O documento descreve o processo de internacionalização dos direitos humanos no século XX após as duas guerras mundiais. Os horrores destes conflitos levaram à criação da ONU em 1945 e da Declaração Universal dos Direitos Humanos em 1948, que estabeleceram os direitos humanos como assunto de interesse global ao invés de domínio exclusivo dos Estados. O documento também discute a necessidade de instrumentos juridicamente vinculantes para garantir a proteção internacional destes direitos.
Direitos Humanos e Respostas Internacionais a Violações
1. 1
CENTRO UNIVERSITÁRIO DE BELO HORIZONTE
UNI-BH
Monografia de Graduação em Relações Internacionais
OS DIREITOS HUMANOS NAS
RELAÇÕES INTERNACIONAIS:
SEU PROCESSO DE
INTERNACIONALIZAÇÃO, A CORRENTE
UNIVERSALISTA E AS RESPOSTAS DOS
PRINCIPAIS ATORES INTERNACIONAIS A
EMERGÊNCIAS HUMANITÁRIAS
Aryane Amaral Figueiredo
Belo Horizonte
2007
2. 2
Aryane Amaral Figueiredo
OS DIREITOS HUMANOS NAS RELAÇÕES
INTERNACIONAIS:
SEU PROCESSO DE INTERNACIONALIZAÇÃO, A
CORRENTE UNIVERSALISTA E AS RESPOSTAS DOS
PRINCIPAIS ATORES INTERNACIONAIS A EMERGÊNCIAS
HUMANITÁRIAS
Dissertação apresentada ao Curso de Graduação em
Relações Internacionais do Centro Universitário de Belo
Horizonte como requisito à obtenção do bacharelado em
Relações Internacionais.
Área de concentração: Direitos Humanos
Orientador: Professor Leonardo Estrela Borges
Belo Horizonte
2007
3. 3
Centro Universitário de Belo Horizonte – UNI-BH
Departamento de Ciências Jurídicas, Políticas e Gerenciais
Programa de Graduação em Relações Internacionais
Monografia intitulada “Os Direitos Humanos nas Relações Internacionais: Seu Processo de
Internacionalização, a Corrente Universalista e as Respostas dos Principais Atores
Internacionais em Emergências Humanitárias”, de autoria da graduanda Aryane Amaral
Figueiredo, aprovada pela banca examinadora constituída pelos seguintes professores:
___________________________________________________
Professor Leonardo Estrela Borges – UNI-BH– Orientador
________________________________________________
Professor Alexandre César Cunha Leite – UNI-BH
________________________________________________
Professor Leandro de Alencar Rangel – UNI-BH
Belo Horizonte, 06 de Agosto de 2007
4. 4
“O que mais me preocupa não é o grito dos violentos. É o silêncio dos bons."
Martin Luther King
"An eye for an eye, and the whole world goes blind".
Mahatma Ghandi
5. 5
SUMÁRIO
INTRODUÇÃO ........................................................................................................... 06
1. INTERNACIONALIZAÇÃO DOS DIREITOS HUMANOS ............................. 08
2. PROTEÇÃO INTERNACIONAL DOS DIREITOS HUMANOS – A 16
TEORIA UNIVERSALISTA .....................................................................................
3. O PAPEL DOS ATORES INTERNACIONAIS NA PROTEÇÃO DOS 24
DIREITOS HUMANOS .............................................................................................
3.1. Assistências Humanitárias .................................................................................. 28
3.2. Peacekeeping ......................................................................................................... 36
3.2.1. Somália ............................................................................................................... 38
3.2.2. Ruanda ............................................................................................................... 41
3.3. Intervenções Humanitárias ................................................................................. 48
4. CONSIDERAÇÕES FINAIS ................................................................................. 57
NOTAS ......................................................................................................................... 58
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS ...................................................................... 65
6. 6
INTRODUÇÃO
O século XX foi marcado por inúmeros avanços, tanto na ciência como nas relações
internacionais. Os horrores das guerras mundiais serviram como um alerta global para o poder
destrutivo do ser humano evidenciando a necessidade de se repensar o conceito de guerra. A I
Guerra Mundial deu início a um processo restritivo do direito à agressão armada que
culminaria com a assinatura do Pacto de Briand-Kellog, proibindo o recurso à guerra para a
obtenção de fins políticos. A Liga das Nações também foi fruto desse período e deveria
funcionar como monitora da paz internacional. Apesar de seu fracasso, o precedente criado
por ela foi de grande importância para a criação de sua sucessora: a Organização das Nações
Unidas (ONU).
A dimensões globais da II Guerra Mundial, ainda mais mortal do que a anterior, e a
descoberta dos campos de extermínio nazistas abriram caminho para a internacionalização dos
direitos humanos. A ONU foi criada em 1945, através da assinatura da Carta das Nações
Unidas, com o objetivo de manter a paz e a segurança internacionais. Em 1948 foi assinada a
Declaração Universal dos Direitos Humanos, que instituía a universalidade destes direitos. O
primeiro capítulo deste trabalho aborda o processo de internacionalização dos direitos
humanos e os documentos internacionais referentes à sua proteção.
O segundo capítulo discute a complicada relação entre as correntes universalista e relativista.
A primeira insiste na qualidade universal destes direitos que não devem ser negados com base
em diferenças culturais, sociais e/ou econômicas Já a segunda corrente argumenta que os
direitos humanos são uma imposição ocidental e que valores culturais devem se sobrepor a
esses direitos, mesmo que constituam, claramente, uma agressão à dignidade da pessoa
humana. Apesar de, juridicamente, o universalismo dos direitos humanos já esteja
consagrado, o assunto ainda gera controvérsia e dificulta a implementação dos mecanismos
internacionais de proteção aos mesmos.
Finalmente, o terceiro capítulo aborda a relação entre os direitos humanos e o Direito
Internacional Humanitário e descreve as diversas reações internacionais frente a violações
maciças dos direitos humanos, como assassinatos em massa, limpeza étnica e/ou genocídio.
Primeiramente, os atores internacionais podem responder a essas emergências através de
7. 7
assistências humanitárias, formadas por organizações humanitárias – podendo ser não-
governamentais, ligadas à ONU, etc. – que não necessitam da aprovação dos Estados em
questão e têm como objetivo atender às vítimas de emergências humanitárias, causadas por
conflitos armados ou desastres naturais.
Em segundo lugar, a ONU, através do Conselho de Segurança, pode aprovar o envio de tropas
de manutenção da paz (peacekeeping) para regiões em conflito, com o intuito de assegurar o
retorno à paz. Essas operações necessitam do consentimento dos Estados envolvidos no
conflito e não têm autorização para fazer uso de força armada, exceto em legítima defesa.
Em último caso, somente em situações extraordinárias, o Conselho de Segurança pode
autorizar a mobilização de tropas para intervir militarmente em países onde os direitos
humanos estão sendo constante e gravemente violados. As intervenções humanitárias
possuem caráter coercitivo e são autorizadas a utilizar a força para conter as hostilidades e
garantir a estabilidade nestas regiões.
Os objetivos gerais desta pesquisa se assentam na crescente relevância dos direitos humanos
nas relações internacionais atuais, em seus mais paradoxais contextos. Os objetivos
específicos se baseiam na descrição, tanto dos seus mecanismos de proteção dos direitos
humanos quanto dos principais argumentos contrários a eles, analisando as diversas respostas
do sistema internacional a graves violações destes direitos.
É importante ressaltar as dificuldades de implementação de qualquer uma das operações
citadas e mesmo quando estas dificuldades são superadas os resultados são freqüentemente
decepcionantes. Ainda assim, a resposta internacional em situações de crises humanitárias
constitui um importante avanço no sistema de proteção dos direitos humanos nas relações
internacionais.
8. 8
1. INTERNACIONALIZAÇÃO DOS DIREITOS HUMANOS
O século XX foi palco dos dois mais sangrentos e mortais conflitos já vistos em toda História
da Humanidade1. Embora as relações entre os membros do Sistema Internacional sempre
foram marcadas por grande insegurança, as duas Guerras Mundiais demonstraram a
capacidade destrutiva do ser humano. As inovações tecnológica2 introduzidas durante o
conflito de 1914-18, chocaram o mundo pelos altos níveis de mortalidade infligidos não
somente aos exércitos combatentes, mas à população civil em geral3. Apesar das milhões de
vítimas da I Grande Guerra, o mundo ainda presenciaria um horror de dimensões ainda mais
abrangentes e indiscriminadas com a explosão da II Guerra Mundial, em 1939. Hobsbawm
(1994/2002, p. 30) observa pertinentemente:
A Humanidade sobreviveu. Contudo, o grande edifício da civilização do século XX
desmoronou nas chamas da guerra mundial, quando suas colunas ruíram. Não há
como prever o breve século XX sem ela. Ele foi marcado pela guerra. Viveu e
pensou em termos de guerra mundial, mesmo quando os canhões se calavam e as
bombas não explodiam.
Não é interesse desse trabalho se aprofundar nas condições que propiciaram esses
acontecimentos, mas faz-se importante demonstrar que as guerras mundiais do século XX,
mais especificamente, a II Guerra Mundial, contribuíram significativamente para a edificação
do conceito de direitos humanos e construção de mecanismos eficazes para sua proteção,
fortalecendo a idéia de que tais direitos não devem mais ficar circunscritos ao domínio
reservado do Estado4 abrindo assim, caminho para a internacionalização dos mesmos, ou seja,
os direitos humanos devem ser protegidos globalmente5.
A noção de direitos inerentes à pessoa humana encontra expressão, ao longo da
história, em regiões e épocas distintas. A formulação jurídica desta noção, no plano
internacional, é, no entanto, historicamente recente, articulando-se nos últimos
cinqüenta e cinco anos, mormente a partir da Declaração Universal dos Direitos
Humanos de 1948. As raízes do que hoje entendemos por proteção internacional dos
direitos humanos remontam, contudo, a movimentos sociais e políticos, correntes
filosóficas, e doutrinas jurídicas distintos, que floresceram ao longo de vários
séculos em diferentes regiões do mundo. (TRINDADE, 1997/2003, p.33).
9. 9
Ao fim da II Guerra, o mundo tomou conhecimento dos horrores perpetuados pelo regime
nazista, principalmente com a descoberta de campos de extermínio, nos quais, calcula-se,
milhões de pessoas foram mortas6. Assim, de acordo com Flávia Piovesan (1997, p. 140).
No momento em que os seres humanos se tornam supérfluos e descartáveis, no
momento em que vige a lógica da destruição, em que cruelmente se abole o valor da
pessoa humana, torna-se necessária a reconstrução dos direitos humanos, como
paradigma ético capaz de restaurar a lógica do razoável.
A sociedade internacional não estava disposta a permitir que tamanha barbárie se repetisse, o
que impulsionou a criação da Organização das Nações Unidas (ONU), em 1945. Inspirada na
antecessora Liga das Nações (idealizada após a I Guerra pelo então presidente norte-
americano Woodrow Wilson, esta nunca chegou a ter um papel eficiente na promoção da paz
mundial, caindo em descrédito poucos anos depois). Ironicamente, a ausência dos EUA foi
um fator determinante no fracasso da Liga das Nações, o que levaria posteriormente à criação
do assento permanente no Conselho de Segurança a fim de assegurar a participação das
grandes potências na ONU. Esta, por sua vez, pretende regular as relações entre os Estados de
modo a estabelecer e/ou fortalecer relações pacíficas e cooperativas, incentivar o
desenvolvimento dos povos e a proteção dos direitos humanos e, principalmente visa à
manutenção da paz mundial, como anunciada no preâmbulo de sua Carta:
NÓS, POVOS DAS NAÇÕES UNIDAS, DECIDIDOS:
A preservar as gerações vindouras do flagelo da guerra que por duas vezes, no
espaço de uma vida humana, trouxe sofrimentos indizíveis à humanidade;
A reafirmar nossa fé nos direitos fundamentais do homem, na dignidade e no valor
da pessoa humana, na igualdade de direitos dos homens e das mulheres, assim como
das nações, grandes e pequenas;
A estabelecer as condições necessárias à manutenção da justiça e do respeito às
obrigações decorrentes de tratados e de outras fontes do direito internacional;
A promover o progresso social e melhores condições de vida dentro de um conceito
mais amplo de liberdade...
E continua:
10. 10
Artigo 1
1. Manter a paz e a segurança internacionais e, para esse fim: tomar, coletivamente,
medidas efetivas para evitar ameaças à paz e reprimir os atos de agressão ou outra
qualquer ruptura da paz e chegar, por meios pacíficos e de conformidade com os
princípios da justiça e do direito internacional, a um ajuste ou solução das
controvérsias ou situações que possam levar a uma perturbação da paz;
Artigo 2
4. Todos os Membros deverão evitar em suas relações internacionais a ameaça ou o
uso da força contra a integridade territorial ou a dependência política de qualquer
Estado, ou qualquer outra ação incompatível com os Propósitos das Nações Unidas.
A proteção dos direitos humanos, retirada agora do âmbito estritamente estatal, originou a
criação da Declaração Universal dos Direitos Humanos, em 1948, como texto adicional à
Carta concernente as definições do que seriam de fato esses direitos. Assinada por 48 Estados7
e com oito abstenções8, essa declaração estabelece o caráter universal dos direitos humanos,
que constituiriam motivo de preocupação de toda a comunidade internacional, não mais
permanecendo circunscritos aos limites da Soberania dos Estados.
Apesar de ser um documento que estabelece uma conduta ética universal, a Declaração não
possui força jurídica vinculante, ou seja, não dispõe de caráter coercitivo, sendo caracterizada
- assim como todos os documentos aprovados pela Assembléia Geral - como soft law, ou,
normas que apresentam um caráter recomendatório para futuras ações dos Estados. Logo,
levantou-se a questão a respeito da necessidade de se produzir um documento juridicamente
obrigatório, sob forma de tratado internacional, para garantir a proteção dos direitos humanos.
Sendo assim, em 1966 os Estados aprovaram, não sem controvérsias, o Pacto Internacional
dos Direitos Civis e Políticos e o Pacto Internacional dos Direitos Econômicos, Sociais e
Culturais, entrando em vigor dez anos depois. Tais pactos significam um mecanismo de
controle das violações dos direitos humanos, implementando, agora de forma compulsória, a
Declaração Universal.
Como afirma Piovesan (1997, p. 176):
Esse processo de “juridicização” da Declaração começou em 1949 e foi concluído
apenas em 1966, com a elaboração de dois tratados internacionais distintos – o Pacto
Internacional dos Direitos Civis e Políticos e o Pacto Internacional dos Direitos
Econômicos, Sociais e Culturais – que passavam a incorporar os direitos constantes
11. 11
da Declaração Universal. Ao transformar os dispositivos da Declaração em
previsões juridicamente vinculantes e obrigatórias, esses dois Pactos Internacionais
constituem referência necessária para o exame do regime normativo de proteção
internacional dos direitos humanos.
A existência de dois Pactos distintos não deve ser interpretada como uma forma de
“hierarquia valorativa”9 dos direitos humanos, e sim como um meio de enfatizar mais
detalhadamente os preceitos contidos em ambos:
Inobstante a elaboração de dois Pactos diversos, a indivisibilidade e unidade dos
direitos humanos era reafirmada pela ONU, sob a fundamentação de que, sem
direitos sociais, econômicos e culturais, os direitos civis e políticos só poderiam
existir no plano nominal e, por sua vez, sem direitos civis e políticos, os direitos
sociais, econômicos e culturais apenas existiriam no plano formal. (PIOVESAN,
1997, p. 178-179)
O Pacto Internacional dos Direitos Civis e Políticos10 estabelecia que tais direitos eram de
aplicação imediata por parte dos Estados, ficando estes obrigados a produzir relatórios anuais
sobre as medidas implantadas para proteger e implementar esses direitos. Tais relatórios eram
enviados ao Comitê de Direitos Humanos, principal órgão instituído pelo Pacto, ao qual
caberia “examinar e estudar os relatórios, tecendo comentários e observações gerais”
(PIOVESAN, 1997, p. 181) e enviá-los ao Conselho Econômico e Social das Nações Unidas
(ECOSOC). Ainda de acordo com Piovesan (1997, p. 181):
Importa esclarecer que o Comitê de Direitos Humanos é o principal órgão de
monitoramento previsto pelo Pacto. É integrado por 18 membros nacionais dos
Estados-parte e por eles eleitos, que, enquanto pessoas de reconhecida competência
na matéria de direitos humanos, devem servir ao Comitê de forma independente e
autônoma e não como representantes dos Estados (art. 28 do Pacto).
Obviamente, uma investigação mais acurada deve ser feita pelo Comitê a fim de apurar a
veracidade de tais relatórios, sendo aconselhável que a elaboração dos mesmos conte com a
participação de setores expressivos da sociedade civil. Em abril de 2006, a Assembléia Geral
aprovou a resolução 60/251 que instituía o Conselho de Direitos Humanos em substituição ao
Comitê dando continuidade ao trabalho desenvolvido pelo seu antecessor.
12. 12
Os direitos civis e políticos se configuram em grande parte pelos direitos à vida, a não ser
submetido a tortura ou tratamentos cruéis, a não ser escravizado, à liberdade e à segurança
pessoal, a um julgamento justo, às liberdades de movimento, pensamento, consciência,
religião, opinião e expressão, entre outros. Já os direitos sociais, econômicos e culturais se
constituem principalmente pelos direitos ao trabalho, à educação, a um nível de vida
adequado, ao lazer, ao saneamento básico, à saúde, à previdência social, entre outros11. De
acordo com Trindade (1997/2003, p. 488) “o empobrecimento a que vêm sendo submetidos
amplos e crescentes segmentos das populações dos países endividados constitui um grave
atentado aos direitos humanos”.
O Pacto Internacional dos Direitos Econômicos, Sociais e Culturais também conta com o
sistema de relatórios exigidos dos Estados que devem exemplificar as medidas adotadas para
a satisfação dos direitos reconhecidos pelo Pacto, além de enumerar as dificuldades de
implementação dos mesmos12.
O Pacto divide-se em cinco partes, concernentes, respectivamente, (I) à
autodeterminação dos povos e à livre disposição de seus recursos naturais e
riquezas; (II) ao compromisso dos Estados de implementar os direitos previstos; (III)
aos direitos propriamente ditos; (IV) ao mecanismo de supervisão por meio da
apresentação de relatórios ao ECOSOC e; (V) às normas referentes à sua ratificação
e entrada em vigor. (WEIS, <http://www.dhnet.org.br/direitos/sip/onu/textos/
tratado06.htm>)
Um ponto importante a ser salientado diz respeito às violações dos direitos sociais,
econômicos e culturais por parte dos Estados e mesmo pela sociedade internacional que, de
uma forma pouco sutil, privilegia os direitos civis e políticos e relegam a segundo plano os
demais, ou seja, a “comunidade internacional continua a tolerar freqüentes violações aos
direitos sociais, econômicos e culturais que, se perpetradas em relação aos direitos civis e
políticos, provocariam imediato repúdio internacional”. (PIOVESAN, 1997, p. 199)
Foram muitos os argumentos utilizados na época para valorizar uma classe de direitos mais
que a outra. A dicotomia Socialismo/Capitalismo representada, respectivamente, por URSS e
EUA, ilustra claramente a discussão a respeito de uma geração de direitos ser mais importante
que outra. A URSS, notável pela dura repressão a quaisquer movimentos civis e políticos,
defendia a predominância dos direitos sociais, econômicos e culturais, já que o regime
13. 13
socialista, ao menos em tese, priorizava a igualdade e a justiça social, oferecendo condições
dignas para o desenvolvimento de sua população. Logo, no intuito de se esquivar da
obrigação de implementar medidas que favorecem a proteção dos direitos civis e políticos,
Moscou criticava duramente tais direitos13.
Os EUA reagiram de forma semelhante embora inversa. Para o bloco capitalista os direitos
civis e políticos eram de aplicação imediata, logo de responsabilidade direta dos Estados
enquanto os direitos sociais, econômicos e culturais demandavam uma realização progressiva.
No entanto, estabeleceu-se definitivamente o caráter universal e indivisível dos direitos
humanos.
Politicamente é compreensível que, na competição Leste-Oeste do mundo bipolar da
Guerra Fria, os ocidentais insistissem tanto na noção de ‘direitos fundamentais’, ‘de
primeira geração’, realizáveis por simples prestação negativa de parte dos Estados.
Afinal, os direitos humanos estavam no cerne da rivalidade ideológica entre o
liberalismo capitalista e o comunismo. Os países do ‘socialismo real’ justificavam,
com respaldo nos textos de Marx, a falta de liberdades e direitos civis e políticos –
embora nunca a reconhecessem – pela necessidade de antes fazer valer os direitos
econômicos e sociais. Os verdadeiros direitos, não-‘burgueses, seriam gerados de
forma autêntica com a construção de novas relações de produção pelo proletariado.
(ALVES, 2003, p. 107)
Posteriormente, o fim da Guerra Fria, simbolizado pela queda do Muro de Berlim e pelo
esfacelamento da URSS, proporcionou a emergência dos chamados Novos Temas na agenda
global internacional. Ou seja, com o fim do embate ideológico entre Leste e Oeste, aceitando-
se, mesmo que implicitamente, o capitalismo como, provavelmente, o único sistema
econômico viável e condizente com a nova realidade, novas questões emergiram e
conquistaram a atenção dos grandes líderes mundiais. A atmosfera otimista do início nos anos
90 foi responsável por várias conferências organizadas pela ONU14 no intuito de estabelecer
relações mais cooperativas entre Estados, Organizações Internacionais e a sociedade civil a
respeito desses novos temas, tais como: direitos humanos, meio-ambiente, superpopulação,
direitos da mulher e da criança, entre outros. Alves (2003, p. 3) observa:
Eliminada a divisão simplificadora do mundo em dois grandes blocos estratégicos,
em que os problemas e aspirações locais submergiam no contexto das rivalidades
das duas superpotências, as realidades e conflitos nacionais se tornaram muito mais
transparentes. Foi possível, assim, verificar com maior clareza o estado deplorável
14. 14
dos direitos humanos em vastas massas territoriais e o grau de ameaça que isso
significa à estabilidade internacional.
Assim, o mundo tomou conhecimento da precariedade das condições em que centenas de
milhões de pessoas, talvez bilhões, se encontravam nas mais diversas partes do planeta, sendo
negligenciadas ou exploradas por Estados incapazes ou autoritários15.
Neste contexto, foi realizada em 1993 a Conferência Mundial sobre os Direitos Humanos, em
Viena16. Contando com a participação de um significativo número de Estados, assim como de
Organizações Não-Governamentais (ONG’s) e diversos setores da sociedade civil, a
Conferência alcançou avanços17, obtendo consenso em matérias polêmicas e evitando
retrocessos no sistema internacional de proteção dos direitos humanos. Conseguiu ainda
fortalecer o papel das ONG’s que se estabeleceriam como parceiras importantes em vários
países e estreitou laços entre governo e sociedade civil. No entanto, encontrar um consenso
para a aprovação do texto final não constitui tarefa fácil, principalmente pelas críticas de
alguns Estados – particularmente aqueles com históricos de violações sistemáticas dos
direitos humanos e/ou aqueles governados por regimes fundamentalistas e autoritários -
quanto ao caráter universalista dos direitos humanos18.
Mais do que todas as outras, a principal conquista conceitual proporcionada pela
Convenção de Viena para o mundo pós-Guerra Fria terá sido o reconhecimento
desta feito por uma comunidade internacional representada em sua integralidade por
Estados soberanos, da universalidade dos direitos definidos na Declaração Universal
dos Direitos Humanos de 1948. Esta é a única referência normativa citada no
preâmbulo do documento de Viena – além da Carta das Nações Unidas, que lhe
serve de base, e dos Pactos Internacionais, que a complementam. O fato é tanto mais
significativo porque, diante dele, já não se pode mais, coerentemente, acusar de
etnocêntricos os direitos proclamados em 48, nem fazer uso do relativismo cultural
como justificativa para sua inobservância. (ALVES, 2003, p. 138-139)
Os direitos coletivos relativos ao desenvolvimento foram estabelecidos, sem consenso, pela
Assembléia Geral das Nações Unidas, através da resolução 41/128, em 1986, intitulada
Declaração sobre o Direito ao Desenvolvimento. Durante a Conferência de Viena, tampouco
tal consenso foi atingido facilmente, no entanto, apesar das divergências, a conciliação
prevaleceu. O artigo 10 da Declaração de Viena oferece um bom exemplo sobre quais são
esses direitos:
15. 15
A Conferência Mundial sobre Direitos Humanos reafirma o direito ao
desenvolvimento, conforme estabelecido na Declaração sobre o Direito ao
Desenvolvimento, enquanto direito universal e inalienável e parte integrante dos
Direitos Humanos fundamentais.
Conforme estabelecido na Declaração sobre o Direito ao Desenvolvimento, a pessoa
humana é o sujeito central do desenvolvimento.
O desenvolvimento facilita o gozo de todos os Direitos Humanos, mas a falta de
desenvolvimento não pode ser invocada para justificar a limitação de Direitos
Humanos internacionalmente reconhecidos.
Os Estados devem cooperar entre si para assegurar o desenvolvimento e eliminar os
obstáculos que lhe sejam colocados. A comunidade internacional deve promover
uma cooperação internacional efectiva com vista à realização do direito ao
desenvolvimento e à eliminação de obstáculos ao desenvolvimento.
O progresso duradouro no sentido da realização do direito ao desenvolvimento exige
a adopção de políticas de desenvolvimento eficazes a nível nacional, bem como o
estabelecimento de relações económicas equitativas e a existência de um panorama
económico favorável a nível internacional. (Ver texto integral em
<http://www.gddc.pt/direitos-humanos/textos-internacionais-dh/tidhuniversais/decl-
prog-accao-viena.html, acessado em 02 de abril de 2007)
O debate entre a teoria universalista e a teoria relativista, e as dificuldades de se encontrar um
consenso a respeito do documento final aprovado pela Conferência de Viena serão mais
claramente demonstrados adiante.
16. 16
2. PROTEÇÃO INTERNACIONAL DOS DIREITOS HUMANOS – A TEORIA UNIVERSALISTA
As maiores críticas em relação à Declaração Universal dos Direitos Humanos e aos demais
tratados inspirados por ela partem da idéia de que tais direitos são uma construção ocidental,
não se adequando a contextos e culturas distintos17. A chamada teoria relativista, em
contraposição à teoria universalista, valoriza os mais diversos particularismos culturais em
detrimento de uma “ética global”18, ou seja, os costumes e valores de cada povo não podem
ser julgados utilizando-se de padrões universais19. O argumento relativista se assenta na
necessidade de preservação desses culturalismos, recusando a premissa de que acima de
qualquer diferenciação entre os seres humanos, todos fazem parte de uma mesma
comunidade: a humanidade.
Logo, valores e direitos fundamentais são direitos de todos, não existindo justificativa moral
para sua rejeição ou indiferença, constituindo-se, entre outros, uma norma de jus cogens, ou
seja, de acordo com o artigo 53 da Convenção de Viena sobre os Direitos dos Tratados, uma
norma de jus cogens representa uma norma imperativa de Direito Internacional geral, sendo
“aceita e reconhecida pela comunidade internacional dos Estados como um todo, como norma
da qual nenhuma derrogação é permitida e que só pode ser modificada por uma norma ulterior
de Direito Internacional geral da mesma natureza”.
As normas de jus cogens foram consagradas pela Convenção de Viena sobre os Direitos dos
Tratados, assinada em 23 de maio de 1969, a qual, através dos artigos 53 e 64 estabelece a
primazia destas normas sobre as demais. O artigo 53 dispõe:
É nulo todo o tratado que, no momento da sua conclusão, é incompatível com uma
norma imperativa do Direito Internacional geral. Para os efeitos da presente
Convenção, uma norma imperativa de Direito Internacional geral é a que for aceite e
reconhecida pela comunidade internacional dos Estados no seu conjunto como uma
norma à qual nenhuma derrogação é permitida e que só pode ser modificada por
uma nova norma de Direito Internacional geral com a mesma natureza.
17. 17
O artigo 64 complementa: “Se sobreviver uma norma imperativa de Direito Internacional
geral, todo o tratado existente que seja incompatível com esta torna-se nulo e cessa sua
vigência”.
Embora não exista uma lista delimitando quais são as normas consideradas jus cogens, estas
podendo variar de acordo com os costumes e com a época em questão, é importante ressaltar
alguns exemplos em que a violação dessas normas constitui claramente uma violação a
valores universais aceitos pela sociedade internacional, tais como tráficos de pessoas,
apartheid, tortura, genocídio, entre outros20.
O que não se pode permitir é que o identitário se erija em absoluto, que o
essencialismo cultural se torne a única preocupação política, que o perspectivismo
domine a idéia do conhecimento, renegando a possibilidade do real universal, como
caminho para o progresso desejado. (ALVES, 2005, p. 110)
Durante todo o período da Guerra Fria foram constantes as discussões a respeito da suposta
universalidade dos direitos humanos. Defensores do relativismo (estes representados por
grande parte do mundo ocidental) atacavam essa concepção utilizando os argumentos já
apresentados. Em 1968, foi realizada a I Conferência Mundial sobre os Direitos Humanos, em
Teerã, da qual participaram 84 países além de representantes de organizações internacionais e
não-governamentais, adotando ao final a Proclamação de Teerã sobre Direitos Humanos21. De
acordo com Trindade (1997/2003, p. 83-4).
Com efeito, transcorridas duas décadas desde a adoção da Declaração Universal, a
asserção, pela I Conferência Mundial de Direitos Humanos (1968) de uma nova
visão, global e integrada, de todos os direitos humanos, constitui a nosso ver a
grande contribuição da Conferência Mundial de Teerã para os desenvolvimentos
subseqüentes da matéria.
Em 1993, foi realizada a II Conferência Mundial sobre os Direitos Humanos, em Viena, onde
apesar de ainda persistirem fortes argumentações em favor do relativismo cultural, ficou
estabelecido a inegável e indiscutível universalidade dos direitos humanos através da
aprovação da Declaração e Programa de Ação de Viena, o principal documento da
Conferência22. No entanto, tal aprovação não foi obtida facilmente, sendo necessária muita
18. 18
habilidade na formulação desse texto, para que se atingisse um consenso, sem, no entanto,
prejudicar a noção de direitos humanos universais. Ótimo!! Um exemplo claro disso pode ser
observado no Artigo 5º da Declaração:
Todos os direitos humanos são universais indivisíveis, interdependentes e inter-
relacionados. A comunidade internacional deve tratar os direitos humanos
globalmente de forma justa e eqüitativa, em pé de igualdade e com a mesma ênfase.
As particularidades nacionais e regionais devem ser levadas em consideração, assim
como os diversos contextos históricos, culturais e religiosos, mas é dever dos
Estados promover e proteger todos os direitos humanos e liberdades fundamentais,
independentemente de seus sistemas políticos econômicos e culturais.
(DECLARAÇÃO E PROGRAMA DE AÇÃO DE VIENA, ALVES, 2003, p.153).
Embora esse trabalho esteja diretamente assentado na premissa universalista, aceitando essa
postura como a única passível de reconhecimento, não havendo espaço para discussões
jurídicas, uma vez que o tema já possui definição convencional, algumas considerações a
respeito das críticas relativistas devem ser ressaltadas.
O argumento utilizado por aqueles contrários à universalidade dos direitos humanos se
assenta principalmente no pressuposto de que cada cultura dispõe de seus próprios costumes e
que impor a proteção destes direitos em contextos distintos não seria sempre condizente com
certos contextos locais, representando nada mais que uma interferência ocidental com fins que
nada dizem respeito à proteção do ser humano. Ou seja, tal interferência serviria somente aos
interesses dos países mais poderosos, sugerindo uma nova forma de colonialismo23.
Por outro lado, a questão do relativismo cultural continua sendo muito debatida,
principalmente nos chamados Estados Não-Ocidentais, os quais argumentam que cada
sociedade dispõe de seus próprios valores éticos e culturais, não apresentando legitimidade a
imposição de direitos supostamente universais por parte das potências ocidentais, estas
somente interessadas em satisfazer suas próprias agendas políticas, não existindo um real
interesse na proteção dos direitos humanos nessas regiões. Certamente que nem todos os
países “não-Ocidentais” compartilham da mesma visão24 - embora compartilhem de valores
culturais e/ou religiosos semelhantes -, o que esvazia ainda mais a validade desse discurso por
se apresentar como uma justificativa a violações constantes dos direitos humanos por esses
Estados25. Não procede a negação dos direitos humanos por estes serem uma construção
19. 19
meramente ocidental, ou seja, a universalidade da proteção à dignidade da pessoa humana não
conhece barreiras geográficas, políticas, religiosas, culturais, ou de qualquer outra natureza,
sendo um direito inalienável de todo ser humano.
Contra as afirmações a respeito das diferenças culturais como forma de esvaziar todo o
conceito de Direitos Humanos e justificar a sua inobservância escreve Alves (2003, p.4):
As afirmações de que a Declaração Universal é documento de interesses apenas
ocidental, irrelevante e inaplicável em sociedades com valores histórico-culturais
distintos, são, porém falsas e perniciosas. Falsas porque todas as Constituições
nacionais redigidas após a adoção da Declaração pela Assembléia Geral da ONU
nela se inspiram ao tratar dos direitos e liberdades fundamentais, pondo em
evidência, assim, o caráter hoje universal de seus valores. Perniciosas porque abrem
possibilidades à invocação do relativismo cultural como justificativa para violações
concretas de direitos já internacionalmente reconhecidos.
Após o fim da Guerra Fria se intensificaram os conflitos regionais e guerras civis causadas
principalmente pelo enrijecimento de micronacionalismos e pelo crescimento de
fundamentalismos, religiosos ou não26. “Estes, uma vez exacerbados, levam à limpeza étnica
da Bósnia, ao genocídio de Ruanda, à brutalidade dos islamistas argelinos, ao arcaísmo
desvairado e antifeminino dos talibãs do Afeganistão”. (ALVES, 2003, p. 29) Divergências
culturais substituíram os enfrentamentos ideológicos da Guerra Fria. A atmosfera de otimismo
gerada pelo fim do embate Leste/Oeste logo se dissipou com a constatação dos efeitos cruéis e
devastadores do processo globalizante que, segregou de acordo Alves (2005), dois terços da
população, que somente têm acesso a uma porção mínima das vantagens advindas da
globalização, quando não são relevados a um limbo sócio-econômico mundial.
Bauman (1998) descreve a globalização como um fenômeno que simultaneamente provoca a
integração dos chamados cidadãos globais enquanto exclui e segrega populações inteiras,
fadadas à dependência e à imobilidade, o que por seu lado, reforçam sentimentos culturais
localizados (que por sua vez dão suporte a argumentos relativistas, para a justificação de
violações dos direitos humanos), assim como acentuam nacionalismos, fundamentalismos
religiosos e políticas discriminatórias contra minorias, grupos étnicos distintos, entre outros.
“Ser local num mundo globalizado é sinal de privação de degradação social.” (BAUMAN,
1998, p.8).
20. 20
Em relação às expectativas que o fenômeno da globalização gerou entre os meios intelectuais
e suas reais conseqüências, Bauman (1998, p. 67), observa:
Assim como os conceitos de “civilização”, “desenvolvimento”,
“convergência”, “consenso” e muitos outros termos chaves do pensamento moderno
inicial e clássico, a idéia de ‘universalização’ transmitia a esperança, a intenção e a
determinação de se produzir a ordem; além do que os outros termos afins
assinalavam, ela indicava uma ordem universal – a produção da ordem numa escala
universal, verdadeiramente global. Como os outros conceitos, a idéia de
universalização foi cunhada com a maré montante dos recursos das potências
modernas e das ambições intelectuais modernas. Toda a família de conceitos
anunciava em uníssono a vontade de tornar o mundo diferente e melhor do que fora
e de expandir a mudança e a melhoria em escala global, à dimensão da espécie.
Além disso, declarava a intenção de tornar semelhantes as condições de vida de
todos, em toda a parte, e, portanto, as oportunidades de vida para todo o mundo;
talvez mesmo torná-las iguais.
Nada disso restou no significado de globalização, tal como formulado no
discurso atual. O novo termo refere-se primordialmente aos efeitos globais,
notoriamente não pretendidos e imprevistos, e não às iniciativas e empreendimentos
globais.
Entender a globalização, seus efeitos econômicos, políticos e culturais, possibilita ampliar as
perspectivas a respeito da situação em que se encontram os direitos humanos no final do
século XX e início do século XXI, já que é responsável pelo aumento considerável da
desigualdade social no mundo, provocada pela concentração dos lucros nas mãos de poucos
Estados ou empresas e pela péssima distribuição de renda entre os mais pobres e os mais
ricos. Stiglitz27 (2002, p. 31-2) explica:
A distância cada vez maior entre os que têm e os que não têm vem deixando um
número bastante grande de pessoas no Terceiro Mundo num estado lamentável de
miséria, sobrevivendo com menos de um dólar por dia. Apesar das repetidas
promessas de redução dos índices de pobreza feitas durante a última década do
século XX, o número dos que vivem na miséria efetivamente aumentou, e muito.
Isso ocorreu ao mesmo tempo (sic) que a renda total do mundo elevou-se, em média,
2,5 por cento ao ano.
A íntima ligação entre o processo globalizante e a fragmentação cultural advinda da pós-
modernidade28, (embora tais processos sejam freqüentemente associados a comunidades
científicas diferentes: a globalização pertenceria à classe dos economistas e cientistas políticos
enquanto a pós-modernidade seria objeto de interesse de filósofos e sociólogos, é inegável a
íntima relação de ambas29, principalmente no que concerne à proteção dos direitos humanos)
21. 21
merecem um trabalho a parte30, no entanto, faz-se necessário discutir brevemente esses
fenômenos para compreender a real situação dos direitos humanos no século XXI. Logo, esse
trabalho se limita a apresentar um panorama geral do cenário produzido por tais processos.
O fenômeno pós-moderno se caracteriza principalmente pelo fortalecimento da noção de
comunidade (neste caso entendida como comunidades locais ligadas por afinidades étnicas,
religiosas, culturais, entre outras) em detrimento da universalidade e do cosmopolitismo,
assim como a acentuação de particularismos culturais - dentro dos quais crenças culturais
substituem verdades científicas - pela segregação de grupos inteiros da população mundial
que, excluídos do desenvolvimento proporcionado pela globalização, desenvolvem um forte
sentimento identitário, ao mesmo tempo em que acentua a intolerância a culturas diferentes e
fomenta grupos fundamentalistas, substituindo governos seculares em favor de governos
teocráticos 31.
O indivíduo, muitas vezes discriminado dentro do território nacional pela
parcialidade da implementação dos direitos humanos e liberdades fundamentais, vai
buscar outros tipos de ‘comunidade’, preferenciais como âncoras de autoproteção –
ou, como se diz atualmente, para sua própria autoconstrução. (ALVES, 2003, p. 28)
É importante salientar que a teoria universalista não defende uma massificação cultural ou
mesmo uma aculturação dos mais diferentes povos. “As diferenças precisam, sim, ser
respeitadas – muito mais do que ‘toleradas’ -, mas elas não se (sic) podem sobrepor ao ideal
de igualdade [...]”. (ALVES, 2003, p. 110). Ou seja, as diferenças culturais contribuem para a
evolução da humanidade e são extremamente importantes para o desenvolvimento humano
em qualquer sociedade, portanto, todos os processos de segregação baseados em qualquer tipo
de critério de diferenciação representam um retrocesso histórico em que os direitos humanos e
as liberdades fundamentais sofrem um duro golpe32.
Sintomas do retrocesso já existiam, sem dúvida, no início dos anos 1990. E muitos
foram os autores a apontar variados sinais de emergência de uma “nova Idade
Média” com o enfraquecimento do Estado e sua substituição por outros elementos,
positivos e negativos, associados à globalização; a alertar para o recrudescimento do
misticismo num mundo sem esperanças; a estudar o fundamentalismo religioso em
luta pela reconquista do poder político; a apontar um “reencantamento do mundo”,
às vezes com ingênuo otimismo. O que nenhum deles previu foi uma radicalização
tão rápida e calamitosa de todos os sintomas regressivos. (ALVES, 2003, p. 220)
22. 22
Apesar do tom pessimista adotado por Alves, a década de 1990 também deve ser lembrada
como a década na qual foram realizadas importantes conferências internacionais (sob os
auspícios da ONU) envolvendo não só agentes estatais, mas ONG’s e outros órgãos de
representação civil33 Mesmo com as inúmeras dificuldades em se obter consenso para a
assinatura dos documentos relativos às várias conferências, tais foram aprovados reforçando a
noção universal desses novos temas34.
Os direitos humanos e as liberdades fundamentais se constituíram através de processos sócio-
culturais, evoluindo constantemente, não apresentando assim forma estática e definitiva, mas
um processo dinâmico que acompanha as mudanças da realidade social na qual o objeto de tal
proteção está inserido. Logo, sempre serão necessárias adaptações que condizem,
coerentemente, com o ambiente atual do homem. Ou seja, a consagração desses direitos
advém de um longo processo histórico que apesar dos avanços se mantém em constante
evolução35.
Superado o embate entre Universalismo e Relativismo, a problemática dos direitos humanos
se assenta agora mais nas dificuldades de sua implementação do que em sua legitimidade.
O problema fundamental em relação aos direitos do homem, não é tanto o de
justificá-los, mas o de protegê-los. Trata-se de um problema não filosófico, mas
político [...] Não se trata de saber quais e quantos são esses direitos, qual é sua
natureza e seu fundamento, se são direitos naturais ou históricos, absolutos ou
relativos, mas sim qual é o modo mais seguro para garanti-los, para impedir que,
apesar das solenes declarações, eles sejam continuamente violados. (BOBBIO,
1992, p. 6)
Creditando-se aos direitos humanos o caráter universal, a efetividade de sua proteção esbarra
agora nas disparidades econômicas existentes entre os Estados. É fato que, onde o
desenvolvimento sócio-econômico é precário e onde as políticas dos Estados não se ajustam a
essas dificuldades, ou mesmo no caso de os Estados serem fracos demais para mudarem esse
status quo as violações dos direitos humanos costumam ser mais freqüentes e muitas vezes
impunes, afetando principalmente os membros marginalizados da sociedade. Sendo assim, a
inobservância dos direitos humanos deve ser condenada pela comunidade internacional que,
no entanto, não deve se limitar a essa condenação, buscando seja através da cooperação
econômica, seja através do incentivo a políticas de inserção social e distribuição de renda
23. 23
mais eficientes em países periféricos, estabelecer bases mais sólidas para preservação e
respeito à dignidade humana.
As violações dos direitos humanos devem, é claro, ser denunciadas e condenadas
onde quer que ocorram e independentemente das circunstâncias que as cerquem,
mas a cooperação internacional para o aperfeiçoamento dos direitos humanos deve ir
além da simples condenação e buscar desenvolver os meios para superar obstáculos
econômicos, sociais e políticos que impedem o acesso a níveis dignos de existência
a grande parte da humanidade. (SABÓIA, 1994, p. 196)
As desigualdades sócio-econômicas acentuadas pela globalização, a fragmentação de uma
identidade humana global, o fortalecimento de particularismos culturais e movimentos
fundamentalistas, a fragilidade do Estado em administrar recursos para seu próprio
desenvolvimento, ao mesmo tempo em que grandes corporações privadas (muitas vezes
subsidiadas pelos seus próprios governos) manipulam economias inteiras devido ao seu
imenso poder financeiro36, se configuram como graves desafios ao sistema internacional dos
direitos humanos tendo como exemplo mais crítico, casos em que as violações atingem níveis
consideráveis levando ao massacre de populações inteiras37. Nestes casos, esgotados todos os
meios pacíficos de negociação, a sociedade pode optar pela intervenção humanitária (coletiva
ou não), com a aprovação do Conselho de Segurança da ONU, tema a ser discutido no
próximo capítulo.
Não há, contudo, solução fácil para o problema das violações no cenário internacional, já que
não existe um poder supranacional que possa obrigar os Estados a obedecer a certas regras38,
mas em um mundo cada vez mais interdependente o desrespeito sistemático de leis e tratados
internacionais pode levar a graves sanções econômicas, além de produzir uma condenação
moral que denigre a imagem do Estado infrator frente à comunidade internacional – podendo
causar enormes prejuízos políticos e econômicos ao mesmo -, podendo motivar a interferência
da sociedade internacional, seja através de tropas de manutenção da paz das Nações Unidas,
assistências humanitárias (realizadas por Organizações Internacionais, Organizações Não-
Governamentais ou mesmo pela própria ONU), ou, nos casos mais críticos intervenções
humanitárias (coletivas ou unilaterais), com a autorização do Conselho de Segurança. Esse
tema será discutido no próximo capítulo.
24. 24
3. O PAPEL DOS ATORES INTERNACIONAIS NA PROTEÇÃO DOS DIREITOS
HUMANOS
O final do século XX foi marcado por acontecimentos que despertaram otimismo por toda a
sociedade internacional. O esfacelamento da URSS encerrando, definitivamente a Guerra
Fria, o fim do socialismo na Europa e conseqüentemente a extinção do embate Leste-Oeste
pareciam configurar o início de uma nova era, marcada pela cooperação, pela busca da paz,
pelo respeito aos direitos humanos, enfim, uma era em que a força cederia lugar à negociação
e o desenvolvimento pacífico seria um objetivo em comum nas relações entre os mais
diversos atores internacionais. A ONU poderia finalmente exercer suas funções como
idealizadas por seus fundadores, e o Conselho de Segurança não mais seria anulado por
diferenças ideológicas, podendo assim agir em prol da manutenção da paz e segurança
internacionais41. O início dos anos 1990 presenciou a realização, pela ONU, de inúmeras
conferências a favor do desenvolvimento humano, enfatizando os mais complexos aspectos
envolvidos neste42.
Entretanto tal atmosfera não perdurou por muito tempo. As ameaças não desapareceram
apenas se transformaram As instabilidades no Leste Europeu, na África e na Ásia logo
demonstraram que o período a seguir não seria como se pensava. Os conflitos armados43
agora explodiam dentro de fronteiras nacionais de Estados que não mais controlavam seus
próprios territórios, sucumbindo frente a grupos rebeldes e/ou separatistas. Hobsbawm
(1994/2002, p. 538-9) coloca de forma clara a mudança na natureza dos conflitos pós-1989:
O Breve Século XX fora de guerras mundiais, quentes ou frias, feitas por grandes
potências e seus aliados em cenários de destruição em massa cada vez mais
apocalípticos, culminando no holocausto nucelar das superpotências, felizmente
evitado. Esse perigo desaparecera visivelmente. O que quer que trouxesse o futuro, o
próprio desaparecimento ou transformação de todos os velhos atores do drama
mundial, com exceção de um, significava que uma Terceira Guerra Mundial do
velho tipo se achava entre as perspectivas menos prováveis.
Visivelmente, isso não significava que a era das guerras houvesse acabado. A
década de 1980 já demonstrara, com a guerra britânico-argentina de 1983 e a do Irã-
Iraque de 1980-8, que guerras que nada tinham a ver com o confronto global das
superpotências eram uma possibilidade permanente. Os anos que se seguiram a 1989
viram mais operações militares em mais partes da Europa, Ásia e África do que
qualquer um pode lembrar, embora nem todas elas fossem oficialmente classificadas
como guerras: na Libéria, em Angola, no Sudão e no Chifre da África, na ex-
Iugoslávia, na Moldávia, em vários países do Cáucaso e Transcáucaso, no sempre
explosivo Oriente Médio, na ex-soviética Ásia Central e no Afeganistão. Como
25. 25
muitas vezes não era claro quem combatia quem e por que nas cada vez mais
freqüentes situações de colapso e desintegrações nacionais, essas atividades, na
verdade, não se encaixavam em nenhuma das classificações clássicas de “guerra”,
internacional ou civil.
O desenvolvimento almejado para todos os povos se concentrava cada vez mais nas mãos de
poucos acentuando significativamente o fosso entre os mais pobres e os mais ricos. Tal
disparidade, entre outros fatores, desencadeou disputas étnicas, religiosas e políticas agindo
como catalisador de conflitos intraestatais. A respeito da importância dos fatores econômicos
na prevenção destes conflitos Brown (In: BROWN, 1996, p. 610) argumenta:
A country’s economic situation and economic prospects have tremendous
implications for its potential for violence. Rising levels of unemployment and
inflation, declining standards of living, and grim economic prospects intensify
resentments, polarize societies, and make people more receptive to ethnic and
nationalistic appeals. Patterns of economic discrimination and growing economic
inequities only make bad situations worse. The importance of the economic roots of
internal conflict cannot be underestimated: if international actors are serious about
preventing internal conflict and civil war, they have to do more than treat the
military dimensions and military manifestations of the problem; they have to address
the economic sources of conflict in troubled societies.
Logo, o sistema internacional tem procurado se adaptar a essa nova realidade o que torna
necessária uma reinterpretação de um conceito clássico das relações internacionais: a
soberania.
Soberania pode ser entendida como o arranjo político originado durante os acordos de
Westphalia44 formatando o atual sistema internacional, ou seja, deu “unidade a processos
históricos, tais como a formação do Estado moderno, e possibilitou a elaboração conceptual
de uma teoria acabada do Estado” (BOBBIO; MATTEUCCI; PASQUINO, 1983/2000, 1185)
além de definir o papel desempenhado pelos Estados tanto em âmbito interno como
internacional. Tal caracterização é bem definida por Bobbio, Matteucci e
Pasquino (1983/2000, p.1180) como:
A dupla face da Soberania: a interna e a externa. Internamente o soberano [...]
procura a eliminação de conflitos internos [...] a fim de manter a paz, essencial para
enfrentar a luta com outros Estados na arena internacional [...] Externamente cabe ao
26. 26
soberano decidir acerca da guerra e da paz: isto implica um sistema de Estados que
não têm juiz algum acima de si próprios [...], que equilibram suas relações mediante
a guerra, mesmo sendo esta cada vez mais disciplinada e racionalizada.
A complexidade dos conflitos armados atuais, em especial dos conflitos internos, exige da
sociedade internacional uma resposta rápida e eficiente a fim de minimizar os danos causados
por estes e evitar que ameacem a paz internacional. De acordo com Brown (In BROWN,
1996, p. 603) “internal conflict is widespread, and often causes tremendous amounts of
human suffering, posing serious threats to regional and international security along the way”.
A salvaguarda da população civil, assim como daqueles que não mais tomam parte nas
hostilidades e a limitação ou mesmo proibição do uso de certos tipos de armas durante os
combates são, fundamentalmente, as principais atribuições do Direito Internacional
Humanitário45 (DIH). De acordo com Borges (2006, p. 16) as normas do DIH:
[...] se propõem a mitigar o sofrimento dos efeitos causados pela guerra. A idéia é,
portanto, preservar, mesmo em uma situação extrema, a dignidade da pessoa
humana. [...] não se deseja, com sua aplicação, tornar um conflito armado mais
“justo”. Ele visa simplesmente diminuir ao máximo o sofrimento daqueles que são
afetados por essa situação.
O Comitê Internacional da Cruz Vermelha define o Direito Internacional Humanitário como:
[...] um conjunto de normas internacionais que tem por objetivo proteger as pessoas
que não participam ou deixaram de participar das hostilidades e restringir os meios e
métodos de guerra.
Suas normas estão contidas em tratados aos quais os Estados aderem
voluntariamente, comprometendo-se a respeitar e fazê-los respeitar; ou têm origem
no costume internacional, pela repetição de determinadas condutas com a convicção
de que devem ser respeitadas e de que sua violação é rejeitada por todos.
(<http://www.icrc.org/Web/por/sitepor0.nsf/html/5TNDBL>).
A utilização de regras e normas para a condução de hostilidades remonta aos primórdios da
civilização46, no entanto, somente no século XIX, com a criação do Comitê Internacional da
Cruz Vermelha (ICRC), por Henry Dunant, e com a adoção das Convenções de Genebra, de
1949 e seus Protocolos Adicionais, de 1977 que o DIH se solidifica definitivamente47. Com
27. 27
uma regulamentação jurídica mais específica do campo de atuação do DIH, consagrou-se os
direitos das vítimas de conflitos e restringiu os meios utilizados nos combates, contribuindo
para o reconhecimento internacional de sua importância e legitimidade:
Na história do direito internacional humanitário, há dois momentos de destaque em
que grandes avanços são alcançados no que se refere ao seu desenvolvimento,
visando conferir a melhor proteção possível aos indivíduos em uma situação de
beligerância. Se as normas para a proteção do indivíduo em tempo de guerra surgem
no final do século XIX mediante a efetivação dos ideais de Henry Dunant, com a
adoção das quatro Convenções de Genebra em 1949 e, posteriormente, de seus dois
Protocolos Adicionais em 1977, elas ganham nova interpretação e abordagem.
(BORGES, 2006, p. 75).
O Direito Internacional dos Direitos Humanos (DIDH) e o Direito Internacional Humanitário
(DIH), apesar de representarem dois sistemas jurídicos distintos, compartilham semelhanças
significativas para os objetivos desse trabalho, ou seja, a proteção da pessoa humana.
Enquanto o primeiro diz respeito à proteção dos indivíduos tanto em tempos de paz quanto
em tempos de “guerra”, o segundo regula a condução de hostilidades em períodos de conflito
no intuito de minimizar o sofrimento causado por este à população civil e àqueles que
deixaram de participar das hostilidades. Contudo algumas exceções podem ser feitas quanto
aos direitos humanos em situações nas quais a paz foi rompida, como a suspensão das
liberdades de locomoção, reunião e associação. Já o DIH não admite derrogações48. De
acordo com o ICRC (2005):
Some human rights treaties permit states to derogate from certain rights in times of
public emergency. Certain key rights may never be suspended, including the right to
life and the prohibition of torture or cruel, inhuman or degrading treatment or
punishment. Moreover, unless and until they have issued derogations in accordance
with the relevant procedures states are bound by the entirety of their conventional
obligations even in times of armed conflict
(<http://www.icrc.org/Web/eng/siteeng0.nsf/html/6T7G86>).
Sendo assim, apesar de o DIDH e o DIH49 terem originado correntes distintas, este trabalho
parte do pressuposto que ambos defendem a proteção da dignidade humana contribuindo
assim de forma complementar para a implementação e defesa dos direitos fundamentais do ser
humano.
28. 28
Visando ao respeito aos Direitos Humanos, ao DIH e à manutenção da paz e da segurança
internacionais a sociedade internacional intervém de formas diversas em situações críticas
onde os governos locais carecem de força ou vontade para conter a escalada da violência,
assistindo a população civil, em situações de conflito armado ou desastres naturais. Estas
intervenções apresentam características distintas entre si, podendo variar de distribuição de
ajuda humanitária; operações de manutenção da paz, sob autorização da ONU e consentidas
pelo Estado em questão, chegando até a intervenções militares de caráter coercitivo, sob os
auspícios do Capítulo VII da Carta das Nações Unidas.
3.1. Assistências Humanitárias
Aliviar o sofrimento humano em regiões em crise não compete exclusivamente aos Estados
ou às Nações Unidas. As chamadas assistências humanitárias são exercidas também por
organizações não-governamentais (ONG’s) de caráter humanitário que têm como função
primordial aliviar o sofrimento humano em regiões afetadas por conflitos armados ou
desastres naturais. “Missions that attempt to deliver humanitarian aid into war zones do no try
to end wars; they try to mitigate the tragic consequences of war – famine, malnutrition, and
disease.” (LINDLEY. In: BROWN, 1996, p.549). Para tanto, é necessário que os governos
aos quais se dirige tal assistência facilite o livre acesso do pessoal envolvido na ajuda
humanitária assim como garanta sua segurança. Ruth Stoffels (2004, p. 521) discorre
sucintamente sobre isso:
Humanitarian organizations also have the right to provide humanitarian assistance.
This consists of the right to offer victims the relief supplies that they need and the
right to offer aid not to be unreasonably refused when the needs of the victims are
not met in some other way. This right should be regarded as a corollary to the rights
of victims to humanitarian assistance, without it lacks a solid justificatory basis.
The duties of States and other parties to conflict in this regard boil down to a duty to
permit the entry, passage and distribution of humanitarian aid.
They involve the following: (i) affected States must authorize the entry and passage
of humanitarian aid for civilian population in need; (ii) affected parties to a conflict
must not obstruct, directly or indirectly, the entry passage or distribution of
humanitarian aid; (iii) affected parties must make every effort to facilitate the rapid
and unimpeded passage of relief consignments and assist humanitarian organizations
and personnel in carrying out their work; and (iv) affected parties must guarantee the
safety of supplies and humanitarian personnel.
29. 29
As assistências humanitárias não necessitam do consentimento do Estado ao qual elas se
dirigem. Embora também possam atuar em regiões devastadas por desastres naturais50, a
maior parte das ações efetuadas por entidades humanitárias se localizam em áreas afetadas por
conflitos, na maioria das vezes, conflitos internos. Stoffels (2004, p. 524) ressalta que a
maioria dos conflitos atuais são intraestatais e respondem por altos índices de violações do
direito à asssitência humanitária: "It is important to remember that the majority of recent wars
have been internal conflicts, which are generally characterized by more serious and more
widespread violations of the right to humanitarian assistance." Logo, a não necessidade de
autorização do Estado ou das partes envolvidas em um conflito armado facilitaria, em
tese, a realização de uma assistência humanitária já que esta se encontra legalmente
autorizada pelo Direito Internacional51. Ainda de acordo com Stoffels (2004, p. 533):
[...] the offer of humanitarian assistance to those in need by any member of the
international community, without the prior consent of the State in question, does not
constitute an internationally wrongful act. States, international organizations and
public humanitarian organizations therefore have the legal right to offer
humanitarian assistance to victims in a humanitarian emergency, without this being
considered unlawful or even inappropriate.
As assistências humanitárias são regidas basicamente por quatro princípios fundamentais,
sendo eles: humanidade, imparcialidade, independência e neutralidade.
O princípio da humanidade se assenta primordialmente na necessidade de oferecer ajuda
humanitária a todos aqueles que se encontram privados dos bens necessários à sua própria
sobrevivência visando a proteção da vida e da dignidade humanas. Define-se por valores
compartilhados por todos os seres humanos e no direito destes de receber ajuda em casos de
emergências humanitárias.
A não-discriminação dos destinatários da ajuda humanitária e a proporcionalidade desta ajuda
em relação às necessidades da população em questão caracterizam o princípio da
imparcialidade. O ICRC52 define o princípio da não-discriminação, relacionando-o com o
conceito da humanidade:
30. 30
Non-discrimination among men is the greatest of Red Cross principles, after that of
humanity, to which it is in any event related. The principle of humanity has its
starting point in human suffering. It is this suffering which inspires the charitable
action and determines the form it takes. The solicitude of the Red Cross cannot
submit to limitations; it extends to all beings whom we recognize as our fellow-men
because of the common nature we share with them. In its relations with those in
need of assistance, whoever they may be, the Red Cross will show an equal
readiness to be of service.
A imparcialidade das atividades humanitárias deve ser respeitada pelas partes em conflito as
quais devem autorizar a distribuição de ajuda também para aqueles que estão sob o controle
do adversário. Em outras palavras:
The warring parties, too, must respect the impartiality of humanitarian efforts
undertaken by humanitarian organizations and personnel, but are bound to authorize
the provision of humanitarian aid to the population of the adverse party, regardless
of whether or not the needs of the population under their control are adequately met.
(STOFFELS, 2004, p. 541).
O princípio da neutralidade se define pelo distanciamento político adotado pela maioria das
organizações que prestam socorro humanitário se abstendo de se engajar em atividades hostis
que possam favorecer uma parte em detrimento da outra obstruindo assim o acesso do
pessoal humanitária às vítimas. Para Fiona Terry (2002, p. 19) “the principle of neutrality
denotes a duty to refrain from taking part in hostilities or from undertaking any action that
furthers the interests of one party to the conflict or compromises those of the others.”
A essência da postura neutra se baseia no pressuposto de que a melhor forma de prestar
assistência ao maior número de pessoas possível só é possível quando as partes em
conflito são conscientes do papel puramente humanitário dessas atividades não as
vendo, portanto, como uma ameaça. Segundo Hans Haug (1996), para o ICRC a aderência à
neutralidade se justifica como forma de criar e manter uma ambiente de confiança garantindo
a unidade e a universalidade do Movimento, sendo que qualquer desconsideração à mesma
pode levar a tensões e mesmo fissuras entre as diversas Sociedades Nacionais da Cruz
Vermelha.
No entanto, muitas organizações de ajuda humanitária não compartilham da mesma posição
do ICRC, ou seja, a idéia de se manter neutro enquanto atrocidades são cometidas ainda gera
31. 31
muita controvérsia. A ONG Médicos sem Fronteiras defende uma posição mais independente
em relação à neutralidade colocando os interesses das vítimas acima da soberania dos Estados
e da neutralidade das ações humanitárias. Oxfam segue o exemplo de ativismo político
humanitário (“politically activist humanitarianism”) adotado pelos MSF. (SCHWEIZER,
2004).
Mas o fato é que nos conflitos atuais não mais existe uma divisão clara entre as partes
combatentes e geralmente os atos cometidos por ambas as partes são igualmente condenáveis
frente ao DIH o que levanta questões a respeito da legitimidade e eficácia das assistências
humanitárias. Um exemplo de como uma assistência humanitária pode gerar ambigüidade
quanto aos resultados obtidos se traduz na questão dos campos de refugiados ruandeses no
Zaire durante e após o genocídio em Ruanda53. Muitos dos refugiados nesses campos não só
participaram ativamente dos massacres, mas como treinavam rebeldes para continuarem as
matanças tanto em Ruanda como dentro dos próprios campos. Cientes do dilema moral de
assistir a assassinos e contribuir para a perpetuação do genocídio a MSF juntamente com
outras organizações encerraram suas atividades nos campos e retiraram seu pessoal da região.
Weiss (In: BROWN, 1996, p. 459) corrobora tal afirmação: “Médecins Sans Frontières and
CARE [...] withdrew from Rwandan refugee camps in Zaire early in 1995 because, after
reflection, they judged that their actions were strengthening the position of Hutu war
criminals and decreasing the prospects for repatriation”. Schweizer (2004, p. 549) explica o
complicado contexto com o qual as organizações humanitárias tinham que lidar:
The dilemmas of humanitarian action were, for example, agonizingly exposed in the
huge assistance operation for the Rwandan refugee camps in Zaire in 1994. Not only
had many – if not most – of the refugee taken active part themselves in the Rwandan
genocide, but their camps also served as sanctuaries and recruitment centres for
extremist Hutu militias who continued to murder and plunder inside Rwanda. […]
the camps could not have existed without the international humanitarian assistance,
and at least some organizations felt that moral responsibility heavily. Some, such as
Médecins Sans Frontières (MSF), decided to withdraw, but many other stayed and
continued their operations.
Grande parte das organizações humanitárias atua de forma independente não se envolvendo
em questões políticas, militares, religiosas e/ou econômicas. Para estas organizações a
independência representa um fator crucial para que as ações humanitárias não sejam
percebidas por qualquer uma das partes envolvidas no conflito como uma forma de ajuda
32. 32
condicionada à satisfação de outros interesses que não humanitários, favorecendo uma parte
em detrimento da outra. Tal percepção pode colocar em risco não só a realização da
assistência como também o próprio pessoal envolvido nesta. Schweizer (2004, p. 555) alerta
para os perigos que o envolvimento de organizações humanitárias com setores políticos e
militares pode representar:
The blurring of the lines between military operations, the implementation of political
objectives and humanitarian assistance has had particularly serious consequences for
humanitarian workers. Being perceived - at least by some - as part of a Western-
dominated military and political operation has caused fundamental security
problems for humanitarian organizations in contexts such as Afghanistan and Iraq.
Vale ressaltar que algumas ONG's não adotam o princípio da independência, notadamente
aquelas afiliadas a instituições religiosas ou regidas por valores religiosos54, embora
compartilham muitas características com as de caráter secular. Elizabeth Ferris (2005, p.
312) explica as características destas organizações, conhecidas como "faith-based
organizations”:
While there is no generally accepted definition of faith-based organizations, they are
characterized by having one or more of the following: affiliation with a religious
body; a mission statement with a explicit reference with religious values; financial
support from religious sources; and/or a governance structure where selection of
board members or staff is based on religious beliefs or affiliation and/or decision-
making process based on religious values.
As características dos conflitos internos dificultam significativamente o trabalho das
organizações humanitárias principalmente devido ao aumento da insegurança e dos riscos no
ambiente no qual o pessoal humanitário desenvolve suas operações. A distinção entre
combatentes e civis é cada vez menos clara e em muitas regiões crianças são frequentemente
recrutadas para combater. A população civil, assim como pessoas envolvidas em ações
humanitárias, se transformaram em alvos de forças rebeldes que espalham medo e violência
com ataques indiscriminados sem objetivos definidos. O ex-Secretário Geral das Nações
Unidas Kofi Annan (In: MOORE, 1996, p. 55-6) caracteriza os conflitos armados internos:
33. 33
They are typically fought between regular armies and irregular forces or among
irregular forces. Many involve more than two parties or groups, often accountable to
no one. The distinction between combatants and civilians is often blurred, and child
soldiers are not uncommon. Nations find themselves facing questions about the
cohesion of their societies and even their very ability to endure as functioning states.
Civilians are not only caught in the cross fire but are often the targets of violence;
denied food, shelter, and dignity; and subject to suffering less likely to occur in more
conventional wars between the armies of two states. These circumstances require a
coordinated political, military, and humanitarian response.
A desordem causada pelos conflitos civis levanta a questão a respeito de uma militarização da
ajuda humanitária. Embora a maioria das organizações humanitárias se oponha firmemente a
qualquer envolvimento direito com atividades militares o fato é que com o aumento da
violência direcionada a alvos não-combatentes a distribuição de ajuda fica seriamente
comprometida a menos que seja protegida por forças militares55. As organizações
humanitárias argumentam que os princípios humanitários de neutralidade e imparcialidade
são incompatíveis com um engajamento direto com atores militares e/ou políticos. (WEISS.
In: BROWN, 1996). Oudraat (In: BROWN, 1996, p. 526) descreve a íntima e complexa
relação entre ajuda humanitária e insegurança:
In many cases, humanitarian relief cannot be delivered because of an insecure
environment, and a secure environment cannot be created without the delivery of
humanitarian assistance. This vicious circle has proved to be difficult to break. If
international powers are serious about dealing with these problems and upholding
international order, they will have to revisit the question of using military force in
humanitarian crisis.
Weiss (In: BROWN, 1996, p. 451-2) defende a utilização de recursos militares em crises
humanitárias, argumentado a favor de uma redefinição da relação civil-militar, ou seja, para
ele muitas ONG’s dependem de forças militares estrangeiras para a distribuição de ajuda em
regiões onde os níveis de violência são críticos:
Whatever one's views about using military resources in humanitarian crises, the
result is that virtually any international NGO can now be active in a war zone. The
redefinition of civilian-military has made possible greater outside involvement in
internal conflicts. [...] Although many NGOs are unlikely to endorse military action,
their ability to deliver relief will occasionally, and perhaps often, depend on
intervention by outside military forces.
34. 34
No entanto, um consenso a respeito do envolvimento militar em atividades humanitárias ainda
está longe de ser atingido. O que deve ser enfatizado é que assistências humanitárias onde não
há engajamento político internacional tendem a produzir efeitos efêmeros e mesmo
periféricos, já que tanto em casos de desastres naturais quanto em casos de conflitos armados,
as causas e as possíveis soluções somente serão alcançadas quando houver um claro
comprometimento, político e humanitário, da sociedade internacional. A organização Oxfam
(2000, p. 08) enfatiza a complementariedade entre as ações humanitária e política:
Oxfam has argued repeatedly that aid alone is not the solution; that humanitarian
assistance cannot substitute for political action. The converse is also true: political
action in response to the consequences of violent conflict or natural disasters will
not on its own to alleviate human suffering. Bluntly, people need to be alive to enjoy
the benefits of the political solutions to their problems.
“One cannot halt a massacre with medicines or respond to ethnic cleansing with reception
centres for the displaced. It is often necessary to use force to stop violations of human rights”.
(VAILIN, 2003, p. 637). Novamente os campos de refugiados ruandeses no Zaire oferecem
um triste exemplo para esta afirmação. Apesar dos esforços de centenas de organizações
humanitárias e de milhões de dólares doados pela sociedade internacional para atender às
necessidades dos refugiados, os campos se transformaram em uma extensão do conflito
ruandês e a ausência de forças militares capazes de manter a segurança dos locais evidenciou
a fragilidade destas organizações frente a situações de extrema violência. Terry (2002, p. 216)
ilustra esse episódio:
In spite of the millions of dollars pumped into the camps and the impressive
technical achievements of the hundreds of aid organizations in providing adequate
shelter, water, food and sanitation in the hostile terrain of Eastern Zaire, the refugees
lacked the one element they needed most to survive: protection.
A utilização de forças armadas em ações humanitárias deve ser cogitada após uma análise
completa do contexto em questão respeitando o DIH sendo que as organizações humanitárias
podem recusar trabalhar em conjunto com tropas militares multinacionais se tal cooperação
não for condizente com seus princípios. O ICRC, por exemplo, defende uma posição bastante
firme em relação ao não envolvimento de seu pessoal em atividades militares, mesmo após ter
35. 35
sido alvo de vários ataques em locais como Iraque em 2003, Chechênia e Burundi em 1996 e
República Democrática do Congo (ex-Zaire) em 2001, os quais custaram a vida de vários de
seus membros. (KRÄHENBÜHL, 2004).
Logo, a pertinência do emprego de forças militares em assistências humanitárias deve ser
determinada através de uma análise caso por caso levando em consideração os erros
cometidos em experiências passadas e avaliando os efeitos - positivos e negativos - que essa
cooperação pode produzir.
Seja qual for o relacionamento entre os pessoais humanitário e militar o fato é que centenas de
milhões de pessoas em todo o planeta dependem dramaticamente da ajuda internacional para
sobreviverem ao caos e à violência em que suas sociedades e Estados estão tão
profundamente mergulhados. Infelizmente esta realidade ainda não está perto de mudar como
relata a organização OXFAM (2000, p. 01) que alerta ainda para a discriminação feita pelos
Estados doadores que priorizam, por motivos não-humanitários, determinadas regiões em
detrimento de outras, resultando em uma distribuição dos recursos visivelmente desigual e
injusta:
Currently, there are perhaps over 20 million people affected by drought in parts of
India, Pakistan and Afghanistan. Around 8 million people are at risk form drought
in Ethiopia, among 12 million people across the Horn of Africa. In February and
March, international attention focused on the thousands of Mozambicans affected
by floods. All these people are among 135 million people suffering droughts,
floods and earthquakes around the world. Around 30 million more have been
forced to feed their homes because of war. Global needs for humanitarian aid are
vast, and not set to decline in the near future. Western governments’ aid falls far
short of meeting these needs, and is distributed in a grossly unequal way. To the
1999 UN appeal for Kosovo and the rest of former Yugoslavia, donor governments
gave $207 for every person in need. Those suffering in Sierra Leone received $16 a
head, and in the Democratic Republic of Congo, little over $8. (…) As Western
countries have got richer in the past ten years, the proportion of their wealth spent
on humanitarian aid has gone down by 30%. The number of forgotten emergencies
looks set to increase.
Devido à diversidade dos conflitos armados atuais, os principais atores internacionais, desde
que autorizados pelo CS, podem, legitimamente, intervir em regiões conflituosas de outras
formas a fim de conter o avanço das hostilidades e assegurar o retorno à paz e a proteção dos
36. 36
direitos humanos, notadamente através de tropas de manutenção da paz ou, em casos
extremos, de intervenções humanitárias.
3.2. Peacekeeping
Quando existe o consentimento do Estado envolvido em conflitos armados, as Nações Unidas
podem solicitar aos Estados-membros a mobilização de tropas de manutenção da paz
(peacekeeping), exercendo várias funções como observação de cessar-fogo, monitoramento de
eleições, recolhimento de armas, em princípio, não fazendo para tal uso da força, exceto em
caso de legítima defesa56, e são pelo Conselho de Segurança (CS). Contudo, as resoluções
sobre operações de peacekeeping foram atribuídas à Assembléia Geral durante o período mais
crítico da Guerra Fria em que o enfrentamento entre EUA e URSS paralisou o Conselho de
Segurança. Ainda durante esse período, várias atribuições do Conselho foram transferidas
para a Assembléia, pelo mesmo motivo. No entanto, a competência da AG, em assuntos
relativos à paz e à segurança internacionais foi duramente contestada por alguns membros
permanentes do Conselho, já que tais questões eram reservadas ao CS.
Para Lindley (In: BROWN, 1996, p. 551) as operações de manutenção da paz da ONU podem
ser divididas em:
Traditional peacekeeping operations, which always have the consent of the
combatants, help to implement cease-fires. These missions separate combatants,
patrol borders or lines of disengagement, and thereby help to deter hostile parties
from re-engaging in combat. (…) Maintenance of buffer zones and monitoring of
troop movements can reduce misperceptions and dampen escalatory tendencies.
E multifunctional peace operations as quais ele define como: “missions often costly and
complex because they usually involve peacekeeping, delivery of humanitarian aid,
sponsorship of elections, policing, civil administration, and rebuilding infrastructure and
institutions”. (In: BROWN, 1996, p. 557).
No entanto, atualmente, tal divisão perde importância pelo fato de que, devido à
complexidade dos conflitos pós-Guerra Fria (como dito anteriormente) tornaram-se
37. 37
necessárias a ampliação e a flexibilização das atividades dessas operações para que melhor se
adaptassem à essa nova realidade. Sendo assim esse trabalho utilizará uma definição mais
abrangente do termo peacekeeping, que de acordo com as Nações Unidas seria:
[...] uma forma de ajudar os países dilacerados por conflitos a criarem as condições
necessárias a uma paz sustentável. Os capacetes azuis das Nações Unidas – soldados
e oficiais das forças armadas, agentes da polícia civil e pessoal civil de muitos países
– acompanham e observam os processos de paz iniciados em situações pós-conflito,
ajudando os ex-combatentes a aplicarem os acordos de paz que assinaram. Este tipo
de assistência assume muitas formas, nomeadamente, medidas de reforço da
confiança, modalidades de partilha do poder, apoio eleitoral, reforço do Estado de
direito e desenvolvimento económico e social.
A Carta das Nações Unidas confere ao Conselho de Segurança da ONU o poder e a
responsabilidade de empreender acções colectivas com vista a manter a paz e a
segurança internacionais. É por esta razão que a comunidade internacional recorre
ao Conselho de Segurança quando é necessário autorizar operações de manutenção
da paz. Estas operações são, na sua maioria, definidas e implementadas pelas
próprias Nações Unidas, que utiliza para o efeito tropas que prestam serviço sob o
comando operacional da organização. Noutros casos, quando não se considera
apropriado ou viável haver um envolvimento directo da ONU, o Conselho autoriza
que organizações regionais como União Europeia (UE), a União Africana (UA), a
Organização do Tratado do Atlântico Norte, a Comunidade Económica dos Estados
da África Ocidental ou coligações de países dispostos a agir desempenhem certas
funções de manutenção da paz ou de imposição da paz.
(<http://www.unric.org/html/portuguese/peace/pkpngfaq/q1.htm>).
A problemática das operações de paz da ONU não é simplesmente resolvida pela obtenção do
consentimento das partes envolvidas no conflito. Principalmente em relação aos conflitos
internos onde as fronteiras não são definidas e os combatentes não são sempre identificáveis,
ou seja, o consentimento de uma parte em conflito nem sempre é suficientemente sólido ou
confiável, não refletindo, muitas vezes, em um real comprometimento em se buscar a paz,
podendo ocorrer mesmo a perda desse consentimento o que, a priori, descaracterizaria todo o
princípio que rege a atuação dos “capacetes azuis”. Lindley (In: BROWN, 1996, p. 553)
aponta este como o maior problema envolvendo as tropas de manutenção da paz:
The biggest problem with traditional peacekeeping is that it depends on the consent
of the warring parties, and thus can only make a modest difference in resolving
conflicts. Most of the failures (…) were caused by a failure to secure the consent of
all local parties before deploying forces, or by loss of consent after deployment.
Although loss of consent normally marks the end of a peacekeeping operation, it can
also serve a useful purpose by signaling the onset of hostilities.
38. 38
Outro problema acerca da necessidade do consentimento para essas operações reside no fato
de que muitas vezes um pedido de ajuda por uma das partes envolvidas no conflito pode ser
usado pelos grupos rivais como forma de manipulação da opinião pública nacional o que
proporciona uma ambiente extremamente hostil no qual as tropas se vêem ameaçadas por
aqueles que deveriam proteger (como, por exemplo, no caso somali, descrito abaixo).
Atualmente, as operações de peacekeeping se encontram em uma área cinzenta na qual se
esfumaçam conceitos rígidos e diferenças significativas entre operações consentidas e
operações de caráter coercitivo. Muitas operações de peacekeeping evoluem para operações
coercitivas (Capítulo VII), na medida em que as hostilidades se intensificam, utilizando-se de
todos os meios necessários para o restabelecimento da paz. Nguyen Quoc e Pellet (2003, p.
1031) escrevem que "uma mesma crise pode justificar simultaneamente medidas de acordo
com o Capítulo VII e uma operação de manutenção de paz clássica com todos os aspectos
'civis' da intervenção, ou justificar que uma operação coercitiva suceda a uma operação de
manutenção de paz”. Um bom exemplo dessa transição pode ser ilustrado pelo caso da
Somália.
São muitos os exemplos de operações de peacekeeping durante a década de 1990. Contudo,
neste trabalho serão analisadas somente as operações realizadas na Somália em 1993 e em
Ruanda em 1994.
3.2.1. Somália
Em 1992, após a queda do General Syaad Barre, a Somália mergulhou em uma crise de
trágicas proporções. A disputa entre clãs, longos períodos de seca, ameaçando a vida de
milhares de pessoas, o nacionalismo exacerbado e a inexistência do Estado ou instituições
para conter a violência transformou o país em uma terra sem lei, dominada pela violência e
pelo caos. Em outras palavras, “Somalia had no government in any meaningful sense, and
one-third of the population risked death from starvation because humanitarians could not
reach the needy”. (WEISS et al, 2004, p. 66).