1. MULHER NEGRA E DEMOCRACIA
São muitas as teorias democráticas que buscam definir conceitualmente o sentido clássico e
o mais contemporâneo da democracia. Da compreensão mais restrita aos gozo de direitos políticos –
visto ainda especificamente como os direitos de votar e ser votado – ao exercício amplo de direitos
civis, políticos e sociais, econômicos e culturais, o fato é que a definição de democracia é um
construto permanente e mutável a cada dimensão apresentada da realidade.
Há bem pouco tempo, no Brasil, falavase em democracia ao ser estabelecido o voto direto
para representantes políticos e ao serem reconstruídas as instituições públicas com o fim do regime
ditatorial dos militares, ainda com a reorganização da sociedade civil através de associações civis de
caráter político, em defesa de direitos. Do mesmo modo, a liberdade de pensamento e de expressão
marcou o discurso sobre a democracia, em especial pelos meios de comunicação.
Mais recentemente, vimos possibilitando incluir – dentre a discussão teórica sobre
democracia – a inserção plena de grupos vulneráveis ou segmentos sociais excluídos no acesso a
direitos e no exercício da cidadania, também vista como conceito para além dos direitos de votar e
ser votado, fazer oposição e contestar politicamente o governo. Especificamente, necessitamos
pensar a democracia como um sistema político que, além de garantir a participação pública, a
contestação e a oposição, garantam plenamente a dignidade humana de todas as pessoas cidadãs
ou seja, possibilite o pleno acesso aos direitos econômicos, sociais, culturais e ambientais.
Por esse aspecto, percebemos como a consolidação da democracia em nosso Estado deverá,
fundamentalmente, reestruturar as relações que se baseiam em gênero e em raça, sob o risco da
democracia continuar a ser aquele sistema político para apenas uma parcela de nossa população.
Os derradeiros dados da Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílio – o PNAD de 2007 do
Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística, IBGE – é uma comprovação dessa assertiva. Eles
comprovam, mais uma vez, que o gozo de direitos sociais básicos têm impacto diferenciado entre
homens e mulheres, entre pessoas negras e pessoas brancas.
As questões de desemprego, ocupação, renda e escolaridade são um exemplo de que, no
Brasil, o ideal democrático ainda não alcançou as mulheres negras. Os números do PNAD 2007
demonstrou que a pirâmide social brasileira tem em seu topo os homens brancos, em seu meio as
mulheres brancas e os homens negros que revezam a posição a depender da variável, e, por fim, em
sua base, as mulheres negras, geralmente as últimas quanto ao gozo e exercício da cidadania.
Uma pequena exceção, que confirma a regra, é quanto à escolaridade. A escolaridade média,
em anos de estudo, é, no total da população brasileira, de 7,8 anos. Mas fazendo a gradação por
2. sexo e raça, encontramos que o maior abismo está entre as mulheres negras e as mulheres não
negras: enquanto estas têm uma média de 9,3 de anos de estudo, as negras têm apenas 7,2. É o
aspecto em que as mulheres nãonegras estão acima de todos os segmentos, inclusive dos homens
nãonegros, que têm 8,5 de média de escolaridade; as mulheres negras aqui estão um pouco acima
somente dos homens negros, que têm 7,0 de anos de estudo.
Nos demais índices, as mulheres negras sempre constituem o grupo social mais
vulnerabilizado, em contraste com o grupo mais beneficiado, o dos homens nãonegros. Enquanto a
taxa de desemprego entre os homens nãonegros é de 5,6%, para os homens negros de 7,1%, para as
mulheres nãonegras de 9,6%, para as mulheres negras essa taxa é de 12,5%. A diferença entre as
mulheres negras e os homens nãonegros é de, portanto, pouco mais que o dobro.
O rendimento médio também é um índice que ilustra as desigualdades de gênero e raça
também por aspecto, as mulheres nãonegras estão em melhor situação que os homens negros. Em
reais, o rendimento médio verificado pelo PNAD 2007 (dados de 2006) para os homens nãonegros
estava em R$1.344,3, para as mulheres nãonegras em R$905,5, para os homens negros R$688,6 e
para as mulheres negras R$499,4. A articulação das questões de gênero e raça fazem refletir o
cruzamento dos índices de escolaridade e de rendimento, com a contradição de que, apesar de terem
maior escolaridade em relação aos homens, as mulheres negras e nãonegras, também em relação a
eles dentro de seu grupo racial, têm menor rendimento.
Esses aspectos são dados que demonstram a complexidade de um pretenso sistema político
realmente democrático. Os movimentos sociais, principalmente de mulheres e articuladamente o de
mulheres negras, tratam da necessária radicalização da democracia, em que as desigualdades sociais
de gênero e raça, dentre outras, devam ser erradicadas para a vivência de relações sociais
eqüitativas e verdadeiramente justas.