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BY ALLENCAR RODRIGUEZ
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Enredo de Capitães da Areia

 Capitães da areia (para as citações, foi usada a 83.ª edição da obra –
Record, 1996 -, com ilustrações de Poty) pertence à primeira fase da obra
de Jorge Amado, mas o cenário escolhido é o urbano. Centrando a ação na
vida dos menores abandonados da cidade de Salvador, o escritor aproveita
para mostrar as brutais diferenças de classe, e má distribuição de renda e
os efeitos da marginalidade nas crianças e adolescentes discriminados por
um sistema social perverso. Capitães da areia narra o cotidiano de pobres
crianças que vivem num velho trapiche abandonado. Liderados por Pedro
Bala, menino corajoso, filho de um grevista morto, entregam-se a
pequenos furtos para sobreviver.

 A narrativa, de cunho realista, descreve o cotidiano do grupo e seus
expedientes para arranjar alimento e dinheiro. Intercalando a narrativa
com reportagens sobre o grupo dos “Capitães da Areia”, o romance
supervaloriza a humanidade das crianças e ironiza a ganância , o egoísmo
das classes dominantes. Conduzindo a história em função dos destinos
individuais de cada participante do bando, Jorge Amado acaba por ilustrar,
de um lado, a marginalização definitiva de uns (o Sem-Pernas e o Volta
Seca, por exemplo), e, de outro, a tomada de consciência dos mais lúcidos
(Pedro Bala).

Quadros da Miséria Urbana

     Capitães da areia é diferente dos demais romances de Jorge Amado
não apenas por causa da temática, mas também em virtude de sua
estrutura sui generis. A rigor, podemos dizer que o romance não tem
propriamente um enredo. É aí que reside sua modernidade, pois o autor
rompe com a tradição do romance convencional, que supunha rigorosa
organização dos fatos e relações de causa e efeito entre os eventos.
Capitães da areia é montado por meio de quadros mais ou menos
independentes, que registram as andanças das personagens pela cidade de
Salvador. Mas não só: ao lado da narração propriamente dita, Jorge
Amado intercala também notícias de jornal, bem como pequenas reflexões
poéticas. A força da narrativa advém do enredo solto, maleável, que
parece flutuar ao sabor das aventuras dos pequeninos heróis.



De acordo com a teoria da literatura, há vários tipos de romance e os mais
conhecidos são os de ação e de personagem. Capitães da areia parece
pertencer ao segundo tipo, porque, mais do que desenrolar uma ação,
privilegia a existência, a movimentação de diferentes tipos sociais. Dessa
maneira, Jorge Amado monta uma galeria bastante ampla de figuras que
irão compor o quadro social de uma comunidade.

       O fato de o escritor se prender às personagens e de montar os
quadros soltos não implica, contudo, que o romance deixe de ter uma
estrutura mais ou menos organizada. Pelo contrário, é possível perceber
uma linha conduzida, ainda que de maneira tênue, por Pedro Bala, que
organiza o grupo, determina-lhe a ação, graças à sua coragem e aos seus
princípios, e que será uma das únicas personagens a fugir da alienação
(juntamente com o Professor e Pirulito).

      Outro aspecto que chama a atenção, no que diz respeito à
estruturação da narrativa, é a divisão em partes do romance. Ao todo, são
três, subdivididas em capítulos ora mais longos, ora mais curtos,
precedidas de um pequeno prólogo de caráter jornalístico.

1. Prólogo – “Cartas à Redação”:

· reportagem publicada no Jornal da Tarde tratando do assalto das crianças
à casa de um rico comerciante, num dos bairros mais aristocráticos da
capital;
· carta do secretário do chefe de polícia ao mesmo jornal, atribuindo a
responsabilidade de coibir os furtos das crianças ao juiz de menores;

· carta do juiz de menores defendendo-se da acusação de negligência;

· carta da mãe de uma das crianças falando das condições miseráveis do
reformatório;

· carta do padre José Pedro referendando as acusações da mãe feitas ao
reformatório;

· carta do diretor do reformatório defendendo-se das acusações da mãe e
do padre;

· reportagem elogiosa do mesmo jornal ao reformatório.

 Jorge Amado utiliza o recurso do prólogo para criticar indiretamente os
poderosos por meio da linguagem, examinada em diferentes níveis. Assim,
a escrita redundante, grandiloqüente das autoridades contrasta com a da
mulher do povo. Ao mesmo tempo, o tom da reportagem parece colaborar
para a feição realista do romance, como se o narrador quisesse dar a
impressão para o leitor de que o que vai contar é absolutamente
verdadeiro.



2. 1.ª parte – “Sob a lua, num velho trapiche abandonado”, formada de
onze capítulos:

· essa parte constitui propriamente a apresentação do romance, na qual o
leitor se depara com a biografia das principais personagens.

 3. 2.ª parte – “Noite da grande paz, da grande paz dos teus olhos”,
formada de oito capítulos:

· essa parte trata mais especificamente da descoberta do amor por parte
de Pedro Bala.

 4. 3.ª parte – “Canção da Bahia, canção da liberdade”, formada de oito
capítulos:

· essa parte mostra o destino das personagens.

O Trapiche Abandonado

    O romance inicia-se com a descrição do trapiche abandonado. No
passado, recebia veleiros carregados. No presente da narrativa, é apenas
uma construção abandonada, derruída, infestada de ratos, freqüentada por
malandros e mendigos, quando os Capitães da Areia vêm tomar posse
dele. Como não poderia deixar de ser, a primeira personagem a ser
introduzida no romance é justamente a de Pedro Bala, o chefe do bando.

Uma história de amor

 O primeiro capítulo da segunda parte do livro começa com a introdução de
uma nova personagem, Dora. Perdendo os pais com a doença da bexiga,
que se alastrou pela cidade, sai com o irmão menor, Fuinha, em busca de
emprego. Nada conseguindo nas casas, é finalmente encontrada por João
Grande e o Professor, que a levam para o trapiche. O narrador aproveita
para mostrar o código de honra dos meninos, pois enquanto alguns
querem violentá-la, o Professor, João Grande e, depois, Pedro Bala,
protegem-na. É a partir daí que ela se integra ao grupo, trazendo, com a
presença feminina, carinho para as crianças, e cumprindo o papel de mãe
que elas não tiveram:

     A função de Dora no romance está ligada, portanto, ao
amadurecimento do herói, ou seja, a menina colabora para que Pedro Bala
possa descobrir o amor, não mais como uma violência, mas como entrega
afetiva ao próximo. É a partir dessa descoberta, quando passa a ter a
estrela-Dora como guia, que ele começa a participar ativamente de
movimentos grevistas, como se verá na terceira parte do livro.



O Destino de cada um

     O narrador fecha o romance relatando o destino de cada membro do
grupo. O primeiro a ir embora do trapiche é o Professor, que estudará
pintura no Rio e se transformará num grande artista. Em seguida sai o
Pirulito, que se torna frade capuchinho. Boa-Vida, por sua vez, escolhe a
vida de malandro das ruas, Gato parte para Ilhéus e se torna vigarista e
jogador profissional, Volta Seca integra-se ao grupo de Lampião, e Sem-
Pernas morre em luta com a polícia. Para dar destaque ao destino das
personagens, o narrador, no capítulo “Notícias de jornal”, utiliza-se de um
expediente muito comum ao longo do livro: o relato indireto, por meio de
notícias. Assim, acompanhamos a trajetória de Professor, Gato, Boa-Vida e
Volta Seca.

     Do primeiro, sabemos que se tornou um pintor de sucesso, cuja
principal característica é a de fazer da obra de arte uma representação da
realidade que ele experimentou em vida:

    Gato, Boa-Vida e Volta Seca, por sua vez, acabam se envolvendo com
a polícia, como se Jorge Amado quisesse com isso acentuar a
marginalização final de algumas personagens, que jamais conseguem se
adaptar à vida em sociedade devido à falta de consciência. Volta Seca, por
exemplo, escolhe o caminho da vingança, matando indiscriminadamente
pelo sertão:

    Contudo, diferentes são os destinos de João Grande e Pedro Bala. O
primeiro torna-se marinheiro e embarca num navio. Já o segundo toma
consciência das injustiças sociais, luta ao lado dos grevistas, transforma-se
num “militante proletário” e passa a lutar contra as opressões, como se
poderá verificar no capítulo que fecha o livro, “Uma pátria e uma família”:



    Apesar da miséria dos meninos desamparados, da alienação de alguns
deles, o romance termina positivamente, pois Jorge Amado irá concentrar
em Pedro Bala toda sua crença na força do homem, em seu poder para
modificar o destino, por meio da luta, por meio da ação. Assim, acaba por
deixar clara a sua concepção de romance: um tipo de narrativa que se
presta a desalienar e a conscientizar o homem, não só lhe chamando a
atenção para as mazelas sociais, como também indicando-lhe o caminho
da redenção.



                             Gênero da Obra



     Até agora classificamos Capitães da areia como romance, porque a
obra apresenta algumas características bastante comuns ao gênero. E
quais seriam essas características? E. M. Forster assim trata um dos
aspectos fundamentais do romance: “a base de um romance é uma
estória, e a estória é uma narrativa de acontecimentos dispostos em
seqüência no tempo” (1969, p. 23). Se aceitarmos essa assertiva,
chegaremos à conclusão de que Capitães da areia é efetivamente um
romance, pois encontramos nele uma “estória” (a de cada criança em
particular e a do conjunto de crianças que vivem no trapiche abandonado)
que se desenvolve no tempo. Não é difícil notar que os meninos sofrem
uma transformação dentro da escala temporal: são pequenos no início da
obra e acabam se tornando adultos à medida que os dias, semanas, meses
e anos passam.

    Personagens

    As personagens num romance compreendem geralmente uma principal
e as secundárias e aquelas que funcionam apenas como pano de fundo. No
caso de Capitães da areia, logo de início descobrimos que Pedro Bala
será o herói de toda a narrativa, não só porque é o primeiro a ser
apresentando, mas também porque o narrador lhe acentua as naturais
características de chefe, de líder:
Além disso, ainda que não participe de todas as cenas, Pedro Bala irá se
constituir numa espécie de linha condutora de todo o romance, servindo,
assim, para dar unidade aos diversos quadros. Evidentemente, seu sucesso
final serve para coroar de maneira simbólica a busca de todas as crianças,
como se ele representasse, com sua vitória final, uma espécie de núcleo,
ao realizar os desejos, os sonhos dos indivíduos marginalizados da cidade.
Como coadjuvantes (ou personagens secundárias), encontramos João
Grande, Sem-Pernas, Pirulito, Professor, Boa-Vida, Gato, Barandão, Altino,
Volta Seca, padre José Pedro, Dora, Fuinha, Querido-de-Deus, João de
Adão etc., uns com maior, outros com menor importância dentro do
romance, de maneira que até seria possível pensar numa classificação, no
que diz respeito ao modo de atuar das personagens da narrativa. Como o
destaque é dado às crianças, as pessoas que vivem na cidade (burgueses,
padres, à exceção do padre José, policias etc.) terão participação menor no
enredo, mas ainda assim são fundamentais, porque ajudam na
caracterização do todo social.

     As personagens de Capitães da areia, quanto à sua concepção,
poderiam ser classificadas como planas, pois “são construídas ao redor de
uma única idéia ou qualidade”, segundo E. M. Forster (1969, p. 54). Com
efeito, as personagens criadas por Jorge Amado não nos causam surpresa
alguma ao longo do romance, porque têm uma ou duas características de
que as outras são decorrentes. Pedro Bala é valente e ativo e, em razão
disso, torna-se o líder do grupo, pautando todas as ações por essas
qualidades essenciais. Ele jamais oscila ou vacila – na realidade, esta
personagem representaria a concretização de uma virtude essencial que as
demais crianças trariam embrionária dentro de si, e que, ou não teriam
oportunidade de desenvolve-la, ou acabariam por fazê-lo num grau
inferior. É justamente por isso que Pedro Bala é a personagem principal.

   Quanto às demais personagens, na ordem em que aparecem, são
descritas de acordo com uma característica física, uma psicológica e com a
função que exercem no grupo. É o caso de João Grande, lugar-tenente de
Pedro Bala:



     Para acentuar o aspecto “plano” de suas personagens e dar-lhes a
categoria de tipos (veja no Glossário o verbete Personagem tipo), Jorge
Amado serve-se engenhosamente dos apelidos. Os meninos são
identificados pelo cognome extraído de uma qualidade ou de um defeito
físico ou psicológico. O narrador, portanto, acaba por se utilizar da figura
da metonímia, ou seja, a parte representando o todo, como se a qualidade
ou o defeito principal de cada personagem se estendesse e dominasse todo
o indivíduo, servindo-lhe de emblema e, em muitos casos, determinando-
lhe toda a ação. Pedro Bala tem esse apelido porque o pai morreu a tiro
nas ruas da cidade. A bala que ele carrega no nome é que estabelecerá a
ligação entre suas ações e as do pai, e que fará com que ele descubra, no
final do romance, o seu destino como autêntico líder. João Grande, por sua
vez, ganha o apelido devido à estatura, o Sem-Pernas, pelo defeito físico, o
Professor, por seu intelecto, o Gato, em razão de sua agilidade, e o Boa-
Vida, devido à preguiça, a malandragem.

    Mas os apelidos têm outra função, além de indicar, logo de início, o
modo de ser de cada personagem. Constituem como que uma distinção
pessoal dos membros do grupo em relação aos demais habitantes da
cidade. Não é difícil observar que enquanto todos os membros dos
Capitães da Areia são apelidados, as pessoas que não pertencem a eles,
com exceção do Querido-de-Deus, apenas possuem nomes próprios. Esse
fato serve para acentuar a idéia de que os Capitães da Areia formam um
grupo fechado, a que têm acesso somente aqueles a quem as crianças
respeitam e amam. O hábito de dar uma alcunha a um novo membro,
geralmente levado a termo pelo Sem-Pernas (“Logo que um novato
entrava para os Capitães da Areia formava uma idéia ruim de Sem-Pernas.
Porque ele logo botava um apelido, ria de um gesto, de uma frase do
novato.”) (p. 30), seria como um ritual iniciático, uma espécie de batismo
de fogo para a aceitação formal de todo o grupo.

    Fora isso, as personagens têm nomes muito comuns: José, João,
Pedro, Dalva etc., o que atesta a origem e condição humilde delas. Mas
entre todos os nomes, dois deles se destacam exatamente pela sua carga
simbólica: a de Pedro e o de Dora. O nome Pedro tem relação com pedra e
representa a fortaleza, o caráter consistente do herói. Dora, por usa vez,
lembra “dourado”, “ouro”, e tem relação metonímica com seus cabelos e
no próprio nome. Ela terá um papel fundamental na formação dos meninos
do trapiche, despertando neles os sentimentos, os afetos reprimidos. Pedro
Bala, por exemplo, terá sua fortaleza contaminada pela afetividade, pela
luminosidade de Dora. Somente por meio do amor é que terá oportunidade
de fazer nascer em si a consciência social.



   Quanto às demais personagens, ou são reconhecidos simplesmente
pela profissão que exercem (padre, polícia, bedel etc.), ou têm nomes
vulgares. Contudo, para algumas delas, o narrador utiliza-se de um
expediente muito comum que é o de identifica-las por meio de um objeto,
o emblema da riqueza, da prepotência etc. É o caso, por exemplo, de um
homem que bate no Professor e que é identificado pelo uso de um
sobretudo:

Espaço

   O espaço em Capitães da areia tem função capital, pois não só
determinará o comportamento das personagens, como também quase
chega a se constituir numa personagem, com vida própria. Como
determinante, divide-se em diferentes segmentos. O mais amplo deles
será obviamente a cidade da Bahia, com todos os seus recantos, limitada
pelo mar. Outros espaços poderiam ser considerados, como a cidade do
Rio de Janeiro, a cidade de Ilhéus e o sertão, contudo, têm eles valor
secundário, porque são apenas referidos pelo narrador (é para lá que vão o
Professor, o Gato e o Volta-Seca, respectivamente).

   Na cidade da Bahia, destaca-se de maneira evidente o trapiche, onde
moram as crianças. É nele que os meninos abandonados encontram abrigo
contra as intempéries e contra os inimigos. Situado na areia, junto ao mar,
constitui um espaço de ninguém, e o fato de ter servido no passado como
armazém e agora como o lar dos meninos de rua serve para ilustrar um
desvirtuamento de função e a condição de marginalidade das crianças. Isso
porque ele, ao mesmo tempo, pertence e não pertence à cidade que
parece querer evitar os desvalidos da sorte, condenando-os a viver num
espaço semidestruído, abandonado, que serve de pousada para ratos e
cães.

    Mas outro espaço é fundamental na composição do romance: a cidade
como um todo. Pelo fato de a obra ter como pano de fundo o cenário
urbano, ele se transforma num mistério e atiça o desejo de conquista das
crianças. Em outras palavras, a cidade emblematiza todos os sonhos e
desejos, por isso funciona como espaço físico e espaço psicológico dentro
de Capitães da areia.

   Enquanto espaço físico, a cidade se distribui nas mansões, malocas,
igrejas, cadeia, reformatório, orfanato, restaurantes, bares, lojas, docas,
locais que lembram as imensas atividades do cotidiano. Os bares, lojas,
restaurantes, igrejas, quando mostram sinais ostensivos de riqueza,
atiçam a cobiça dos Capitães da Areia. Enquanto espaço psicológico, a
cidade parece adquirir vida, hostiliza e ao mesmo tempo acolhe os que
vivem nela.

  Por fim, seria importante apontar a função social do espaço, bem visível
na divisão ostensiva da cidade em territórios demarcados. As diferenças de
classes sociais implicam, necessariamente, diferenças espaciais, pois
enquanto os ricos vivem no alto, os pobres confinam-se na parte baixa de
São Salvador. Assim, o narrador desvirtua, metonimicamente o sentido
dos adjetivos “alto” e “baixo”. Usualmente, tais adjetivos se referem a
espaço; contudo, no âmbito do romance, designam também classes sociais
distintas.

Tempo

  O tempo, relativamente extenso mas impreciso, compreende um retalho
da vida dos meninos, desde a infância até a maturidade. Contudo, o leitor
tem a oportunidade de conhecer com mais intensidade o tempo da
adolescência, já que o tempo da infância das crianças comparece por meio
de analepses (retorno ao passado), fórmula de que o narrador lança mão
para mostrar a formação delas e as razões do desamparado no presente.
Grosso modo, acompanhando-se a trajetória de Pedro Bala, a personagem
principal, poder-se-ia dizer que Capitães da areia tem como espaço de
tempo de três a quatro anos, suficientes para a transformação do menino
ladrão em líder proletário, engajado num movimento revolucionário.

    E como é que se desenrola esse tempo no romance? De maneira
cronológica, pois há nítida ordenação dos acontecimentos, numa seqüência
rigorosa de passado e presente. Os breves intervalos em que ocorrem as
analepses acabam por não perturbar a ordem temporal, porque o narrador
separa claramente os fatos presentes dos fatos pretéritos.



    Assim, são muito freqüentes as expressões referentes à noite, ao dia, à
passagem dos dias ou mesmo, no final do romance, à passagem dos anos:
“anos depois”, “no ano em que”, “passou o inverno, passou o verão”.
Geralmente, quando o narrador indica frações menores de tempo é porque
vai acabar montando uma cena dramática, ou seja, os acontecimentos
desenrolam-se com mais vagar, para que os atos das personagens sejam
examinados minuciosamente. Em conseqüência, o tempo se torna mais
elástico. Todavia, quando as frações de tempo são maiores, relativas a
anos, o narrador utiliza-se de uma visão panorâmica: o tempo passa muito
mais rápido. Nesses momentos, os fatos são resumidos ao máximo, e a
personagem aparece distanciada aos nossos olhos.

 Passou o inverno, passou o verão, veio outro inverno, e este foi cheio de
longas chuvas, o vento não deixou de correr uma só noite no areal. Agora
Pirulito vendia jornais, fazia trabalhos de engraxate, carregava bagagens
dos viajantes. [...] (p. 220)

    Embora o narrador desça até a personagem, ela acaba por ficar a
distância. O uso do verbo no imperfeito acentua o efeito panorâmico,
porquanto não sabemos de detalhes da vida da personagem, que poderiam
ser explicitados por intermédio dos diálogos, por exemplo.

    Um outro aspecto sobre o qual valeria refletir é o seguinte: as noites
predominam sobre os dias, como se as personagens vivessem uma
aventura noturna por excelência. Por que a predominância da noite? Em
primeiro lugar, porque a noite vai representar o momento de mistério, de
inspiração poética. Em segundo lugar, porque representa o momento
privilegiado em que os Capitães da Areia agem, em oposição ao dia claro,
quando os burgueses estão em plena atividade.

Foco narrativo

   Por foco narrativo se estende a perspectiva pela qual os fatos são
narrados, ou seja, num romance há sempre uma voz que conta a história,
e essa voz (que não deve ser confundida com a do autor, apesar de ser a
criação deste) pode chegar até o leitor de diferentes maneiras:



a) em primeira pessoa, identificada com a personagem principal;

b) em primeira pessoa, identificada com uma das personagens
secundárias;

c) em terceira pessoa, com o narrador se comportando como um
observador, narrando os fatos de fora, mas se permitindo comenta-los;

d) em terceira pessoa, com o narrador se comportando como observador,
narrando os fatos de fora, mas se permitindo comenta-los.

e) em terceira pessoa, com o narrador se permitindo a onisciência, ou
seja, narrando os fatos e fora e, ao mesmo tempo, de dentro, quando
penetra na interioridade das diferentes personagens.

   Outro recurso de que se serve Jorge Amado é o de fazer com que o
narrador principal ceda a voz a narradores secundários por meio de
personagens que contam os fatos, como neste trecho:

 Gato contou que a solteirona era cheia do dinheiro. Era a última de uma
família rica, andava pelos quarenta e cinco anos, feia e nervosa. Corria a
notícia de que tinha uma sala cheia de coisas de ouro, de brilhantes e jóias
acumuladas pela família através de gerações. [...] (p. 224)

Elementos temáticos

    Como na maioria dos romances urbanos de Jorge Amado, Capitães da
areia tem como núcleo a cidade da Bahia, com seus tipos inesquecíveis,
com seus heróis extraídos das classes menos favorecidas. Jorge Amado dá
destaque ao coletivo, procurando abarcar a história de uma comunidade,
mais especificamente a dos meninos abandonados. Mas o escritor explora
também uma aventura individual (ainda que interligada com a aventura
coletiva) e escolhe como centro de seu interesse a figura de Pedro Bala.

   Desse modo, é possível ler a obra dentro de suas vertentes temáticas.
A primeira diz respeito ao confronto entre classes sociais que se
antagonizam, levando a um desfecho mais ou menos previsível. De um
lado, temos os desprotegidos da sorte que se tornam senhores de um
espaço vazio, a areia em que dorme. Assim, o título do romance tem um
sentido metafórico: os meninos são capitães da areia, da terra devoluta,
em que se ergue o seu quartel-general, um trapiche abandonado. O fato
de eles viverem na orla do mar acentua ainda mais a sua marginalização e,
ao mesmo tempo, paradoxalmente, a posse da cidade, visto que dispõem
de ampla liberdade para percorre-la em todos os sentidos. O mesmo não
ocorre com os burgueses: fechados em suas mansões, vestidos em
grossos capotes, distanciam-se da natureza e tornam-se vítimas do próprio
sistema que criaram.

Elementos lingüísticos

   Jorge Amado pertence a uma geração de escritores comumente
conhecida como “regionalista”. A principal característica de estilo dessa
geração foi a de contrapor uma linguagem mais espontânea, coloquial,
popular, à linguagem rara, escolhida, herdeira dos vícios parnasianos e
representativa da classe social dominante.

    Jorge Amado não foge à regra: seu estilo prima pela espontaneidade,
que é atingida graças à fuga da sintaxe de origem portuguesa e à
imposição de uma sintaxe “brasileira”, por assim dizer. Capitães da areia
transforma-se assim num repositório de linguagens populares, pois o
escritor consegue registrar com maestria as falas de diferentes camadas
sociais, como se poderá verificar nos exemplos abaixo:

Companheiros, chegou a hora...

       A voz o chama. Uma voz que o alegra, que faz bater seu coração.
Ajudar a mudar o destino de todos os pobres. Uma voz que atravessa a
cidade, que parece vir dos atabaques que ressoam nas macumbas da
religião ilegal dos negros. Uma voz que vem com o ruído dos bondes, onde
vão os condutores e motorneiros grevistas. Uma voz que vem do cais, do
peito dos estivadores, de João de Adão, de seu pai morrendo num comício,
dos marinheiros dos navios, dos saveiristas e dos canoeiros. Uma voz que
vem do grupo que joga a luta da capoeira, que vem dos golpes que o
Querido-de-Deus aplica. Uma voz que vem mesmo do padre José Pedro,
padre pobre de olhos espantados diante do destino terrível dos Capitães da
Areia. Uma voz que vem das filhas-de-santo do candomblé de Don’Aninha,
na noite que a polícia levou Ogum. Voz que vem do trapiche dos Capitães
da Areia. Que vem do reformatório e do orfanato. Que vem do ódio do
Sem-Pernas se atirando do elevador para não se entregar: Que vem no
trem da Leste Brasileira, através do sertão, do grupo de Lampião pedindo
justiça para os sertanejos. Que vem de Alberto, o estudante pedindo
escolas e liberdade para a cultura. Que vem dos quadros de Professor,
onde meninos esfarrapados lutam naquela exposição da rua Chile. Que
vem de Boa-Vida e dos malandros da cidade, do bojo dos seus violões, dos
sambas tristes que eles cantam. Uma voz que vem de todos os pobres, do
peito de todos os pobres. Uma voz que diz uma palavra bonita de
solidariedade, de amizade: companheiro. [...] (p. 252-3)

     A palavra “voz” reiterada várias vezes no texto é que serve para fundir
diferentes consciências que integram o mundo de Pedro Bala. Para sugerir
uma sinfonia de vozes que chama a personagem para cumprir seu destino,
Jorge Amado serve-se da repetição do termo, mas procurando dar-lhe
diferentes inflexões. Esse recurso pode também conseguir um efeito
contrário ao da exaltação, servindo para reforçar uma idéia de
negatividade.

     As imagens poéticas sempre presentes evitam a simples e objetiva
descrição de um mero cenário, porque elas acabam por humaniza-lo. Com
o recurso do lírico, Jorge Amado consegue realizar a plena interação entre
o mundo das personagens e o espaço em que elas vivem. Com isto, ele
altera o sentido de propriedade: são os pobres, os deserdados da sorte que
possuem a cidade mágica da Bahia, porque só eles é que são capazes de
admirar sua beleza secreta, seus mistérios e responder à sua voz, ao passo
que, para as classes elevadas, a cidade não passa de um espaço físico, frio
e desumanizado, onde exercem seu falso domínio.

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Análise da estrutura narrativa de Capitães da Areia

  • 1. BY ALLENCAR RODRIGUEZ WWW.AVALLONCURSOS.BLOGSPOT.COM WWW.KATCAVERNUM.COM.BR WWW.TWITTER.COM/KATCAVERNUM ACQUIRESKILLS@IG.COM.BR Enredo de Capitães da Areia Capitães da areia (para as citações, foi usada a 83.ª edição da obra – Record, 1996 -, com ilustrações de Poty) pertence à primeira fase da obra de Jorge Amado, mas o cenário escolhido é o urbano. Centrando a ação na vida dos menores abandonados da cidade de Salvador, o escritor aproveita para mostrar as brutais diferenças de classe, e má distribuição de renda e os efeitos da marginalidade nas crianças e adolescentes discriminados por um sistema social perverso. Capitães da areia narra o cotidiano de pobres crianças que vivem num velho trapiche abandonado. Liderados por Pedro Bala, menino corajoso, filho de um grevista morto, entregam-se a pequenos furtos para sobreviver. A narrativa, de cunho realista, descreve o cotidiano do grupo e seus expedientes para arranjar alimento e dinheiro. Intercalando a narrativa com reportagens sobre o grupo dos “Capitães da Areia”, o romance supervaloriza a humanidade das crianças e ironiza a ganância , o egoísmo das classes dominantes. Conduzindo a história em função dos destinos individuais de cada participante do bando, Jorge Amado acaba por ilustrar,
  • 2. de um lado, a marginalização definitiva de uns (o Sem-Pernas e o Volta Seca, por exemplo), e, de outro, a tomada de consciência dos mais lúcidos (Pedro Bala). Quadros da Miséria Urbana Capitães da areia é diferente dos demais romances de Jorge Amado não apenas por causa da temática, mas também em virtude de sua estrutura sui generis. A rigor, podemos dizer que o romance não tem propriamente um enredo. É aí que reside sua modernidade, pois o autor rompe com a tradição do romance convencional, que supunha rigorosa organização dos fatos e relações de causa e efeito entre os eventos. Capitães da areia é montado por meio de quadros mais ou menos independentes, que registram as andanças das personagens pela cidade de Salvador. Mas não só: ao lado da narração propriamente dita, Jorge Amado intercala também notícias de jornal, bem como pequenas reflexões poéticas. A força da narrativa advém do enredo solto, maleável, que parece flutuar ao sabor das aventuras dos pequeninos heróis. De acordo com a teoria da literatura, há vários tipos de romance e os mais conhecidos são os de ação e de personagem. Capitães da areia parece pertencer ao segundo tipo, porque, mais do que desenrolar uma ação, privilegia a existência, a movimentação de diferentes tipos sociais. Dessa maneira, Jorge Amado monta uma galeria bastante ampla de figuras que irão compor o quadro social de uma comunidade. O fato de o escritor se prender às personagens e de montar os quadros soltos não implica, contudo, que o romance deixe de ter uma estrutura mais ou menos organizada. Pelo contrário, é possível perceber uma linha conduzida, ainda que de maneira tênue, por Pedro Bala, que organiza o grupo, determina-lhe a ação, graças à sua coragem e aos seus princípios, e que será uma das únicas personagens a fugir da alienação (juntamente com o Professor e Pirulito). Outro aspecto que chama a atenção, no que diz respeito à estruturação da narrativa, é a divisão em partes do romance. Ao todo, são três, subdivididas em capítulos ora mais longos, ora mais curtos, precedidas de um pequeno prólogo de caráter jornalístico. 1. Prólogo – “Cartas à Redação”: · reportagem publicada no Jornal da Tarde tratando do assalto das crianças à casa de um rico comerciante, num dos bairros mais aristocráticos da capital;
  • 3. · carta do secretário do chefe de polícia ao mesmo jornal, atribuindo a responsabilidade de coibir os furtos das crianças ao juiz de menores; · carta do juiz de menores defendendo-se da acusação de negligência; · carta da mãe de uma das crianças falando das condições miseráveis do reformatório; · carta do padre José Pedro referendando as acusações da mãe feitas ao reformatório; · carta do diretor do reformatório defendendo-se das acusações da mãe e do padre; · reportagem elogiosa do mesmo jornal ao reformatório. Jorge Amado utiliza o recurso do prólogo para criticar indiretamente os poderosos por meio da linguagem, examinada em diferentes níveis. Assim, a escrita redundante, grandiloqüente das autoridades contrasta com a da mulher do povo. Ao mesmo tempo, o tom da reportagem parece colaborar para a feição realista do romance, como se o narrador quisesse dar a impressão para o leitor de que o que vai contar é absolutamente verdadeiro. 2. 1.ª parte – “Sob a lua, num velho trapiche abandonado”, formada de onze capítulos: · essa parte constitui propriamente a apresentação do romance, na qual o leitor se depara com a biografia das principais personagens. 3. 2.ª parte – “Noite da grande paz, da grande paz dos teus olhos”, formada de oito capítulos: · essa parte trata mais especificamente da descoberta do amor por parte de Pedro Bala. 4. 3.ª parte – “Canção da Bahia, canção da liberdade”, formada de oito capítulos: · essa parte mostra o destino das personagens. O Trapiche Abandonado O romance inicia-se com a descrição do trapiche abandonado. No passado, recebia veleiros carregados. No presente da narrativa, é apenas uma construção abandonada, derruída, infestada de ratos, freqüentada por malandros e mendigos, quando os Capitães da Areia vêm tomar posse
  • 4. dele. Como não poderia deixar de ser, a primeira personagem a ser introduzida no romance é justamente a de Pedro Bala, o chefe do bando. Uma história de amor O primeiro capítulo da segunda parte do livro começa com a introdução de uma nova personagem, Dora. Perdendo os pais com a doença da bexiga, que se alastrou pela cidade, sai com o irmão menor, Fuinha, em busca de emprego. Nada conseguindo nas casas, é finalmente encontrada por João Grande e o Professor, que a levam para o trapiche. O narrador aproveita para mostrar o código de honra dos meninos, pois enquanto alguns querem violentá-la, o Professor, João Grande e, depois, Pedro Bala, protegem-na. É a partir daí que ela se integra ao grupo, trazendo, com a presença feminina, carinho para as crianças, e cumprindo o papel de mãe que elas não tiveram: A função de Dora no romance está ligada, portanto, ao amadurecimento do herói, ou seja, a menina colabora para que Pedro Bala possa descobrir o amor, não mais como uma violência, mas como entrega afetiva ao próximo. É a partir dessa descoberta, quando passa a ter a estrela-Dora como guia, que ele começa a participar ativamente de movimentos grevistas, como se verá na terceira parte do livro. O Destino de cada um O narrador fecha o romance relatando o destino de cada membro do grupo. O primeiro a ir embora do trapiche é o Professor, que estudará pintura no Rio e se transformará num grande artista. Em seguida sai o Pirulito, que se torna frade capuchinho. Boa-Vida, por sua vez, escolhe a vida de malandro das ruas, Gato parte para Ilhéus e se torna vigarista e jogador profissional, Volta Seca integra-se ao grupo de Lampião, e Sem- Pernas morre em luta com a polícia. Para dar destaque ao destino das personagens, o narrador, no capítulo “Notícias de jornal”, utiliza-se de um expediente muito comum ao longo do livro: o relato indireto, por meio de notícias. Assim, acompanhamos a trajetória de Professor, Gato, Boa-Vida e Volta Seca. Do primeiro, sabemos que se tornou um pintor de sucesso, cuja principal característica é a de fazer da obra de arte uma representação da realidade que ele experimentou em vida: Gato, Boa-Vida e Volta Seca, por sua vez, acabam se envolvendo com a polícia, como se Jorge Amado quisesse com isso acentuar a marginalização final de algumas personagens, que jamais conseguem se adaptar à vida em sociedade devido à falta de consciência. Volta Seca, por
  • 5. exemplo, escolhe o caminho da vingança, matando indiscriminadamente pelo sertão: Contudo, diferentes são os destinos de João Grande e Pedro Bala. O primeiro torna-se marinheiro e embarca num navio. Já o segundo toma consciência das injustiças sociais, luta ao lado dos grevistas, transforma-se num “militante proletário” e passa a lutar contra as opressões, como se poderá verificar no capítulo que fecha o livro, “Uma pátria e uma família”: Apesar da miséria dos meninos desamparados, da alienação de alguns deles, o romance termina positivamente, pois Jorge Amado irá concentrar em Pedro Bala toda sua crença na força do homem, em seu poder para modificar o destino, por meio da luta, por meio da ação. Assim, acaba por deixar clara a sua concepção de romance: um tipo de narrativa que se presta a desalienar e a conscientizar o homem, não só lhe chamando a atenção para as mazelas sociais, como também indicando-lhe o caminho da redenção. Gênero da Obra Até agora classificamos Capitães da areia como romance, porque a obra apresenta algumas características bastante comuns ao gênero. E quais seriam essas características? E. M. Forster assim trata um dos aspectos fundamentais do romance: “a base de um romance é uma estória, e a estória é uma narrativa de acontecimentos dispostos em seqüência no tempo” (1969, p. 23). Se aceitarmos essa assertiva, chegaremos à conclusão de que Capitães da areia é efetivamente um romance, pois encontramos nele uma “estória” (a de cada criança em particular e a do conjunto de crianças que vivem no trapiche abandonado) que se desenvolve no tempo. Não é difícil notar que os meninos sofrem uma transformação dentro da escala temporal: são pequenos no início da obra e acabam se tornando adultos à medida que os dias, semanas, meses e anos passam. Personagens As personagens num romance compreendem geralmente uma principal e as secundárias e aquelas que funcionam apenas como pano de fundo. No caso de Capitães da areia, logo de início descobrimos que Pedro Bala será o herói de toda a narrativa, não só porque é o primeiro a ser apresentando, mas também porque o narrador lhe acentua as naturais características de chefe, de líder:
  • 6. Além disso, ainda que não participe de todas as cenas, Pedro Bala irá se constituir numa espécie de linha condutora de todo o romance, servindo, assim, para dar unidade aos diversos quadros. Evidentemente, seu sucesso final serve para coroar de maneira simbólica a busca de todas as crianças, como se ele representasse, com sua vitória final, uma espécie de núcleo, ao realizar os desejos, os sonhos dos indivíduos marginalizados da cidade. Como coadjuvantes (ou personagens secundárias), encontramos João Grande, Sem-Pernas, Pirulito, Professor, Boa-Vida, Gato, Barandão, Altino, Volta Seca, padre José Pedro, Dora, Fuinha, Querido-de-Deus, João de Adão etc., uns com maior, outros com menor importância dentro do romance, de maneira que até seria possível pensar numa classificação, no que diz respeito ao modo de atuar das personagens da narrativa. Como o destaque é dado às crianças, as pessoas que vivem na cidade (burgueses, padres, à exceção do padre José, policias etc.) terão participação menor no enredo, mas ainda assim são fundamentais, porque ajudam na caracterização do todo social. As personagens de Capitães da areia, quanto à sua concepção, poderiam ser classificadas como planas, pois “são construídas ao redor de uma única idéia ou qualidade”, segundo E. M. Forster (1969, p. 54). Com efeito, as personagens criadas por Jorge Amado não nos causam surpresa alguma ao longo do romance, porque têm uma ou duas características de que as outras são decorrentes. Pedro Bala é valente e ativo e, em razão disso, torna-se o líder do grupo, pautando todas as ações por essas qualidades essenciais. Ele jamais oscila ou vacila – na realidade, esta personagem representaria a concretização de uma virtude essencial que as demais crianças trariam embrionária dentro de si, e que, ou não teriam oportunidade de desenvolve-la, ou acabariam por fazê-lo num grau inferior. É justamente por isso que Pedro Bala é a personagem principal. Quanto às demais personagens, na ordem em que aparecem, são descritas de acordo com uma característica física, uma psicológica e com a função que exercem no grupo. É o caso de João Grande, lugar-tenente de Pedro Bala: Para acentuar o aspecto “plano” de suas personagens e dar-lhes a categoria de tipos (veja no Glossário o verbete Personagem tipo), Jorge Amado serve-se engenhosamente dos apelidos. Os meninos são identificados pelo cognome extraído de uma qualidade ou de um defeito físico ou psicológico. O narrador, portanto, acaba por se utilizar da figura da metonímia, ou seja, a parte representando o todo, como se a qualidade ou o defeito principal de cada personagem se estendesse e dominasse todo o indivíduo, servindo-lhe de emblema e, em muitos casos, determinando- lhe toda a ação. Pedro Bala tem esse apelido porque o pai morreu a tiro nas ruas da cidade. A bala que ele carrega no nome é que estabelecerá a ligação entre suas ações e as do pai, e que fará com que ele descubra, no
  • 7. final do romance, o seu destino como autêntico líder. João Grande, por sua vez, ganha o apelido devido à estatura, o Sem-Pernas, pelo defeito físico, o Professor, por seu intelecto, o Gato, em razão de sua agilidade, e o Boa- Vida, devido à preguiça, a malandragem. Mas os apelidos têm outra função, além de indicar, logo de início, o modo de ser de cada personagem. Constituem como que uma distinção pessoal dos membros do grupo em relação aos demais habitantes da cidade. Não é difícil observar que enquanto todos os membros dos Capitães da Areia são apelidados, as pessoas que não pertencem a eles, com exceção do Querido-de-Deus, apenas possuem nomes próprios. Esse fato serve para acentuar a idéia de que os Capitães da Areia formam um grupo fechado, a que têm acesso somente aqueles a quem as crianças respeitam e amam. O hábito de dar uma alcunha a um novo membro, geralmente levado a termo pelo Sem-Pernas (“Logo que um novato entrava para os Capitães da Areia formava uma idéia ruim de Sem-Pernas. Porque ele logo botava um apelido, ria de um gesto, de uma frase do novato.”) (p. 30), seria como um ritual iniciático, uma espécie de batismo de fogo para a aceitação formal de todo o grupo. Fora isso, as personagens têm nomes muito comuns: José, João, Pedro, Dalva etc., o que atesta a origem e condição humilde delas. Mas entre todos os nomes, dois deles se destacam exatamente pela sua carga simbólica: a de Pedro e o de Dora. O nome Pedro tem relação com pedra e representa a fortaleza, o caráter consistente do herói. Dora, por usa vez, lembra “dourado”, “ouro”, e tem relação metonímica com seus cabelos e no próprio nome. Ela terá um papel fundamental na formação dos meninos do trapiche, despertando neles os sentimentos, os afetos reprimidos. Pedro Bala, por exemplo, terá sua fortaleza contaminada pela afetividade, pela luminosidade de Dora. Somente por meio do amor é que terá oportunidade de fazer nascer em si a consciência social. Quanto às demais personagens, ou são reconhecidos simplesmente pela profissão que exercem (padre, polícia, bedel etc.), ou têm nomes vulgares. Contudo, para algumas delas, o narrador utiliza-se de um expediente muito comum que é o de identifica-las por meio de um objeto, o emblema da riqueza, da prepotência etc. É o caso, por exemplo, de um homem que bate no Professor e que é identificado pelo uso de um sobretudo: Espaço O espaço em Capitães da areia tem função capital, pois não só determinará o comportamento das personagens, como também quase chega a se constituir numa personagem, com vida própria. Como determinante, divide-se em diferentes segmentos. O mais amplo deles
  • 8. será obviamente a cidade da Bahia, com todos os seus recantos, limitada pelo mar. Outros espaços poderiam ser considerados, como a cidade do Rio de Janeiro, a cidade de Ilhéus e o sertão, contudo, têm eles valor secundário, porque são apenas referidos pelo narrador (é para lá que vão o Professor, o Gato e o Volta-Seca, respectivamente). Na cidade da Bahia, destaca-se de maneira evidente o trapiche, onde moram as crianças. É nele que os meninos abandonados encontram abrigo contra as intempéries e contra os inimigos. Situado na areia, junto ao mar, constitui um espaço de ninguém, e o fato de ter servido no passado como armazém e agora como o lar dos meninos de rua serve para ilustrar um desvirtuamento de função e a condição de marginalidade das crianças. Isso porque ele, ao mesmo tempo, pertence e não pertence à cidade que parece querer evitar os desvalidos da sorte, condenando-os a viver num espaço semidestruído, abandonado, que serve de pousada para ratos e cães. Mas outro espaço é fundamental na composição do romance: a cidade como um todo. Pelo fato de a obra ter como pano de fundo o cenário urbano, ele se transforma num mistério e atiça o desejo de conquista das crianças. Em outras palavras, a cidade emblematiza todos os sonhos e desejos, por isso funciona como espaço físico e espaço psicológico dentro de Capitães da areia. Enquanto espaço físico, a cidade se distribui nas mansões, malocas, igrejas, cadeia, reformatório, orfanato, restaurantes, bares, lojas, docas, locais que lembram as imensas atividades do cotidiano. Os bares, lojas, restaurantes, igrejas, quando mostram sinais ostensivos de riqueza, atiçam a cobiça dos Capitães da Areia. Enquanto espaço psicológico, a cidade parece adquirir vida, hostiliza e ao mesmo tempo acolhe os que vivem nela. Por fim, seria importante apontar a função social do espaço, bem visível na divisão ostensiva da cidade em territórios demarcados. As diferenças de classes sociais implicam, necessariamente, diferenças espaciais, pois enquanto os ricos vivem no alto, os pobres confinam-se na parte baixa de São Salvador. Assim, o narrador desvirtua, metonimicamente o sentido dos adjetivos “alto” e “baixo”. Usualmente, tais adjetivos se referem a espaço; contudo, no âmbito do romance, designam também classes sociais distintas. Tempo O tempo, relativamente extenso mas impreciso, compreende um retalho da vida dos meninos, desde a infância até a maturidade. Contudo, o leitor tem a oportunidade de conhecer com mais intensidade o tempo da adolescência, já que o tempo da infância das crianças comparece por meio de analepses (retorno ao passado), fórmula de que o narrador lança mão
  • 9. para mostrar a formação delas e as razões do desamparado no presente. Grosso modo, acompanhando-se a trajetória de Pedro Bala, a personagem principal, poder-se-ia dizer que Capitães da areia tem como espaço de tempo de três a quatro anos, suficientes para a transformação do menino ladrão em líder proletário, engajado num movimento revolucionário. E como é que se desenrola esse tempo no romance? De maneira cronológica, pois há nítida ordenação dos acontecimentos, numa seqüência rigorosa de passado e presente. Os breves intervalos em que ocorrem as analepses acabam por não perturbar a ordem temporal, porque o narrador separa claramente os fatos presentes dos fatos pretéritos. Assim, são muito freqüentes as expressões referentes à noite, ao dia, à passagem dos dias ou mesmo, no final do romance, à passagem dos anos: “anos depois”, “no ano em que”, “passou o inverno, passou o verão”. Geralmente, quando o narrador indica frações menores de tempo é porque vai acabar montando uma cena dramática, ou seja, os acontecimentos desenrolam-se com mais vagar, para que os atos das personagens sejam examinados minuciosamente. Em conseqüência, o tempo se torna mais elástico. Todavia, quando as frações de tempo são maiores, relativas a anos, o narrador utiliza-se de uma visão panorâmica: o tempo passa muito mais rápido. Nesses momentos, os fatos são resumidos ao máximo, e a personagem aparece distanciada aos nossos olhos. Passou o inverno, passou o verão, veio outro inverno, e este foi cheio de longas chuvas, o vento não deixou de correr uma só noite no areal. Agora Pirulito vendia jornais, fazia trabalhos de engraxate, carregava bagagens dos viajantes. [...] (p. 220) Embora o narrador desça até a personagem, ela acaba por ficar a distância. O uso do verbo no imperfeito acentua o efeito panorâmico, porquanto não sabemos de detalhes da vida da personagem, que poderiam ser explicitados por intermédio dos diálogos, por exemplo. Um outro aspecto sobre o qual valeria refletir é o seguinte: as noites predominam sobre os dias, como se as personagens vivessem uma aventura noturna por excelência. Por que a predominância da noite? Em primeiro lugar, porque a noite vai representar o momento de mistério, de inspiração poética. Em segundo lugar, porque representa o momento privilegiado em que os Capitães da Areia agem, em oposição ao dia claro, quando os burgueses estão em plena atividade. Foco narrativo Por foco narrativo se estende a perspectiva pela qual os fatos são narrados, ou seja, num romance há sempre uma voz que conta a história,
  • 10. e essa voz (que não deve ser confundida com a do autor, apesar de ser a criação deste) pode chegar até o leitor de diferentes maneiras: a) em primeira pessoa, identificada com a personagem principal; b) em primeira pessoa, identificada com uma das personagens secundárias; c) em terceira pessoa, com o narrador se comportando como um observador, narrando os fatos de fora, mas se permitindo comenta-los; d) em terceira pessoa, com o narrador se comportando como observador, narrando os fatos de fora, mas se permitindo comenta-los. e) em terceira pessoa, com o narrador se permitindo a onisciência, ou seja, narrando os fatos e fora e, ao mesmo tempo, de dentro, quando penetra na interioridade das diferentes personagens. Outro recurso de que se serve Jorge Amado é o de fazer com que o narrador principal ceda a voz a narradores secundários por meio de personagens que contam os fatos, como neste trecho: Gato contou que a solteirona era cheia do dinheiro. Era a última de uma família rica, andava pelos quarenta e cinco anos, feia e nervosa. Corria a notícia de que tinha uma sala cheia de coisas de ouro, de brilhantes e jóias acumuladas pela família através de gerações. [...] (p. 224) Elementos temáticos Como na maioria dos romances urbanos de Jorge Amado, Capitães da areia tem como núcleo a cidade da Bahia, com seus tipos inesquecíveis, com seus heróis extraídos das classes menos favorecidas. Jorge Amado dá destaque ao coletivo, procurando abarcar a história de uma comunidade, mais especificamente a dos meninos abandonados. Mas o escritor explora também uma aventura individual (ainda que interligada com a aventura coletiva) e escolhe como centro de seu interesse a figura de Pedro Bala. Desse modo, é possível ler a obra dentro de suas vertentes temáticas. A primeira diz respeito ao confronto entre classes sociais que se antagonizam, levando a um desfecho mais ou menos previsível. De um lado, temos os desprotegidos da sorte que se tornam senhores de um espaço vazio, a areia em que dorme. Assim, o título do romance tem um sentido metafórico: os meninos são capitães da areia, da terra devoluta, em que se ergue o seu quartel-general, um trapiche abandonado. O fato de eles viverem na orla do mar acentua ainda mais a sua marginalização e, ao mesmo tempo, paradoxalmente, a posse da cidade, visto que dispõem de ampla liberdade para percorre-la em todos os sentidos. O mesmo não
  • 11. ocorre com os burgueses: fechados em suas mansões, vestidos em grossos capotes, distanciam-se da natureza e tornam-se vítimas do próprio sistema que criaram. Elementos lingüísticos Jorge Amado pertence a uma geração de escritores comumente conhecida como “regionalista”. A principal característica de estilo dessa geração foi a de contrapor uma linguagem mais espontânea, coloquial, popular, à linguagem rara, escolhida, herdeira dos vícios parnasianos e representativa da classe social dominante. Jorge Amado não foge à regra: seu estilo prima pela espontaneidade, que é atingida graças à fuga da sintaxe de origem portuguesa e à imposição de uma sintaxe “brasileira”, por assim dizer. Capitães da areia transforma-se assim num repositório de linguagens populares, pois o escritor consegue registrar com maestria as falas de diferentes camadas sociais, como se poderá verificar nos exemplos abaixo: Companheiros, chegou a hora... A voz o chama. Uma voz que o alegra, que faz bater seu coração. Ajudar a mudar o destino de todos os pobres. Uma voz que atravessa a cidade, que parece vir dos atabaques que ressoam nas macumbas da religião ilegal dos negros. Uma voz que vem com o ruído dos bondes, onde vão os condutores e motorneiros grevistas. Uma voz que vem do cais, do peito dos estivadores, de João de Adão, de seu pai morrendo num comício, dos marinheiros dos navios, dos saveiristas e dos canoeiros. Uma voz que vem do grupo que joga a luta da capoeira, que vem dos golpes que o Querido-de-Deus aplica. Uma voz que vem mesmo do padre José Pedro, padre pobre de olhos espantados diante do destino terrível dos Capitães da Areia. Uma voz que vem das filhas-de-santo do candomblé de Don’Aninha, na noite que a polícia levou Ogum. Voz que vem do trapiche dos Capitães da Areia. Que vem do reformatório e do orfanato. Que vem do ódio do Sem-Pernas se atirando do elevador para não se entregar: Que vem no trem da Leste Brasileira, através do sertão, do grupo de Lampião pedindo justiça para os sertanejos. Que vem de Alberto, o estudante pedindo escolas e liberdade para a cultura. Que vem dos quadros de Professor, onde meninos esfarrapados lutam naquela exposição da rua Chile. Que vem de Boa-Vida e dos malandros da cidade, do bojo dos seus violões, dos sambas tristes que eles cantam. Uma voz que vem de todos os pobres, do peito de todos os pobres. Uma voz que diz uma palavra bonita de solidariedade, de amizade: companheiro. [...] (p. 252-3) A palavra “voz” reiterada várias vezes no texto é que serve para fundir diferentes consciências que integram o mundo de Pedro Bala. Para sugerir uma sinfonia de vozes que chama a personagem para cumprir seu destino, Jorge Amado serve-se da repetição do termo, mas procurando dar-lhe
  • 12. diferentes inflexões. Esse recurso pode também conseguir um efeito contrário ao da exaltação, servindo para reforçar uma idéia de negatividade. As imagens poéticas sempre presentes evitam a simples e objetiva descrição de um mero cenário, porque elas acabam por humaniza-lo. Com o recurso do lírico, Jorge Amado consegue realizar a plena interação entre o mundo das personagens e o espaço em que elas vivem. Com isto, ele altera o sentido de propriedade: são os pobres, os deserdados da sorte que possuem a cidade mágica da Bahia, porque só eles é que são capazes de admirar sua beleza secreta, seus mistérios e responder à sua voz, ao passo que, para as classes elevadas, a cidade não passa de um espaço físico, frio e desumanizado, onde exercem seu falso domínio.