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Ctsa Origens Currisulo 11

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  1. 1. O ENFOQUE CTS E A EDUCAÇÃO TECNOLÓGICA: ORIGENS, RAZÕES E CONVERGÊNCIAS CURRICULARES Irlan von Linsingen Universidade Federal de Santa Catarina, Departamento de Engenharia Mecânica, NEPET – Núcleo de Estudos e Pesquisas em Educação Tecnológica, Centro Tecnológico. CEP 88.040-900 – Florianópolis – SC – Brasil. Correio eletrônico: linsingen@emc.ufsc.br RESUMO Algumas características da trajetória histórica do enfoque CTS (Ciência, Tecnologia e Sociedade) e o que ele apresenta para transformações significantes no ensino de engenharia, na perspectiva de atendimento do que é proposto nas novas diretrizes curriculares brasileiras, são abordados nesse artigo. Argumenta-se sobre a pertinência de adotar o enfoque CTS como um facilitador de transfor- mações importantes, através da explicitação e problematização de possíveis obstáculos interpostos à educação em engenharia conseqüentes da assunção de uma concepção restrita ou equivocada das relações entre ciência, tecnologia, sociedade e natureza, que orienta implicitamente os processos de formação de engenheiros. Extraem-se do enfoque CTS contribuições para a incorporação de fa- tores explicativos das múltiplas imbricações da engenharia, numa dimensão até agora mantida a- partada do seu ensino por supostamente não lhe dizer respeito, que é a dimensão sócio-eco- sistêmica da tecnologia. Palavras-chave: Educação tecnológica, Currículo, Ciência-Tecnologia-Sociedade (CTS), Inova- ção social. PORQUE CTS COMO REFERENCIAL Trata-se, evidentemente, de uma posição que ex- Neste artigo são exploradas possíveis causas de pressa uma visão internalista – e em muitos casos obstáculos interpostos à educação em engenharia ingênua – da engenharia, a partir da qual os proble- como conseqüência da assunção de uma concepção mas reais são transformados em estruturas freqüen- restrita das relações entre ciência, tecnologia, socie- temente bastante complexas, mas das quais são eli- dade e natureza, que orienta implícita ou explicita- minados todos os aspectos ditos não-técnicos, o que mente os processos de formação das capacidades na equivale dizer, nesse contexto, socioculturais. engenharia. A posição a esse respeito aqui defendida é que, ao Para que se possa entender um pouco melhor como contrário, a importância e clara interferência da crenças e pressupostos que conferem sustentação a tecnologia no mundo atual e o seu poder de penetra- atitudes hegemônicas no ensino de engenharia ini- ção em todos os recantos provoca a emergência de bem o envolvimento formal dos especialistas técni- contradições naqueles pressupostos que afeta o que e cos com os aspectos que possibilitam uma maior o como fazer da engenharia, com evidente conse- participação pública e uma ampliação do campo de qüência sobre a sua estrutura pedagógica, requeren- competência de sua atividade, é imperativo saber do uma nova forma de abordagem conceitual da onde e como tais pressupostos se originam. coisa técnica e de suas relações. De partida é assumido que tais crenças e pressupos- Desse modo, a identificação e problematização des- tos são tidos como auto-evidentes na área técnica, a ses pressupostos, no campo disciplinar, pressupõe ponto de serem considerados “naturais” da atividade operar sobre uma base “externa” do conhecimento da engenharia, de modo que não chegam a constitu- da engenharia e, também, na visão “filtrada” da ir, em princípio, questões que poderiam ser formal- vivência pessoal como professor e pesquisador. É mente consideradas como pontos de inflexão que aqui que o enfoque CTS pode ser valioso para a justificassem a abertura de um campo de estudos explicitação de pressupostos que podem estar obsta- próprio, destinado à compreensão da coisa técnica e culizando a ampliação da visão do campo de atuação das inter-relações que ela engendra. Os problemas das engenharias, principalmente no que se refere aos técnicos, por essa ótica, requerem apenas soluções seus comprometimentos sociais mais amplos. técnicas em sentido estrito, para as quais existem metodologias laboriosamente estruturadas. O enfoque CTS é bastante amplo e interagente, tor- nando necessário estabelecer os limites de nossa
  2. 2. incursão teórica nesse campo de conhecimento para Os estudos CTS, ou estudos sociais da ciência e da evitar dispersões excessivas. Antes, porém, cabe tecnologia, embora não sejam novos, começam a realizar uma breve incursão na estrutura do movi- tomar um novo e importante rumo a partir de meados mento CTS, revelando suas origens e razões que de 1960 e início dos anos 70, como resposta ao cres- levaram aos desdobramentos e à importância que cimento do sentimento generalizado de que o desen- assumem hoje, principalmente para os países “em volvimento científico e tecnológico não possuía uma desenvolvimento” que, como o Brasil, estão subme- relação linear com o bem-estar social, como se tinha tidos a uma pressão tecnológica em muitos aspectos feito crer desde o século 19. O sonho de que o avanço não compatível com suas condições culturais e eco- científico e tecnológico geraria a redenção dos males nômicas. da humanidade estava chegando ao fim, por conta da tomada de consciência dos acontecimentos sociais e Numa perspectiva mais particular, trata-se também ambientais associados a tais atividades. Tanto na de pensar numa endogenização da tecnologia, vista América do Norte quanto na Europa, os estudos CTS como assimilação crítica e criativa, como processo surgem como uma reconsideração crítica do papel da através do qual seriam estabelecidas algumas carac- ciência e da tecnologia na sociedade, embora com terísticas da tecnologia nos países periféricos, que orientações distintas (Mitcham, 1990). não exclui a sua importação, mas que seja adequada às demandas definidas por uma política de C&T É num clima de tensão gerado pela guerra do Vietnã, com compromissos sociais amplos (Vessuri, 2001). pela guerra fria, pela difusão midiática de catástrofes Nesse sentido, a transferência de tecnologia trans- ambientais e dos horrores provocados pelo aparato forma-se em parte do processo de assimila- tecnológico de destruição posto a serviço da morte ção/geração de tecnologia (Herrera, apud Dagnino, (napalm desfolhante, armas químicas e biológicas…), 2000). Não há nesse processo a intenção de um dos efeitos da ampliação do poder destrutivo das encapsulamento da sociedade que opta por um de- armas nucleares revelados nos testes no Pacífico e nos senvolvimento científico e tecnológico desse tipo, desertos da América do Norte (e pelos esforços que mas implica conquistar autonomia para definir de levaram à assinatura do tratado de limitação de tais que maneira essa sociedade particular deseja funcio- testes), dos movimentos ambientalistas e da contracul- nar, em que base tecnológica deseja proceder. tura que se iniciavam, e também da crítica acadêmica da tradição positivista da filosofia e da sociologia da Ao nível ideológico trata-se, entre outras coisas, de ciência, que se estabelecem as condições para uma um processo de ruptura com a visão tradicional de nova forma de ver as interações entre ciência, tecno- ciência e de tecnologia que segue de uma desociden- logia e sociedade. talização (ou deseuropização), “o assumir a ciência como cultura, o passar do predomínio de atores Desde seu início, os estudos e programas CTS segui- sociais que são 'porteiros' que abrem as portas para ram três grandes direções: no campo da pesquisa, as tecnologias forâneas do mundo desenvolvido ao como alternativa à reflexão acadêmica tradicional apogeu de vetores tecnológicos endógenos, o rees- sobre a ciência e a tecnologia, promovendo uma nova truturar disciplinas científicas que constituem reser- visão não-essencialista e socialmente contextualizada vatórios de conhecimentos elaborados por outras da atividade científica; no campo das políticas públi- culturas, a reavaliação do sentido comum local e a cas, defendendo a regulação social da ciência e da re-construção de tradições, assim como a participa- tecnologia, promovendo a criação de mecanismos ção social na criação de tecnologia” (Vessuri, 2001, democráticos facilitadores da abertura dos processos p. 242). de tomada de decisão sobre questões de políticas científico-tecnológicas; e, no campo da educação, Contudo, para poder mudar é preciso conhecer onde promovendo a introdução de programas e disciplinas se escondem as resistências e reticências, torná-las CTS no ensino médio e universitário, referidos à nova visíveis, debatê-las e, a partir daí, buscar formas imagem da ciência e da tecnologia, que já se estende mais adequadas a critérios democraticamente esco- por diversos países (na Europa e na América Latina, e lhidos. A história pode nos auxiliar nessa busca. nos EUA) (Bazzo, von Linsingen, Pereira, 2003). Na seqüência, realiza-se uma breve abordagem his- Essas três direções reúnem tradições CTS bastante tórica do movimento CTS e de seus desdobramen- diferentes – norte-americana e de países europeus –, e tos, que resultaram nas atuais concepções que são são conectadas pelo chamado “silogismo CTS”, base- empregadas como referenciais para as discussões ado em três premissas. A tradição européia, centrada realizadas e para as propostas de mudança no pro- na pesquisa acadêmica dos antecedentes sociais da cesso de formação de engenheiros, com ampliação mudança científico-tecnológica, trata o desenvolvi- do campo de competência da engenharia, centrado mento científico e tecnológico como um processo na complexidade relacional das novas concepções e conformado por fatores culturais, políticos e econô- imbricações de sociedade e de tecnologia, ou da micos, além de epistêmicos. A segunda premissa sociedade tecnológica. considera a mudança científico-tecnológica como um fator determinante principal que contribui para moldar ORIGENS E DESDOBRAMENTOS DO nossas formas de vida e de ordenamento institucional, MOVIMENTO CTS sendo assunto público de primeira grandeza. Reúne os
  3. 3. resultados da tradição norte-americana, mais pragmá- tica, que se preocupa mais com as conseqüências Para um período histórico de transformações sociais sociais e ambientais da mudança científico- singulares como o da década de 1960, que certamente tecnológica e com os problemas éticos e reguladores já possuía uma trajetória histórica que vinha se for- suscitados por tais conseqüências. A terceira premissa mando desde pelo menos o início do século 20, ambas é a de que todos compartilhamos um compromisso as obras contribuem para que nas duas vertentes do democrático básico. movimento CTS se desenvolva a orientação para uma reconsideração da perspectiva moderna sobre o papel A natureza valorativa desta última justifica a conclu- da ciência e da tecnologia na sociedade, o que acaba são de que, para tanto, “deveríamos promover a avali- se apresentando, em 1999, como um novo contrato ação e o controle social do desenvolvimento científi- social1 para a ciência e a tecnologia. co-tecnológico, o que significa construir as bases educativas para a participação social formada, assim De fato, a imagem da tecnologia como benfeitora da como criar mecanismos institucionais para tornar humanidade já começa a sofrer críticas antes da Se- possível tal participação” (González García, Cerezo e gunda Guerra Mundial, com o surgimento de obras Luján, 1996, p. 227). como Técnica e Civilização de Lewis Mumford (1934), Meditação da Técnica de Ortega y Gasset Essa perspectiva educacional, ao nível da formação (1939), e posteriormente com Heidegger (1954), em engenharia no Brasil, deve ser analisada com o Jacques Ellul (1954), Habermas (1968) e outros. necessário cuidado, uma vez que a participação social formada do engenheiro implica uma reorientação da Talvez o mais influente precursor intelectual do mo- estrutura curricular e pedagógica que altera de modo vimento CTS tenha sido Charles P. Snow, que numa substancial a atual orientação essencialmente técnica conferência Rede em 1959, apresentada em Notre que a estrutura, que de forma sistemática exclui da Dame, cujo teor seria transformado em livro2 logo a formação de engenheiros a abordagem das imbrica- seguir, inaugurou o debate sobre o distanciamento ções da engenharia com a sociedade, o que aponta progressivo entre “duas culturas (incomunicáveis)”, para a necessidade de inclusão de temas CTS na for- uma formada por cientistas e outra por humanistas mação tecnológica. (Cutcliffe, 1990). De forma mais precisa, Snow discu- te o abismo existente entre ciência e literatura. Seu Duas obras bem diferentes, publicadas em 1962, crédito foi justamente o de ter tornado aparente a constituíram um marco importante para o movimento existência de duas culturas que supostamente se o- CTS. Os livros Silent Spring (Primavera Silenciosa) põem. Entretanto, foi a metáfora das duas culturas da bióloga Rachel Carson e A estrutura das revolu- que se tornou marcante para a perspectiva CTS, e ções científicas do historiador e filósofo da ciência atualmente voltou a ser retomada com força, dada a Thomas Kuhn teriam sido marcantes para a ação e notável atualidade do tema e a sua capacidade de reflexão dos estudos CTS. O primeiro, ao expor sérias provocar debates relevantes das questões que envol- questões relativas aos riscos associados aos insetici- vem as interações da ciência e da tecnologia com a das químicos como o DDT, alimenta a reação dos sociedade. movimentos sociais, principalmente ecologistas, paci- fistas e da contracultura, contribuindo de várias ma- Essa metáfora é bastante significativa para as refle- neiras para a criação dos movimentos ambientalistas xões pedagógicas da engenharia, na medida que pos- (Cutcliffe, 1990). O segundo, ao considerar novos sibilita fazer emergir questões relacionadas às intera- enfoques para a atividade científica que se contra- ções da engenharia com o seu entorno sociocultural, põem à concepção tradicional, desencadeia um novo notadamente ausentes na formação profissional, bem ímpeto de reflexões acadêmicas no campo da História como de aspectos da complexidade das relações entre e da Filosofia da ciência (Mitcham, 1989). A partir da ciência, tecnologia e sociedade, a que se acrescenta obra de Kuhn a filosofia toma consciência da impor- necessariamente a natureza, transformada pelo con- tância da dimensão social e das raízes históricas da junto das ações científico-tecnológicas. ciência, ao mesmo tempo em que inaugura um estilo interdisciplinar que tende a diluir as fronteiras clássi- Conseqüências sobre a atividade científico- cas entre as especialidades acadêmicas. tecnológica Passados mais de quarenta anos do início do Para situar melhor as orientações e objetivos dos movimento de “desencantamento”3 científico- estudos CTS atuais, cabe considerar que o movimento CTS tem na sua origem duas vertentes. Uma, ativista 1 O novo contrato social para a C&T, reclamado em fóruns como o social, constituída por grupos com interesses e ten- Congresso de Budapeste (1999), implica num ajustamento da ciência e dências diversas que estavam mais ligados à reivindi- da tecnologia aos padrões éticos que já governam outras atividades sociais, isto é, democratizá-las, para estar então em condições de influir cação social, tais como pacifistas, ecologistas, defen- sobre suas prioridades e objetivos, reorientando-os para as autênticas sores de direitos civis e advogados de consumidores. necessidades sociais, ou melhor, aquelas necessidades que emanem de um debate público sobre o tema (Palacios et alii, In: Bazzo, von Linsin- Outra, como programa acadêmico, orientada para o gen, Pereira, 2003) < http://www.campus- ensino e pesquisa das questões públicas, no âmbito oei.org/salactsi/budapestdec.htm>. 2 universitário, da qual participavam cientistas, enge- As duas culturas e uma segunda leitura: Uma versão ampliada das duas culturas e a revolução científica. Tradução de Geraldo G. de Souza nheiros, sociólogos e humanistas. e Renato A. Rezende Neto. São Paulo : Edusp, 1995.
  4. 4. mento de “desencantamento”3 científico-tecnológico, educacional, para uma maior compreensão das suas a lista de problemas atribuídos à ciência e à tecnologia implicações. parece crescer mais que suas inegáveis benesses, contribuindo para isso tanto a academia quanto a A CONCEPÇÃO CLÁSSICA DE C&T E A mídia, o que concorre para o acirramento das contra- PERSPECTIVA DA ENGENHARIA dições da percepção pública da ciência e da tecnolo- Para essa fase inicial dos estudos e pesquisas educa- gia. cionais com comprometimentos social e ambiental explícitos na área técnica, percebendo a pertinência de Por conta disso, constata-se um crescente descrédito uma abordagem mais próxima de demandas identifi- social no conhecimento dos especialistas, que antes cadas com os atores da área técnica, adoto com refe- detinham autoridade inquestionável em suas áreas. rência ao enfoque CTS, que é assumida a concepção Agora, a sociedade civil não apenas questiona como clássica das relações entre ciência, tecnologia, socie- procura interferir diretamente nos rumos das coisas dade e natureza que expressa o desenvolvimento tecnológicas. Por outro lado, criam-se resistências por como um processo no qual mais conhecimento cientí- parte de engenheiros e tecnólogos, que se sentem de- fico determina linearmente mais tecnologia – que tentores do conhecimento técnico. É comum ouvirmos implica mais domínio e submissão da natureza – que declarações do tipo: “a comunidade não pode se ma- conduz a mais desenvolvimento econômico, que nifestar em assunto de competência técnica, por não resulta em mais desenvolvimento social (associado a dominar conhecimentos técnicos”. Trata-se presumi- mais bem-estar). O “modelo linear de desenvolvimen- velmente de um impasse ideológico provocado por to” se estabelece num contexto de neutralidade e um desconhecimento das implicações sociais da ativi- autonomia alheio a qualquer processo de valoração dade técnica por parte dos especialistas. Mas também axiológica, e que se traduz incondicionalmente em está relacionado a uma inadequação dos significados benefícios para a humanidade. da tecnologia. Esta concepção emerge com notável freqüência no Entretanto, a forma tradicional de entendimento con- mundo acadêmico e confere sustentação a muitos dos ceitual da ciência e da tecnologia como atividades discursos que se assentam em argumentação técnica, autônomas, neutras e benfeitoras da humanidade, esta considerada essencialmente neutra. Essa forma cujas raízes estão firmemente fincadas no século de ver estaria associada à imagem da tecnologia como passado, continua a ser utilizada na academia para “braço armado” da ciência pura, ou seja, a tecnologia legitimar suas atividades. Para González García, Ce- seria reduzida à aplicação da ciência, ou a tecnologia rezo e Luján, “é esta concepção tradicional, assumida seria a aplicação da ciência à construção de artefatos, e promovida pelos próprios cientistas e tecnólogos, a ou apenas identificada com os artefatos. que em nossos dias continua sendo usada para legiti- mar formas tecnocráticas de governo e continua ori- A vinculação unívoca da ciência à tecnologia sugerida entando o projeto curricular em todos os níveis de pelo modelo linear de desenvolvimento estabelece ensino” (González García, Cerezo e Luján, 1996, p. também uma “oportuna” comunhão da tecnologia 26). com os preceitos clássicos de neutralidade e autono- mia imputados à atividade científica4, preceitos estes É neste contexto que surgem e se desenvolvem os que também se manifestam nos atos pedagógicos da estudos CTS, constituindo uma resposta da engenharia, embora seja difícil justificá-los logica- comunidade acadêmica internacional à crescente onda mente, sobretudo na atualidade, em face das evidên- de insatisfação com a concepção tradicional da cias das interações complexas da tecnologia com a ciência e da tecnologia. Em essência, trata-se de sociedade, como mostram os acontecimentos socio- “ressaltar a dimensão social (e prática) da ciência e da técnicos que se tem assistido e dos quais se participa tecnologia, opondo-se a uma visão anacrônica sobre a direta ou indiretamente. natureza especial da ciência como forma autônoma de conhecimento e a tecnologia como ciência aplicada; Segundo essa mesma concepção parcelar, a engenha- contribuem desse modo para a desmistificação da ria exerceria um papel de mediação significativo entre imagem tradicional da ciência-tecnologia” (idem), que ciência e tecnologia, na medida que as suas produ- tem orientado entendimentos e ações desde a ções, que se materializam em artefatos tecnológicos, revolução industrial. Particularmente, foi a imagem da estariam centralmente relacionadas à apropriação e tecnologia como ciência aplicada que contribuiu para aplicação de princípios científicos, que serviriam a concepção pedagógica adotada na engenharia, sendo esse um dos principais motivos de se buscar na 4 A concepção clássica ou “concepção herdada” da ciência, legado do abordagem CTS uma releitura dessa prática positivismo lógico (Carnap, Reichenbach, Hempel, Nagel), concebia o desenvolvimento científico como um processo regulado por um rígido código de racionalidade que, complementado pelo princípio ético de 3 Este termo é empregado aqui como indicativo de que a explicitação de honestidade profissional, fazia de tal desenvolvimento um processo aspectos mais delicados da atividade científico-tecnológica resultou progressivo de aproximação da verdade. Nessa concepção, o progresso numa perda de credibilidade no caráter benfeitor e neutro da ciência e da científico só era possível se a busca da verdade – regulada unicamente tecnologia, materializada pela reação social e acadêmica a partir da pela equação “lógica + experiência” – constituísse o objetivo exclusivo década de 1960. Esse termo procura incluir também uma positividade no do empreendimento científico, de modo que qualquer valor, por mais fato de que o desencantamento pode desencadear uma tomada de benemérito que fosse, era visto como uma interferência que só podia consciência sobre as diferentes possibilidades da C&T, tornando mais obstaculizar ou deter o desenvolvimento do conhecimento (González consciente o caráter das suas produções. García, Cerezo e Luján, 1996).
  5. 5. igualmente para realimentar tecnologicamente o pró- envolvimentos mais amplos) da engenharia. prio desenvolvimento científico. Nesse sentido os engenheiros, a cuja atividade se atribui intensidade, Nos sentidos aqui expostos, o currículo de engenharia eficácia e qualidade, exerceriam um papel importante possui um compromisso com a generalidade, além na tecnociência5. Trata-se de uma parte já considerá- daquele que já possui com a especificidade. Mas, vel da ciência, mas não a toda a ciência atual. A e- mais do que generalidade, esse mesmo currículo de- mergência da tecnociência não implica a subsunção veria se ocupar com a complexidade do conhecimento da ciência, da técnica e da tecnologia. Estas quatro da engenharia, complexidade que emerge das imbri- modalidades de saber continuam existindo hoje em cações da engenharia com os outros atores sociais. dia e é possível distingui-las entre si (Echeverría, 2001, p. 222). A engenharia no contexto da tecnoci- As diretrizes curriculares para os cursos de engenharia ência seria apenas uma das diversas modalidades de no Brasil6, em seu artigo 3º, sugerem a abordagem atividade da engenharia. dessa perspectiva. Entretanto, a implementação dessas transformações, a maioria delas fruto de pressões A engenharia, em termos gerais, desenvolve-se nos externas (de outros atores sociais), exige uma releitura mais diversos contextos e nas mais diferentes condi- das práticas seculares da engenharia. O fato é que não ções e, nesse sentido, a própria idéia de engenharia se há correspondência entre a prática pedagógica e as relaciona mais à idéia de processo de transformação concepções de mudança expressas nas diretrizes. Há ligada ao quefazer da sociedade – e portanto relacio- certamente razões bastante fortes para que isso acon- nada à cultura –, o que lhe confere um estatuto pró- teça desse modo, e provavelmente as mais importan- prio de atividade de inúmeras faces e finalidades, que tes estariam relacionadas com as assunções que se não possui compromisso exclusivo com a ciência de manifestam na defesa de pressupostos históricos asso- concepção tradicional, embora dela se utilize. ciados com essa prática. E é por essa razão que o enfoque CTS constitui uma forma bastante adequada Quando a engenharia é usada como suporte à pesquisa de aproximação e explicitação dessas tendências, já científica, ou participa diretamente da atividade cien- que a sua aceitação e o contexto das intervenções que tífica, deve fazê-lo em condições específicas, com se manifestam a partir dele são mais próximos e por desenvolvimento de capacidade cognitiva para esse isso mais aceitáveis pelos atores da área técnica. fim, de modo a possibilitar uma interlocução frutífera entre cientistas e engenheiros que, em vários casos, CTS E O CONTEXTO DA EDUCAÇÃO EM pode chegar a diluir a delimitação de seu campo de C&T NOS EUA E NA EUROPA competência. Os engenheiros, nesse caso, podem Os programas de Ciência, Tecnologia e Políticas assumir postura científica. Esta conotação, entretanto, Públicas (STPP) nos EUA surgiram como uma res- não pode ser considerada como tendência geral da posta a necessidades sentidas no interior das comuni- engenharia, posto que essa atividade possui envolvi- dades científicas e tecnológicas, sendo que nas institu- mentos muito mais amplos que os dos interesses da ições tecnológicas mais importantes dos EUA esta- ciência como atividade que se ocupa principalmente vam proximamente relacionados com as escolas de em desvelar verdades do universo. engenharia, e não por acaso. A presença da ciência na Segunda Guerra Mundial revelou, por um lado, que Do mesmo modo, apesar de fortes ligações, a enge- “a gestão de ciência e tecnologia em suas novas e nharia não possui compromisso exclusivo com a complexas interações com o governo e a sociedade empresa, como se esforça por fazê-lo o poder hege- exige capacidades especiais. A experiência não é mônico – já de dentro das instituições de ensino –, suficiente para que os engenheiros aprendam a fazê- caso em que emerge sutil, mas firme, a defesa do lo, e os gestores tradicionais carecem, em geral, da supostamente intrínseco caráter neutro e benfeitor da educação e habilidades necessárias para comunicar-se atividade. Com isso reduzem-se as chances do reco- efetivamente com o pessoal científico” (Mitcham, nhecimento do necessário desenvolvimento de capa- 1990, p. 16). Essa participação da ciência e da enge- cidade crítica do engenheiro ou, o que se tornou fre- nharia, como mostram Mayor e Forti (1998) se inten- qüente, atribui-se a este apenas o caráter de crítica do sifica no período da guerra fria, indicando que a tec- produto técnico, ou seja, restrita ao desenvolvimento nociência atual está também profundamente relacio- técnico, característico do feitio internalista (ou esoté- nada com a indústria bélica. Desafortunadamente, os rico) que se atribui à atividade. Essa defesa se dá fatos que emergiram após setembro de 2001 nos EUA normalmente pela via cruel da indiferença e do não- favoreceram a retomada dos investimentos massivos debate, que oculta as interações substantivas (ou os no sistema industrial-militar. 5 Tecnociência – “A importância outorgada a instrumentos e técnicas Tais fatos revelam a influência da ciência e da tecno- dentro de algumas tendências da tradição européia promoveu […] o logia para as sociedades, bem como a importância dos tratamento conjunto da ciência e da tecnologia. Um exemplo é a […] «rede de atores» de Latour e Callon, segundo a qual a ciência não tecnólogos nesse processo de construção da condição consiste em pura teoria nem a tecnologia em pura aplicação, senão que humana e reforça, em nível mundial, a necessidade de ambas, fundidas no termo «tecnociência» (como algo vivo e distinto de nossa percepção oficial delas: a «ciência e tecnologia») consistem de uma reorientação e contínua análise das políticas redes de cujos nós também fazem parte todo tipo de instrumentos relevantes. Os produtos da atividade científica, as teorias, não podem, 6 portanto, continuar sendo separados dos instrumentos que participam de Resolução CNE/CES 11, de 11 de março de 2002. sua elaboração” (González García, Cerezo e Luján, 1996, p. 87). <http://www.mec.gov.br/sesu/ftp/resolucao/1102Engenharia.doc>
  6. 6. pedagógicas das instituições de ensino tecnológico, a O ENFOQUE CTS E O ESPAÇO DE RELA- par da participação social mais ampla nas políticas ÇÕES DA ENGENHARIA públicas de ciência e tecnologia. Os estudos CTS constituem um campo de trabalho de caráter crítico com relação à tradicional imagem es- Os programas CTS nos EUA foram criados nos finais da sencialista da ciência e da tecnologia, e de caráter década de 1960 como resposta a influências externas da interdisciplinar para o qual concorrem disciplinas ciência e da tecnologia, basicamente, como já comenta- como a filosofia da ciência e da tecnologia, a sociolo- do, em decorrência das pressões dos movimentos ambi- gia do conhecimento científico, a teoria da educação e entalistas e de consumidores, que fizeram emergir uma a economia da mudança tecnológica. Os estudos CTS preocupação pública com os rumos da mudança tecno- buscam compreender a dimensão social da ciência e lógica, que acabaram por provocar a criação de diversas da tecnologia, tanto do ponto de vista de seus antece- organizações tais como a Agência de Proteção Ambien- dentes sociais como de suas conseqüências sociais e tal e o Escritório de Avaliação Tecnológica. ambientais, quer dizer, tanto no que toca aos fatores de natureza social, política ou econômica que modu- A Alemanha, em decorrência de sua aproximação lam a mudança científico-tecnológica, como no que com a filosofia da tecnologia e com a crítica filosófica concerne às repercussões éticas, ambientais ou cultu- em geral, da mesma maneira que está envolvida com rais dessa mudança (Bazzo, von Linsingen, Pereira, a técnica de modo muito abrangente, esteve sempre 2003). imersa numa tensão entre o tecnocatastrofismo e o tecnootimismo. A caracterização desse novo enfoque das relações entre ciência, tecnologia e sociedade é fundamental- A filosofia da tecnologia nasceu “oficialmente” na mente contrária à imagem tradicional da C&T – as- Alemanha em 1877, com a publicação do livro de sumida como atividade autônoma que se orienta ex- Ernst Kapp (contemporâneo de Marx) intitulado clusivamente por uma lógica interna e livre de valora- Grundlinien einer Philosophie der Technik (Funda- ções externas –, na medida que transfere o centro de mentos de uma filosofia da técnica), no qual desen- responsabilidade da mudança científico-tecnológica volve a concepção da tecnologia como uma complexa para os fatores sociais, ou seja, o fenômeno científico- projeção das faculdades e atividades humanas. Mit- tecnológico passa a ser entendido como processo ou cham, considerando que o termo alemão Technik produto inerentemente social onde os elementos não pode ser traduzido por “tecnologia” e “engenharia”, epistêmicos ou técnicos (como valores morais, con- prefere referir-se a Kapp como a pessoa que alcunhou vicções religiosas, interesses profissionais, pressões a expressão “filosofia da tecnologia” ou “filosofia da econômicas etc.), desempenham um papel decisivo na engenharia” (Mitcham, 2001, p. 34). gênese e consolidação das idéias científicas e dos artefatos tecnológicos (idem, p. 126). Na perspectiva CTS atual, a tecnologia tende a ser vista mais como forma de organização social, com Em termos de ensino de engenharia, essa mudança de interações complexas, incorporando aspectos que não eixo pode significar uma transformação radical nos são comuns à concepção tradicional de engenharia, o processos cognitivos, na medida que a atividade en- que sugere que as duas expressões podem ser utiliza- genheiril, pensada como atividade meio, passaria a ser das com enfoques diferentes no tratamento da questão orientada por uma lógica distinta da que hoje a estru- tecnológica. Nesse sentido, engenharia e tecnologia tura, orientada para a técnica como meio e não um são coisas distintas, embora umbilicalmente ligadas. fim em si mesma. Em termos históricos, entende-se que a técnica possui apenas caráter procedimental, e Da mesma maneira, Peter Engelmeier (1855-1941), assim o passado é traduzido como algo "superado" e um dos fundadores da engenharia profissional russa, ao futuro é atribuído o significado de "aperfeiçoamen- defendia há mais de cem anos uma formação não to" dos procedimentos. Nesse universo de meios, que apenas técnica dos profissionais de engenharia. Ele visa exclusivamente ao aperfeiçoamento e potencia- afirmava que “se os engenheiros irão ocupar seu lugar mento da própria instrumentação, no qual o mundo da legítimo nos assuntos do mundo, não só devem ser vida torna-se totalmente dependente do aparato técni- formados em seus campos técnicos, mas também na co, os humanos acabam por tornar-se funcionários compreensão sobre o impacto e a influência social da deste aparato (Galimberti, 1999). Na perspectiva aqui tecnologia”. (Engelmeier, apud Mitcham, 2001, p. abordada, visa-se à superação dessa condição. 34). Esse é um ponto fundamental para as reflexões realizadas neste artigo, posto que um dos desdobra- Porque há uma dinâmica social que envolve a tudo e a mentos da abordagem CTS está relacionado à pers- todos nesses tempos de exultação das tecnologias de pectiva de uma educação em engenharia. A essa informação e comunicação (TIC), pode-se considerar perspectiva associa-se a idéia da alfabetização cientí- que a práxis acadêmica da engenharia constitui-se de fica e tecnológica presente nos objetivos educacionais uma mescla de concepções das relações CTS, com- CTS, com a conotação de uma formação em engenha- posta tanto pela concepção tradicional das relações ria que considere a interdisciplinaridade (não apenas entre ciência, tecnologia e sociedade quanto por con- técnica) como necessidade para o engenheiro da soci- cepções mais progressistas, não havendo uniformida- edade tecnológica. de entre e nas diversas modalidades de engenharia. Contudo, de acordo com a compreensão aqui desen-
  7. 7. volvida, admite-se que ainda há prevalência das rela- provoca com as novas relações de mercado, e mesmo ções tradicionais na conformação dessa práxis, e que com a intensificação da divulgação dos efeitos nem configuram muitas das resistências existentes ao pro- sempre benéficos da tecnologia. Em qualquer caso, na cesso de mudança. relação tecnologia-sociedade manteve sempre uma rigidez dos limites de interação, ou seja, uma separa- Basicamente, parte-se da concepção linear que enxer- ção estratégica, já que valores e interesses mais implí- gava a ciência como processo de desocultamento dos citos, imagina-se, não pertencem ao campo da técnica, aspectos essenciais da realidade, de desvelamento de abrindo espaço para as atitudes tecnocráticas, o que leis que a governam em cada parte do mundo natural foi plenamente absorvido pelo ideário da engenharia. e social. Essas leis, universais, possibilitariam a trans- formação da realidade com o concurso dos procedi- Entretanto, o tecido tecnocientífico não existe à mar- mentos das tecnologias, que constituiriam ciência gem do próprio contexto social em que se desenvolve, aplicada à produção de artefatos. Nessa concepção, e no qual os conhecimentos e os artefatos adquirem tanto ciência quanto tecnologia, e por extensão todas relevância e valor. Desse modo, as imbricações entre as áreas técnicas que lhes dão sustentação, deveriam ciência, tecnologia e sociedade apresentam uma com- estar alheias a interesses, opiniões e valorações. Os plexidade muito maior do que as decorrentes das resultados de uma tal ciência e tecnologia seriam relações imaginadas entre campos estanques que se colocados a serviço da sociedade para que ela decidis- comunicam, mas sem interpenetração, apontando para se sobre seus usos, de tal modo que dessa relação uma análise mais cuidadosa e abrangente das recipro- resultariam os instrumentos cognitivos e práticos que cidades, ao invés da simples aplicação da clássica proporcionariam a melhoria contínua da vida humana relação linear entre elas. e do bem-estar social. A PERSPECTIVA EDUCACIONAL CTS Atualmente, apesar de delimitações relativamente PARA A ATIVIDADE ACADÊMICA rígidas dessas fronteiras nas áreas técnicas, percebe-se No âmbito acadêmico, desde os primeiros pro- a inadequação dessa separação, principalmente no que diz respeito à relação entre ciência e tecnologia, apro- gramas vinculados a universidades como a da ximação que já ocorre há bastante tempo. A cisão Pensilvânia na América do Norte e de Edimburgo entre conhecimentos científicos e artefatos tecnológi- no Reino Unido nas décadas de 1960 e 1970, CTS é cos não é muito adequada, já que fica cada vez mais já considerado um campo consolidado em várias evidente que para a configuração daqueles é muitas universidades e centros educativos em outros países. vezes necessário contar com estes. O oposto é ainda mais evidente para engenheiros e tecnólogos. O co- Em países da América Latina, como Argentina, Co- nhecimento científico da realidade e sua transforma- lômbia, Cuba e Brasil, embora recente, o enfoque ção tecnológica não são processos independentes e educacional CTS já está presente na pesquisa e na sucessivos, senão que se acham entrelaçados em uma educação em e sobre ciência e tecnologia (Ibarra e trama na qual constantemente se juntam teorias e Cerezo, 2001). No Brasil, os estudos CTS, com a dados empíricos com procedimentos técnicos e artefa- conotação aqui emprestada, são desenvolvidos na tos. Unicamp e na UFSC, com orientações diferenciadas, em decorrência das suas origens e dos seus objetivos. Por seu turno, a relação entre tecnologia e sociedade, para os engenheiros, apresenta-se tão profundamente Na Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC), enraizada que parece não haver qualquer razão para tais estudos estão mais diretamente orientados para a debates. Identificada com artefatos, e portanto com educação CTS com maior tradição no âmbito da edu- um dos produtos da atividade da engenharia, de uma cação de nível médio e, mais recentemente, consoli- suposta evidente imbricação, acabou por tornar-se dando também uma posição para a educação de nível oculta e, de modo mais contundente, não pertencente universitário e formação docente, através do recém- ao espaço da atividade técnica como tal, mas apenas criado Programa de Pós-graduação em Educação ao espaço da ética da engenharia. Científica e Tecnológica (2001) vinculado ao Centro de Ciências Físicas e Matemáticas (CFM) e ao Centro Nessa acepção, a imbricação entre tecnologia e socie- de Educação (CED), mas com aporte intercentros e, dade esteve sempre presente através da própria defini- desse modo, de caráter intrinsecamente interdiscipli- ção de engenharia, como normatizadora da atividade, nar. Mas sua origem é bem anterior, uma vez que pelo menos até meados da década de 1990: a ativida- deriva do Programa de Pós-graduação em Educação, de da engenharia deve estar voltada para o bem-estar originalmente vinculado ao Centro de Educação da da sociedade. Mas já não se apresenta dessa maneira, UFSC, mas operando em bases semelhantes desde tendo sofrido modificações para uma relação “mais 1986. flexível”, contexto-dependente (Mitcham, 2001): em atendimento às "demandas da sociedade". Rapida- A ampliação da interdisciplinaridade do programa, mente essa conexão tende a transformar-se em mera com a participação formal, entre outros, do Centro retórica ética, ou em transferência de responsabilidade Tecnológico da UFSC é um indicativo de uma de- para outras áreas do conhecimento, justamente em manda e de uma perspectiva interdisciplinar que é razão de conflitos e contradições que a postura moral própria do enfoque CTS, desde sua origem, e sugere
  8. 8. uma salutar aproximação entre centros até então con- para as potencialidades oferecidas pelo enfoque siderados “incomunicáveis”. Esse novo programa CTS. possui, justamente por essa forma constitutiva, um compromisso com a ampliação das perspectivas for- Em 2003, consolidando uma atuação conjunta do madoras do que em CTS poderia se identificar com a NEPET com a OEI (Organização de Estados Ibero- consciência social da Ciência e da Tecnologia por americanos), é publicado em versão portuguesa o parte de seus atores. Ao mesmo tempo, ao trabalhar livro “Introdução aos estudos CTS (Ciência, Tecno- numa perspectiva de alfabetização científica e tecno- logia e Sociedade)” (Bazzo; von Linsingen; Pereira lógica, pode viabilizar uma maior aproximação nego- (Eds.), 2003). ciada da C&T com o público em geral, conferindo “transmissão de poder social”, objetivando a supera- Algumas conseqüências práticas dessa trajetória na ção da ação tecnocrática, e também com o sentido área técnica se verificam através da proposta e pos- proposto pelo novo contrato social para a ciência e a terior introdução de uma disciplina optativa para os tecnologia. cursos de graduação em engenharia abordando as- pectos das interações entre ciência, tecnologia e Enfoque CTS no ensino de engenharia na UFSC sociedade. Embora a preocupação com os aspectos pedagógicos e epistemológicos da educação tenha uma trajetória Essa trajetória decorre de uma sincronia com preo- que já começa em meados da década de 1980, como cupações atuais que tem afetado a prática tecnológi- atestam trabalhos divulgados em congressos e em ca e a atividade engenheiril, decorrentes de pressões livro (Pereira; Bazzo, 1997), um envolvimento mais sociais e tecnológicas de diferentes atores. explícito e formal com o enfoque CTS começa a se configurar a partir de 1997 através de uma tese de Buscando consolidar-se como programa de pesquisa doutorado em educação do Programa de Pós- e de educação na área tecnológica, o enfoque CTS graduação em Educação (CED/UFSC), que se trans- está se mostrando como fonte fecunda para a crítica forma posteriormente em livro (Bazzo, 1998). Esse do processo educacional das áreas técnicas, incluin- trabalho trata de aspectos educacionais e epistemo- do as engenharias e os cursos técnicos, com potenci- lógicos do ensino de engenharia, e se ocupa também alidades transformadoras. em defender a introdução do enfoque CTS no ensino de engenharia, propondo a formação de professores Como conseqüência, duas tendências complementa- de engenharia com esse viés, o que era uma novida- res passam a alimentar as atividades no âmbito do de para a área técnica. Essa imbricação da pesquisa NEPET. Uma, de caráter mais teórico, voltada para a em educação na UFSC com o enfoque CTS visando pesquisa e a reflexão do processo tecnológico e do à área técnica, dá-se como conseqüência de um in- quefazer da atividade engenheiril na perspectiva tercâmbio realizado com pesquisadores do departa- CTS, e outra de caráter mais pragmático voltada mento de filosofia da Universidade de Valência, para uma prática educacional transformadora na área Espanha, constituindo esta uma outra vertente CTS técnica. que seria incorporada ao Programa de Pós- Graduação em Educação Científica e Tecnológica. No caso da formação técnica universitária, não é Simultaneamente, trabalhos tratando de questões surpreendente que a perspectiva da educação tecnoló- educacionais da área técnica com enfoque CTS, gica com enfoque CTS tenha seguido essa trajetória. publicados em congressos da área, começam a dar A par das políticas universitárias nacionais, o status corpo ao que viria a se transformar em 1997 no de excelência acadêmica na área da engenharia mecâ- Núcleo de Estudos e Pesquisas em Educação Tecno- nica, indicativo do alinhamento da atividade acadêmi- lógica (NEPET). (Bazzo; Pereira; von Linsingen, ca com as políticas públicas de Ciência e Tecnologia e 2000) interesses hegemônicos, precipitou a emergência de Em 2002, com uma abordagem mais orientada tensões internas no que diz respeito à natureza da para a identificação e explicitação de pressupostos atividade acadêmica e ao caráter da formação profis- balizadores da práxis da engenharia e de seu ensino sional – com disputas curriculares –, como reflexos empregando o enfoque CTS como referencial, outra das disputas de poder. Essas tensões acabaram por tese de doutorado (von Linsingen, 2002) propõe a fazer emergir contradições discursivas e comporta- introdução de temas identificados com questões mentais centradas precisamente em pressupostos de relevantes da área tecnológica com o recurso didáti- origem positivista e também em concepções alternati- co da transversalidade nas disciplinas técnicas dos vas sobre a natureza do conhecimento técnico e de cursos de graduação e de pós-graduação, buscando sua finalidade e, em tal contexto, criaram-se condi- uma aproximação com as propostas transformadoras ções propícias para a construção de uma percepção da presentes nas novas diretrizes curriculares para os quase completa ausência de uma formação técnica cursos de graduação em engenharia no Brasil. Da socialmente referenciada e contextualizada segundo o mesma forma, corroborando e ampliando as perspec- enfoque aqui abordado. tivas abertas na tese anterior, realça a necessidade de uma formação profissional contínua e interdiscipli- A orientação CTS adotada neste artigo, que é também nar do docente de engenharia, sugerindo que tal a que anima as reflexões e ações no âmbito do formação poderá ser mais relevante se for orientada NEPET, confere poder explicativo para muitas das
  9. 9. indagações e inquietações relativas às imbricações da como especialização de pós-graduação (especializa- engenharia com a ciência, a tecnologia, a sociedade e ção, mestrado) ou como complemento curricular para a natureza, por um viés novo e quiçá mais sincrônico estudantes de diversas procedências. com o pensamento e as ações da área técnica, abor- dando temas que, embora façam parte da atividade da Trata-se, por um lado, de proporcionar uma formação engenharia, normalmente não são considerados na humanística básica a estudantes de engenharia e ciên- formação tecnológica. É esse viés que permite identi- cias naturais. O objetivo é desenvolver nos estudantes ficar lacunas e obstáculos socioepistêmicos na forma- uma sensibilidade crítica acerca dos impactos sociais ção técnica, como os decorrentes do não- e ambientais derivados das novas tecnologias ou a reconhecimento formal das imbricações sociais da implantação das já conhecidas, formando por sua vez técnica na formação de engenheiros, ou o da forma- uma imagem mais realista da natureza social da ciên- ção sociotécnica de caráter unilateralmente tecnocien- cia e da tecnologia, assim como do papel político dos tífico, ou ainda o da visão de tecnologia como proces- especialistas na sociedade contemporânea. so social e dos artefatos tecnológicos como construto sociocultural. Por outro lado, trata-se de oferecer um conhecimento básico e contextualizado sobre ciência e tecnologia Embora ciência e tecnologia possuam profundas aos estudantes de humanidades e ciências sociais. O ligações, há que se reconhecer que a formação cientí- objetivo é proporcionar a estes estudantes, futuros fica difere da formação tecnológica em muitos aspec- juízes e advogados, economistas e educadores, uma tos, e que as atividades de cientistas e tecnólogos são opinião crítica e informada sobre as políticas tecnoló- distintas, inclusive por suas trajetórias e determina- gicas que os afetarão como profissionais e como cida- ções históricas. Além disso, de acordo com a linha dãos. Assim, essa educação deve capacitá-los para argumentativa deste trabalho, a tecnologia não se participar de forma frutífera em controvérsias públi- reduz à aplicação da ciência, podendo ser caracteriza- cas ou em discussões institucionais sobre tais políti- da como uma atividade social complexa para a qual cas. concorrem atividades e interesses os mais diversifica- dos, de modo que os artefatos, como um dos produtos A polêmica cisão da vida intelectual e prática do dessa atividade, possuem qualidades não apenas téc- ocidente em dois grupos diametralmente opostos, nicas stricto sensu. Por conta disso, algumas das a- separados por um abismo de incompreensão mútua, proximações entre ciência e tecnologia no âmbito da levantada por Snow, referia-se às culturas humanística formação técnica devem ser analisadas com o devido e científico-tecnológica. O propósito principal da cuidado, principalmente no que respeita ao caráter educação CTS é tratar de fechar essa brecha entre mesmo da produção técnica e de sua abrangência e duas culturas, posto que tal brecha constitui um terre- significância social, num momento histórico de acele- no fértil para o desenvolvimento de perigosas atitudes ração (e do reconhecimento) dos envolvimentos soci- tecnófobas (e também tecnófilas), e ainda mais a de ais da tecnologia, e das novas compreensões que daí dificultar a participação cidadã na transformação decorrem. tecnológica das formas de vida e de ordenamento institucional. O reconhecimento da sincronia das transformações tecnológicas com o processo de mundialização eco- Dadas as novas orientações educacionais que essa nômica, e os modos como modificam a vida em soci- perspectiva oferece ao nível de formação básica, de edade, altera a própria forma de ver a tecnologia e a um processo que já se encontra em andamento, com formação técnica, no sentido de que os aspectos so- notável poder de penetração e consolidação, pode-se cioculturais subsumidos na técnica não podem deixar considerar que, uma vez implementada essa forma- de ser considerados como elementos de formação, sob ção em nível médio, um impacto sobre a formação pena de formar profissionais cada vez mais alheios ao universitária se fará notar, provocando a emergência papel social especial que lhes cabe nesse mundo, de questões sociotécnicas que não eram explicita- especialmente quando se admite a cada vez mais mente apresentadas na formação universitária, de notória interferência social e ambiental associada à modo que é no mínimo conveniente que as estrutu- atividade da engenharia. ras universitárias se atenham a considerar seriamente a inclusão da perspectiva CTS na formação profis- CTS EM NÍVEL UNIVERSITÁRIO sional, especialmente nas áreas técnicas. Um elemento chave dessa mudança da imagem da ciência e da tecnologia propiciado pelos estudos CTS Uma ação disciplinar, com tratamento transversal, consiste na renovação educativa, tanto em conteúdos destinada a suprir parte dessa carência formativa para curriculares como em metodologias e técnicas didáti- os alunos de todas as modalidades de engenharia cas. Neste sentido têm-se desenvolvido os programas constitui, e assim é entendida no contexto desta refle- educativos CTS, implantados no ensino superior de xão, uma importante contribuição para uma formação numerosas universidades desde finais dos anos 1960 voltada para a visão ampliada do comprometimento (Solomon, 1993; Yager, 1993; VV.AA. 1998). social da engenharia. Ações que são consideradas importantes, nesse momento, passam pela estrutura- Em linhas gerais, no âmbito do ensino superior, ção de programas de formação de professores de pretende-se que os programas CTS sejam oferecidos engenharia e de políticas institucionais de fomento à
  10. 10. formação CTS para professores de engenharia de todo terdisciplinares en la Universidad, la Educación y en o país, entre outras. A orientação, no entendimento la Gestión Pública, Barcelona: Anthropos, 1990. aqui defendido, é que aspectos da história, da sociolo- gia e da filosofia da ciência e da tecnologia deveriam Dagnino, R., “A Relação Pesquisa-Produção: em consubstanciar os programas de formação de profes- busca de um enfoque alternativo”, In: Santos, L. W.; sores, além dos aspectos didático-pedagógicos (prati- Ichikawa, E. Y.; Sendin, P. V.; Cargano, D. F. camente inexistentes ou desvirtuados nos atuais mo- (Org.), Ciência, Tecnologia e Sociedade: o desafio delos de estágio-docência dos programas de Pós- da interação, Londrina: IAPAR, 2002. graduação). Dagnino, R. (Org.), “Amilcar Herrera: um intelectu- Considera-se, contudo, que para o ensino de engenha- al latino-americano”, Campinas: Uni- ria esta é uma condição necessária, mas não suficien- camp/IG/DDCT, 2000. te. Acredita-se ser necessário que, além de proporcio- nar formação humanística básica conforme expresso Echeverría, J., “Tecnociencia y sistemas de valores”, anteriormente, o próprio conhecimento tecnocientífi- In: Cerezo, J. A. L.; Ron, J. M. S., Ciencia, tecnolo- co deva ser conceitualmente transformado e que a sua gía, sociedad y cultura en el cambio de siglo, Madrid: preparação didática incorpore essas concepções da Biblioteca Nueva/OEI, 2001. natureza social e cultural da ciência e da tecnologia, além dos tradicionais critérios econômicos e de eficá- Galimberti, U., “Psiche e techne. L'uomo nell'etá della cia já incorporados e dados como “naturais” e ima- técnica”, Roma: Feltrinelli, 1999. nentes na técnica. González García, M. I.; Cerezo, J. A. L.; Luján, J. L. A consolidação de uma educação tecnológica que L., “Ciencia, tecnología y sociedad. Una introducción contemple a abordagem das imbricações CTS ao nível al estudio social de la ciencia y la tecnología”, Ma- do conhecimento tecnocientífico, como aqui tratadas, drid: Tecnos, 1996. pode ser favorecida por meio de três ações concatena- das: a assunção curricular da interdisciplinaridade Ibarra, A.; Cerezo, J. A. L., “Desafíos y tensiones como necessidade para o tratamento pedagógico dos actuales en ciencia, tecnología y sociedad”, Madrid: assuntos científicos, tecnológicos, sociais e ecológi- Biblioteca Nueva/OEI, 2001. cos; o tratamento transversal da temática CTS na abordagem disciplinar das áreas técnicas; e uma ade- Mayor, F.; Forti, A., “Ciência e poder”, Campinas: quada transposição didática7 que permita a explicita- Papirus, 1998. ção das imbricações sociotécnicas do conhecimento tecnocientífico. Mitcham, C., “La importancia de la filosofía para la ingeniería”, In: Cerezo, Luján e Palacios (Orgs.), AGRADECIMENTOS Filosofía de la tecnología, Madrid: OEI, 2001. O autor agradece à comissão organizadora do COCIM, em especial ao prof. Luiz Sanchez e ao Ing. _____, “En busca de una nueva relación entre Cien- Hugo Cayo Vilca, pela oportunidade oferecida e por cia, Tecnología y Sociedad”. In: Medina, M.; Sanmar- sua gentileza e pronto atendimento na resolução de tín, J. (Orgs.), Ciencia, Tecnología y Sociedad: Estu- questões relativas à publicação deste artigo. dos Interdisciplinares en la Universidad, la Educación y en la Gestión Pública, Barcelona: Anthropos, 1990. REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS _____, “¿Qué es la Filosofía de la Tecnología?”, Bazzo, W; von Linsingen, I; Pereira, L.T.V. (Eds.), Barcelona: Anthropos, 1989. “Introdução aos Estudos CTS (Ciência, Tecnologia e Sociedade)”, Madrid: OEI, 2003. Pereira, L.T.V.; Bazzo, W.A., “Ensino de Engenha- ria: na busca de seu aprimoramento”, Florianópolis: Bazzo, W.A.; Pereira, L.T.V.; von Linsingen, I., Ed. da UFSC, 1997. “Educação tecnológica: enfoques para o ensino de engenharia”, Florianópolis: Ed. da UFSC, 2000. Snow, C. P., “As duas culturas e uma segunda leitu- ra”, São Paulo: Edusp, 1995. Bazzo, W. A., “Ciência, Tecnologia e Sociedade, e o contexto da educação tecnológica”, Florianópolis: Solomon, J., “Teaching science, technology and soci- Ed. da UFSC,1998. ety”, Bukingham: Open University Press, 1993. Cutcliffe, S., “Ciencia, tecnología y sociedad: un Vessuri, H., “De la transferencia a la creatividad. campo interdisciplinar”, In: Medina, M.; Sanmartín, J. Los papeles culturales de la ciencia en los países (Eds.), Ciencia, Tecnología y Sociedad: Estudos In- subdesarrollados”, In: Ibarra, A.; Cerezo, J. A. L., Desafíos y tensiones actuales en ciencia, tecnología y sociedad, Madrid: Biblioteca Nueva/OEI, 2001. 7 Esse assunto pode ser encontrado em von Linsingen, I. A transposição didática e o ensino de engenharia. Anais do COBENGE 99, Natal - RN, 1999, p. 677-684. von Linsingen, I., “Engenharia, Tecnologia e Socie-
  11. 11. dade: Novas perspectivas para uma formação”, 2002, VV.AA., “Ciencia, tecnología y sociedad ante la Tese - Centro de Ciências da Educação, Universidade educación”, In: Revista Iberoamericana de Educación, Federal de Santa Catarina, Florianópolis. n.18, 1998. von Linsingen, I., “A transposição didática e o ensino Yager, R. E., “The status of science-technology- de engenharia”, In: COBENGE 99, 1999, Natal, society. Reforms around the world”, International Anais, Natal: UFRN, 1999, p. 677-684. Council of Associations for Science Educa- tion/Yearbook, 1992.

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