A antropologia poética de Miguel Torga entre Orfeu e Job
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ENTRE ORFEU E JOB
A ANTROPOLOGIA POÉTICA DE MIGUEL TORGA
António Braz Teixeira
1. Um dos traços mais relevantemente individualizadores da reflexão filosófica
portuguesa da passada centúria foi, decerto, um renovadç conceito de razão que
atende às suas intrínsecas relações com as formas do não racional ou irracional
por excesso e não por defeito, como a sensação, a intuição sensível ou
espiritual, a memória, a imaginação e a crença e com as múltiplas faces da
experiência estética, ética e religiosa, o que lhe permitiu conferir, de novo,
dignidade especulativa às noções de enigma e de mistério, compreender o valor
sófico do mito e do símbolo e o mais fundo sentido do sagrado que num e
noutro se revelam, bem como as estreitas relações entre pensamento e palavra,
imagem e conceito.
Este movimento de diálogo e confluência entre filosofia e poesia registado no
plano especulativo teve paralela correspondência no domínio da criação
poética, dramática e romanesca, em figuras maiores da literatura portuguesa de
novecentos, como Raul Brandão, Teixeira de Pascoaes, Femando Pessoa, José
Régio, Miguel Torga ou Vergílio Ferreira, em cuja obra está centralmente
presente uma inquietação ou interrogação metafisica ou ontológica sobre o que
mais importa ao homem saber sobre o sentido do seu destino cósmico ou
transcendente, ainda quando as respostas que angustiada ou agonicamente
avançam sejam, ou pretendam ser, de sinal imanentista, naturalista ou niilista,
como acontece com os autores de Poemas Ibéricos e de Alegria Breve.
A simples consideração dos títulos das obras poéticas do autor que aqui nos
congrega revela, desde logo, por um lado, a referência explícita às duas
fundamentais matrizes da cultura ocidental - o monoteísmo judaico (O Outro
livro de Job, Penas do Purgatório) e o politeísmo helénico (Orfeu Rebelde) - e,
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por outro, uma central preocupação ou afirmação antropológica (Cântico do
Homem, Libertação, Câmara Ardente), ao mesmo tempo que os poemas de que
se compõem os diversos livros de versos de Torga e os que figuram nos 16
volumes do Diário, bem como as reflexões e anotações neles registadas
abundam em metáforas e imagens de quase obsessiva conotação bíblica, sendo
também muito frequentes as referências ao mundo clássico, não faltando
sequer, no volume de Odes, poemas especialmente dedicados a cada um dos
quatro elementos, a Orfeu, a Vénus, a Pã, a Diana e a Baco, aos quais se
encontra subjacente um como que panteísmo naturalista e imanentista,
solarmente vitalista.
Por outro lado, o haver o poeta trocado o seu nome civil de Afonso Rocha pelo
literário de Miguel Torga tem evidente sentido simbólico, já que o nome
próprio literário que adoptou não pode deixar de remeter para o Arcanjo São
Miguel, enquanto o apelido Torga, em vez do seu originário, de material e
pétreo significado, aponta para uma realidade humildemente vegetal, a um
tempo viva e enraizada no húmus telúrico, em quem se assumia como ser da
terra e homem natural, num "mundo em que nada é sozinho nem disperso" e "é
de terra toda a criatura". I
Uma outra anotação preliminar aqui se requer, para lembrar a diversa atitude
poética torguiana nos poemas que compõem os seus vários livros de versos e
nos que pontuam os volumes do Diário, pois, enquanto aqueles revestem, em
regra, um tom atormentadamente dramático e interrogativo ou afirmativamente
rebelde contra um Deus em que diz não acreditar ou no qual luta,
denodadamente, por não acreditar mas que, no seu mutismo e no seu silêncio,
obsessivamente o interpela, os que figuram na sua obra diarística têm, no geral,
um tom mais repousado e serenamente lírico, registando instantes fugazes,
vivências de calma ou até de feliz contemplação ou momentânea e luminosa
plenitude, constituindo apontamentos ora nostálgicos ou saudosos, ora quase
ingenuamente irónicos, ora até mesmo alegres.
2. Assumindo-se ou apresentando-se, a um tempo, como um outro Job e uma
nova encamação de Orfeu, em rebelião, um e outro, contra Deus e contra os
deuses, o poeta de Lamentação vê ou sente o seu nascimento, a separação do
ventre matemo como um desterro, como perda da inocência originária, como
início impiedoso da vida, feito agora de "terra e mais nada" 2, que o tomou "o
I Libertação, 1943, "Exortação" e "Encontro".
2 O Outro Livro de Job, 1936, "Romance".
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homem que se perdeu em todos os paraísos" 3 e que, por isso, não sabe fazer o
bem e faz o mal que não quer. 4 Esta a razão porque, para Torga, em toda a
angústia humana há uma sede eterna de "regresso ao paraíso", não no sentido
que Pascoaes lhe atribuíra, no seu longo poema de 1913, mas como esperança,
meramente humana e terrena, de um reencontro com a inocência infantil que,
no passado, habitou em cada um de nós. 5
Compreendendo-se como "Lázaro real que não vem nos Evangelhos mas é",
que disse não e se perdeu, que viu Deus e nunca acreditou 6, Torga confessa-se
"de ser Homem, de ser um anjo caído / do tal céu que Deus governa; / de ser
monstro saído do buraco mais fundo da caverna" 7, recusando-se a pedir perdão
de ser assim, pois, como diz, "sou tal e qual como vim / do teu celeste jardim /
para as selvas brutais da Natureza".
E, em tom de desafio, devolve a responsabilidade ao Criador, pela sua
imperfeita criação, proclamando:
"Não tenho culpa de a Obra
cair, por causa da Cobra,
das tuas mãos sem firmeza.
Não tenho culpa de nada!
Tivesses a mão fechada
Ou aberta doutra maneira ...
O que sou é o que serei,
Contra ti ou qualquer lei
Que não queira". 8
Job orgulhoso em rebelião contra o Deus em que não acredita, o poeta acusa-o
por o seu divino amor não ter "as humanas raízes naturais" 9, volvendo as suas
três lamentações em protesto feito de quase sacrílega soberba, protesto de um
novo Adão impiedosamente castigado por Deus por se recusar a trair a sua
condição de ser puramente natural, por haver dito que o céu divino só era seu
neste mundo, por causa do seu "sonho verdadeiro / de ser mais feliz assim:
3 Ob. cit., "Cantar de Amigo".
4 Idem, "Cântico",
5 Diário, vo1. IV, 1949, p. 89.
G Idem, "O Lázaro".
7 Idem, "Livro de Horas".
8 Idem, "Terceira Lamentação".
9 Idem, "Fábula do Servo de Deus".
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carregado de pecados I e de mim ..." 1O, por ser tão só "O Homem do Bem e do
Mal I que nunca pode valer I ao esqueleto descamado I que está no chão
desenhado I a apodrecer ..." 11
Filho de Adão e Eva, é, necessariamente, "de terra e treva I o seu destino", pelo
que a sua alma "apenas tem a pureza que o barro lhe permite". 12
Por seu turno, na sua veste de nova encarnação de Orfeu ou de novo Orfeu,
agora rebelde contra a ordem divina dos deuses e do mundo, Torga proclamará,
com igual veemência, que "emparedado'' em si, é contra si próprio que luta,
cantando "como quem usa I os versos em legítima defesa". 13
É por isso que, para este novo Orfeu, descer aos infernos, é descer em si
próprio, mas agora o seu "canto não perfura/o coração da morte,1 à procura da
sombra! dum amor perdido.! Agora é o repetido laceno/do próprio abismo que
o seduz.!É ele, embriaguez noctuma da vontade,! que (o) obriga a sair da
claridadel e a caminhar sem luz". E "ao entrar finalmente Ino reino tenebrosol
das (suas) trevas,1 quebra-se a lira,! cessa a melodia". E conclui o poeta:
"E um medo triste, de vergonha e assombro,
gela-me o sangue, rio sem nascente,
onde o céu, lá do alto, se reflecte,
inútil como a paz que me promete". 14
Assim, para um Orfeu que desce ao inferno interior de si próprio, da Eurídice
buscada, o que os deuses imortais podem dar-lhe é, unicamente, a "sombra dum
sonho que a amada já não vivia" pelo que esta, "em vez de iluminar, enegrecia"
cada um dos seus versos.
E ao fitar as "luzes mortas" dos olhos de Euridice, o novo Orfeu apenas vê
abertas as portas da sua perdição, em que
"Todos os condenados,
libertados
no momento supremo do (seu) canto,
regressaram ao pranto
da condenação.
10 Idem, "Primeira Lamentação".
11 Idem, "Segunda Lamentação".
12 Orfeu Rebelde, 1958, "Barreira" e "Miradoiro".
13 Idem, "Orfeu Rebelde", "Emparedamento" e "Guerra Civil".
14 Idem, "Descida aos Infernos".
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e
(Ele) próprio ia ter sede
e fome, eternamente,
(e) recebia,
no espírito e na carne,
o beijo enraivecido
das Iras,
que não perdoam a nenhum mortal
as divinas mentiras
que o amor desmascara, por seu mal." 15
Mas o poeta não se dá por vencido nem desiste de lutar e, embora feiticeiro sem
deuses, que reconhece os limites dos seus encantamentos 16, proclama:
"o destino destina,
o resto é comigo" 17
Pois, se é verdade que o tempo sacrifica o homem a um deus desconhecido 18,
"temos nas nossas mãos/ o terrível poder de recusar". 19
3. A temporalidade e a liberdade, que aqui se reivindicam como atributos
essenciais do homem, constituem noções centrais da antropologia que, sob
forma poética, subjaz a toda a obra torguiana, com especial destaque para a sua
poesia e para as reflexões e anotações que abundantemente afloraram no seu
Diário, ao longo dos mais de 60 anos de vida que ali se contêm, depurados pelo
sofrimento, pela angústia, pela corajosa rebeldia e pela assumida solidão.
No seu como que neo-paganismo telúrico e erótico ou no que designou,
ironicamente, por "politeísmo sortido" 20, para o qual "os deuses são mortais e
de barro" 21, embora os mitos que deles falam, apesar de serem criações
humanas, contenham verdades eternas 22, "não há paraísos nem purgatórios" 23,
5 Idem, "Eurídice".
6 Idem, "Exame".
7 Idem, "Prelúdio".
8 Idem, "Chicotada".
9 Idem, "Flor de Liberdade".
20 Diário, vol. UI, 1946, p. 160.
2 Ninil Sibi, 1948, "Cântico de Humanidade".
22 Diário, vol. XV, 1990, p. 185.
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pois a "condição do mundo é ser do mundo, é ser do tempo e ser no tempo
fundo" 24, mas de um tempo que não é circular mas sempre novo, pois "nada no
mundo se repete, nenhuma hora é igual à que passou". 25
Assim, como ser puramente terreno e natural, o homem, ser sem divindade,
está sujeito à fugacidade do tempo, sendo, por isso, a temporalidade um dos
atributos primeiros da sua condição, advertindo, contudo, o poeta que o mal
não provém do tempo ou da temporalidade mas é inerente a essa mesma
condição. 26
Por sua vez, a afirmação radical da liberdade como atributo definidor do
homem, levava o poeta de Penas do Purgatório a fazer sua a tese sartriana de
que "a existência precede a essência", pelo que cada homem apenas sozinho se
pode salvar ou perder, dado só ele ser responsável pelos seus passos, estando
exclusivamente nas suas mãos a grandeza ou a pequenez do seu destino e sendo
cada um o único culpado do que é. 27
Admitindo, embora, que "a natureza humana é igual em toda aparte", 28 e que
os homens são todos irmãos 29, Torga não deixava de afirmar a solidão radical
do homem e a realidade individual de cada um, pois, para ele, "o homem ou é
um individuo ou nada é" 30.
Em termos absolutos, o homem aparecia-lhe como um "valor imponderável,
inteiro e perfeito", reconhecendo, porém, que, no plano social, não é mais do
que o modo por que os semelhantes o consideram, a ponto de afirmar que o
homem "morre para se etemizar na saudade ou na repulsa dos seus
contemporâneos". 31
Ao procurar situar o homem no mundo da natureza, convicto de que, apesar de
a natureza humana fazer parte da restante natureza ("a natureza humana faz
parte da outra, mas às vezes casa-se mal com ela", escreveu ele, em 1959) 32, o
ser humano apresenta nela inegável individualidade, o poeta, no seu essencial
23 Libertação, "A voz".
24 Idem, "Renovo".
25 Idem, "Perenidade".
26 Diário, voI. XV, 152.
27 Diário, voI. IV, p. 179 e voI. VIII, 1959, p. 65.
28 Diário, voI. III, 1946, p. 114.
29 Nihil Sibi, "Cântico Gradual",
30 Diário, vol. I, 1941, pp. 46-47 e vol. IV, p. 38
31 Diário, vol. I, p. 183 e voI. XV, p. 58.
32 Diário, vol. VIII, 1959, p. 19l.
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vitalismo, não hesita em considerar que o mundo próprio do homem é o mundo
da vida, no qual, no entanto, se distingue por certos atributos ou faculdades.
Se, como pensava, a vida tem como sua grande força a unidade e nela tudo tem
justificação 33, não deixava de advertir, coerente com o seu radical naturalismo,
que a verdadeira criação da vida começa, "não com Deus a tocar Adão com o
seu dedo divino", mas com o mesmo Adão, i.e., o homem natural, "a descrever
os espinhos da sua luta fora do paraíso". 34
Neste reino principial da vida e da natureza, o homem distingue-se por um
conjunto singular de atributos, que o poeta vai enumerando ao longo dos seus
textos tanto poéticos como diarísticos.
Assim, enquanto em Cântico do Homem, o caracteriza com "um bípede com
fala e sentimentos" 35, no Diário, mais de uma vez o define como "animal de
memória 36, não deixando, igualmente, de caracterizar ou valorar as outras
faculdades humanas.
Se bem que, o fundamental erotismo que sustenta toda a sua visão do mundo o
leve a afirmar que "a inteligência do mundo é apenas clarividência dos
sentidos" 37, não deixa de atribuir à razão a faculdade de ser a única consciência
do mundo e princípio e fim de si mesma 38, o que, contudo, não o impede de
reconhecer as suas limitações. Qualificando-a como a mais presunçosa e a
menos fecunda das nossas faculdades, por desprovida da capacidade de
imaginar e da força de transgredir, adita que, enquanto a intuição nunca o
enganou, a razão muitas vezes o conduziu ao erro 39, pelo que, apesar da sua
primazia enquanto consciência, é frágil e limitada como o próprio homem.
Já a vontade se lhe apresentava como "o mais apaixonante enigma da natureza
humana", por ser força obscura que supera a razão e o próprio instinto e ter,
como nenhuma outra faculdade, a capacidade de levar a todas as "transgressões
inovadoras que o homem comete". 40
Era na sua definição do homem como "animal de memória" que Torga fundava
o seu modo de ver ou compreender o enigma ou mistério da morte.
33 Diário, vol. I, pp. 54 e 83.
34 Idem, vol. V, 1951, p. 156.
35 Cântico do Homem, 1950, "Inventário".
36 Diário, vol. VI, 1953, p. 68 e vol. VIII, pp. 64 e 127.
37 Diário, vol. XV, p. 117.
38 Diário, vol. IV, p. 136.
39 Diário, vol. XIV, 1982, p. 129 e vol. XV, p. 165.
40 Diário, vol. XIV, p. 107.
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Porque considerava que o homem é um ser que nasce para morrer, pois nele a
vida é, irremediavelmente, "um dom provisório", e que em cada um de nós há
um mistério da encarnação, mas imanente e que, por isso, no fim, é o nada que
nos espera, pelo que a salvação é apenas terrena, Torga não deixava de
considerar a morte como "um escândalo sem remissão", contra o qual
protestava a sua natureza fundamentalmente religiosa, sedenta de transcendente
- termo que esclarecia entender como "uma viva e activa união com a própria
essência da matéria" - e, como a de Unamuno e Raul Brandão, devorada por
uma ardente "fome de eternidade". 41
Sustentando que "morrer é perder a memória" própria e ser esquecido pelos
outros - e daí o sentido e valor da saudade como forma de permanência e
transitória e fugaz eternidade e imortalidade - o poeta, quando a sua própria
morte se avizinhava, via-a como a "renúncia definitiva do corpo e a expectação
eterna da alma" 42, notando que se reveste de "uma dignidade que envergonha a
vida", já que, nela, o homem atinge uma dimensão sobrenatural e "o corpo
como que se transfigura na estátua jacente da alma". 43
Março-Abril 2007
41 Diário, vol. IX, 1964, pp. 95 e 156, vol. X, 1968, p. 151, vaI.XIII, 1983, p. 131, vol. XV, pp. 58, 107 e 182 e
vol. XVI, 1993, p. 185.
42 Diário, vol, XVI, p. 73.
43 Diário, vol. XV, p. 111.