1) O conceito de adolescência surgiu no Ocidente no século XVIII, quando passou a haver uma distinção entre crianças e adultos e uma valorização do espaço privado e da família nuclear.
2) No século XIX, a adolescência foi demarcada como um período particular entre a infância e a vida adulta, porém vista como potencialmente arriscada.
3) Ao longo do século XX, consolidou-se a ideia da adolescência como uma fase distinta da vida com características próprias, retentora
A construção do conceito de adolescência no Ocidente
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ARTIGO ORIGINAL
A construção do conceito de
adolescência no Ocidente
The construct of the concept of adolescence in the West
Eloisa Grossman1
“Ah, esse vazio! Esse vazio terrível que sinto em
meu peito! Quantas vezes penso: ‘Se pudesses uma
vez, uma vez apenas, apertá-la contra esse coração,
o vazio todo seria preenchido’.”1
. Talvez alguém re-
conheça as palavras desse adolescente solitário,
sonhador e romântico. É Werther, personagem
de um romance de Goethe, escrito em 1774.
Segundo Philippe Ariés2
, historiador fran-
cês, a ideia do que hoje chamamos adolescência
é apenas pressentida a partir do século XVIII. Na
Idade Média, a consciência das particularidades
da infância não existia; não havia distinção entre
crianças e adultos. A ideia de infância relaciona-
va-se exclusivamente com a noção de depen-
dência; quando a criança adquiria a condição
RESUMO
Este artigo, dedicado ao tema da constituição do conceito de adolescência, tem como objetivo enfatizar o caráter histórico
dessa construção. Na Idade Média não existia a consciência da especificidade das crianças; o crescimento era interpretado
como aumento quantitativo dos aspectos físicos e mentais. No século XIX, a adolescência era demarcada como um período
particular, e ao longo do século evidenciada como fase de potenciais riscos. O século XX consolidou a ideia da adolescência
como uma etapa da vida dotada de características próprias, retentora de um estatuto legal e social. A contemporaneidade
tem como marcas a dissolução de certezas e um estado de desamparo coletivo, que implicam uma experiência complexa
e plural de adolescer.
PALAVRAS-CHAVE
Adolescência, história, contracultura na década de 60
ABSTRACT
This article, whose theme is the construct of the concept of adolescence, aims at emphasizing the historic aspect of
such construct. In Medieval Times there was no awareness of the singularity of childhood; growth was seen merely as
a quantitative increase in physical and mental traits. In the 1800s, adolescence was labeled as a specific life period and,
throughout the century, tagged as a potentially risky time. The twentieth century consolidated the notion of teenage as a
time with its own features, retaining a legal and social status of its own. Our age is marked by the dissolution of certainties
and a feeling of helplessness that result in a complex and plural experience of being a teenager.
KEY-WORDS
Adolescence, history, counterculture of the 1960s
de viver sem o desvelo constante da mãe ou da
ama, ingressava plenamente no mundo adulto,
participando de todas as atividades sociais.
A visão de mundo na sociedade medieval
tinha como base a teologia cristã e os dogmas
religiosos, mas também sofria a influência da fi-
losofia grega, especialmente de Platão. A com-
preensão da natureza divina de forma racional
favoreceu o desenvolvimento do conceito de
homúnculo, cuja influência determinou a inter-
pretação do crescimento como um aumento
1
Professora Adjunta de Medicina de Adolescentes da Faculdade de Ciências Médicas
da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (FCM/UERJ); Doutora em Ciências pelo
Instituto Fernandes Figueira da Fundação Oswaldo Cruz (IFF/FIOCRUZ).
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quantitativo dos aspectos físicos e mentais do
homem3
. A infância era entendida como um
período de passagem logo ultrapassado e cuja
lembrança era rapidamente esquecida. As pin-
turas medievais traduzem essas crenças e sen-
timentos; as crianças são representadas como
adultos em miniatura, sem nenhuma diferença
de traços ou expressões.
Na transição da Idade Média à Modernida-
de, três fatores tiveram grande influência na con-
cepção que o homem tinha de si e da sua relação
com os outros. O primeiro aspecto foi o novo
papel do Estado, que passou a interferir e exer-
cer controle do espaço social e da ordem pública,
legando à comunidade um tempo maior para a
dedicação às atividades particulares. O segundo
fato foi o desenvolvimento da alfabetização e dos
livros, incentivando o gosto pelo privado e pela
solidão. O terceiro acontecimento foi o estabele-
cimento de novas religiões ao longo dos séculos
XVI e XVII, que exigiam dos fiéis uma devoção
mais íntima4
. Esse conjunto de mudanças deter-
minou a passagem de uma experiência anterior-
mente coletiva, quando a comunidade enqua-
drava e limitava o indivíduo em uma valorização
do espaço privado. A família, além de unidade
econômica, passou a ser encarada como espaço
de afetividade entre o casal e os filhos.
Surgiu, nesse momento, um novo senti-
mento dos pais em relação aos filhos, criticado
por moralistas que denunciavam o excesso de
complacência e o exagero de mimos, que em
sua visão seriam nefastos à criança e à socieda-
de5
. Para combater essa atitude, o Estado e a
Igreja retomaram a responsabilidade do sistema
educativo, através da criação de colégios, desti-
nados a indivíduos entre 10 e 25 anos, sem dis-
tinção. Não havia uma preocupação em separar
os alunos em diferentes classes, divididas por
um critério etário.
O século XVIII foi marcado pelo movimen-
to de ideias denominado Iluminismo, que deu
suporte a uma renovação pedagógica na qual,
ao lado da definição de novas práticas, afirmava-
se a ideia da onipotência da educação na mode-
lagem do indivíduo6
.
O século XIX se caracterizou pelo fortaleci-
mento dos Estados Nacionais, pela redefinição
dos papéis sociais das mulheres e das crianças,
pelo avanço acelerado da industrialização e da
técnica e pela organização de trabalhadores.
Um duplo movimento afluiu nas relações entre
pais e filhos; a infância passou a ser encarada
como um momento privilegiado da vida, e aos
filhos dedicava-se amor e investimento no futu-
ro. Nesse momento, a figura do adolescente foi
balizada com nitidez. A adolescência masculina
foi definida como o período entre a primeira co-
munhão e o bacharelado ou serviço militar, e a
feminina entre a primeira comunhão e o casa-
mento. Ao longo do século, a adolescência pas-
sou a ser reconhecida como um momento críti-
co da vida, temida como uma fase de potenciais
riscos para o indivíduo e para a sociedade, uma
real “zona de turbulência e contestação”7
.
A adolescência passou então a ser objeto
de interesse de médicos e de educadores. A pri-
meira referência à organização do atendimento
clínico a adolescentes foi o acompanhamento de
alunos em internatos na Inglaterra. Em 1884 foi
constituída a Associação de Médicos de Escolas
que, no ano seguinte, publicou um Código de
regras com o explícito objetivo de evitar a disse-
minação de doenças infecciosas8
.
Em relação às publicações especializadas
sobre a temática, o primeiro livro referido no
Index Medicus abordando o tema adolescência
data de 1904, a obra de G. Stanley Hall, inti-
tulada Adolescência: sua psicologia e relação com
fisiologia, antropologia, sociologia, sexo, crime,
religião e educação9
. O autor propunha que o
ser humano em desenvolvimento passaria por
estágios correspondentes aos que ocorreram na
evolução da espécie humana, desde o primitivis-
mo animal até a vida civilizada, que caracteriza-
ria a maturidade. As etapas de desenvolvimento
descritas em sua teoria obedeceriam a um pa-
drão universal, inevitável e imutável, de forma
independente do ambiente, controladas exclu-
sivamente pela hereditariedade. Apresentava a
adolescência como um período de sturm und
drang (tempestade e tensão), de turbulência e
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transição ao status adulto final, em que os indi-
víduos oscilavam entre vigor e letargia. Assumiu
que essa fase perigosa e trabalhosa demanda-
va proteção. A peça O despertar da Primavera,
escrita em 1891 por Frank Wedeking, e por ele
descrita como “tragédia infantil”, descortina o
universo de um grupo de adolescentes e seus
dramas. Os jovens aguçam sua curiosidade à me-
dida que ocorrem as transformações puberais e
os desejos sexuais e percebem a distância que os
separa da moral social do mundo dos adultos.
Nas palavras do estudante Moritz há uma crítica
à escola e a seus preceitos: “De que adianta uma
enciclopédia que não responde à questão mais im-
portante da vida?”
A Senhora Bergmann, também persona-
gem deste drama, não consegue explicar à filha
de 14 anos como as crianças são geradas e nas-
cem, apesar das súplicas da moça: “Mas não vai
dar, filha! Não posso carregar essa responsabilida-
de!” A adolescente engravida e morre, vítima de
um aborto engendrado pela mãe10
.
Em outras publicações, a criminalidade na
adolescência foi estudada. Em Criminalidade na
adolescência. Causas e remédios de um mal social
atual, de 1909, os adolescentes são identificados
como “vagabundos naturais”, profundamente
instáveis e com absoluto desprezo por quaisquer
obstáculos e perigos7
.
Ao longo desse período, de forma paralela
à organização de um campo de saberes sobre
a adolescência, foram criadas instituições para
o seu amparo e vigilância, tais como as escolas
seriadas e secundárias, e as instituições jurídicas
e correcionais. Essas instituições, vinculadas ao
ideário do Iluminismo, buscavam o aperfeiçoa-
mento do ser humano, a ser atingido através da
educação, da higiene e da ampliação dos direi-
tos sociais. Surgiu, ainda, um novo modelo de
família, a família burguesa, centrada na educa-
ção dos filhos11
. Tinha como características ser
nuclear, heterossexual, monógama e patriarcal.
O domínio absoluto era do pai, chefe, gerente e
responsável pela honra da família, cujos interes-
ses prevaleciam. Mulher e filhos lhes eram su-
bordinados; normas rígidas eram aplicadas. Em
Música ao Longe, de Érico Veríssimo, a adoles-
cente Clarissa, de 16 anos, diz que necessita um
diário porque não tem com quem conversar, “...
vivo aqui solta, como um gato sem estimação”12
.
Os processos disciplinares e normalizado-
res tinham o corpo como seu alvo. Segundo
Foucault, esse princípio agia através do adestra-
mento, da ampliação das aptidões, na extorsão
das forças, no crescimento da utilidade e doci-
lidade e na sua integração a sistemas eficazes
e econômicos. Além da ação nos corpos indivi-
dualizados, o autor desenvolveu o conceito de
biopoder, também fundamentalmente centrado
no corpo, porém exercido como política estatal,
gerenciando a vida e o corpo social, aplicando-
lhe normas higienistas e eugênicas11
.
Nessa atmosfera surgiu uma nova preocu-
pação: o cuidado com o corpo. O medo da do-
ença impregnou a sociedade. A saúde passou a
ser uma preocupação constante, ocupando se-
ções diárias nos jornais. A biologia e a física ele-
varam-se ao topo da hierarquia científica13
. Nas
décadas de 1920 e 1930 foram desenvolvidas
pesquisas colaborativas em universidades com
enfoque no desenvolvimento e na nutrição de
crianças e adolescentes. Foi também reconhe-
cida a influência dos hormônios no crescimen-
to e desenvolvimento e as variações individuais
nos ganhos de altura, peso e maturação sexual.
Estudos sobre os caracteres sexuais secundá-
rios foram organizados na publicação Estudos
somáticos e endocrinológicos do varão púbere, de
Greulich e colaboradores14
.
O século XX foi marcado por guerras,
horrores e sofrimentos que marcaram profun-
damente a vida de crianças e de adolescentes.
Privados dos valores paternos, sentiam-se teme-
rosos para se arriscar a novas incursões pela vida.
Amihai, no conto As mortes de meu pai, ponde-
rou sobre isso nas palavras do protagonista: “Era
terrível para mim, ver que meu pai não podia mais
defender a casa e protegê-la contra a invasão dos
inimigos. Foi este o fim da minha infância.”15
Ao longo do século XX foi consolidada a
ideia da adolescência como uma etapa da vida
dotada de características próprias, retentora de
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um estatuto legal e social. Cada vez mais os pes-
quisadores encaravam-na como um problema.
Alguns especialistas passaram a observá-la com
foco nas repercussões do mundo do pós-guerra,
interpretado como um tempo de caos dos valo-
res. Segundo alguns, o processo que conduziu
à codificação da adolescência como fase em si
atingiu a maturação plena logo após a Segunda
Guerra Mundial. Em 1945, Elliot E. Cohen publi-
cou um artigo no New York Times utilizando a
expressão teenager16
. O filme A última sessão de
cinema, de Peter Bodganovich, enfoca o que era
ser jovem nos EUA do pós-guerra, mais especifi-
camente em uma pequena cidade do Texas, em
1951. Frequentar o bar, o salão de sinuca e as
sessões de cinema eram os únicos divertimen-
tos dos jovens. Bebiam, jogavam e namoravam,
náufragos em um mundo de hipocrisia e me-
diocridade, em meio a casamentos fracassados,
traições e vida de aparências.
A constatação do fracasso da civilização
criada pelas gerações anteriores, de guerras,
injustiças sociais, violência e opressão, e a con-
templação da massa amorfa de casos, dossiês e
números em que foi transformada a humanida-
de pela sociedade de consumo explodiram na
consciência dos adolescentes e jovens da década
de 1960, inaugurando um novo estilo de mobi-
lização e contestação social, bastante distinto da
prática política da esquerda tradicional17,18
.
Deu-se o nome de contracultura a esse
movimento de contestação radical. De um lado
surgiu o movimento hippie, com a filosofia do
drop out, expressão que significa literalmente
“cair fora”, que compreendia três grandes eixos
de movimentação: da cidade para o campo, da
família para a vida em comunidade e do racio-
nalismo cientificista para os mistérios do misti-
cismo e o psicodelismo das drogas. Do outro
lado, a politização invadiu a maioria das uni-
versidades; os estudantes insurgiram-se contra
tudo aquilo que se relacionasse com a “ciência
burguesa”. Em 1968, agitações e passeatas su-
cediam-se em todos os continentes, jovens lu-
tavam em todas as frentes para destruir o velho
e impor o novo19
.
No Brasil, a mobilização estudantil atingiu
seu auge a partir da morte do estudante se-
cundarista Edson Luís de Lima Souto, durante
confronto entre estudantes e policiais no centro
do Rio de Janeiro. Os estudantes inquietavam
o regime muito mais do que os antigos movi-
mentos de esquerda, representando o núcleo
da contestação.
Esse movimento invadiria também a vida
artística brasileira, constituindo uma “cultura de
oposição”, evidente no teatro, na música, no ci-
nema, na literatura e nas artes plásticas. Nos cha-
mados anos de chumbo, que se seguiram ao de-
creto do Ato Institucional nº 5 (AI-5), em 1968, os
direitos individuais e coletivos foram feridos, in-
clusive a liberdade de expressão20
. As produções
artísticas desse período eram disfarçadas com
metáforas e linguagem figurada, na tentativa de
burlar a Censura. Diversos artistas foram exilados
e torturados. A música de Geraldo Vandré, Pra
não dizer que não falei das flores, foi promovida a
hino de protesto na luta contra a ditadura.
Zuenir Ventura21
afirmou que poucas gera-
ções lutaram tão radicalmente por seu projeto,
por sua utopia, experimentando todos os hori-
zontes: político, sexual, comportamental e exis-
tencial, sonhando em aproximá-los.
Século XXI, tempo de atrativos tecnológi-
cos e de busca desenfreada de bens de consu-
mo. A oferta é constante, mas nada é suficiente.
Calligaris22
afirma que crianças e adolescentes
aprendem que há duas qualidades subjetivas
para ser reconhecido e valorizado na socieda-
de atual: é necessário ser desejável e invejável.
Birman23
considera que existe na atualidade um
alongamento da adolescência, que hoje come-
ça mais cedo do que outrora e que se prolonga
pelo período anteriormente denominado idade
adulta. A contemporaneidade tem como marcas
a dissolução de certezas e um estado de desam-
paro coletivo, que implicam uma experiência
complexa e plural de adolescer.
Enredar-se na discussão da subjetividade
da adolescência na contemporaneidade é uma
tarefa inevitável para os profissionais que te-
nham o propósito de participar de seu cuidado.
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A ambição desse artigo foi a de tornar perceptí-
veis as mudanças do significado dessa etapa da
vida ao longo dos tempos, no Ocidente. Como
afirma Cardoso24
, trabalhar com a disciplina da
história é também trabalhar com nossa própria
dimensão, compreendendo nossa presença nela
e formulando ideias que deem sentido à nossa
articulação com os outros.
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