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33 • CORREIO BRAZILIENSE • Brasília, domingo, 30 de agosto de 2009
Contar lorotas pode se transformar de algo inofensivo em uma série de doenças, com diagnóstico e tratamento difíceis
Compulsão por mentir
tire a primeira pedra quem nunca algum tipo de ganho, e sim receber atenção, de acontecer. Nessas situações, o diagnósti-
A mentiu. Seja para se livrar de um
compromisso chato ou de uma pes-
soa indesejável, a mentira é algo na-
tural e até aceitável em nossa sociedade.
tanto da equipe médica quanto da família.
De acordo com o psiquiatra, o transtorno
atinge principalmente idosos. “Quando es-
tamos doentes, recebemos um carinho que
co se torna ainda mais difícil, pois verdades e
mentiras se confundem. “São coisas que po-
deriam ser verdade, por isso, muitas vezes,
essas mentiras são sustentadas por anos, e
Entretanto, quando se torna frequente ao remete ao que recebíamos na infância. O até pela vida toda.”
ponto de prejudicar a vida de quem as con- portador do transtorno factício não age por
ta, ela pode ser o principal sintoma de ma- maldade, ele encontra na simulação de uma Fuga
les como os transtornos factício e narcisis- doença uma maneira de chamar a atenção,
ta, a simulação e a psicose. Doenças que o que pode ser um sintoma de outros pro- Mesmo quando a mentira é contada in-
não são diagnosticadas com facilidade e de blemas mais graves, como a depressão.” tencionalmente, ela pode estar ligada a algu-
difícil tratamento. Estima-se que de 20% a 25% dos casos ma doença. Em quadros de síndrome de si-
Não se sabe exatamente quais as causas atendidos em hospitais sejam de doenças mulação, os pacientes encontram na menti-
dos distúrbios relacionados à mentira com- imaginárias, o que contribui para uma so- ra uma forma de não encarar os próprios
pulsiva. Acredita-se que ela possa ter mo- brecarga no sistema público de saúde. problemas. Preferem mentir a lidar com si-
tivos sociais, como a criação e o ambiente “Muitas vezes, o paciente vai várias vezes ao tuações difíceis, ou usam a falsidade para
em que a pessoa vive, além de origens gené- médico sem que ele consiga detectar qual- obter ganhos. É o caso das pessoas que men-
ticas, já que muitos pacientes apresentam quer doença. Descobrir que essa pessoa tem para ser promovidos, para justificar
ocorrências na família. “Alguns pacientes tem transtorno factício pode ajudar inclusi- atrasos ou até para cometer crimes.
vêm de famílias muito cheias de regras, em ve a diminuir as filas nos ambulatórios dos Contar uma pequena mentira eventual-
que não eram reconhecidos. Isso acaba ge- hospitais”, argumenta o médico. mente não caracteriza síndrome de simula-
rando um adulto inseguro, o que facilita o A mentira compulsiva também pode es- ção. O caso passa a merecer atenção maior
desenvolvimento de vários tipos de com- tar relacionada à psicose. Nessas situações, quando a mentira se torna tão frequente
pulsões”, avalia a psicóloga Érika Carísio. o paciente acredita nas histórias que conta, que se tem que inventar mais mentiras para
Ela conta também que, outras vezes, a e vive esses delírios. “Em casos mais graves, ocultar as anteriores. “Chega-se a um ponto
ocorrência de situações de constrangimen- os portadores de psicose chegam a acredi- no qual a situação se torna tão insustentá-
to pode ser o ponto de partida para essas tar que são pessoas importantes, como, por vel que os pacientes são desacreditados pe-
doenças. “Por não ser aceito devido a algu- exemplo, o presidente da República”, conta la família, perdem o emprego e os amigos”,
ma questão social, como por ser muito po- o médico. explica o médico.
bre, ou por sua origem, esse paciente acaba Existem ainda casos menos graves, em O hábito de mentir também pode reve-
inventando histórias para não assumir a sua que os delírios são relacionados a coisas lar um desvio de personalidade. Para quem
condição. Outras vezes é a lembrança de al- que, embora não sejam reais, são possíveis sofre de transtorno de personalidade narci-
gum constrangimento que já passou que sista, mentir faz parte da individualidade.
desencadeia esse quadro” explica Érika. Em geral ligado ao excesso de autoestima e
Independentemente da síndrome, o tra- ao egocentrismo, o objetivo é se exaltar,
tamento — na maioria dos casos baseado na mostrar-se superior ao que se realmente é.
combinação de medicamentos e psicotera- De todos os pacientes de males relacio-
pia — é longo, podendo durar a vida toda, o nados à compulsão por mentir, os que so-
que exige persistência. “Como muitas vezes Chega-se a um ponto no frem do transtorno narcisista são os que
os resultados demoram, o paciente acaba qual a situação se torna tão têm maior dificuldade de tratamento. “É da
abandonando o tratamento, o que impossi- insustentável que os índole desses pacientes mentir. Eles dificil-
bilita o controle dos sintomas e prejudica a mente reconhecem que não estão falando a
vida do portador”, conta o psiquiatra da pacientes são verdade, e raramente admitem que preci-
Universidade de Brasília Raphael Boechat. desacreditados pela sam de tratamento”, afirma o psiquiatra.
Eles só vão aos consultórios quando são
Pedido de atenção família, perdem o emprego obrigados. “Em geral, quando esse paciente
e os amigos” procura tratamento é por causa de ameaças
O transtorno factício ocorre quando uma de demissão no trabalho ou pressionado
pessoa simula uma doença. Muitas vezes Raphael Boechat, pela família, nunca de maneira espontâ-
associado à carência, o objetivo não é obter psiquiatra nea”, conclui Boechat.
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