1. O Retorno a Freud de Lacan
O retorno a Freud de Lacan
Maria Lúcia Salvo de Coimbra
Resumo
Ao retornar a Freud, Lacan reinventa a psicanálise, sem abandonar o campo freudiano. Ele
enfatiza a incidência do desejo na transmissão. Considera a dimensão do real, sua articulação
com o ato e a função da escrita. Desta forma, nos convoca a tratar o gozo e o sofrimento do
sintoma, hoje.
Palavras-Chave
Transmissão – Discurso do analista – Ato – Retorno a Freud – Ética da psicanálise
É “... preciso que cada psicanalista obrigada a se reinventar ao enfrentar no-
reinvente, a partir do que ele extraiu de vos problemas e porque é exigência da sua
sua própria análise, a maneira pela qual a própria transmissão. Precisamos continu-
psicanálise pode perdurar”1. ar e, quem sabe, avançar nossas indaga-
ções sobre a posição do psicanalista em
A transmissão da psicanálise face do mal-estar. Não sem saber que sus-
tentamos um trabalho de psicanalistas,
A constituição desta mesa nos con- operando na singularidade do discurso
voca a buscar, criar, ou mesmo inventar psicanalítico. Um trabalho que interroga
pontos de articulação entre diferentes po- tanto a divisão do sujeito e aquilo que cau-
sições teóricas no campo da psicanálise, sa seu desejo quanto o limite do próprio
especificamente, entre Freud, Melanie saber. O sujeito está em questão na estru-
Klein e Lacan. tura do aparelho psíquico e podemos nos
Desta forma, temos a oportunidade de perguntar se sua localização mudou des-
partilhar impasses, questões e dúvidas em de a época freudiana.
cada prática e talvez elaborá-las melhor. No início do século passado, assisti-
Atualmente, no meio psicanalítico, mos à decadência do pai. Freud, com o
proliferam tentativas veladas ou explíci- complexo de Édipo e o mito do pai prime-
tas de ultrapassar a teoria freudiana ou de vo, em parte obturou esta falha, tentando
adaptá-la a uma suposta realidade do dar consistência a algo que desvanecia.
“mundo moderno ou pós-moderno”. Po- Lacan analisa essa consistência imaginá-
rém, desde sua origem, a psicanálise foi ria e provoca a ruptura nesse ponto já frá-
gil, mas não de qualquer forma. Aponta a
1. LACAN, J. “Congresso sobre a transmissão” (1978).
ex-sistência, ou seja, a dimensão do real;
Rev. Letra Freudiana, ano XIV, n. 0’, p. 66. a função da escrita e do falo como letra.
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Os psicanalistas, como qualquer um, A prática psicanalítica implica envol-
estão inscritos no simbólico, submetidos vimento do analista com os acontecimen-
à sua dimensão de verdadeiro-falso; cer- tos de sua época, “... pois, como poderia fa-
to-errado. Desta forma, podem se insta- zer de seu ser o eixo de tantas vidas quem
lar no lado imbecil do saber, alienados a nada soubesse da dialética que o compromete
algum significante do ideal ou ao próprio com essas vidas em um movimento simbóli-
fantasma. Até mesmo a teoria psicanalíti- co?”3 Assumir esse compromisso exigiria
ca pode induzir ao erro – por exemplo, a afastarmo-nos da cômoda divisão bem-
amarração do complexo de Édipo, perce- mal e sustentarmos que, até mesmo, atos
bida como a única possível –, embotando perversos ou violentos são cometidos por
a descoberta de outras possibilidades e o seres humanos nem sempre psicóticos e
trabalho com o real. Daí a importância da têm valor tanto de gozo quanto de verda-
interlocução com um ponto fora do dis- de.
curso psicanalítico para desalojá-lo de sua Considerar esses dois pontos – por um
própria debilidade mental. Assim, os ana- lado, a responsabilidade de cada analista
listas ficam advertidos2 do ponto fora: o com seu paciente, enlaçada ao compro-
que ex-siste é fundamental. misso com o simbólico, e por outro lado, a
Se não há garantia da tomada do su- irrupção de atos perversos, impulsivos, sem
jeito no campo do Outro, estar aí engan- sentido – significa que, como analistas, nos
chado depende do acaso, é acidental, po- encontramos desalojados de uma certa
deria não ter ocorrido e o modo como cada neutralidade, defendida por alguns.
sujeito se inscreve na estrutura não só é Conseqüentemente, temos que con-
precário como muito particular. Em aná- siderar uma nova posição clínica para o
lise não se trata de retificação. Trata-se analista, a de semblante de objeto, que
de tocar um real que não se move. A es- opera com o desejo do analista. Nem se-
critura que faz a borda do real é uma in- ria tão nova assim, para um leitor atento
venção de cada análise, sustentada pela de Freud. No seu texto “A Interpretação
ética do bem dizer. Em que momento as de Sonhos”, ele nos ensina que é necessá-
palavras passam à escritura? Quando se rio um trabalho para extrair a função do
perde o sentido como significado e deses- desejo: o ato da interpretação articula de-
tabiliza-se a significação metafórica e me- sejo e o real da experiência de satisfação,
tonímica, defrontando-se com o sentido: produzindo um saber específico da práti-
não há relação sexual. Então, além deste ca psicanalítica. Colocamos esse saber à
trabalho no particular, também nos impli- prova quando questionamos nossos con-
camos na psicanálise em extensão – em ceitos para verificar se continuam funcio-
escolas, hospitais, prisões – e somos con- nando. Ao fazer isto, algum novo fragmen-
vidados a generalizar para a mídia. Acres- to de verdade pode irromper. Desta for-
cente-se ainda o risco de se extraviar no ma, sem abandonar balizadores teóricos,
preconceito ou na demanda. transmitimos a aventura psicanalítica na
Talvez o que o analista tenha a dizer se criação e na invenção.
relacione, em síntese, com limites – inclu-
sive o da própria psicanálise –, com o fran- Retornar a Freud
quear destes (sintomas, comportamentos
impulsivos) e com o abrir passagem para o Lacan nasceu em 1901 e faleceu em
desejo e o gozo, sem passagem ao ato. 1981. Durante quase 30 anos, em seus
2. Desejo do analista é desejo “averti” (advertido, avi- 3. LACAN, J. “Fonction et champs de la parole et du
sado, prevenido). langage” (1953), Écrits, p. 321.
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3. O Retorno a Freud de Lacan
seminários, conferências, entrevistas e intervalos tornando possível a emergên-
obra escrita empenhou-se, segundo suas cia de algo novo.
palavras, em restaurar, “no campo aberto O que é o retorno a Freud, proposto
por Freud, a lâmina cortante de sua verda- por Lacan? Qual a sua leitura? Lacan nos
de”4. fornece pistas em seus vários seminários.
Ler o Freud de Lacan implica isolar Diz não ser agarrado, apreendido senão
determinadas proposições ou enunciados por seus segredinhos6. Por outro lado, in-
que têm o peso do ato fundador. Nesse quieta-se, aterroriza-se mesmo por sentir-
sentido, podemos compreender a frase de se responsável em abrir as comportas, atra-
Lacan, repetindo Picasso, “Eu não procu- vés de seu ensino, de alguma coisa sobre a
ro, acho”, pois ele inventa, ou seja, en- qual poderia ter silenciado7. Ao falar e es-
contra o que já estava lá e fora esquecido. crever sobre inconsciente, desejo, gozo e
Extraiu do texto freudiano o objeto “a”, o tantas outras coisas é responsável mesmo
real, o imaginário e o simbólico e lhes deu que não saiba qual o destino que terão suas
esses nomes. Ao fazer isto – ao mesmo idéias lidas, ouvidas.
tempo em que se apropria da Lingüística, Assim, interrogar sobre o autor enla-
cujos conceitos muitas vezes subverteu, e ça-se com a questão sobre o leitor. Freud
da Matemática, Lógica e Topologia, abrin- autor; Lacan autor-leitor de Freud; nós
do para estas ciências, também, novas leitores de Lacan e Freud e também, se
possibilidades –, Lacan operou uma cons- me permitem a ousadia, autores em certo
trução que transformou o rumo da psica- sentido, pois eles nos ensinam que o tra-
nálise, sem abandonar o campo freudia- balho da psicanálise envolve tanto um
no. Estabeleceu o discurso psicanalítico, deciframento – o inconsciente é estrutu-
cuja eficácia é no real. Fundador de uma rado como uma linguagem – quanto um
discursividade, sua nominação foi ato cri- ciframento de gozo. Por isto, qualquer lei-
ador de novos sentidos, inaugurador de tura envolve deciframento – temos que
novas direções. apreender, agarrar os segredinhos espalha-
Existem autores que se diferenciam dos pelo texto – e envolve ciframento –
como inauguradores de uma discursividade. os segredinhos que escolhemos, o trilha-
A expressão é de Foucault e com ele pode- mento feito nos implica como sujeitos e
se colocar uma questão: “O que é um au- assinala a marca de cada um. Só recebe-
tor?”, título de sua conferência em 22 de mos de fato uma herança quando a con-
fevereiro de 1969. Nesta ele refere-se a quistamos...
um tipo especial da função “autor5 – os “Aquilo que herdastes de teus pais, con-
fundadores, inauguradores, de uma discur- quista-o para possuí-lo. O que não se usa, é
sividade –, no qual o retorno ao texto e o uma carga pesada, somente aquilo que o ins-
nome próprio são fundamentais. Contu- tante cria pode servir!”8 Pode-se dizer que
do este retorno transforma o texto, cria isto é transmissão em psicanálise? Quan-
diferenças ao se apropriar dele. Volta-se do o desejo de alguém se enlaça ao do
ao que o texto não diz, a seus vazios, seus Outro, escrevendo em um contorno sin-
gular as marcações para o real?
4. LACAN, J. “Carta de Dissolução” (1980). Rev. Letra
Freudiana, ano I, n. 0, p. 45, e na “Ata de Fundação 6. LACAN, J. ... ou pire, lição de 8 de março de 1972, p.
da E. F. P”, 1964, p. 17. 66.
5. A função “autor” é exercida no lugar vazio que o 7. LACAN, J. L ’insu que sait de l’une-bévue s’aile à mour-
apagamento do nome do autor estabelece. Ver FOU- re, lição de 11 de janeiro de 1977, p. 9.
CAULT, M. Estética: literatura e pintura, música e 8. GOETHE. Théatre complet, p. 971 (Tradução da au-
cinema, p. 274. tora).
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4. Maria Lúcia Salvo Coimbra
Contudo, não podemos ignorar que mesma coisa – dito de outra forma, o que aí
herdamos textos freudianos, lacanianos, está penhorado é a exigência mínima de pas-
neles fazemos nossas escolhas. Heresias? sagem a este questionamento renovado. A
Considerando que a leitura é subjeti- exigência mínima é esta: Trata-se de fazer
va e que um texto está aberto a múltiplos psicanalistas”10. Podemos “ouvir” que o
sentidos, mas não todos, não podemos ig- compromisso de Lacan com a formação
norar também que a tradução, interpre- de analistas o levou a questionar a função
tação ou leitura pode se organizar como dos termos freudianos? Ao longo desse
traição. Qual a boa medida ou a justa se- “questionamento renovado” ele constrói
paração entre autor e leitor que afasta o o registro do real, do gozo, do objeto “a”.
mimetismo ou a traição e ao mesmo tem- Dessa dimensão além do significante, o ato
po preserva a marca do leitor? Como po- analítico opera a rearticulação do sujeito
demos ser lacanianos? Questão que, como ao desejo e ao gozo. A construção lacani-
sabemos, faz eco ao texto de Montesquieu ana – utilizando-se de restos deixados por
“Como é possível ser persa?”. Estrangei- Freud – muda o rumo da teoria e da práti-
ros, como o ensino de Lacan ressoa em ca psicanalísticas, sem abandonar o cam-
nós? Como saber de quais vestimentas po freudiano, onde cada analista de novo
precisamos nos livrar para penetrar em é convocado a se apropriar dessa heran-
seus textos? Talvez para quase trinta anos ça. Como já lhes falei, Freud nos havia
de ensino, o trabalho de decifrar e cifrar indicado o imperativo ético onde o desejo
tenha que ter uma boa lentidão... para que está em causa.
o ato, no princípio, se esclareça em parte.
Como o ato fundador de Lacan se articu- O ato analítico
la ao ato que nos autoriza analistas tanto
em nossa experiência de análise quanto Durante anos sofrendo a crítica de só
em nossa prática? Talvez, fora do contex- se preocupar com palavras, ao incluir a
to sociocultural francês, longe da captura dimensão do ato o escândalo invade a psi-
imaginária que acompanhou o homem canálise. Há algo desorganizador. Mas isto
Lacan, possamos ler seus textos da boa “é confuso!”, “é complicado!” – dizem
forma – apenas como forasteiros, que sem- agora os críticos. E têm razão. No simbó-
pre seremos, habitando um espaço, uma lico nos entendemos, somos razoáveis.
dimensão9 que não nos pertence: a língua. Mas, este registro apaziguador não dá con-
Insisto na questão: Como podemos ser ta de tudo. Todos esbarramos, tropeçamos,
lacanianos se o próprio Lacan se dizia freu- em maior ou menor grau, com o desmedi-
diano? Certamente não é supor que de- do, com o incomensurável, até a radicali-
vemos ser uma encarnação de Lacan, da dade do crime.
mesma forma que este não é a encarna- Mesmo o ato falho que surge a partir
ção de Freud. Pode-se “ouvir” o que La- da articulação das palavras surpreende. A
can nos diz através de seus seminários... pessoa não sabe o que disse... não queria
piratas! “O que eu tento fazer é restituir aos dizê-lo... e o próprio registro das palavras
termos freudianos sua função. Do que se tra- se torna enigmático.
ta nestes termos é de uma perturbação dos Quando a prática psicanalítica se abre
próprios princípios de questionamento. Dito à dimensão do ato, profundas mudanças
de outra forma, o que não quer dizer: dizer a se produzem.
9. Referência ao equívoco dimension, dit-mension, dit 10. LACAN, J. D’un Autre à l’autre, lição de 8 de janei-
mansion. ro de 1969, p. 92 (tradução e grifo da autora).
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5. O Retorno a Freud de Lacan
No período pós-freudiano, mas antes Se sabemos que a loucura e o desme-
de Lacan, as preocupações nesta área se dido têm um lugar na estrutura psíquica,
reduziam, com algumas exceções, a formas não significa que tenhamos que compac-
obsessivas de evitar qualquer ação. A psi- tuar com isto. Devemos pensar clinica-
canálise deveria se manter no pensamen- mente. Se alguns pacientes chegam “mui-
to, ou pior, na expressão dos sentimentos, tos loucos”, é preciso implicá-los como
isto é, no eixo imaginário. sujeitos. Isto não tem a ver com os princí-
Com a chamada releitura do texto pios morais do analista, com aquilo que
freudiano, feita por Lacan, a perturbação ele julga ser certo ou errado. Mas, pode
profunda do pulsional emerge e à como- levar a um certo mal-entendido, ao se re-
ção teórica corresponde a comoção na lacionar moralismo e um outro tipo de
prática. Analistas desalojados da nossa extravio pelo qual talvez a própria psica-
neutralidade suspeita, não podemos cru- nálise seja responsável. A saber, que a psi-
zar os braços e fingir que o horror não está canálise tem como objetivo libertar o in-
à nossa porta ou que o pecado não mora divíduo, que este deve fazer tudo o que
ao lado... Acabou-se o sossego dos analis- quer, livre de culpa.
tas, mas ganhou a psicanálise. Como La- Não é assim. Não se pode fazer o gozo
can revelou, todo ato provoca inquieta- da loucura. No ato analítico, temos que
ção ou mesmo horror. Portanto, dele os implicar o sujeito, que tem, também, res-
analistas se afastaram sem nada querer ponsabilidade pela própria análise. Se sa-
saber. É verdade que não há articulação bemos que há um limite, não se pode fa-
entre saber e ato. zer de conta que não há.
Então qual a saída? O sujeito diz que está louco... e vai
Podemos passar do fracasso do saber ter que ceder sua loucura. O analista não
para o saber em fracasso. “Como pude fa- deve ficar só ouvindo. O sujeito precisa se
zer isto?” “Por que faço isto se sei que me comprometer no discurso analítico (assim
prejudica?” Há algo, além do prazer, que como o analista). O inconsciente não pode
arrasta o ser humano para ações enlou- servir como uma desculpa. É uma respon-
quecidas. Além do princípio de prazer te- sabilidade.
mos o gozo. Atos impulsivos, rupturas às
vezes devastadoras podem encontrar seu A ética da psicanálise
limite, seu contorno pelo ato psicanalítico.
Há no ato uma questão. Toca-se uma Mas, o que é mesmo a prática psica-
área irrepresentável: a dimensão do real nalítica que inclui o real?
que está fora-significação. O sujeito não A constituição do sujeito (S) no cam-
sabe dizer o que aconteceu. Cabe ao ana- po do Outro produz sempre perda, restos
lista não deixar escapar esse algo que se não articulados na cadeia significante. É
desconhece, o não-saber. traumática. Esses restos de cenas vividas
Se o real, por definição, encontra-se e ouvidas11 retornam como fragmentos
fora-significação, o ato analítico – situa- que não se encaixam na cadeia significan-
do na vertente do ato em geral, da mesma te. Retorno que tem uma exterioridade
forma que o acting-out e a passagem ao ato, para o sujeito12; resta algo inacessível ao
porém diferente de ambos, pois supõe a simbólico: é o objeto perdido freudiano
pulsação de um tempo lógico na travessia
do fantasma – não só se diferencia de atos
impulsivos, como é a forma de tratá-los, 11. MASSON, J.M. A correspondência completa de Sig-
mund Freud para Wilhelm Fliess – Cartas de 2/5, 16/
operando a rearticulação do sujeito ao 5 e 25/5/1897.
desejo e ao gozo. 12. FREUD, S. “O estranho” (1919), ESB, v. XVII.
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6. Maria Lúcia Salvo Coimbra
que Lacan formalizou como objeto “a” e Repetindo, a compulsão à repetição é
articulou na dimensão do real. a insistência de um gozo excessivo que ir-
Real compreendido como aquilo que rompe em ato. Ato que traz em si a opaci-
retorna sempre ao mesmo lugar e como dade do real e, ao mesmo tempo, é tenta-
impossível (modalidade lógica). Articula- tiva de resposta a essa opacidade.
se com a lógica do não-todo e não pode Afirmamos que o percurso de uma
ser alcançado através da representação. análise pode modificar a economia do
Com o registro do real temos a for- gozo para um sujeito. O que isto quer
malização lacaniana da pulsão de morte, dizer?
do masoquismo primário, do benefício se- Estamos propondo nova leitura do
cundário da doença, da reação terapêuti- ponto de vista econômico freudiano, isto
ca negativa, e outras noções trabalhadas é, como se distribuem, se deslocam, se pre-
por Freud. servam e se perdem as quantidades de
Dito de outra forma, a constituição energia que circulam no aparelho psíqui-
do sujeito no campo do Outro implica a co. Estamos propondo substituir essa ener-
operação de alienação e, ao mesmo tem- gética freudiana por uma economia polí-
po, a separação do objeto. Isto significa que tica de gozo. Economia porque o gozo se
o humano perde a relação com o vital ins- produz, se perde ou se ganha, e política
tintivo, e o corpo é perfurado pelo signifi- porque a produção, o ganho e a perda de
cante. Há uma máquina significante em gozo se inscrevem em uma estrutura de
funcionamento, sempre produzindo algo discurso.13
que cai – o objeto “a”, causa de desejo e Com este referencial teórico, a per-
também condensador de gozo. Este obje- gunta sobre a prática se situa em uma di-
to está fora significante e fora significado, mensão ética, envolvendo, portanto, o
irrompendo pela repetição em ato, que é desejo, o gozo, a responsabilidade do ana-
a forma como o real se apresenta. Portan- lista e se afastando das normas e ideais
to, temos o enlace repetição-gozo (real). obsessivos de outrora, para regulação dos
Considerar, trabalhar e suportar o atos. Como conduzir uma cura se temos,
fracasso na recuperação desse algo que por um lado, a trama significante do sin-
escapa (a mítica experiência de satisfa- toma, enigma que se oferece ao sujeito, e,
ção, o objeto perdido que Lacan desig- por outro lado, temos algo a mais: a di-
nou objeto “a”) promove mudança na mensão repetitiva que escapa ao falar e
economia de gozo para um sujeito e dife- que mostra o gozo vivido pelo sujeito?
rencia a cura analítica dos tratamentos Gozo que ele não quer abandonar e do
psicoterápicos. qual nada sabe.
Se cada ser humano ao inscrever-se Então, o que faz o analista?
no simbólico tem que se haver com uma Ele funciona como testemunha e su-
perda estrutural, pois o que foi excluído porte da impossibilidade de tudo dizer pela
do simbólico, o resto da operação signifi- via da associação livre. Não se trata de
cante, isto é, o real (o gozo, o objeto “a”), recuperar lembranças porque não há nada
retorna em ato; se o corpo mortificado pelo a ser recuperado. Também não é injetar
significante é invadido por uma “energia”, significantes para recobrir a hiância. E
um gozo que – escapando ao domínio sig- mais ainda, deve fazer avançar a análise
nificante – está à deriva e pode ser defini- no sentido de inventar alguma passagem
do como satisfação de uma pulsão; então, ao gozo inter-dito para todo ser falante.
não podemos fingir que nada d’Isso exis-
te. Estamos obrigados a incluir Isso em 13. COIMBRA, M.L.S. “Considerações sobre o objeto
nossa práxis. ou T.T.Y. M.U.P in Reverso, n. 47, p. 36-41.
.T.”
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7. O Retorno a Freud de Lacan
Opera com o ato analítico a rearticulação ente, se é sujeito suposto saber... o que faz
sujeito-desejo-gozo suportando o desas- com esse poder?
sossego que se instaura ao recusar seguir Em primeiro lugar, reconhecê-lo; em
modelos identificatórios. A responsabili- segundo, deveria saber que esse “poder
dade do analista é sua função de causa de significante” está limitado pelo real, que
onde lhe retornam as conseqüências de não pode ser atingido pelas significações
seu ato, criando através deste a possibili- e onde nem mesmo se coloca a questão
dade de escrita (ou escritura). verdadeiro-falso. Finalmente, deveria sa-
Considerar que o real do gozo precisa ber que se inventa, em um processo de
ser tratado em análise nos aproxima de análise, a verdade de cada um, com máxi-
nossos pacientes. Podemos incluir em nos- ma particularidade.
sa clínica os borderline de outrora, psicóti- Diante da redução e do extravio das
cos e perversos ousando apostar na pro- explicações psicologizantes e biologizan-
dução de um novo sujeito, graças a uma tes, Freud responde com a construção de
mudança na economia do gozo. Como “nossa mitologia”.
fazê-lo? Trabalhando a relação do sujeito Diante das “dificuldades” da prática
ao objeto a (causa de desejo e condensa- (resistência, compulsão à repetição...) vai
dor de gozo), considerando a fórmula do delimitando um território, fora do domí-
fantasma (S a e a S), sabendo que a nio do princípio de prazer e das leis signi-
formalização da junção-disjunção do S e ficantes, e ao mesmo tempo indicando a
objeto a é fundamental, axiomática (vide possibilidade de sua ultrapassagem.
grafo do desejo). Mas, também é funda- Hoje, podemos compreender o texto
mental o trabalho de construção-descons- freudiano nesta dimensão porque Lacan
trução fantasmática para cada sujeito. Te- a formalizou.
mos que arriscar o “salto” do conceito, Trabalhar com o conceito de real pro-
fórmula ou axioma do fantasma para uma duz modificações profundas em toda a te-
prática singular, articulável à teoria: “... oria e prática psicanalíticas: no conceito
nossa concepção do conceito implica que este de inconsciente (separação Isso[das Es] e
é sempre estabelecido por uma aproximação inconsciente); na insistência da repetição
que não é sem relação com aquilo que nos em ato que se distingue da insistência do
impõe, como forma, o cálculo infinitesimal. retorno do recalcado pela via significan-
Se o conceito se modela, com efeito, pela apro- te; no conceito de transferência como es-
ximação à realidade que ele deve apreender, trutura – noção de sujeito suposto saber e
não é senão por um salto, uma passagem ao presença do analista – diferenciado de seus
limite que ele termina por consegui-lo”14. A efeitos imaginários euóicos; no conceito
saber, acaba por conseguir, por realizar a de pulsão e sua articulação com o gozo. ϕ
apreensão da realidade.
Se estamos lidando com “uma equa- THE LACAN’S RETURN
ção de duas incógnitas”, como escreveu TO FREUD
Freud, é porque falta o significante que
possa dizer a verdade sobre o real da mor- Abstract
te e da sexualidade [S(A)]. Se o psicana- The return to Freud led Lacan to recreate
lista é quem dirige a cura e tem o poder psychoanalysis without giving up Freudian
de significar que lhe é atribuído pelo paci- teaching. He emphasizes the incidences of the
14. LACAN, J. Les quatre concepts fondamentaux de la
psychanalyse, lição de 22 de janeiro de 1964, p. 23
(tradução da autora).
Reverso • Belo Horizonte • ano 29 • n. 54 • p. 29 - 36 • Set. 2007 35
8. Maria Lúcia Salvo Coimbra
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lo Brasileiro de Psicanálise – CBP.
Rua Levindo Lopes, 333/505 - Funcionários
COIMBRA, M.L.S. Como toma corpo o sujeito 30140-911 – BELO HORIZONTE/MG
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