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Mar das Deslembranças


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Roteiro & Ilustração
Pedro F. Sarmento
  pedrofsarmento.com




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           Este livro é um desdobramento
do Projeto Conclusão do curso de Design da PUC-Rio.


   Teve como orientador Gonçalves Gamba Junior
          e, como tutor, Marcelo Pereira.



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                       Agradecimentos
Irene Milhomens, Gamba Junior, Felipe Vianna, Marcelo Pereira,
          N ina Martins, Luiz Sarmento, Vânia Lúcia,
                 Érico José, Maria Acselrad,
                 “Garnizé”, Helder Vasconcelos



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Mas quem é que sabe para onde vai Seu Ambrósio?
     Do fim do mundo, ao retorno de tudo?

      Mas onde você vai, Seu Ambrósio?
Contar os contos dos mouros, em outros logradouros?

   Mas onde, homem, diga logo, Seu Ambrósio!
    Vender ideia de lá, comprar ideia para cá.
        Vou me arranjar onde tiver fuá!

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om dia, boa tarde, boa noite,              É que é dia de festa, aqui em minha casa.
 boa de manhãzinha, Capitão!
           Boa hora em que chegaste,   Ora, agora que vejo todo
             Mestre Ambrósio!           esse povo sentado a nos olhar.
Mas para que me
 chamou, Capitão?
E comida, tem aqui?
     Tem! Pão, carneiro assado, batata...
                   E música, tem?
                            Ora se tem, veja!
                              O rabequeiro, o pandeirista....
   E mulher, tem?
         E não tem?
           Olha a Carminha, olha a Maria...




                                                                Então tá tudo certo!
                                                                  Aqui vou cair!
                                                                  Comer, dançar
                                                                     brincar!
Mas tá faltando,
 tá faltando, tá falt...
                   A cachaça?   As ideias do pensar?
                                    Isso!
                      Não.            Tão faltando
 O oxigênio do ar?                      essas coisas.
     Não.
Tô olhando, tô olhando, e não tem nenhuma ideia
    aqui por perto mesmo... Nem cheiro!
                   Tão faltando as ideias pra botar!
                         O povo tava esperando isso.
                 Mas ideia tá em falta hoje em dia,
                          sabe, essas coisas são raras!
                     Ô, Mestre Ambrósio, claro que tem!
                      Sei que o senhor é vivido, é sabido,
                   é     é estudado, é doutorado,
                            é proscrito, é defenestrado,
                               é desmaiado, é concate...
Tá certo, tá certo!
     E o senhor paga pela ideia?
  Quanto o senhor quer?
Quero um quilo, dois daquilo,
mais três do novilho e quatro da navalha
que ficam cinco de toda tralha!
E vale, num vale?
Tá válido!
Vê no saco
de ideias qual
que lhe agrada mais.
Viu?
                  Ver, eu vi, mas não conheci!
Conhecer mesmo, a gente só conhece a si mesmo... quando conhece!
               Quero aquela ideia assim assado!
           Assado sim. Vou querer o carneiro assado!
                        Mas a ideia não!
                     Quero ideia molhada,
                          ideia de mar,
                            essa aqui.
                              Quer
                               ver
                              mais?
                              Quero!
                           Então bula
                              que eu
                              boto!
Chico!
Chico não era o melhor pescador do povoado,
  nem o mais bonito e nem o mais sabido.
   Mas Clara via nas cores de seus olhos,
              tudo isso e mais...
             Via as coisas que só
        as mulheres compreendem.




               Coisas que,
           quando ditas ao ar,
         se esvaem de sentido.
           Clara não diz nada.
   Nada que destoe a harmonia daquele
          silencioso momento.
Chico não era o melhor cantor do povoado,
         nem o mais dedicado violonista
               ou afinado intérprete.
Mas que suor sussurrado entre pele e corda gotejava
     aquele timbre salgado de madeira rouca
             em puro estalido mudo?
                   Cortejo vazio
           sibilado entre dentes agudos
                   distendido de
                     um miúdo
                        grão
                         de
                         ar
                          .
                          .
                          .
Nas cordas do ondulado violão,
        as toadas dedilhadas por calos incertos,
               por vezes oferecidas a tantas
       e tão formosas cabrochas e, mesmo assim,
    Clara era só feita canção, a única cantada assim.
Leve, Clara se observava naquelas finas notas flutuantes
                        e sonhava.
Sonhando,
     aquela Noite sentiu algo de Chico,
         algo que Chico nunca havia
             pensado em pensar.
   Coisa assim, que só mesmo Noite pensa.
   E a cada onda quebrada na areia da praia
     um baque se embolava em seu peito.
      E a cada espuma espraiada em areia
    uma incerteza pulsava no dedo do pé.
E para cada Chico, que era tranquilo e alegre, este
     agora pensava tudo ao mesmo tempo,
      como se quisesse entender o mundo
          naquele derradeiro momento.
           E Chico foi ter com o Mar.
Chico!
E o Mar foi ter com Chico.
A aurora despertou Chico ondulante num triste deserto azul,
        quando num bater de asas o vento lhe disse

            Você sabe por que está aqui, Chico?
                            Não...
      Existem laços, laços tão antigos como o mundo.
      O Mar pertence a Chico e Chico é filho do mar.
                           Laços?
                 Laços não me importam.
               Tenho é que voltar para casa.
          Chico acha que precisa retornar à terra.
              Mas, na verdade, Chico nunca foi,
                   nunca saiu das ondas
                           do mar.
Os dias passaram e todos os seres continuaram seus afazeres.
  Alguns pescaram, alguns plantaram e alguns bordaram.
 Mas o peixe se estragou, a terra secou, o bordado se desfez
             e as cigarras choraram por Chico.

                      Mas Clara não.
        Jamais as ouvia e teimava em rondar a praia
               esperando seu amado voltar.
Como estão todos?
Desolados, Chico. Mas o tempo irá restabelecer a vida de volta a seu lugar.
         Será? Acho que ninguém sabe ao certo... E Clara, viu ela?
        Chico, você sempre quer saber tudo, né? Por isso se magoa.
          Se nega a me dizer, é porque ela deve estar sofrendo...
Não se pode ter tudo, Chico. Cada escolha feita corresponde a algo perdido.
                     Foi sempre assim. E sempre será.
        Entenda, Odoyá minha mãe, não posso deixar Clara assim.
       Seus irmãos o esperam. Cedo ou tarde você terá de escolher,
                              sabe disto.
                       Minha escolha já foi feita.
Nisto, que cada grão de areia revolveu seus vazios
    distendendo espaço para aquela madeira oca
                   que, por mais vazia que fosse,
                            não tinha cabimento,
                  as ondas retraíram suas caudas
                  despejando tudo no descabido
                               em que água desfaz
                                 e areia se recolhe.
E por toda a noite Clara ficou neste descabimento de remexer os vazios da areia
no desfazer d’água em vão que escorria no rosto. E a pele se formou de vão.
E o vão em som de pele. Rufadas de tambores aguados no profundo salgado do mar
                          num eterno instante que a Lua revelou a Clara.
Clara via tudo. Via as coisas que só as mulheres compreendem.
            Coisas que, quando ditas ao ar, se esvaem de sentido.
De um sentido vago, esboçado em granuladas reminiscências trazidas além mar,
    Clara ouviu as toadas de Chico junto à espuma dos antigos tambores,
            qual eterna ciranda de rouca peleja entre água e areia.
                    Chico tinha ido encontrar seus irmãos.
             Irmãos que por crueldade foram atirados às águas
               e lá formaram um quilombo no fundo do mar.
Clara só não havia previsto o último pedido de Chico ao Mar.
Ao raiar do sol, as ondas levaram todas suas lembranças do mundo.
      Para Clara, era como se Chico nunca houvesse existido.

             Cada passo distraído na areia da praia,
                       os grãos apagaram.
               Cada olhar sibilado em leve gracejo,
                         o vento desfez.
            E cada lágrima de Clara em pele morena,
                         o tempo secou.
Tá chorando, Capitão?
  Besta! É suor! Suor porque tá quente!
  Agora o Capitão já viu e já conheceu.

Ver, eu vi, mas conhecer só a nós mesmos,
             como você disse...
     Mas Capitão tá se conhecendo!
            A mim mesmo?
     A si mesmo como a mim, oras!
       Mas deixa disso que agora
         vou dançar, me alegrar
       e desregrar até o sol raiar!

       Mas não pode, não pode!
         Olha esse povo todo,
    tem que ter mais ideia pra botar!
Ora, Capitão! Quem bula demais, bota de menos, quem bota demais, bula de menos, mula!
                           Eu pago uma mula! Uma mula!
                                         Ííí!
     Mas eu quero uma mula, duas cuias, mais três estruturas de quatro envergaduras
                    que dão cinco sanguessugas! E vale, num vale?
                           Tá válido! Quero ideia de mula!
                        Mula, não tem, mas tem de boi, quer?
                                       Quero!
                                     Então bula
                                       que eu
                                       boto!
muuuu...
Bucólico.
             O boi nunca ouvira esta palavra,
mas sabia seu significado mais do que ninguém. E era feliz.
Um toco de madeira, uma corda que o prendia e seu pasto.
                   Um mundo pequeno,
achatado entre o azul do céu e o mar verde de grama e terra.

               Anos, décadas ou milênios?
          O boi nunca soube entender o tempo,
       pois, num mundo em que nada movimenta,
        em que todo instante é o mesmo instante
            do antes, do agora, e do pós agora,
                  quem lhe diria o que é
                    passado ou futuro,
                  memória ou previsão?
               E o boi meditava ruminando
                   ao infinito horizonte.
muuuu...
O vento soprou ao seu ouvido fios de som.
                  E o boi ficou pasmo.
          O vento falou tudo que não foi dito
sussurrando entrelinhas que se desalinharam em enigma.
      Mesmo assim, o boi entendeu tudo, tudinho,
                e não estranhou quando
                      seu dono lhe
                         falou...
Vamos embora, boi, nada nos resta nestas terras ingratas.
                                              Para a cidade!

  Lá tudo se encontra, e gente de todo o tipo há. Nada é fixo.
Cada um acredita em coisas diferentes e ninguém se entende.
                         Ou se entendem da maneira errada,
        se confundindo em estranho labiar de outras terras.

    De modo errôneo, se embaralha o pensar do homem são.
      Este logo não acredita mais no que é correto acreditar,
                                     pensando vãs loucuras
                                          que só o demônio
                                            há de entender...
Andar por terras estranhas? Ruminou o boi,
  percebendo que já caminhava cidade adentro.
           Era tudo para ele novidade.
     Seus olhos perpassavam cores e formas
       jamais vistas por um boi camponês,
    estupefato com as ruelas que contornava,
      as quais mais lhe pareciam labirintos,
quando comparadas a seu amplo campo de pasto.
No mercado, as tigelas, as moringas, os risos, os pentes, os alaúdes, os olhares furtivos,
as redes, as pessoas, os tapetes, os pedintes, os alhos, os paralelepípedos, as brigas e as maçãs.




                       Tudo lhe parecia uma grande e única coisa que,
                     pulsando em estridente alarido, se chamava cidade.
Sem que visse o tempo passar, foi se esvaindo a cidade, cada vez mais e mais vazia.
               Só restaram os paralelepípedos. E a noite se debruçou deixando frio o boi.

Só com suas lembranças, desejou seu formoso pasto de volta. Nunca deveria ter saído de lá.
                      Estava bem lá, e só lá viveria bem para todo o sempre e além sempre.
Logo a cidade fez como um torrão de açúcar, que de enorme prazer se dilui num só instante.
             Restou-lhe uma incômoda coceira no céu da boca. Nostálgico torrão de açúcar.

                   E quando tudo era noite. E quando as luzes se escondiam em algum baú.
                               E quando o ar se fez pesado e volumoso como água espessa
                                                        que demora a escorrer pelas mãos.

                                 E quando o som perdeu seu timbre, e só o silêncio restou.
                               E quando os cheiros se elevaram até os céus e por lá ficaram.
                                   E quando o boi se arrepiou no celeiro em que dormiam.
                                                                          Nada aconteceu.
Mas um nada sem jeito, estranho e arredio.
  Um nada, assim, que quase queria ser alguma coisa.

O boi foi achando que aquele nada, talvez, não fosse nada.

              E lhe veio um medo ancestral
              que percorreu sua têmpora,
                     no que seu dono
                         acordou.
Quem está aí?
           Não se mova, senão corto sua cabeça!
   Leve o que quiser, só tenho este boi velho comigo.
            Não sou ladrão, nem assassino. Estou à sua procura.
               À procura do Senhor das Histórias.
           Mas nada sei, nem instruído sou na arte do contar.
                  Ora, não se faça de tonto.
                    Sinto no ar que você sabe o que preciso,
                     a História das histórias.
                        Tenho ouro, jóias e tudo o que
                            a riqueza pode oferecer.
                                Só me diga o seu preço.
                                    Realmente,
                                       nada sei.
Isto é impossível.
  Todas as estrelas indicaram este ponto nesta noite.
     Sei que aqui está o que procuro há muitos anos.
            Quem é você?
      Sou Amin Albahrayn, o vizir dos dois mares.
       Venho de longe, de um reino grande e próspero
           onde todos vivem bem.
         Mas há 7 anos atrás nosso rei Alazraq se sentiu indisposto
          com as histórias do nosso povo.
                           O quê?
Nosso rei Alazraq se alimenta de histórias,
contos, crônicas e pequenos causos.

Há 7 anos ele não consegue mais ouvir nenhuma história.
Acha todas insossas e sem sustância. Não se alimenta mais.
Está débil, fraco, cansado.

Então, Alazraq ordenou a todos os vizires que fossem
em busca da História das histórias para sua salvação!

Todas as regiões, Norte, Sul, Leste e Oeste,
já foram percorridas sem sucesso.

Contudo, nos últimos meses, as estrelas estão comentando
que aqui, esta noite, encontrarei o que procuro.
hummmm.

      muuuu...

                 Aqui está! Aqui está!
                    O Senhor das Histórias!
           Quem?
            O boi é o Senhor das Histórias?
             Claro! Não ouve suas sábias palavras?
               Vou redigir agora sua História!
E por toda a noite o boi mugiu e Amin Albahrayn redigiu a História das histórias.
       Depois lhes deu muito ouro e jóias e pérolas. Todos ficaram felizes.
No seguinte dia, o dono comprou muita comida para ele e para o boi.
Depois comprou roupas, escravos, um palácio,
sentindo-se magnânimo e soberbo.

E foi passear com o boi pela cidade.
Quando passaram pelo mar, o boi se aquietou
e se lembrou de suas pastagens e de seu enorme campo.

Lá parou, ficando um não sei quanto tempo olhando o horizonte
e o horizonte olhava para ele,
como se já se conhecessem
de tempos remotos.
Quando o horizonte lhe indicou um homem entrando no mar.
Amin Albahrayn levaria a História mais esplêndida e maravilhosa para seu rei.
  Uma dessas histórias que um boi muge sem saber o que está mugindo.
          Uma dessas histórias que são entrelinhas sem linhas.
         Uma dessas histórias que só o vento traz e só vento leva.
Curioso.
    Queria saber essa História,
    essa História das histórias.


É, mas essa História tem um porém.
           Quem a conta
acaba mudando alguma coisa aqui,
       outra acolá e já viu, né,
     a História vira uma outra.

               Pois é,
  mas queria saber mesmo assim!
 Dela só não, saber as coisas todas,
            sabe, tudo.
Bom, tudo não tenho. Nem a História das histórias.
Mas tenho aqui a história do homem que quis saber tudo, como você.
                           E quanto é?
          Quero um olho, dois molhos, mais três piolhos
        que com quatro zarolhos vão dar cinco trambolhos.
                        E vale, num vale?
                            Tá válido!
                           Então bula
                             que eu
                             boto!
A velhice é sábia. A minha memória muito já apreendeu, ou talvez nem tanto.
Visto que ultimamente se desalinha a cada postulado, pois nunca acerta em ter certeza sobre os fatos.
       Resolveu-se esquecer. De fato, há muito tempo creio ter sabido de algo que se perdeu.
                    Escrever, agora, que o corpo não mais alcança por inteiro,
                                       memórias diluídas
                                             no branco
                                               e pre
                                                 to
                                                  .
Aquele instante se acolheu em minhas hesitações, e por lá se aconchegou,
                  ainda se indagando sobre o ambiente peculiar.
    Nos primeiros anos, permaneceu quieto e atento aos rumores sussurrantes
              e aos pensamentos insólitos que insistiam em brotar.
       Não sei se minha hesitação diminuiu ou se foi o instante que cresceu:
                   o certo é que havia uma coceira impertinente,
    fruto daquele instante arredio que cismava em sair e se descobrir em ideia.




         E naquela ideia de coceira de ideia, o instante surgiu como ideia.
Uma ideia singela e rude, amigável e arisca, preta e branca, como todas as ideias são.
                      Uma coceira de saber tudo, tudo mesmo:
      todas as coisas de todos os tempos e espaços e de todas as vidas perenes.
                Parti em viagem à procura de, enfim, saber tudo.
Conheci mestres, sábios e filósofos.
        Uns riram de mim pela minha ingenuidade. Outros apenas suspiraram.
Alguns fingiram não ouvir minha indagação, ou talvez não conseguissem ouvir mesmo.
                     Ainda tiveram aqueles que me responderam.
Mas estes sabiam ainda menos do que eu, ou talvez eu apenas não conseguisse ouvir direito.
                          Então fui ter com a própria ideia.
A ideia é um Ponto          Um Ponto de Encontro        Que formam uma Rede
                                   de várias ideias                 de ideias




Mas que não dá para se deitar,   E também pode ser vista   Entre os pontos existe Espaço,
  porque não tem apoios             de muitos ângulos       Espaço que quer ser ideia
Espaço que é               Diferentes ideias         Pensadas de variadas formas
Sobreposição de ideias
                                     Tudo
                                                                     Tudo




                                    Saber                            Saber


Que, quando juntas,      Mas sempre surgem mais ideias     Por isto é preciso refletir
são compreendidas              dentro das ideias
E, mesmo assim, algumas ideias   Algumas vão se encontrar          Outras vão para o
    escapam do pensamento           com outras ideias              Espaço entre ideias




Há ainda as que ultrapassam        E vão para o que não há,   Eu, com minha Rede de ideias,
   o não-limite da Rede          o Mar das Deslembranças           adentrei o Mar das
                                                                     Deslembranças,
                                                                       para enfim
                                                                        entender
                                                                          todo o
                                                                           tudo
Pequenas consciências me observavam, apreensivas do caminho que revoltava.
Desenrolei um último fio de integridade, que se dissipou no ar. E tudo se difundiu.
              Luzes refratavam o tempo a boiar, vagarosamente.
Num torpor uterino espraiei-me na difusa névoa em que não mais se reconhece,
                             se água, se ar, se corpo,
                                    se alma,
                                       ser
Ao emergir na margem das ideias, dois pescadores lúdicos proseavam:

       Mas você não sabe, ontem pesquei uma ideia deste tamanho!
                         Mas que ideia, Ontomar?
         Ora, Epistemeomar, sabe que não ando bem da memória,
só vou confundir se te contar, mas você bem gostaria de ter se lembrado dela!
                  Então conte, era suculenta ou cheirosa?
             Alegre ou apática? Atrevida ou logarítmica?
                           Caridosa ou retroativa?
                                É, era assim:
Atento ao incognitante prosear dos pescadores lúdicos
                     que disformes sensações absorvindas do ar?
                              Que era isto que se dava?

   Mas só se dava o sorriso do Silêncio que elucidramatizava o instante a falar:
               Saiba que ao Mar das Deslembranças chegamos indo.
Abaixo dessas águas todas as ideias deslembradas e todos os saberes esquecidos vêm e vão.

             Ao mirar meus olhos em retinta cor, vi água que não refletia,
                       mas a mim absorvia em tensão o vão.

                        De medo recuei. E o Silêncio prosseguiu:
                todas as ideias aspiram a emergir em concreta finalidade
                 de se mostrarem conscientes num real mundo de devir.
                                Mas para todo o lembrar,
                                      há o esquecer.
Frio e só me entendi, pois, que deveria me tornar ideia pura,
                breve sonhar que relampeie em mente vulgar.
       A isso não aspirava desde a tenra elucubração de tudo pensar?
                  Pois que tudo não seriam ideias minhas
  tecidas de tal modo que em enorme novelo me englobam até desmontar?

A ideia do Silêncio sumiu. A ideia do saber sumiu. A idéia do tudo sumiu.

                    A ideia do nada sumiu. Agora,

                              já sem ideias,

                                  sumo
Morreu?
      Escafedeu-se, Capitão. Acabou a história!
Não sei se entendi tudo, tudinho mesmo.
  Entender o tudo é fácil, difícil é desentender o nada.

 Distender o nada?

      Pois é, você me entendeu.
        E agora, vamos festejar! Beber, cair, dançar!

Mas olhe que a festa termina.
 Já não tem mais comida, não tem mais música e nem mulher.
O sol já rodou, e tá para aparecer por aí.

      É. Já não tem mais nada, nadinha mesmo.
   Mas se tem, tem sim!
E tem o quê? Cachaça?
          Não.
            O oxigênio do ar?
               Não.
                      As histórias do prosear!
               Isto tem, Mestre Ambrósio!
                 Você é quem conta e depois esquece?

            É que gosto de esquecer as coisas, sabe,
               depois me lembro melhor.
             Quer que eu te guarde o esquecido?

Pois faça isso. Qualquer dia eu volto e você me lembra!
     Mas lembra bem lembrado que eu adoro
        esquecido bem relembrado.
              Adeus.
                Adeus.
Q  Q
E Seu Ambrósio caiu fora, deu um passo e foi-se embora!




                      Q  Q
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Mar das deslembrancas

  • 1.
  • 2. Q Q Mar das Deslembranças Q Q
  • 3. Q Q Roteiro & Ilustração Pedro F. Sarmento pedrofsarmento.com Q Q
  • 4. Q Q Este livro é um desdobramento do Projeto Conclusão do curso de Design da PUC-Rio. Teve como orientador Gonçalves Gamba Junior e, como tutor, Marcelo Pereira. Q Q
  • 5. Q Q Agradecimentos Irene Milhomens, Gamba Junior, Felipe Vianna, Marcelo Pereira, N ina Martins, Luiz Sarmento, Vânia Lúcia, Érico José, Maria Acselrad, “Garnizé”, Helder Vasconcelos Q Q
  • 6.
  • 7.
  • 8. Q Q Mas quem é que sabe para onde vai Seu Ambrósio? Do fim do mundo, ao retorno de tudo? Mas onde você vai, Seu Ambrósio? Contar os contos dos mouros, em outros logradouros? Mas onde, homem, diga logo, Seu Ambrósio! Vender ideia de lá, comprar ideia para cá. Vou me arranjar onde tiver fuá! Q Q
  • 9. om dia, boa tarde, boa noite, É que é dia de festa, aqui em minha casa. boa de manhãzinha, Capitão! Boa hora em que chegaste, Ora, agora que vejo todo Mestre Ambrósio! esse povo sentado a nos olhar. Mas para que me chamou, Capitão?
  • 10. E comida, tem aqui? Tem! Pão, carneiro assado, batata... E música, tem? Ora se tem, veja! O rabequeiro, o pandeirista.... E mulher, tem? E não tem? Olha a Carminha, olha a Maria... Então tá tudo certo! Aqui vou cair! Comer, dançar brincar!
  • 11. Mas tá faltando, tá faltando, tá falt... A cachaça? As ideias do pensar? Isso! Não. Tão faltando O oxigênio do ar? essas coisas. Não.
  • 12. Tô olhando, tô olhando, e não tem nenhuma ideia aqui por perto mesmo... Nem cheiro! Tão faltando as ideias pra botar! O povo tava esperando isso. Mas ideia tá em falta hoje em dia, sabe, essas coisas são raras! Ô, Mestre Ambrósio, claro que tem! Sei que o senhor é vivido, é sabido, é é estudado, é doutorado, é proscrito, é defenestrado, é desmaiado, é concate...
  • 13. Tá certo, tá certo! E o senhor paga pela ideia? Quanto o senhor quer? Quero um quilo, dois daquilo, mais três do novilho e quatro da navalha que ficam cinco de toda tralha! E vale, num vale? Tá válido! Vê no saco de ideias qual que lhe agrada mais.
  • 14. Viu? Ver, eu vi, mas não conheci! Conhecer mesmo, a gente só conhece a si mesmo... quando conhece! Quero aquela ideia assim assado! Assado sim. Vou querer o carneiro assado! Mas a ideia não! Quero ideia molhada, ideia de mar, essa aqui. Quer ver mais? Quero! Então bula que eu boto!
  • 15.
  • 17. Chico não era o melhor pescador do povoado, nem o mais bonito e nem o mais sabido. Mas Clara via nas cores de seus olhos, tudo isso e mais... Via as coisas que só as mulheres compreendem. Coisas que, quando ditas ao ar, se esvaem de sentido. Clara não diz nada. Nada que destoe a harmonia daquele silencioso momento.
  • 18. Chico não era o melhor cantor do povoado, nem o mais dedicado violonista ou afinado intérprete. Mas que suor sussurrado entre pele e corda gotejava aquele timbre salgado de madeira rouca em puro estalido mudo? Cortejo vazio sibilado entre dentes agudos distendido de um miúdo grão de ar . . .
  • 19. Nas cordas do ondulado violão, as toadas dedilhadas por calos incertos, por vezes oferecidas a tantas e tão formosas cabrochas e, mesmo assim, Clara era só feita canção, a única cantada assim. Leve, Clara se observava naquelas finas notas flutuantes e sonhava.
  • 20. Sonhando, aquela Noite sentiu algo de Chico, algo que Chico nunca havia pensado em pensar. Coisa assim, que só mesmo Noite pensa. E a cada onda quebrada na areia da praia um baque se embolava em seu peito. E a cada espuma espraiada em areia uma incerteza pulsava no dedo do pé. E para cada Chico, que era tranquilo e alegre, este agora pensava tudo ao mesmo tempo, como se quisesse entender o mundo naquele derradeiro momento. E Chico foi ter com o Mar.
  • 21.
  • 23. E o Mar foi ter com Chico.
  • 24.
  • 25. A aurora despertou Chico ondulante num triste deserto azul, quando num bater de asas o vento lhe disse Você sabe por que está aqui, Chico? Não... Existem laços, laços tão antigos como o mundo. O Mar pertence a Chico e Chico é filho do mar. Laços? Laços não me importam. Tenho é que voltar para casa. Chico acha que precisa retornar à terra. Mas, na verdade, Chico nunca foi, nunca saiu das ondas do mar.
  • 26. Os dias passaram e todos os seres continuaram seus afazeres. Alguns pescaram, alguns plantaram e alguns bordaram. Mas o peixe se estragou, a terra secou, o bordado se desfez e as cigarras choraram por Chico. Mas Clara não. Jamais as ouvia e teimava em rondar a praia esperando seu amado voltar.
  • 27. Como estão todos? Desolados, Chico. Mas o tempo irá restabelecer a vida de volta a seu lugar. Será? Acho que ninguém sabe ao certo... E Clara, viu ela? Chico, você sempre quer saber tudo, né? Por isso se magoa. Se nega a me dizer, é porque ela deve estar sofrendo... Não se pode ter tudo, Chico. Cada escolha feita corresponde a algo perdido. Foi sempre assim. E sempre será. Entenda, Odoyá minha mãe, não posso deixar Clara assim. Seus irmãos o esperam. Cedo ou tarde você terá de escolher, sabe disto. Minha escolha já foi feita.
  • 28. Nisto, que cada grão de areia revolveu seus vazios distendendo espaço para aquela madeira oca que, por mais vazia que fosse, não tinha cabimento, as ondas retraíram suas caudas despejando tudo no descabido em que água desfaz e areia se recolhe.
  • 29. E por toda a noite Clara ficou neste descabimento de remexer os vazios da areia no desfazer d’água em vão que escorria no rosto. E a pele se formou de vão. E o vão em som de pele. Rufadas de tambores aguados no profundo salgado do mar num eterno instante que a Lua revelou a Clara.
  • 30. Clara via tudo. Via as coisas que só as mulheres compreendem. Coisas que, quando ditas ao ar, se esvaem de sentido. De um sentido vago, esboçado em granuladas reminiscências trazidas além mar, Clara ouviu as toadas de Chico junto à espuma dos antigos tambores, qual eterna ciranda de rouca peleja entre água e areia. Chico tinha ido encontrar seus irmãos. Irmãos que por crueldade foram atirados às águas e lá formaram um quilombo no fundo do mar.
  • 31. Clara só não havia previsto o último pedido de Chico ao Mar. Ao raiar do sol, as ondas levaram todas suas lembranças do mundo. Para Clara, era como se Chico nunca houvesse existido. Cada passo distraído na areia da praia, os grãos apagaram. Cada olhar sibilado em leve gracejo, o vento desfez. E cada lágrima de Clara em pele morena, o tempo secou.
  • 32. Tá chorando, Capitão? Besta! É suor! Suor porque tá quente! Agora o Capitão já viu e já conheceu. Ver, eu vi, mas conhecer só a nós mesmos, como você disse... Mas Capitão tá se conhecendo! A mim mesmo? A si mesmo como a mim, oras! Mas deixa disso que agora vou dançar, me alegrar e desregrar até o sol raiar! Mas não pode, não pode! Olha esse povo todo, tem que ter mais ideia pra botar!
  • 33. Ora, Capitão! Quem bula demais, bota de menos, quem bota demais, bula de menos, mula! Eu pago uma mula! Uma mula! Ííí! Mas eu quero uma mula, duas cuias, mais três estruturas de quatro envergaduras que dão cinco sanguessugas! E vale, num vale? Tá válido! Quero ideia de mula! Mula, não tem, mas tem de boi, quer? Quero! Então bula que eu boto!
  • 34.
  • 36. Bucólico. O boi nunca ouvira esta palavra, mas sabia seu significado mais do que ninguém. E era feliz. Um toco de madeira, uma corda que o prendia e seu pasto. Um mundo pequeno, achatado entre o azul do céu e o mar verde de grama e terra. Anos, décadas ou milênios? O boi nunca soube entender o tempo, pois, num mundo em que nada movimenta, em que todo instante é o mesmo instante do antes, do agora, e do pós agora, quem lhe diria o que é passado ou futuro, memória ou previsão? E o boi meditava ruminando ao infinito horizonte.
  • 38. O vento soprou ao seu ouvido fios de som. E o boi ficou pasmo. O vento falou tudo que não foi dito sussurrando entrelinhas que se desalinharam em enigma. Mesmo assim, o boi entendeu tudo, tudinho, e não estranhou quando seu dono lhe falou...
  • 39. Vamos embora, boi, nada nos resta nestas terras ingratas. Para a cidade! Lá tudo se encontra, e gente de todo o tipo há. Nada é fixo. Cada um acredita em coisas diferentes e ninguém se entende. Ou se entendem da maneira errada, se confundindo em estranho labiar de outras terras. De modo errôneo, se embaralha o pensar do homem são. Este logo não acredita mais no que é correto acreditar, pensando vãs loucuras que só o demônio há de entender...
  • 40. Andar por terras estranhas? Ruminou o boi, percebendo que já caminhava cidade adentro. Era tudo para ele novidade. Seus olhos perpassavam cores e formas jamais vistas por um boi camponês, estupefato com as ruelas que contornava, as quais mais lhe pareciam labirintos, quando comparadas a seu amplo campo de pasto.
  • 41.
  • 42. No mercado, as tigelas, as moringas, os risos, os pentes, os alaúdes, os olhares furtivos, as redes, as pessoas, os tapetes, os pedintes, os alhos, os paralelepípedos, as brigas e as maçãs. Tudo lhe parecia uma grande e única coisa que, pulsando em estridente alarido, se chamava cidade.
  • 43. Sem que visse o tempo passar, foi se esvaindo a cidade, cada vez mais e mais vazia. Só restaram os paralelepípedos. E a noite se debruçou deixando frio o boi. Só com suas lembranças, desejou seu formoso pasto de volta. Nunca deveria ter saído de lá. Estava bem lá, e só lá viveria bem para todo o sempre e além sempre. Logo a cidade fez como um torrão de açúcar, que de enorme prazer se dilui num só instante. Restou-lhe uma incômoda coceira no céu da boca. Nostálgico torrão de açúcar. E quando tudo era noite. E quando as luzes se escondiam em algum baú. E quando o ar se fez pesado e volumoso como água espessa que demora a escorrer pelas mãos. E quando o som perdeu seu timbre, e só o silêncio restou. E quando os cheiros se elevaram até os céus e por lá ficaram. E quando o boi se arrepiou no celeiro em que dormiam. Nada aconteceu.
  • 44. Mas um nada sem jeito, estranho e arredio. Um nada, assim, que quase queria ser alguma coisa. O boi foi achando que aquele nada, talvez, não fosse nada. E lhe veio um medo ancestral que percorreu sua têmpora, no que seu dono acordou.
  • 45. Quem está aí? Não se mova, senão corto sua cabeça! Leve o que quiser, só tenho este boi velho comigo. Não sou ladrão, nem assassino. Estou à sua procura. À procura do Senhor das Histórias. Mas nada sei, nem instruído sou na arte do contar. Ora, não se faça de tonto. Sinto no ar que você sabe o que preciso, a História das histórias. Tenho ouro, jóias e tudo o que a riqueza pode oferecer. Só me diga o seu preço. Realmente, nada sei.
  • 46. Isto é impossível. Todas as estrelas indicaram este ponto nesta noite. Sei que aqui está o que procuro há muitos anos. Quem é você? Sou Amin Albahrayn, o vizir dos dois mares. Venho de longe, de um reino grande e próspero onde todos vivem bem. Mas há 7 anos atrás nosso rei Alazraq se sentiu indisposto com as histórias do nosso povo. O quê?
  • 47. Nosso rei Alazraq se alimenta de histórias, contos, crônicas e pequenos causos. Há 7 anos ele não consegue mais ouvir nenhuma história. Acha todas insossas e sem sustância. Não se alimenta mais. Está débil, fraco, cansado. Então, Alazraq ordenou a todos os vizires que fossem em busca da História das histórias para sua salvação! Todas as regiões, Norte, Sul, Leste e Oeste, já foram percorridas sem sucesso. Contudo, nos últimos meses, as estrelas estão comentando que aqui, esta noite, encontrarei o que procuro.
  • 48. hummmm. muuuu... Aqui está! Aqui está! O Senhor das Histórias! Quem? O boi é o Senhor das Histórias? Claro! Não ouve suas sábias palavras? Vou redigir agora sua História!
  • 49. E por toda a noite o boi mugiu e Amin Albahrayn redigiu a História das histórias. Depois lhes deu muito ouro e jóias e pérolas. Todos ficaram felizes.
  • 50. No seguinte dia, o dono comprou muita comida para ele e para o boi. Depois comprou roupas, escravos, um palácio, sentindo-se magnânimo e soberbo. E foi passear com o boi pela cidade. Quando passaram pelo mar, o boi se aquietou e se lembrou de suas pastagens e de seu enorme campo. Lá parou, ficando um não sei quanto tempo olhando o horizonte e o horizonte olhava para ele, como se já se conhecessem de tempos remotos.
  • 51. Quando o horizonte lhe indicou um homem entrando no mar. Amin Albahrayn levaria a História mais esplêndida e maravilhosa para seu rei. Uma dessas histórias que um boi muge sem saber o que está mugindo. Uma dessas histórias que são entrelinhas sem linhas. Uma dessas histórias que só o vento traz e só vento leva.
  • 52. Curioso. Queria saber essa História, essa História das histórias. É, mas essa História tem um porém. Quem a conta acaba mudando alguma coisa aqui, outra acolá e já viu, né, a História vira uma outra. Pois é, mas queria saber mesmo assim! Dela só não, saber as coisas todas, sabe, tudo.
  • 53. Bom, tudo não tenho. Nem a História das histórias. Mas tenho aqui a história do homem que quis saber tudo, como você. E quanto é? Quero um olho, dois molhos, mais três piolhos que com quatro zarolhos vão dar cinco trambolhos. E vale, num vale? Tá válido! Então bula que eu boto!
  • 54.
  • 55. A velhice é sábia. A minha memória muito já apreendeu, ou talvez nem tanto. Visto que ultimamente se desalinha a cada postulado, pois nunca acerta em ter certeza sobre os fatos. Resolveu-se esquecer. De fato, há muito tempo creio ter sabido de algo que se perdeu. Escrever, agora, que o corpo não mais alcança por inteiro, memórias diluídas no branco e pre to .
  • 56. Aquele instante se acolheu em minhas hesitações, e por lá se aconchegou, ainda se indagando sobre o ambiente peculiar. Nos primeiros anos, permaneceu quieto e atento aos rumores sussurrantes e aos pensamentos insólitos que insistiam em brotar. Não sei se minha hesitação diminuiu ou se foi o instante que cresceu: o certo é que havia uma coceira impertinente, fruto daquele instante arredio que cismava em sair e se descobrir em ideia. E naquela ideia de coceira de ideia, o instante surgiu como ideia. Uma ideia singela e rude, amigável e arisca, preta e branca, como todas as ideias são. Uma coceira de saber tudo, tudo mesmo: todas as coisas de todos os tempos e espaços e de todas as vidas perenes. Parti em viagem à procura de, enfim, saber tudo.
  • 57. Conheci mestres, sábios e filósofos. Uns riram de mim pela minha ingenuidade. Outros apenas suspiraram. Alguns fingiram não ouvir minha indagação, ou talvez não conseguissem ouvir mesmo. Ainda tiveram aqueles que me responderam. Mas estes sabiam ainda menos do que eu, ou talvez eu apenas não conseguisse ouvir direito. Então fui ter com a própria ideia.
  • 58. A ideia é um Ponto Um Ponto de Encontro Que formam uma Rede de várias ideias de ideias Mas que não dá para se deitar, E também pode ser vista Entre os pontos existe Espaço, porque não tem apoios de muitos ângulos Espaço que quer ser ideia
  • 59. Espaço que é Diferentes ideias Pensadas de variadas formas Sobreposição de ideias Tudo Tudo Saber Saber Que, quando juntas, Mas sempre surgem mais ideias Por isto é preciso refletir são compreendidas dentro das ideias
  • 60. E, mesmo assim, algumas ideias Algumas vão se encontrar Outras vão para o escapam do pensamento com outras ideias Espaço entre ideias Há ainda as que ultrapassam E vão para o que não há, Eu, com minha Rede de ideias, o não-limite da Rede o Mar das Deslembranças adentrei o Mar das Deslembranças, para enfim entender todo o tudo
  • 61. Pequenas consciências me observavam, apreensivas do caminho que revoltava. Desenrolei um último fio de integridade, que se dissipou no ar. E tudo se difundiu. Luzes refratavam o tempo a boiar, vagarosamente. Num torpor uterino espraiei-me na difusa névoa em que não mais se reconhece, se água, se ar, se corpo, se alma, ser
  • 62. Ao emergir na margem das ideias, dois pescadores lúdicos proseavam: Mas você não sabe, ontem pesquei uma ideia deste tamanho! Mas que ideia, Ontomar? Ora, Epistemeomar, sabe que não ando bem da memória, só vou confundir se te contar, mas você bem gostaria de ter se lembrado dela! Então conte, era suculenta ou cheirosa? Alegre ou apática? Atrevida ou logarítmica? Caridosa ou retroativa? É, era assim:
  • 63.
  • 64. Atento ao incognitante prosear dos pescadores lúdicos que disformes sensações absorvindas do ar? Que era isto que se dava? Mas só se dava o sorriso do Silêncio que elucidramatizava o instante a falar: Saiba que ao Mar das Deslembranças chegamos indo. Abaixo dessas águas todas as ideias deslembradas e todos os saberes esquecidos vêm e vão. Ao mirar meus olhos em retinta cor, vi água que não refletia, mas a mim absorvia em tensão o vão. De medo recuei. E o Silêncio prosseguiu: todas as ideias aspiram a emergir em concreta finalidade de se mostrarem conscientes num real mundo de devir. Mas para todo o lembrar, há o esquecer.
  • 65. Frio e só me entendi, pois, que deveria me tornar ideia pura, breve sonhar que relampeie em mente vulgar. A isso não aspirava desde a tenra elucubração de tudo pensar? Pois que tudo não seriam ideias minhas tecidas de tal modo que em enorme novelo me englobam até desmontar? A ideia do Silêncio sumiu. A ideia do saber sumiu. A idéia do tudo sumiu. A ideia do nada sumiu. Agora, já sem ideias, sumo
  • 66.
  • 67. Morreu? Escafedeu-se, Capitão. Acabou a história! Não sei se entendi tudo, tudinho mesmo. Entender o tudo é fácil, difícil é desentender o nada. Distender o nada? Pois é, você me entendeu. E agora, vamos festejar! Beber, cair, dançar! Mas olhe que a festa termina. Já não tem mais comida, não tem mais música e nem mulher. O sol já rodou, e tá para aparecer por aí. É. Já não tem mais nada, nadinha mesmo. Mas se tem, tem sim!
  • 68. E tem o quê? Cachaça? Não. O oxigênio do ar? Não. As histórias do prosear! Isto tem, Mestre Ambrósio! Você é quem conta e depois esquece? É que gosto de esquecer as coisas, sabe, depois me lembro melhor. Quer que eu te guarde o esquecido? Pois faça isso. Qualquer dia eu volto e você me lembra! Mas lembra bem lembrado que eu adoro esquecido bem relembrado. Adeus. Adeus.
  • 69. Q Q E Seu Ambrósio caiu fora, deu um passo e foi-se embora! Q Q