda- ROSENVALD, Nelson. Dignidade da Pessoa Hu-
mana e boa-fé no Código Civil. São Paulo: Saraiva
de, da igualdade e da propriedade, o sujeito-proprie-
2005
tário que, no mercado, pode oferecer, como expres-
SANTOS, Karina Martins de Araújo. O princípio da
são de sua plena liberdade, inclusive na qualidade
dignidade da pessoa humana sob a ótica de Mi-
de proprietário, a sua força de trabalho em troca de
nistros do Supremo Tribunal Federal. São Paulo:
um equivalente. SBDP, 2005
E percebe-se que a teoria jurídica busca excluir SARLET, Ingo Wolfgang. Dignidade da Pessoa Hu-
da órbita estatal toda a representação de interesses mana e Direitos Fundamentais. In: LEITE, George
particulares, uma vez que, por ser público, o Estado
12
13. A quimera do princípio do direito da dignidade da pessoa humana
Salomão (Org.). Dos Princípios Constitucionais
- Considerações em torno das normas principioló- Família, religião e repressão
gicas da Constituição. São Paulo: Malheiros, 2003. Acontece frequentemente que a juventude
___. Dignidade da pessoa humana e direitos fun- proletária, em consequência da sua autonomia
damentais na Constituição Federal de 1988, Livra- material, conheça um alívio desta dependência.
ria do Advogado, 2002 A Igreja lança-se imediatamente na batalha para
SILVA, José Afonso da. A dignidade da pessoa hu- reforçar a dependência das crianças em relação
mana como valor supremo da democracia. Revista à tutela paternal e a sujeição à sua autoridade,
de Direito Administrativo, v. 212, p. 84-94, abr./ quando se lança a (armada de todo o aparato de
jun. 1998. embrutecimento e de frases sobre Deus, a sua von-
Site: www.stf.jus.gov tade eterna e as suas sábias previsões), elevar até à
santificação o casamento e a família, bem longe da
razão crítica humana. Porque o pai, na sua figura
atual – nós não poderemos nunca representá-lo de
uma maneira suficientemente viva e clara – é para
as crianças e a mulher na família o representante
da ordem e da moral estabelecidas. E como o papa
sustenta esta ordem dominante, ele é consequente,
no seu ponto de vista, quando exorta seriamente
os fiéis cristãos a obedecer fielmente à lei de Deus,
que ordena à mulher e às crianças de serem tão
submissas e obedientes ao marido e ao pai como
ao Deus eterno.
Quando vemos expostas, no museu anti-
religioso de Moscou, as imagens santas da época
Histórias das lutas dos trabalhadores no Brasil czarista que representam, seja Jesus vestido de
Autor: Vito Gianotti Czar, seja o Czar com a cabeça de Jesus, compre-
Editora: Mauad endemos facilmente toda a relação: Deus e Jesus
são imagens representativas, projetadas no sobre-
natural do imperador e das autoridades para os
adultos e do pai para as crianças e os adolescen-
tes. O imperador e as autoridades desempenham
mais tarde na vida afetiva dos adultos o mesmo
papel e despertam neles as mesmas atitudes de
submissão e de ausência de crítica que em relação
Engels, Darwin e a teoria da evolução
ao pai na criança.
Engels entendeu que as idéias de Darwin se- O papel político da família não se esgota
riam desenvolvidas, o que se viu confirmado mais com isso, mas essa é a sua função política prin-
tarde com o desenvolvimento da genética. Em cipal. A sujeição autoritária da juventude não se
novembro de 1875, escreveu a Lavrov: “Da dou- manifesta em nenhuma instituição da sociedade
trina darwiniana, aceito a teoria da evolução, mas burguesa tão fortemente como no lar: esta sujeição
considero o método de comprovação de Darwin não age em nenhuma instituição de maneira tão
(a luta pela vida, a seleção natural) a penas como precoce sobre o organismo mental infantil como
uma primeira expressão, provisória e imperfeita, precisamente no lar, por isso que vemos sem ces-
de um fato recém descoberto”. E, de novo, em sua sar que a submissão familiar vai a maior parte do
obra Anti-Duhring: “Mas a teoria da evolução é tempo lado a lado com a dedicação à ordem esta-
ainda demasiado jovem, fato que assegura que o belecida, e que a rebelião contra a família significa
desenvolvimento ulterior da investigação modi- frequentemente o primeiro passo, nos jovens, para
ficará substancialmente também as concepções a luta consciente contra a ordem social capitalista.
estritamente darwinianas do processo da evolu- (Wilhelm REICH, O combate sexual
ção das espécies. da juventude – COMENTADO)
(Alan WOODS; Ted GRANT, 2007 em
Razão e revolução)
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14. O dominó europeu:
ARTIGO
Alemanha, Eurozona e a
crise capitalista mundial
Gilson Dantas tude histórica na economia mundial. Ou seja: por
mais que falem em resgatar emprego, em controle
Todo o noticiário econômico recente tem mos- da inflação/deflação e retomar “crescimento” esses
trado a Europa na condição de peça-chave na crise governos estão fundamentalmente preocupados em
mundial do capitalismo e com chance de se tornar resgatar o grande capital, evitar grandes queimas por
o pivô de uma eventual quebradeira bancária (envol- conta de descontrole das tendências econômicas re-
vendo moratória de países como a Grécia) com des- cessivas postas na agenda da crise.
controle da tensa situação econômica internacional. A linha política do Estado burguês – refém da
Ou, como afirma Wolf (2011), “o mundo entrou em grande banca e dos oligopólios – é a de encampar os
nova e perigosa fase. Está surgindo uma retroalimen- prejuízos e títulos podres dos grandes investidores,
tação positiva entre bancos e países debilitados, com cobrir seus danos, evitar sua quebra e, nesse sentido,
efeito potencialmente catastrófico sobre os países da comprometer enorme massa de recursos públicos
Uniao Europeia e a economia mundial”. (dívidas públicas) sempre na mesma direção: fazer
Um dos aspectos mais chocantes dessa crise com que aqueles que engendraram essa crise global,
– em todo caso inerente ao capitalismo imperialista que lucraram todo o tempo, que continuam lucrando
– vem sendo o de que os mesmos Estados que amar- na crise, se mantenham ganhando.
gam dívidas públicas históricas e arrocham a classe No caso da Europa, atualmente no epicentro da
trabalhadora e aos aposentados e suas famílias, não crise, junto com os Estados Unidos, é importante cha-
hesitam em apelar à emissão de dinheiro e amplia- mar a atenção para dois aspectos (tema deste artigo)
ção da sua dívida pública, para salvar suas grandes que têm a ver com as bases daquele comportamento
empresas, especialmente as bancárias, ameaçadas por parte dos governos, mas também com a própria
de quebrar. crise, e com a incapacidade do capitalismo para con-
Nestes dias tivemos o exemplo do maior ban- jurá-la sem grande destruição de forças produtivas e
co da Bélgica (o Dexia), com ramificações na Fran- sua tendência inexorável – enquanto isso não ocorra
ça e Luxemburgo, que foi “salvo” (nacionalizado) da –, a ganhar tempo descarregando o pior da crise nas
bancarrota por injeção massiva de dinheiro público. costas da classe trabalhadora. O foco, neste artigo,
Operando da mesma forma especulativa dos seus será no papel da Alemanha e, ao mesmo tempo, na
colegas e concorrentes, o Dexia estava alavancado questão dos estímulos/ações do Estado na crise. Co-
e apoiado em uma nuvem de capital fictício imen- mecemos por este ponto, do papel do Estado.
samente maior do que seu capital efetivo. A Bélgica,
que entra com 4 bilhões de euros, terá sua dívida 1. Saída neo-keynesiana?
pública nas alturas (hoje ela equivale ao seu PIB). O Keynesianos mais ou menos reciclados argu-
Dexia vinha a caminho do colapso e tem exposição mentam que a Europa necessita de bons estadistas
a dívidas globais de 0,7 trilhão de dólares, um mon- que operem o Estado – sobretudo, na EU, o alemão e
tante espantoso (FSP, 10/10/11). o francês ou o supra-Estado da eurozona – para de-
Este é o primeiro aspecto do qual não se pode belar a crise. Através de medidas estatais sobre o mer-
fugir em qualquer avaliação séria da crise de ampli- cado. No argumento da Carta Capital (de 1/10/11), “a
única maneira de conter a espiral descendente agora,
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Gilson Dantas, doutor em sociologia pela UnB, é editor da é um ato de suprema vontade coletiva dos governos
revista Contra a Corrente e autor de Natureza atormentada, mar-
xismo e classe trabalhadora, Centelha Cultural, 2011, Brasília,
da Zona do Euro para erguer uma barreira de medidas
DF e de Breve introdução a economia mundial contemporânea, financeiras para conter a crise e colocar na governan-
2011, Centelha Cultural, Brasília, DF. ça do euro uma base mais sólida”. Beluzzo (2011) pro-
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15. O dominó europeu: Alemanha, Eurozona e a crise capitalista mundial
põe “rigorosa e radical regulamentação bancária”. As foi o que permitiu a superação de todo um processo
propostas se sucedem. de bancarrota do capitalismo europeu. Mesmo as-
A matriz da visão de Keynes concebia a crise sim, não por muito tempo: em final dos anos 1960, a
– mesmo aquela dos anos 30 - como produto de bar- grande crise se reinstalou.
reiras ou obstáculos “externos” e que, sendo um de- A razão fundamental para a falta de perspectiva
sarranjo que não nasce de condições inerentes ou en- de qualquer regulação estatal que não apenas contor-
dógenas ao sistema, pode ser reordenado pela ação ne a crise histórica atual (e inclusive lance bases para
do Estado. Em suma, tudo se reduziria à capacidade qualquer idéia duradoura de eurozona) é interna,
dos governos de conceberem a correta política públi- endógena ao funcionamento do sistema capitalista,
ca e induzirem “a economia”. O Estado seria sujeito, o mais ainda em sua fase de decadência.
mercado – os oligopólios – objeto. O meio usado seria Reside naquele elemento já apontado por
o dos gastos públicos estimulando a inversão privada; Marx: a tendência do capitalismo a limitar o consumo
ou gastos/cortes estatais como um elemento essen- de massa ao mesmo tempo em que não aceita limites
cial para despertar o interesse dos investidores. ao desenvolvimento das forças produtivas. O capita-
A engenharia para a edificação da zona do euro lismo não pode operar de outra forma. Imaginar que
também foi levada adiante, em boa medida, dentro ele possa funcionar de outra forma, é o mesmo que
dessa visão de que os governos podem arquitetar admitir que seus agentes decisivos – os grandes oli-
uma união de Estados imperialistas, inclusive fiscal e gopólios capitalistas – deixariam, por um instante, de
monetária, e que isso poderia, em algum momento perseguir a melhor taxa de lucro possível para valorizar
dar certo. seu capital. Teríamos, naquela ficção, o gestor estatal
A crise desse projeto é evidente. Mesmo assim – de um Estado dominado pelo capital e a seu serviço
continuam tendo voz na mídia aqueles que pensam – conduzindo o grande capital e não o contrário. E,
que o sistema pode coordenar-se e encontrar a ade- sobretudo: um capitalismo que aceitaria o impacto da
quada intervenção estatal ou supra-estatal capaz de distribuição da sua renda, dos ganhos dos oligopólios
domar a crise e conduzir a qualquer coisa do tipo Es- ou a regulação do seu lucro. Peça de ficcção. Equalizar
tados Unidos da Europa sob o império do capital ou, renda, aumentar salários em meio à crise (justamente
pelo menos, a um “sistema bancário único para a Eu- quando a taxa média de lucro tende a cair ou está em
ropa” (Wolf, 2011b). queda e, mais agudamente ainda, em determinados
No fundo, a idéia de Keynes é a de que o Estado setores do capital) é utopia reacionária, venha ou não
possa vir a determinar os movimentos da economia travestida de keyesianismo ou progressismo.
capitalista, de que os gastos e a indução estatal pos- As decisões de investimentos (se há que inves-
sam chegar a produzir “os níveis socialmente deseja- tir, onde há que investir) são prerrogativas dos in-
dos de produção e emprego, e, dessa forma, deter- vestidores privados, dos oligopólios que não podem
minar, em última instância, as leis de movimento da ser confundidos com governos. Não esqueçamos que
economia capitalista” (SHAIKH, 2006, p.72). Roosevelt, na crise dos anos 1930, só “despertou” os
Muitos imaginam, e neste ponto são parcial- investidores capitalistas quando estes se empolgaram
mente keynesianos (sub-consumistas, digamos), que com as oportunidades ultra-lucrativas da guerra.
a intervenção estatal orientada para aumentar o con- Os oligopólios internacionais fizeram a guerra
sumo de massa (mediante crédito ao consumo e au- para quebrar a espinha do imperialismo rival e tra-
mentos salariais), política de países ricos na fase cha- tar, no caso dos capitais ianques, de ocupar espaços e
mada “neoliberal”, poderia ser sempre utilizada para mercados mundo afora. Essa “selvagem” luta campal
reduzir aquela brecha entre produção e consumo e, entre grandes oligopólios imperialistas está fora de
por essa via, evitar ou contornar a crise; inclusive che- planejamento, fora do alcance e da vontade política
gando a reestimular os investimentos capitalistas. de qualquer que seja o governo, por mais keynesianas
Não é certo. A acumulação de mercadorias que sejam suas intenções. Não há decisão de Estado
invendáveis e a sobre-acumulação de capitais não que detenha a tendência do capital a perseguir o lucro
pode ser tratada como uma aberração ou um desvio e restringir o consumo, a renda. Equivale a dizer que
do sistema e que, portanto, possa ser corrigida por em sua dinâmica, o capitalismo nega-se a si próprio e
um gestor estatal mais capaz politicamente. Fosse marcha para a crise; o problema central vem daí e não
assim e não teríamos crises ou então a própria Gran- do descompasso (real) entre produção e consumo.
de Depressão teria sido superada pelo keynesianis- A questão é invariavelmente a de que o capital
mo civil. Não foi assim: a guerra, com sua colossal não encontra como rentabilizar-se. Aparece capaci-
destruição de forças produtivas, seguida da recons- dade industrial ociosa: não dá lucro acionar as má-
trução e, sobretudo, na esfera política, da luta de quinas e gastar em insumos e salários. O resultado:
classes, a colaboração da URSS de Stalin e dos PCs desinvestimentos, desvalorização da capacidade ins-
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