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O canto de céu aberto e de mata fechada,




Marta Catunda



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        A questão ambiental é o assunto do momento, mais polêmico do que

esclarecedor.   Marta    Catunda,     buscou       inspiração   na   incontestável

monumentabilidade sonora universal do canto dos pássaros. Demonstra como

nossa   sensibilidade   para   a    ecologia   e    suas   implicações   na   vida

contemporânea está comprometida até para a percepção de um simples canto

de pássaro e nos convida a ouvir. Ouvindo, nos estimula a pensar na própria

audição como um sentido enfraquecido em nossa época de comunicação

intermediada por meios tão sofisticados. Assim, nos leva a compreender por

que considera a ecologia uma disciplina que nos fala ao pé do ouvido.

        O trabalho ora apresentado por esta pedagoga, artista plástica e

compositora autodidata é baseado na dissertação de mestrado em Ciências da

Comunicação, defendida na Escola de Comunicações e Artes da USP/SP, em

junho de 1993. Durante três anos a pesquisadora dedicou-se a ouvir e

classificar os timbres de dezenas de pássaros do Pantanal (Céu Aberto) e da

Amazônia (Mata Fechada), selecionando, a partir de audições, em laboratório e

em campo, 23 espécies por critérios próprios que considera de aproximação,

na tentativa de tornar o estudo do canto dos pássaros mais acessível ao leigo.

Mas, não se deteve apenas nesse aspecto. Segundo o processo de pesquisa,

recolheu informações em várias disciplinas biológicas e sociais, objetivando

iniciar a formação de um quadro conceitual multidisciplinar para o que



                                                                                 2
considera um campo de conhecimento para os músicos do ouvido e para

pesquisadores em bioacústica e geofonia.

       Para tanto, teve como ponto de partida os estudos de zoophonia de

Hercules Florence, pesquisador e desenhista participante da expedição

Langsdorff, que tem merecido atenção especial da Universidade Federal de

Mato Grosso (UFMT) em publicações recentes.

       Florence é mais conhecido como desenhista por suas aguadas, mas é

também apontado como um dos inventores da fotografia e por muitos

considerado pai da bioacústica.

       Finalmente, Marta Catunda conseguiu produzir uma obra inquietante,

sensível e palpitante, que acaba por conceder uma amplitude notável ao tema,

até então restrito a bioacústica e músicos, isoladamente. Por isso, enfrentou

dificuldades acadêmicas que, no entanto, transformaram este livro numa leitura

desafiante para os que acreditam na liberdade do conhecimento científico ou

no rigor de observação imaginativa da ciência.



                                     Prof. Fernando Tadeu de Miranda Borges

                                            Coordenador da EDUFMT




                                                                            3
O Canto de Céu Aberto e de Mata Fechada

Índice para catálogo sistemático.



       1.   Zoofonia – Ecologia

       2.   Canto de Pássaros – Ecologia

       3.   Música – Antropologia cultural

       4.   Audição – Percepção e espaço de tempo – Psicologia

       5.   Educação ambiental – Comunicação




       Copyright ©1994 by Marta Catunda

       ISB: 85-327-0032-2

       Universidade Federal de Mato Grosso




                                                                 4
Ficha Catalográfica - Biblioteca Central/ UFMT

C 355c     CATUNDA, Marta


              O canto de céu aberto e de mata fechada/ Marta Catunda-
Cuiabá Editora Universitária da UFMT, 1994.
                  138p.: il
         Dissertação de Mestrado : Ciências da Comunicação.


                  Bibliografia: p. 131 – 138



                  CDU – 591.58




      Copyright ©1994 by Marta Catunda

      ISB: 85-327-0032-2




                                                                    5
Universidade Federal de Mato Grosso

       Av. Fernando Correa da Costa, s/n, Coxipó

       78.060-900 Cuiába – Mato Grosso

       Fax: (065)315-1119/ EdUFMT

       Telefone: (065) 315- 8322

       Telex : 65137/UFMT/BRA

       Impresso no Brasil / Printed in Brazil

       Depósito legal / BN / Decreto 1825 (20/12/1907).




       Este ensaio recebeu o prêmio Allejandro Jose Cabassa de melhor

ensaio cultural de 1995, pela União Brasileira de Escritores/UBE – Academia

Brasileira de Letras




                                                                          6
Agradecimentos



        À colaboração da Universidade Federal de Mato Grosso (UFMT), que
investiu, apoiou todos os desdobramentos da pesquisa.
        À participação estimuladora da Fundação Vitae do Arquivo Sonoro da
UNICAMP e da Fundação Cultural do Acre.
        À Coordenação de Ensino e Superior, CAPES, o apoio financeiro para o
curso de pós-graduação em Ciências da Comunicação e para a dissertação
que foram a base deste livro.
        À fé criativa de Aline Figueiredo, Humberto Espíndola e Wlademir Dias
Pino.
        À inspiração instigante dos professores Ciro Marcondes Filho e José
Teixeira Coelho, da Escola de Comunicações de Artes ECA/USP.
        Ao geógrafo e tradutor Cláudio Frederico da Silva Ramos, que ajudou a
questionar todos os embates metodológicos, todas as certezas, enfim, todos os
momentos desafiantes, sem desmerecer os sinais da intuição.
        A Dante Renato Buzetti, por tantos ensinamentos nas audições em
campo, cuja crença encorajadora foi fruto de inúmeras experimentações.
        Enquanto preparava os textos finais, fui auxiliada de várias maneiras
por Alberto Elias Chenu, Maria Isabel da Silva Ramos, Alexandre e Márcia
Marcovici, Carlos Navas, Joana Ferreira Daltro, Lincoln Barbosa e Ralf
Wegmann.


                                                                            7
À paciente editoração eletrônica de João Batista Epaminondas
Malhado.
        Ao entusiasmo dos associados do Centro de Estudos Ornitológicos
CEO/USP, que, em tardes descontraídas de sábado, abrem espaço para todos
os que se interessam pelo estudo de pássaros.
        Ao Povos da Floresta, dos seringais do Rio Macauã, no município de
Sena Madureira. Acre, por sua acolhida calorosa e enriquecedora.
        A Tetê Espíndola e Arnaldo Black, pela oportunidade de ingressar no
universo sonoro dos pássaros.
        Aos meus pais e irmãs e , finalmente, à compreensão e o carinho de
Flávio Daltro Filho e de nossos filhos, Flávia e Guilherme.




        Cópia xerocrafada com paginação diferente da original sem/imagem
                                                                           8
Este livro é dedicado à memória de meu avô Ivar Catunda, por deixar como

herança saudável e afetuosa o convívio na Praia das Cigarras, que despertou

os acordes da liberdade: viver com as marés e construir sonhos com castelos

de areia. E também a memória de Hercules Florence, por intuir, há um século e

meio, a zoophonia, como semente do futuro.




       “Inumeráveis brechas, sobreviventes isoladas da destruição do tempo,

jamais darão a ilusão de um timbre original lá, onde ressoaram harmonias

perdidas”

       Lévi-Strauss, 1952

                                                                            9
SUMÁRIO



APRESENTAÇÃO                                           12

Pássaros (para uma introdução)                         23

I.    OUVIR                                            26

                Ou-vendo                               34

                 Ou-vindo                              38

                 Ou-vido                               48

                 Audi-ação                             52

II.   OUVINDO VOZES DO CÉU E DA TERRA                  56

 Por uma geofonia da comunicação                       67

Zoofonia (para uma aproximação música – bioacústica)   71



III. NO CÉU ABERTO E NA MATA FECHADA                    76

                Canto Instrumento                       77

                Critério sonoro                         85

                Critério ecológico                      91

               Critério biogeográfico                   97

IV. PERCEBENDO CANTOS                                   99

      Mata fechada ( Expedição Macuã)                  105

      Céu aberto (Pantanal)                            110

                                                             10
Seleção de espécies                          112



           Verbetes das espécies selecionadas   114



V. ANILHAMENTO                                  127

O pássaro e o sentido

Nova sensibilidade                              127



Considerações finais                            139

VI. BIBLIOGRAFIA                                143




                                                      11
APRESENTAÇÃO




       A pesquisa que levou ao Canto do Céu Aberto e de Mata Fechada

surgiu de um processo de audição ocorrida em três etapas – em laboratório,

no dia a dia e em campo- de 23 espécies dos ecossistemas Pantanal e

Amazônia, selecionadas por critérios próprios advindos deste processo. No

entanto, é importante notar que diversos caminhos foram seguidos antes de se

chegar a este resultado preliminar, ora apresentado. Tanto da seleção, como

das associações observadas. Isto porque a relação investigada homem –

ambiente é um objeto de estudo riquíssimo, no qual, à profusão dos cantos,

timbres e tons, acrescenta-se a façanha de uma antiga e longínqua história de

comunicação e convivência com o homem.

       Esta investigação poderia ter sido feita na cidade, ou onde

estivéssemos; em qualquer lugar do planeta, lá estarão os pássaros. A escolha

do Pantanal e da Amazônia nasceu de duas preocupações. A primeira é que

apesar da terça parte da avifauna planetária pertencer a América Neotropical,

o estudo de aves em seu ambiente é ainda pouco desenvolvido no Brasil. A

segunda é que dos estudos desenvolvidos na área específica da ornitologia,



                                                                           12
bem poucos se dedicaram exclusivamente ao estudo da vocalização dos

pássaros.

          A escolha do Pantanal e da Amazônia deveu-se em grande parte à

oportunidade aberta pela existência do Arquivo Sonoro Neotropical da                                  1




UNICAMP, que possibilitou a consulta a partir dos cantos de pássaros ali

registrados, com condições técnicas adequadas para investigação. Por outro

lado, apesar de ser cada dia maior o interesse científico, muito ainda nos resta

conhecer sobre o Pantanal e a Amazônia. De qualquer modo, seria difícil, no

estudo sobre o canto de pássaros no Brasil, passar despercebida a

prodigiosidade e a profusão de cantos daqueles ecossistemas. Uma

verdadeira biblioteca sonora, como referência.

          As 23 espécies escolhidas mereceram um destaque especial pó:

melhor representarem a ambiência sonora dos ecossistemas escolhidos

(sonoridade, musicalidade); pelas características onomatopaicas do canto

(toponímia do mundo tupi); por serem as mais conhecidas, mais comuns ou

familiares (popularidade), e pela função ecológica (distribuição de sementes,

controle biológico) e uma atenção especial à qualidade timbrística desses

cantos.

          A participação no projeto de pesquisa para o Lp Ouvir, de Tetê

Espíndola e Arnaldo Black, premiação pela FUNDAÇÃO VITAE, em 1990,

possibilitou abertura para o desenvolvimento deste estudo. Os compositores

pretendiam identificar, a partir de experimentações diversas com o canto da

1
 A região Neotrópica ( adaptado por Haffer, 1974) se estende do sul do México (20º N) até o Cabo de Horn (57º
S), incluindo a parte meridional não- tropical da América do Sul.
                                                                                                          13
avifauna, o que definiam como pássaros da comédia, da tragédia e do drama.

A partir de observações diretas em laboratório e em campo, sugeri aos

compositores e elaborei os critérios, que serviram de referência para as

composições do Lp Ouvir e que, posteriormente, levaram à elaboração da

dissertação de mestrado e finalmente a este livro.

          Outro motivo da escolha do Pantanal e da Amazônia vai ao encontro

das primeiras observações amadoras sobre o canto dos pássaros, feita em

1975, com o canto da araras da Chapada dos Guimarães, em Mato Grosso .                                    2




Neste período, a Universidade Federal de Mato Grosso (UFMT) conceituava-se

como UNISELVA, uma das instituições participantes do Projeto Aripuanã

(1973/76), que propunham a lançar bases para conhecimento científico da

Amazônia (Cidade Laboratório de Humboldt), visando ao aproveitamento

racional de seus recursos em consonância com o projeto de integração

nacional. Havia um clima verde aliado ao apelo à causa indígena. Este clima

era disseminado por uma política estatal de regionalização, para a integração

nacional. Inauguravam-se projetos culturais em vária frentes na UNISELVA,

destacando-se: o Museu Rondon (MR), em 1973, voltado para o índio; o Museu

de Arte e de Cultura Popular (MACP/ 1973), e mais tarde, o Núcleo de

Documentação e Informação Histórica e Regional(NDHR/ 1976). A euforia

contagiante pela Amazônia era gerada por grande quantidade de recursos e

investimentos vultuosos que fomentaram projetos grandiosos – todos

componentes do que se convencionou chamar de milagre brasileiro.

2
 Em exercícios vocais com o canto das aves, Tetê Espíndola descobrira o timbre agudo de sua voz. Na ocasião,
cursávamos Pedagogia, na Universidade Federal de Mato Grosso (UFMT).
                                                                                                         14
No entanto, até o momento, a falta de pesquisas que reúnam o

referencial documental da UNISELVA, para uma análise criteriosa, tem

dificultado a compreensão da medida deste ousado gesto instituidor. Tanto a

importância da criação de uma base científica na Amazônia, como a nova

frente do Museu Rondon para a causa indígena, bem como a capacidade de

reunir movimentos culturais, científicos e artísticos, nascentes ou marginais em

Mato Grosso têm sido clivados em avaliações superficiais, reducionistas e por

vezes oportunistas, até mesmo ingênuas.

       A UFMT não soube ainda ocupar o território aberto pelo canto da

UNISELVA, não captou esta chance da história, não soube ouvir, renovar e

atualizar conceitos para exorcizar o milagre, dando concretude à inteligência.

Isso impede que se reconheça , de forma adequada, a vocação ambiental da

UFMT de 1970, como uma universidade de e para o ambiente no agora, vinte e

quatro anos depois.

       Nesta    confusão   de   homens    e   causas,   enfim   dos   interesses

mesquinhos, o lado obscuro da academia, todo esforço da causa maior da

construção do homem do Brasil de dentro foi terreno fértil para o rolo

compressor da infindável crise universitária geral. Poucas universidades

tiveram um veio tão rico em suas origens. Há ainda necessidade de identificar

a UNISELVA como um vetor de significações imaginárias e sociais para que se

possa estabelecer como um marco de sementes lançadas. Poucos souberam

cultivá-las com distanciamentos das idiossincrasias ideológicas e particulares,

portanto, não tiveram a sensibilidade de ultrapassar criativamente aquilo que

                                                                              15
as circunstâncias ditatoriais do período não permitiram a produção dos

fundadores, dos primeiros professores, técnicos e estudantes. Mas o canto da

bandeira UNISELVA pode ser reconhecido para continuar ecoando e

motivando crítica e imaginativamente toda a comunidade da UFMT.

          Neste contexto é que tem sido despertada a atenção para o grande

potencial biológico do estado de Mato Grosso. Premiado com duas grandes

bacias hidrográficas, a Amazônia ao norte e a do Pantanal ao sul, situado entre

a Cordilheira Andina e o Planalto Brasileiro. Mato Grosso é o estado divisor

destas águas.

          Agraciado com nada menos que três ecossistemas: Pantanal,

Amazônia e Cerrado – o destino pulsante de ser o coração da América e com a

marca deste magnetismo geodésico, firmado com a criação de Brasília. A

vocação ambientalista da UFMT de 1972, como Universidade da Selva, deverá

ser firmado de fato.

          De julho a outubro de 1990, foram realizadas audições semanais em

laboratório, no Acervo Sonoro Neotropical da UNICAMP, sob a orientação e a

responsabilidade do Prof. Dr. Jacques Vielliard, pesquisador em canto de

pássaros que já realizou o registro de aproximadamente 17.000 cantos nesta

região.

          Enquanto ouvia as fitas preparadas no laboratório em audições em

casa, me dedicava à disciplina Nova Teoria da Comunicação, do Prof. Dr. Ciro

Marcondes Filho, que abordava a nova sensibilidade nas chamadas

sociedades     pós-industriais,   a   mediatização   da   vida   pelos   meios   de

                                                                                 16
comunicação e a revolução eletrônica, Marcondes oferecia subsídios para a

discussão sobre a crise dos modelos duais, a crítica da ciência (iluminismo) e o

retorno do místico, como novas formas de neutralização das oposições, num

universo de desaparecimento da realidade e das perspectivas ideológicas.

       Em outubro do mesmo ano, formamos uma equipe e realizamos a

expedição Macauã, em Sena Madureira, Acre, durante cinco dias, para ouvir a

ambiência sonora. Neste lugar de matas altas, pousamos nossa esperança na

margem de uma rica troca.

       O processo de audição possibilitou a percepção de como o ouvido

urbano é surdo para captar sons sutis, e que a compreensão da nova

sensibilidade passa necessariamente pela mudança dos sentidos e das formas

de comunicação com o mundo.

       A audição em si leva à aproximação do ambiente, principalmente por

sua complexidade enquanto sentido. O ouvido é, também, sede do equilíbrio e

da orientação.

       Do ponto de vista das Ciências da Comunicação, dentro da linha de

pesquisa escolhida – Comunicação, Arte e Educação- , a questão ambiental foi

compreendida nos matizes que apresenta, como uma preocupação das

sociedades contemporâneas com a qualidade de vida. A sugestão aqui

contida procura, a partir do canto de pássaros, contribuir para experiências que

auxiliem a educação ambiental. No entanto, é importante esclarecer que o

processo de pesquisa e a metodologia não pretenderam desenvolver o que

pode ser identificado como uma pedagogia para audição do canto de

                                                                              17
pássaros, e se as inúmeras estratégias para ação neste campo. Ou seja, foram

indicados alguns caminhos ou pistas (no processo de audição) que podem ser

entendidos como feixe de opções a serem seguidos para o desenvolvimento

de uma ação pedagógica, ou possível modelo pedagógico. Isto porque pode-

se considerá-la uma etapa posterior. O objetivo inicial foi estabelecer uma

aproximação do canto dos pássaros do ponto de vista das Ciências da

Comunicação, hoje restrito à bioacústica. Notou-se que diversos compositores

utilizaram o canto dos pássaros como tema de inspiração, mas a abordagem

aqui proposta busca a compreensão da zoofonia como uma forma de

comunicação entre o homem e o ambiente, tentando compreender os

entraves e as possibilidades deste campo multidisciplinar. Portanto, seria

prematuro determinar um modelo.

       O tema proposto situa a pesquisa na fronteira entre o dado e o criado,

ou seja, entre a natureza e a cultura. Ao aproximar-se da bioacústica, descobre-

se uma ciência que ouve a vida como uma linguagem falada antes que pareça

ou independente de qualquer locutor. Para introduzir a comunicação homem-

natureza, procura perceber a sensibilidade humana como articulação de um

desejo constituído diferente e independente do que diz a consciência. Para

aproximar-se da ecologia como uma ciência do meio ambiente, procurou não

se isolar das estruturas naturais, já que a ecologia transforma a extensão

indefinida das construções sociais.

       O material sonoro (canto de pássaros) pertence ao Arquivo Sonoro da

UNICAMP e foi utilizado apenas para fins de pesquisa.

                                                                              18
O objetivo é sensibilizar os agentes educativos ou formadores de

opinião, quais sejam: professores, arte-educadores, guias turísticos, agentes

culturais, músicos e outros interessados. O roteiro seguiu as estratégias que se

evidenciaram no processo de audição em laboratório e em campo e teve

como objetivos específicos:



       (1) treinar o ouvido para identificar o canto de pássaros em três etapas

de audição;

       (2) identificar os critérios propostos: sonoro, ecológico e biogeográfico

durante a audição;

       (3) discriminar as diferenças dos tipos de canto e analisar a associação

sugerida: canto- instrumento musical, e

       (4) aproximar(diferente de classificar) da ambiência sonora a partir de

audições em campo: no Pantanal e na Amazônia.




       A educação ambiental é hoje uma tarefa não só da escola, mas de

toda a sociedade, a fim de estimular a compreensão dos limites e

possibilidades da ação humana para a elaboração da cidadania planetária.

       Diante da horizontalidade azul do Pantanal, que funde céu e terra num

ritmo de cheia e vazante, e da verticalidade verde da Amazônia, num ritmo

caleidoscópio de umidade e calor, boa parte do potencial musical da cultura

brasileira, na terra e no ar, está presente nos animais que sonorizam a

                                                                              19
paisagem. Como os demais ecossistemas do planeta, estes trazem muitas

perguntas sem resposta. Porém, mais que respostas mecânicas, emergentes

de soluções racionais e modelos prontos, nos cabe compreender, antes,

nossas próprias inquietações sobre estes lugares, numa era de dissensos e

incertezas, repleta de caminhos e igualmente de obstáculos.

        A ecologia como disciplina biológica adquire importância para as

Ciências Sócias quando os conflitos da relação homem-natureza mudam de

polo de reflexão para a relação homem-meio ambiente. Ao nível global esta

compreensão só se dá, efetivamente, neste século. Assim, todo o esforço do

homem de se distinguir da natureza e de sobrepujá-la com sua cultura, é

extinto como uma espécie de condenação e substituído pela necessidade de

interação, que começa a ser largamente estudada. A natureza passa a ser vista

antes como ambiente, embora os conflitos biológicos e sociais não se

confinem nem se restrinjam mais entre si.

        Os dons da natureza são exortados de seu lado benéfico (que justificou

todas as atrocidades e excessos cometidos pela Humanidade contra seu

ambiente). Assim, os mecanismos desconhecidos dos equilíbrios sociais e

biológicos se libertam de leis fixas e estáticas e passam a se aproximar do

dinamismo e da complexidade frágil de viver, do sobreviver.

        A natureza é generosa quando fala da vida. Cantos também contam as

estórias de seu próprio som – estão pelo ar, para ouvir e sentir, compreender e

investigar.



                                                                             20
Avisos, alarmes. A Terra engloba uma pluralidade sonora monumental:

a geofonia- como universo sonoro que contém as galáxias dos ecossistemas,

que possuem dentro de si inúmeros sistemas sonoros tais quais os sistemas

estelares, solares e planetários, em escalas diferentes e muitas vezes

inaudíveis ao ouvido humano (o infra-som). A zoofonia pode ser vista como um

destes sistemas, onde o canto dos pássaros se integra.

        Em 1829, Hercules Florence transcreveu para notas musicais, durante a

Expedição Langsdorff, a vocalização de vários animais, inaugurando um novo

terreno de conhecimento que nomeou zoophonia. A preocupação do

pesquisador não se prendia apenas ao aspecto científico, hoje objeto da

bioacústica, mas acreditava, também, na possibilidade de expressar, por meio

de partituras musicais especialmente elaboradas com códigos próprios, o

sentimento de estimulação da sensibilidade humana despertado pela

vocalização dos animais em seu ambiente. Na época, a elaboração de

partituras consistia na única forma de registro das vocalizações dos animais.

Em suas observações sobre a zoofonia, Florence demonstrou a importância da

formação de novos campos de conhecimento. Seus estudos são fruto de uma

mente inquisidora e sensível, que tanto expressa o rigor cientifico quanto a

vitalidade criativa.

        Durante as etapas da pesquisa, foi possível notar que escala ocidental,

ou qualquer outra criada pelo homem, não é adequada para demonstrar toda

a gama de tons e timbres da fauna planetária.



                                                                             21
As velhas acústicas naturais oferecem uma outra dimensão para a

compreensão dos sons à nossa volta, uma vez que hoje dispomos de

tecnologia necessária para bem investigá-los. Um terreno pouco conhecido e

estudado, onde tanto os ritmos dos ecossistemas, quanto os ritmos humanos,

são afetados pelo impacto ambiental no compasso da multissinfonia da vida,

seus sinais, seu movimento, enfim, sua harmonia dissonante.

        Pássaros em viveiros ou animais em zoológicos não favorecem as

condições de reprodução e só podem oferecer uma pálida representação do

que é a vida em seu próprio ambiente: nem a dieta, nem a cor, nem as

características comportamentais são as mesmas, embora venham se

intensificando formas de controle das populações de diversas espécies criadas

em cativeiro, para reintegração posterior em seus habitats naturais.

        Também os Acervos Sonoros, por mais sofisticados que sejam seus

recursos tecnológicos para o registro e reprodução, apresentam limitações

metodológicas para a compreensão da ambiência sonora.

        Em todos os campos do conhecimento científico correm-se os riscos

da estória de João e Maria que, na ânsia da busca dos elos perdidos com o

passado, passaporte para o futuro, e obrigados a seguir um caminho que não

foi escolhido previamente (condicionamento biológico e social), tiveram o

cuidado de marcá-lo ingenuamente com migalhas de pão.




                                                                           22
PÁSSAROS (para uma introdução)




        Costuma-se dizer que a imaginação tem asas . O voo dos pássaros

predispõem associações que simbolizam a comunicação entre o céu e a terra.

Mensagem, presságio, avisa-nos sobre mudanças, perigos e outros fenômenos

naturais. Em todas as religiões e culturas, o pássaro é sinônimo de sagrado.

Anjos são homens com asas, mensageiros, protetores. Representam os

estados superiores do ser, da alma e da imortalidade.

        De   certo   modo,    todas   estas       associações   estão   ligadas   às

potencialidades destes ágeis seres em relação à distribuição de sementes e à

polinização. Basta pensarmos que, se todas as aves fossem extintas de uma só

vez, os insetos tornariam a vida humana impossível em poucos dias.

        Como animais voláteis, percorrem grandes extensões o dia inteiro e

necessitam de quantidade de comida proporcional ao tamanho de seu corpo.

Com idade aproximada de 150 milhões de anos, sobreviveram ao Cretáceo e,

de lá pra cá, proliferaram velozmente.

        Ao deixar sua marca semi-réptil suavemente desenhada no barro, há

cerca de 140 milhões de anos, o arqueoptérix (Archaeopteryx) relata-nos a

história de sua característica peculiar: penas.

        Esse vestígio suave, mas consistente (descoberto em 1861), a certeza

de que já não se tratava de um verdadeiro réptil, tornava indiscutível o elo, não

mais perdido, entre os répteis e as aves. Cabeça de lagarto, mandíbulas

                                                                                  23
providas de dentes, delgada cauda e vértebras móveis, em tudo o esqueleto

semelhante ao de um réptil, com ossos e asas terminando em dedos finos, não

fundidos e com garras.

       Se a vida na Terra abrange dois bilhões e meio de anos, as aves são

criaturas recentes. Os Paleontólogos acreditam tenham elas se originado dos

tecodontes, animais possuidores de longos membros posteriores, sobre os

quais corriam semi-eretos, usando a longa cauda para manter o equilíbrio.

       A era atual, conhecida como Idade dos Mamíferos, surgiu em oposição

à Idade dos Répteis, que chegou ao fim com o desaparecimento dos

dinossauros e pterossauros. As aves derivam do tronco dos répteis, surgiram

pouco depois dos primeiros mamíferos. Um elo entre as Idades.

       Se lembrarmos que os dinossauros reinaram na Terra e estão extintos

há 60 milhões de anos, vislumbramos uma encruzilhada onde homens e

dinossauros se espreitam, no voo do tempo, nas asas emplumadas das aves.

As aves em evolução tiveram que romper a barreira reptiliana que impedia o

vôo verdadeiro para que pudessem se tornar veículos da herança dos

dinossauros e do advento dos mamíferos.

       As   aves   atuais,   adaptando-se   e   transformando-se,   ocuparam

praticamente todos os habitats disponíveis do globo. Por essa versatilidade são

notáveis animais vertebrados, os mais conhecidos e estudados.

       Já na tradição bíblica, Noé aparece como o primeiro criados de

pombos. Os egípcios criaram pombos para a alimentação e, provavelmente,

para a transmissão de mensagens (3.000 a.C.). Não se sabe, exatamente,

                                                                             24
quando foram usados pela primeira vez como meio de comunicação a longa

distância. Sabe-se que Júlio César mandava por meio deles notícias de suas

vitórias. No oriente, foram também utilizados como meio de comunicação. Só

na Segunda Guerra Mundial, os pombos-correio foram suplantados pelos

equipamentos eletrônicos.

       Fica aqui um convite e um aviso. Refletir sobre pássaros é exercitar a

liberdade. De saltar sobre assuntos, arriscar curiosidades, tecendo ligações,

aninhando coisas aparentemente desconexas. É afastar para avaliar de longe,

é pousar para observar com firmeza, é migrar para o continente de diversas

ciências, na busca de alimento para seguir refletindo, exercitando a própria

natureza do conhecimento, que em si não tem fronteiras.

       Os ornitólogos costumam anilhar (anéis de metais e outros materiais)

para monitorar as rotas cíclicas das aves migratórias; assim, algumas

conexões e associações foram aqui anilhadas para melhor compreensão dos

desdobramentos do processo da pesquisa.

       Enfim, apesar de a proposta do tema não possuir bibliografia

específica, à medida que as observações foram se efetuando no decorrer da

pesquisa, buscou-se a fundamentação necessária na bioacústica, na

ornitologia, comunicação, ecologia, antropologia, sociologia e na música, de

acordo com os objetivos propostos.

       Pássaros têm a ver com a comunicação não só porque voa – ou

porque voar requeira uma aerodinâmica própria que, de Ícaro a Santos

Dumont, até as naves espaciais e as esportivas asas delta, inspiram o homem

                                                                           25
a libertar-se do peso da gravidade – mas também porque voar significa

conhecer detalhadamente o espaço terrestre. Nem tão somente porque emite

alertas naturais, mas porque, além de tudo isso, canta. O canto é a mensagem,

sobretudo porque nos sensibiliza.

        O filósofo grego Heráclito observou o paradoxo do pensamento que

pretende imobilizar coisas móveis, no limite de definições fixas.

        Se pudermos compreender a importância do cuidado das áreas

verdes, porque nelas vivem seres especialmente notáveis pelo canto e pelo

constante ir e vir por sobre praças, jardins e ruas arborizadas, estaremos mais

próximos do meio-ambiente.

        Talvez possamos enxergar melhor o verde não como escudo da vida,

porque ouvindo-o estaremos em sintonia com sua celebrização. Ouvir

pássaros é notá-los, e notá-los é deixar de perceber o verde auto-

ecologicamente. Por sua inquietude expressiva, os pássaros põem a ecologia

em movimento.




        I.   Ouvir



        Desde o início deste estudo, verificou-se que a análise das formas de

ouvir ao fundamentais para a comunicação. Do homem em seu ambiente,

porque implicam profundo conhecimento foi originalmente desenvolvido pelas

espécies não-humanas que destacam as aves, depois dos insetos, como os

                                                                             26
seres vivos vertebrados mis bem dotados. As culturas humanas chamadas

primitivas,        por     necessidade         de     adaptação         e    sobrevivência,       também

desenvolveram, como veremos, formas de conhecimento das diferenças

ambientais a partir da percepção auditiva.

             As aves desenvolveram complexo sistema de comunicação sonora.

Dentre eles, o principal é o canto territorial que perpetua as espécies. Acredita-

se que estes sistemas estejam alicerçados numa eco-lógica.

             Por outro lado, as culturas humanas desenvolveram-se na defesa e

contra a natureza. Nisso todas as formas de civilização agem de maneira

semelhante. Foi justamente por causa da percepção dos perigos com que a

natureza ameaça, que a civilização foi criada, a qual também, entre outras

coisas, se destina a tornar possível a vida comunal, pois a principal missão da

civilização, “sua raison d’être real, era nos defender da natureza” , ou seja,                1




defender-nos contra a eco-lógica.

             A civilização não se detém apenas na tarefa de defender o homem

contra a natureza, mas como afirma Freud prossegue por outros meios. Trata-

se, portanto, de um múltipla tarefa.

             O pesado fardo de sacrifícios que se espera dos indivíduos a fim de

tornar possível a vida comunitária, faz com que a civilização seja defendida,

num plano, contra o próprio indivíduo e, em outro, contra a natureza.

             Este é um dos aspectos que se evidencia na comunicação com o

ambiente. A mesma natureza que sinaliza os perigos a partir do som que avisa

1
    Sigmund Freud. O futuro de uma ilusão. Rio de Janeiro: Imago, 1974, p. 26.

                                                                                                      27
terremotos, erupções vulcânicas e a proximidade de inundações perceptíveis à

longa distância, a chegada de tempestades e ciclones arrasadores, em outro

extremo, ostenta o poder de se fazer presente e ativa através do silêncio das

doenças a cada dia mais complexas e, por último, do enigma da morte, como

o fim do som, o silencio radical.

            As vozes da natureza que avisam, protegem, também coíbem e

condenam ao mais total dos silêncios. O poder inexorável do som, leva ao

terror do som. E cada vez mais a civilizações fazem calar o poder dessas vozes,

ouvindo outras em seu lugar.

            A voz da salvação é a voz da civilização e a de todos os instrumentos

tecnológicos “inclusive os musicas” que esta ou estas, em qualquer estágio

civilizatório fazem ouvir. Também as vozes “in off” dos mitos, das religiões e da

política.

            As vozes dos gênios da humanidade podem ser consideradas as

únicas vozes que ouvem detalhadamente: portanto destoam das vozes que

ressoam. “tudo que é sólido desmancha no ar” como o som. A solidez do som
                                                                 2




é apenas perceptiva e não a sua essência como fenômeno físico.

            O papel da ciência é de ser a voz questionadora, fundamenta-se no

diálogo entre a fala das teorias e a voz dos dados observados ou tirados da




2
  Baseado nesta frase de Marx, Berman desenvolve sua crítica da modernidade, investigando a dialética da
modernização de um lado e do modernismo do outro ( dissonância de vozes), que no séc XX leva os processos
sociais a um constante turbilhão e a um perpetuo “vir a ser”. Refere-se ao “ ritmo afogueado” compartilhado por
Marx e Nietzsche como “uma voz que ressoa como autodescoberta e auto-repúdio, como auto-satisfação e auto-
defesa”, acreditando na capacidade bem sucedida de conhecer a dor e o terror. Marshall Berman . Tudo que é
sólido desmancha no ar. São Paulo: Companhia das Letras, 1986, pp.16, 22-5.
                                                                                                            28
experiência. Assim, a racionalidade cientifica pode ser definida na ressonância

– um acordo orientado entre a voz dessas teorias e desses dados.

             Em cada grande momento tecnológico da civilização, vamos encontrar

outro funcionamento das palavras, que se fazem acompanhar tanto por uma

política como por uma razão nova. Em nossa época, numa cultura altamente

visual, é tão difícil comunicar propriedades não-visuais das formas espaciais

“quanto explicar a visualidade dos cegos” .              3




             Freqüentemente, nos referimos a coisas ouvidas como coisas vitais.

Um exemplo da necessidade de dar ênfase visual ao que ouvido encontramos

na própria bioacústica. Para demonstrar que a “eficiência de propagação de

uma fonte emissora próxima do solo é baixíssima, devido à grande absorção

de energia sonora pelo solo e outros gradientes atmosférico, ocorre o que

chamamos como zona de sombreamento (shadow zone)                               4




             Um outro exemplo encontramos na definição de “ruído branco”. O som

do mar é considerado um ruído branco porque oferece durações oscilantes

entre a pulsação e a inconstância num movimento ilimitado, com alturas em

todas as frequências, das mais graves às mais agudas. Por causa das alturas e

frequências, acaba sendo um ruído, para usarmos um adjetivo do ouvido,

brando.

             Mas, a adjetivação visual das propriedades sonoras não pára por aí.

Sons ouvidos são frequentemente referidos como sons visíveis. È mais do que

comum usar expressões, como : “-Você viu o que fulano disse?” , quando na

3
    Marshall MacLuhan : os meios de comunicação como extensões do homem. São Paulo, Cultrix, 1964, p. 347.
4
    Hernán Fandiño Marino . A comunicação sonora do anu-branco. Campinas: Unicamp, 1989, p. 97.
                                                                                                         29
verdade acabamos de “ouvir” estas declarações. O próprio texto musical, ao

invés de ser apresentado em termos sonoros é substituído por comandos

óticos, “espécies de sinais de trânsito”         5




          Adorno observou que os ouvintes costumam não dar atenção ao que

ouvem, mesmo durante o próprio ato da audição. Sempre se acreditou que,

como as demais formas de expressão humana, a música possuísse a ação

saneadora e educativa. No sentido disciplinar, Platão propunha um programa

ético-musical que possuísse a característica de “ação de purificação Ática”, ou

seja, uma campanha de saneamento de estilo espartano.                      6




          No sentido em que foi realizado o processo de audição do canto de

pássaros, a proposição foi captar, com o ouvido, os sons, e tentar identificá-los

sonoramente ou musicalmente. Apesar de as formas de audição serem

permeadas pela cultura, pelo ambiente, incluindo o gosto musical e a própria

acuidade auditiva (capacidade de ouvir medida em decibéis), a audição é o

sentido-suporte que leva à profundidade do que é vivenciado musicalmente.

          Portanto, o treino da audição deve ser anterior à própria educação

musical. Antes de ouvir música, seja de qual tipo for, é necessário, sobretudo,

aprender a ouvir.

          Nos processos de alfabetização, vamos encontrar ema ênfase nas

técnicas de audição. As crianças são iniciadas, na mais tenra idade, na

educação musical, antes de aprenderem a discernir sons intensos, de sons


5
  Theodoro Adorno . Fetichismo na música e na regressão da audição, Textos escolhidos XLVIII. São Paulo:
Abril., 1967, p. 192.
6
  Op. cit. ,p. 174.
                                                                                                     30
frequentes, o colorido timbrístico dos sons, o sentido do ritmo e da passagem

dinâmica para a melodia.         7




          Decididamente, não estamos numa época de ouvir. A psicologia dos

ouvintes é regressiva, porque está desvinculada de qualquer relação com a

música; dirige-se, antes, ao sucesso acumulado comandado pela mídia, não se

expressa mais pela espontaneidade ou subjetividade. Assim, Adorno anuncia a

desaurização da música, cuja aparência externa cede em favor do puramente

lúdico.

          Mas, não podemos compreender a aparência externa da música se

não pudermos compreender que o próprio som não tem nada a ver com a

aparência.

          Tudo que compreendemos como aparência não tem nada a ver com

a música ou com as músicas. A performance da obra musical erudita há muito

substituiu o lugar original da música. Visa a identidade entre o intérprete e a

obra, entre o intérprete e o ouvinte, levando, finalmente, a ilusão ao próprio

intérprete e ao ouvinte da criação da obra no ato da execução.                     8




          A noção de que existe uma música séria e uma música ligeira não

satisfaz, não é uma percepção suficiente que possamos ter do próprio som




7
  Sobre educação musical O som e o sentido, São Paulo: Companhia das Letras, 1989, p. 19) José Miguel
Wisnick afirma que a pedagogia musical costuma dar nenhuma atenção a essa passagem, a essa correspondência
entre diferentes dimensões vibratórias, e perde aí todo um horizonte de insights possíveis extremamente
estimulantes para fazer e pensar músicas.
8
  Edward Said. Elaborações musicais São Paulo: Imago, 1992, p. 142.
                                                                                                       31
eletrônico e deste som como matéria-prima da música, seja ela séria ou

ligeira.   9




               A música, como trilha-sonora do cinema, tem uma aparência, assim

como o vídeo-clip investe exclusivamente na aparência visual da música ao

invés de investir na própria música. A pior faceta do momento, das chamadas

sociedades pós-industriais, é investir na aparência de tudo, e , definitivamente,

pretender transformar o mundo na aparência, enquanto questões seculares

tais como o racismo, as desigualdades, a violência, a destruição ambiental

continuam a desafiar os caminhos da civilização e da civilidade.

               O tipo de audição que se tem na música-trilha ou no clip tem a ver

com o audível apenas na aparência. É o produto de uma sociedade que

precisa se contentar com um mundo aparente, nele viver como se fosse real.

               Não que se condene a visualidade como superfície, já que ela pode

investir na visibilidade. A conexão som-imagem em nossa época investe na

redução da imagem ao visual, assim como na redução do som ao áudio. De

forma alguma promove a ampliação da imagem como visibilidade ou no

audível do som; ao contrário, funde os dois sentidos para promover um

terceiro, o da aparência, que substitui o lugar da essência de ambos os

sentidos. Uma sociedade que não satisfaz as necessidades humanas

essenciais deve preencher esse vazio com som e imagens e todo um recheio

de necessidades aparentes e virtuais, para dissimular sua incapacidade de

9
 Sobre a música eletrônica, observe-se que a orquestra sinfônica tradicional, em comparação, pode ser tida como
uma máquina de instrumentos separados, que produziam o efeito de uma unidade orgânica. Com o instrumental
eletrônico, começa-se com a própria unidade orgânica, com um fato imediato de sincronização perfeita, fazendo
com que a busca de efeitos de unidade orgânica careça de maior sentido. Marshall MacLuhan, op. cit. , p. 400.
                                                                                                            32
resolvê-las essencialmente. Resolve-as não só as ignorando, mas criando

outras em seu lugar. Como se pode apenas dissimular o lugar da essência, o

vazio é indisfarçável.

        De um outro lado, existe uma impossibilidade técnica. É recente a

conexão som-imagem. Vive ainda sob o impacto do fascínio da revolução

eletrônica. Os efeitos implosivos desta revolução são deslocalizados no tempo

e no espaço.

        Por um lado, leva à especialização acelerada e por outro abre

territórios para a invenção de códigos e combinações. No que tange o

conhecimento musical, percebe-se que não está mais necessariamente

vinculado ao domínio da escala e das regras musicais tradicionais. A

impossibilidade técnica é também uma questão de tempo acelerado.

        Falar de som sem recorrer à imagem é praticamente impossível;

principalmente com a palavra escrita. Deste modo, vamos recorrer a uma

imagem que se assemelhe ao desenho invisível que o som faz no ar.

        A mudança profunda que estamos vivendo funciona tal qual uma

pedra lançada na água, se faz perceber apenas na superfície, no movimento

circular geométrico. É ela que se agita, é ela que levará ao abismo ou ao

aprofundamento deste gesto. Quanto mais fundo for a pedra, maior será a

ressonância do gesto na superfície.




                                                                           33
Ou-vendo




         Desde a exploração do Novo Mundo, os viajantes observaram com

espanto e decepção, nossas selvas majestosas. O cenário esplendoroso

sugeria uma fauna exuberante, animais fantásticos , de grande porte como os
                                                            10




do continente africano. Assim, o “olha ávido dos conquistadores a procurar no

emaranhado das nossas selvas a figura gigantesca de qualquer animal que

lhes lembrasse o elefante ou o rinoceronte, ou na vastidão dos nossos

campos, a mancha movediça do que poderiam ser bandos de búfalos, zebras

ou antílopes.”   11




         Ao contrário, o ambiente das florestas tropicais não facilita a

movimentação das plantas forrageiras. A densidade da floresta impõe a vida

nômade e solitária, afasta o gregarismo ligado aos rebanhos. Se comparada

aos mamíferos, a grandeza da avifauna Neotropical é significativa. Para cada

seis espécies de aves, encontramos uma espécie de mamífero. A América do

Sul é o continente das aves.

         O testemunho de ouvir está presente nas culturas indígenas como

tradução do que o ambiente à volta comunica. Ao selecionar nomes tupis de

algumas aves, a intenção foi identificar tipos semelhantes de canto a partir das




10
    Sobre os seres imaginários, ver BORGES,Jorge Luis ; GUERRERO,Margarita. O livro dos seres
imaginários.Porto Alegre: Globo, 1981.
11
   Gastão Cruls . Hiléia amazônica. Rio de Janeiro: Companhia Editora Nacional, 1944, p. 60.

                                                                                          34
características onomatopaicas. Chama atenção, a toponímia da língua tupi,

por oferecer pistas detalhadas do território e,e portanto da cartografia.

          A língua Tupi, Nheêngatu, Língua Geral ou Língua Brasílica, é um

campo de investigação científica para a biogeografia e para a ecologia

humana. Os topônimos são sempre descrições ricas, traduzindo a fina

observação ao incluir, no nome do lugar, as características dele; associações

com o tipo de terreno, clima e até muitas vezes o som dos lugares, por

exemplo: Amazonas = Ama(chuva) + ssununga (barulho ou ruidoso). Podemos

encontrar nomes de aves, fora aqueles onomatopaicos, relacionados a um rio,

por exemplo: Anhembi = rio das anhumas ou anhimas – como eram

chamadas antigamente. Sem dúvida estas associações sugerem pistas para a

observação de inúmeras relações biogeográficas, fitogeográficas e outras que

de certo modo faziam parte do conhecimento destas nações, sinalizadas na

própria toponímia da língua.

          A região Amazônica e o Pantanal somam centenas e milhares de

espécies que junto ao Cerrado formam um continente para a biodiversidade.                                  12




Mesmo assim, toda essa fabulosa fauna e flora foi nomenclaturada pelas

nações indígenas até suas ínfimas variedades.

          A audição como reconhecimento espacial implica conhecimento

minucioso da geografia, como forma de equilíbrio com o meio ambiente a

partir da identificação sonora. A audição biaural (dos dois ouvidos) só foi

12
   Diversidade biológica significa a variedade dos seres vivos (animais, vegetais ou microorganismos). Não se
refere apenas à diversidade das espécies, mas também às variações entre indivíduos de cada espécie que são
transmitidas hereditariamente (diversidade genética) – assim como às variações que ocorrem entre diferentes
habitats naturais (diversidade de ecossistemas).
                                                                                                          35
devidamente estudada e reconhecida em 1934 por cientistas da Universidade

de Harvard. O homem tropical utilizava, instintivamente, este potencial para

calcular distâncias, orientar caminhadas e prever perigos de longe. Mas

quantos viajantes não morriam e ainda morrem na inanição dentro da

floresta? Morte por inanição, claro, do sentido da audição – falta de

sensibilidade auditiva para se orientar no monocromatismo da floresta.

          As culturas pré-letradas que contrastam “os caracteres francamente

divergentes da palavra escrita e falada podem hoje ser mais bem estudados” ,

graças ao contato íntimo que com elas temos hoje. Diz MacLuhan que um     13




único nativo alfabetizado de seu grupo, ao falar de sua função de leitor de

cartas para os outros, sentia-se impelido a tapar os ouvidos com os dedos,

durante a leitura, para não violar a intimidade das cartas. Sem a “pressão

visual” da escrita fonética, a palavra falada não permite extensão e a

ampliação da força visual requerida para os hábitos do individualismo e da

intimidade. O autor aponta o filósofo francês Henri Bérgson como

representante de uma tradição de pensamento que considera a língua, como

uma “debilitadora dos valores do inconsciente coletivo”. Bergson opina que

sem a linguagem a inteligência humana teria permanecida totalmente

envolvida nos objetos de sua atenção. Esta linha de raciocínio acredita que a
                                                     14




fala supera o homem e a humanidade do inconsciente cósmico, e como

13
   Ver Marshall MacLuhan. Os meios de comunicação como extensões do homem, São Paulo: Cultrix, 1964,p.
96.
14
   A linguagem é para a inteligência o que a roda é para os pés, “permite deslocar de uma coisa para outra com
desenvoltura e rapidez, envolvendo-se cada vez menos. Projeta e amplia o homem, mas também divide suas
faculdades, a consciência coletiva e o conhecimento ficam diminuídos por esta extensão técnica da consciência
que é a fala”. Op. cit. , p. 98.

                                                                                                           36
“extensão” , manifestação ou exposição de todos os nossos sentidos a um só

tempo, a linguagem sempre foi considerada a mais rica forma de arte

humana, posto que a distingue da criação animal.
               15




           Com os descobrimentos, inaugura-se o período dos grandes relatos

escritos sobre trópicos. Eles apresentam uma clara oposição entre o visto e o

ouvido.   16
                O olho está a serviço da “descoberta do mundo”. Existe uma

verdadeira “vertigem de curiosidade” está a serviço do que está oculto.

           A vertigem da curiosidade desloca os sentidos, o olho que a tudo

devassa também fareja a riqueza camuflada, desconhecida. Os sons ouvidos

são como fantasmas – inarticulados, ruídos sem conteúdo inteligível -, são

“chamados fora da órbita do sentido” – sons sem referência na memória. O
                                                       17




impacto visual da fábula ofusca impedindo a visibilidade, o delírio do olho a

serviço da escrita promove o deslocamento fracionando o mundo dos

sentidos.

           Com os “descobrimentos” inaugura-se o período dos deslocamentos. A

Europa ocidental (XVI ao XVIII) se deslocaliza. Esta deslocalização generalizada

está na base das clivagens sociais que acompanham o nascimento de uma

política e de uma razão nova, que a partir dos relatos de viagem “engendram



15
   Em Antropologia Estrutural (Rio de Janeiro, 2. ed. 1985, pp. 77-83; cap. III, Lévi-Strauss afirma que, de
todos os fenômenos sociais somente a linguagem parece presentemente suscetível de um estudo verdadeiramente
científico, que explique a maneira pela qual ela se formou e preveja certas modalidades de sua evolução ulterior
16
   Em A Escrita da História (Rio de Janeiro, 1988, pp. 21-41, “Etnografia, A oralidade e o espaço do outro:
Léry”) Michel de Certeau mostra a pressão da escrita como uma energia demolidora dos próprios estatutos da
etnologia. Demonstra a oposição entre o visto e o ouvido dos relatos de viagem, o “face a face do descobridor,
vestido, armado, cruzado e da índia nua”; - o desnudar sem compreender.
17
   As estruturas do sentido “projetadas nas diversas línguas, são tão diversas como os estilos na moda e na arte”.
Cada língua materna “ensina aos seus usuários um certo modo de ver e sentir o mundo, um certo modo de agir
no mundo e que é único.” Marshall MacLuhan , op. cit. P. 98.
                                                                                                               37
um outro funcionamento da escrita e da palavra”.                                  18
                                                                                       Esta verdadeira

compulsividade pela descoberta foi reforçada no século XVIII, veio favorecer a

“expansão ilimitada do domínio racional”.                19




           Ou-vindo




           Na caça, na transmissão de sinais e defesa de seu território é costume

antigo entre indígenas a utilização de pios para arremedar certas aves,

sobretudo os tinamídeos. Geralmente são aves que cantam à noite, assim, o
                                   3




arremedo do canto noturno destas aves servia à emboscada – quando o

invasor era surpreendido na escuridão.

           Esta antiga arte de defesa demonstra que, a seu modo, os índios

desenvolveram formas de observação que auxiliaram na diferenciação dos

diversos chamados, identificando as características comportamentais das aves

pelo canto e pela vocalização. O arremedo dos pios indica uma compreensão

da relação canto-defesa de território, que, assim, era utilizado para os mesmos

fins.



18
   Michel de Certeau, op. cit. P. 213.
19
   Ver , CASTORIADIS,Cornelius. O mundo fragmentado: as encruzilhadas do labirinto 3. Rio de Janeiro: paz
e Terra, p. 96.
20
   Aves pertencentes a uma ordem típica das Américas (Neotrópico), possuem uma família com nove gêneros
divididos em diversas espécies e subespécies. Carne saborosa, são características: o esterno bem desenvolvido e
capacidade de voar limitada pela pequena envergadura das asas. Terrícolas, vivem exclusivamente em matas ou
campos. São os conhecidos nhambus, perdizes e codornas.
                                                                                                            38
A função do canto territorial das aves é processada durante longos

períodos com intervalos regulares; estas emissões independem de uma

estimulação externa. Isto é, o canto territorial de aves é dado constante na
                             4




ambiência sonora das paisagens. Vai daí, justamente, a utilização por índios

deste tipo de emissão, em situações de defesa de território, pois a chance de o

invasor identificar estes arremedos é quase nenhuma.

          No continente das aves, o homem ou qualquer outro mamífero sempre

foram minoria. E talvez esta percepção tenha sido inata entre as grandes

nações tropicais que partilham este território, mesmo antes da chegada do

invasor. É possível que, ao observarem a grande quantidade e qualidade de

aves, em sua faina diária à busca de alimento, atraídos pelo canto ( o que

permite a localização) descobrissem territórios favoráveis (de caça e pesca)

para o desenvolvimento de suas culturas. Não é mero acaso, a importância

das aves na cosmologia indígena, na arte plumária , na arte de defesa.5




          A ideia que supõe a América Neotropical antes do século XVI como

continente que vivia na plenitude de sua natureza exuberante e tórrida, onde o

homem tropical em suas nações e tribos numerosas vivia com amplo conforto

e plena liberdade espacial para o desenvolvimento de suas culturas, vai de

encontro à base dos sentimentos que condenam e restringem a colonização

como um processo brutal de escravização, opressão e clivagem. A conquista

territorial levada a cabo por espanhóis e portugueses, sem negar as

21
  Ver Hernán Fandiño, op. cit. , p. 107.
22
  Haja vista a técnica da tapiragem, pela qual os índios modificavam ao seu gosto a cor das penas dos pássaros
em geral.

                                                                                                           39
atrocidades e violências cometidas, acabam escondendo outros elementos

que insistem em ficar de fora.

          A diversidade ecológica guarda um destino submerso no qual a

monumentalidade da riqueza natural sempre fez frente de igual altura, senão

de maior envergadura, aos processos sociais e culturais. Sem dúvida a

biodiversidade contribuiu e contribui para que, apesar dos feitos conseguidos,

do jugo e da destruição de boa parte dos sistemas tradicionais de

sobrevivência de seus povos nativos, continue sendo a América Neotropical a

pátria planetária das possibilidades, pela qualidade e quantidade de seus

ecossistemas.

          Não havia aqui antes da chegada dos colonizadores nada semelhante

à harmonia . Pelo menos a harmonia como costumamos compreendê-la. As
                6




dificuldades e limitações ambientais obrigavam à vida nômade, desenraizada.

Os territórios de caça de animais de que porte. No mosaico das grandes

sombras florestais da mata Atlântica à Amazônica, a vida se desenrolava entre

os perigos e a lentidão do tempo gotejado. Algumas tribos conseguiam se fixar

em litorâneas e menos acidentadas, ou próximas a manguezais. É sabido que

do lado oriental da Amazônia, próximo à região dos Yanomamis, os rios são

considerados famintos . A vida nestes territórios é de diário desafio.
                               7




          Tal qual pássaros, as tribos partilhavam este território que impunha

ritmos de constantes deslocamentos entre as grandes estações de cheia e

23
   Ver na epígrafe a mensagem que Lévi-Strauss nos deixou sobre as “harmonias perdidas” e o timbre original do
tempo, op. cit.,p. 139.
24
   Ver documentário de Rondon sobre a expedição Cuniná, que revela a decepção da pobreza da fauna
amazônica. Conferências. Rio de janeiro, 1916.
                                                                                                           40
seca. A disputa pelos territórios que impunha ritmos de constante movimento,

lentos cíclicos entre as grandes estações de cheia e seca. A disputa pelos

territórios de caça favorecia o surgimento de tribos guerreiras que

escravizavam outras menos desenvolvidas na arte da guerra silenciosa dos

pios e outros sinais sonoros. Menos desenvolvidas na arte da zoofonia.

             O descobrimento da América foi fundamental para o desenvolvimento

das ciências naturais e antropológicas. Nos fins do século XVII, a botânica era

descritiva; consistia unicamente na classificação de espécies. Com as

expedições científicas, as relações entre os caracteres climáticos, junto às

complicações dos botânicos, se avolumaram de tal modo que houve uma

“verdadeira revolução no domínio da taxinomia”. Isso contribuiu, diretamente,
                                                                      8




para o aparecimento da ecologia como disciplina da biologia.

             Como vimos, o continente das aves é sobretudo o da grande variedade

de vegetais que, por sua vez, está diretamente relacionada com a riqueza da

avifauna: a ecologia surgiu da geografia das plantas.                     9




             Mas, até hoje, é incômodo admitir que formas de observação da

natureza, das chamadas civilizações primitivas, possam estar na base da

formulação da biogeografia e da própria ecologia, formulada mais adiante.

Evidentemente, a grande quantidade de espécies vegetais classificadas iam

acompanhadas não só de seus nomes, mas também de outras informações



25
     Ver .ACOT,Pascal , História da Ecologia, Rio de Janeiro: Campus, 1990, p. 13.
26
   “Onde se vê que a geografia vegetal do século XIX, integrando no seus desenvolvimento os métodos e
resultados de disciplinas vizinhas, constituiu o quadro conceitual da elaboração dos conceitos centrais de
ecologia”. Ibid
                                                                                                       41
fornecidas pelos próprios “habitantes” dos locais onde eram encontradas,

informações dobre o clima, sobre a geografia, que serviam para compor um

panorama detalhado. As teorias que expandiram a noção da Amazônia como

um grande vazio, isolado, perdido na imensidão infestada de selvagens, não

conseguem esconder este paradoxo.

          O vazio, na verdade, estava ocupado por numerosas tribos. Sensíveis

foram os contrastes fornecidos por estes grupos ambientados com a natureza                                 10




tropical e estrategicamente localizados, que se movimentavam com destreza

por todo o complexo continental, ou parte dele, convivendo, intimamente, com

a textura da terra e conhecendo precisamente suas mudanças climáticas.

Grupos que possuíam compreensão diretamente do tempo e do espaço, o

ontem e o hoje, e o próximo ou distante. Enfim, homens que não tinham para si

nada de sui generis: grupos organizados, com seus conflitos próprios,

convivendo com tudo aquilo que para o colonizador ou naturalista viajante era

um imenso e tenebroso vazio.

          Na verdade o desconhecido não foi apenas impacto entre o civilizador

e o civilizado; mais para um do que para o outro, existiram formas de interação,

embora isso nem sempre seja admitido. O conceito sobre as culturas

“primitivas” continua contaminado de equívocos.




27
  Sobre o caráter ambíguo da noção de natureza entre os povos ditos “primitivos”. “A natureza é pré-cultura e
também subcultura, o terreno no qual o homem pode entrar em contato com seus ancestrais, os espíritos e
deuses”. Portanto, na noção de natureza há um componente “sobrenatural” e esta “sobre-natureza está
incontestavelmente acima da cultura, como a própria natureza abaixo dela” (Lévi-Strauss, Antropologia
estrutural dois, cap. XVII; B, “O respeito pela natureza”). Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro., p. 325.

                                                                                                          42
Um      matiz      desta      questão       está        cravado     na     própria      tradição

antropológica. As ciências sociais e antropológicas desenvolveram poucos

conceitos para analisar, por exemplo, como os grupos indígenas reproduzem

em seu interior o desenvolvimento capitalista, para melhor compreender como

constituem dentro dele “formações mistas” . Cancline afirma que os estudos
                                                              11




etnológicos tendem a registrar de um lado a sociedade colonial e de outro o

grupo étnico, como blocos homogêneos. As desigualdades internas são

camufladas e vistas como unidades compactamente enfrentadas pelo poder

invasor. Assim, as formas de interação permanecem clivadas.

           O etnocentrismo dificulta a compreensão das culturas populares, que

continuam a ser enxergadas como “resquícios de tradições étnicas” ou como

subculturas e não como configurações concretas do social, ou como

fragmentos, partes de um sistema maior de dominação.                          12




           Mesmo não sendo um fenômeno à parte, não foi apenas a desnutrição

e a exploração direta ou indireta das culturas ditas primitivas, mas foi também

a apropriação do conhecimento e da sabedoria desses povos que permitiu

que boa parte do desenvolvimento ocidental. O contato com culturas que

desenvolveram modos de comunicação, de convivência e de conhecimento

minucioso da natureza inspirou e até gerou metodologias de observação

científica.



28
  Ver , CLACINI, Nestor Garcia, Um debate entre tradicion y modernidad, Clacso XVII, 52, 1987, p. 40.
29
  Para Canclini é o próprio vínculo da antropologia com a história que provoca estas distorções, pois ao abarcar
a larga temporalidade da dimensão diacrônica acaba por fortalecer a estratégia de dominação dos grupos
indígenas, que sempre foi manter a sua diferença, ibid.

                                                                                                             43
Não é segredo a vasta contribuição destas culturas para as ciências

biológicas e farmacológicas; como também hábitos e costumes alimentares e

medicinais, conhecidos como “naturais”, são desde a colonização, até hoje,

largamente utilizados e popularizados no mundo inteiro. Também boa parte da

indústria farmacológicas alopática utiliza substâncias retiradas de diversos

vegetais e animais da floresta tropical, a partir da medicina praticada há

milhares de anos por estes povos, que não recebem retribuição alguma por

essa incalculável contribuição. Por isso as interpelações feitas hoje aos

indígenas, como guardiões ideais das reservas florestais, merecem uma

reflexão à parte.

        Não há como esconder que o desenvolvimento ocidental tem sido

orquestrador de diversas atrocidades que encontram na clivagem das

interações e conflitos sociais um dos seus maiores desafios. Não seria exagero

admitir que as penas de pássaros presentes nos adereços ou empalhadas em

museus são sintomáticas de um fenômeno: a partir do quinhentismo, acertam-

se os ponteiros para a contemporaneidade da devastação acelerada.

        O calvinista Jean Lery (1557) foi o primeiro a registrar os nomes

indígenas de aves nas aldeias tupinambás, tendo escrito uma canção desses

índios sobre o canindé (Ara ararauna), uma arara de barriga amarela.

        A convite do Conde Maurício de Nassau-Siegen, muito interessado em

zoologia, o naturalista George MacGrave (1610-1643) foi incubido de executar

de executar a primeira expedição científica zoológica, botânica e astronômica



                                                                            44
em solo brasileiro . Apesar de não ter coletado material científico, MacGrave
                            13




organizou vasto material iconográfico a óleo e aquarelas.

             Em 1783, Alexandre Rodrigues Ferreira (nascido na Bahia, em 1756),

veio chefiando a “Viagem filosófica pelas capitanias do Grão Pará, Rio Negro,

Mato Grosso e Cuiabá”, organizada em Portugal, para fazer pesquisas durante

dez anos. As coleções desta viagem constituíram-se no primeiro material

científico que foi do Brasil para a Europa.                14




             Uma experiência de apresentar vozes de pássaros em notas musicais

foi elaborada, primeiramente, pelo príncipe Maximilian Von Wied Neuwied

(1816), quando registrou, no Brasil, o assobio do saci (Tapera naevia). A

narrativa da viagem do príncipe Wied contém vasto material sobre fauna, flora

e sobre a vida nativa e constitui-se, também, em documento do mais alto

interesse biogeográfico.

             O registro do canto dos pássaros em notas musicais se tornou uma

prática entre alguns cientistas e viajantes que conheciam teoria musical. Era o

único instrumento de registro do canto das aves; outras técnicas surgiram

mais tarde, como examinaremos mais adiante.

             No período colonial era prática comum a captura de animais,

principalmente das aves. O Brasil era conhecido como a terra dos papagaios.

Como troféus das façanhas empreendidas nos continentes conquistados eram




30
     A Historia naturalis Brasiliae de MacGrave foi editada em 1648.
31
     Ver Helmut Sick. Ornitologia Brasileira: uma introdução. Brasília, UNB, vol. 1, 1984, p. 107.
                                                                                                     45
exibidas para o deleite do mundo europeu, como exóticas. Práticas como a            15




Caça de Altaneira foram registradas na corte do infante Dom Luís (1616), um

tipo de caça desconhecido nos trópicos.                16




          No século XIX, proliferaram as expedições científicas aos estudos

biológicos e zoológicos. Milhares de espécimes de aves foram coletados e

depositados em museus da Europa. Entre as coleções que está a de Friedrich

Sellow (1814), que enviou 5.457 aves empalhadas para o museu de Berlim.

Suas coleções só foram superadas por Johannes Spix e Johannes Natterer.

Estes dois naturalistas alemães, ao lado do botânico Carl Friedrich Philip Von

Martius, fizeram parte da expedição que veio ao Brasil com a princesa

Leopoldina em 1817.

          As coleções de Natterer contavam com 12.239 aves empalhadas, 1.000

mamíferos, 35.000 plantas secas e milhares de objetos indígenas, enviados ao

Museu de Viena.

          Em 1800, Humboldt, que também incluía aves em seus estudos, veio

ao Brasil com o botânico Bompland, mas foi proibido de entrar no país por

decisão da Coroa. Na Venezuela, descobriu o guácharo (Steotornis caripensis).

O cientista pertenceu a uma corrente que elaborou conceitos importantes para

a ecologia – sendo um dos precursores da biogeografia.




32
   Exótico é tudo aquilo que se desconhece. Ser exótico é, sobretudo não ser compreendido, é ser considerado
mal feito, mal acabado, curioso e intrigante, justamente por ser desconhecido. V. Aurélio Buarque de Hollanda,
Pequeno Dicionário da Língua Portuguesa.
33
   A caça de altaneira é típica de savanas, desertos e de montanhas desprovidas de mata.

                                                                                                           46
Os naturalistas Alfred Russel Wallace e Henry Walter Bates viajaram

pelo Brasil em 1848. A obra de Bates, O naturalista e o rio Amazonas, (1863)

está entre as publicações mais conhecidas e estudadas sobre a Amazônia.

Wallace ficou mais famoso pela formulação da teoria da seleção natural, em

1859, em conjunto com Charles Darwin. Seus estudos baseavam-se em

registros feitos na região oriental da Amazônia. Darwin, que aqui esteve em

1832, conclui que a botânica e a ornitologia do Brasil já eram bastante

conhecidas.

          Poucos cientistas reconheciam a nomenclatura nativa de aves e

animais. A própria forma de classificação implicava, na época das expedições,
           17




verdadeira corrida científica. Isto porque os nomes das espécies novas que

iam sendo descobertas podiam e podem incluir o nome de pessoas, dentro da

sistematização introduzida por Linneu,               18
                                                          em 1758. A classificação proposta por

Linneu fez nascer grande interesse pelo estudo científico de aves, estimulando

verdadeira corrida à consagração científica. As viagens pelos trópicos

proporcionavam            aos      viajantes      naturalistas        o    verdadeiro         mérito      e

reconhecimento científico.

          O ato de dar nomes científicos hoje é controlado pela Comissão

Internacional de Nomenclatura Zoológica (C.L.N.Z.) e baseia-se na lei da


34
   Martius compreendeu a importância da língua tupi, para estudos de zoologia, na publicação Nomina
animaliun in língua tupi, 1863 -, e Rodolfo Garcia realizou uma interpretação de nomes indígenas em Nome de
Aves em Tupi, 1913.
35
  Autores bem familiarizados com o latim latinizam o nome na nomenclatura, por exemplo: Spixius, em vez de
Spix. Em conseqüência, o respectivo nome deve ser escrito com dois “i” no genitivo latino, por exemplo:
Cyanopsita spixii, Wagler, 1932; e ainda se escreve Synallaxis spixi, Sclater, 1856, simples genitivo de Spix
sem latinização, op. cit., p. 36, Op. cit.,p.38.
                                                                                                          47
prioridade: o nome válido é o mais antigo, para evitar que a nomenclatura se

torne caótica. A taxonomia baseia-se principalmente na morfologia externa,

mas existem hoje outras técnicas para métodos bioquímicos (quimio-

taxonomia e sistemática genética), estudos etológicos e pesquisas fisiológicas,

tais como: análise da vocalização para tentar investigar problemas não

solucionados com as técnicas morfológicas.

              Até 1950, técnicas morfológicas predominaram. Nos anos posteriores,

inicia-se a investigação de técnicas não-morfológicas. Destacam-se pesquisas

sobre a musculatura mandibular dos passeriformes; de possíveis caracteres

nos esqueletos, que sirvam para separar famílias e ordens; dos estapes , uma
                                                                          19




parte do ouvido interno: e ainda das estruturas que não estão sujeitas à

seleção. A capacidade de comunicação pelo canto ou vocalização subentende

mecanismos desenvolvidos ao longo da evolução, nas aves extremamente

ligados à audição.




              Ou-vido




              Em repouso ou em movimento o ar é um material elástico que

transmite o som. A sutileza sonora e as forças constitutivas da audição,

presentes nos pássaros demonstram inequivocamente a leveza de ser.

36
     Op. cit. P. 37.

                                                                               48
Só se pode perceber o quanto a audição é preciosa, quando ela falta.

Se uma criança nasce surda terá enorme dificuldade de adaptar-se ao mundo.

Fatalmente seu desenvolvimento intelectual estará comprometido, não

podendo ouvir sequer o próprio choro, primeira forma de comunicação.

          Como centro auditivo, o ouvido é tão ativo, quanto sensível, por isso

considerado pedra fundamental da comunicação. A audição biaural permite

aos cegos calcular com exatidão a distância dos objetos. O ouvido é a sede

não só da audição, mas de outros dois sentidos independentes: o equilíbrio e a

orientação, situados no labirinto.

          No século XVIII, questionava-se a existência do som. Perguntava-se: Se

uma árvore cair na floresta haverá som? A natureza era colocada em dúvida
                                                     20




nesta procura de um mundo real. Especulava-se o som como fenômeno

organizado, ou como uma sensação que só poderia ser reconhecida pela

mente ouvinte.

          Ainda no início do século XIX, acreditava-se que o som não ocupava

espaço. Assim como os objetos têm textura e forma e podem ser vistos pelos

olhos e tocados pelo tato, o som, ao contrário, não poderia ser localizado por

meios auditivos. Até pouco tempo, muitas destas ideias impediam a

compreensão da audição biaural. Existem outras razões para a audição ter

sido um sentido relegado ao segundo plano.




37
  Sobre a discussão de causa e efeito do som entre filósofos e físicos, Stevens e Warshofsky, O som e a
audição, Rio de Janeiro: Edições Life, 1968, p. 9.

                                                                                                    49
Com a escrita, o som passa a ser uma “extensão da função visual”. O
                                                                             21




alfabeto fonético leva à redução do papel dos sentidos da audição, do tato e

do paladar. MacLuhan afirma que isto não se deu em culturas como a chinesa,

que utilizam a escrita não-fonética, o que capacita à manutenção de uma

percepção abrangente e profunda da experiência. Nas culturas do alfabeto

não fonético, o ideograma é uma gestalt abrangente, que ao mesmo tempo

não promove a dissociação analítica dos sentidos e das funções, como ocorre

coma escrita fonética.

             A separação introduzida entre o som e a visão, de um lado e          o

conteúdo verba e semântico, de outro, transforma esses dois sentidos na mais

radical das tecnologias que tange à tradição. O alfabeto fonético divide a

experiência antes unida, “dando um olho, por um ouvido, liberando o homem

do transe tribal, da ressonância da palavra mágica e da teia do parentesco”.      22




Assim as culturas tribais não conseguem compreender a ideia do indivíduo

separado. Para elas, a ideia de espaço e tempo é descontínua e desuniforme,

seu fundamento é emotivo.

             Somente as culturas letradas dominaram as sequências lineares,

concatenadas como formas de organização psíquica e social, fragmentando a

experiência em unidades uniformes capazes de produzir ações e mudanças

formais mais rápidas através do conhecimento aplicado. Este último é o

segredo do domínio ocidental sobre o homem e sobre a natureza. Baseada na


38
     Marshall MacLuhan, op. cit. P. 103.
39
     Op. cit., p. 103.

                                                                                  50
alfabetização, a civilização promove um processamento uniforme da cultura

pelo sentido da visão, projetado no tempo e no espaço pelo alfabeto.

           Nas culturas tribais, o que organiza a experiência no mundo é o

sentido vital da audição, que reprime os valores visuais.

           MacLuhan, em sua “tese genérica” , preconiza a Idade Elétrica como o
                                                           23




fim da cultura visual, da divisão técnica, do individualismo, do nacionalismo

reintroduzindo a comunicação instantânea e a relação tribal (como foi com as

culturas orais que precederam a imprensa). Anuncia a Era Elétrica (implosão)

como um período de reencontro com os esquemas de participação das

culturas orais e tribais, que precederam a Era Gutemberguiana (explosão).

           As afirmações de MacLuhan abrem caminho para o estudo da História

Moderna, em função dos meios de comunicação dominantes em sua leitura

otimista e atraente de divisão da história em grandes eras tecnológicas. O                               24




caráter imediato da tele-informação faz do mundo uma tele-aldeia, introduz o

neoarcaismo, um fenômeno importantíssimo que está diretamente ligado ao
                  25




neomodernismo.

           MacLuhan viu a humanidade em três grandes idades. A primeira dá

ênfase à audição nas culturas orais; a segunda, à visão nas culturas do

alfabeto fonético; e a terceira, ao tato nas culturas elétricas. No momento

40
   , BADRILARD,Jean. Analisis de Marshall MacLuhan : Undersatnding Media, Buenos Aires, Tempo
Contemporâneo, 1967, p. 26.
41
    Jean Baudrillard afirma que o autor omite o conhecimento da história social destes meios, apesar de apoiado
em grandes verdades. Ao enfatizar que “o medo é a mensagem”, MacLuhan esvazia a sociologia e a história
política destes meios; suas revoluções e convulsões históricas, omitindo os nacionalismos e o feudalismo
burocrático numa era de participação acelerada, “astúcia sutil”, op. cit., p. 35.
42
     MORIN,Edgar. Para compreender MacLuhan, op. cit., p. 39: à maneira de Lévi-Strauss, MacLuhan
redescobre a notável modernidade da consciência arcaica.

                                                                                                              51
vivemos um período de interpenetração da passagem da segunda para a

terceira. No entanto, a mudança de ênfase do visual para o tátil retornava as

formas de envolvimento das culturas orais, do ouvido.




          Audi-ação




          A    audição,       como       sentinela       dos     sentidos,      por   suas        funções

independentes de equilíbrio e orientação, evoluiu de mecanismos simples, os

estatocitos. Primeiro órgão sensitivo, esse mecanismo é conhecido nos peixes
               26




como “linha lateral” e são extremamente semelhantes, em construção, às

células ciliadas do ouvido interno dos mamíferos que convertem vibrações em

impulsos nervosos.

          Comparável a um receptor de rádio, o ouvido humano é capaz de

decodificar as ondas eletromagnéticas e redecodificá-las como som. Assim, a                  27




voz humana pode ser comparada a um transmissor de rádio, ao traduzir o som

em ondas eletromagnéticas. A voz tem o poder de moldar o ar e o espaço em

formas verbais, embora se acredite que tenha sido precedida, provavelmente,

de uma expressão menos especializada: “de gritos, grunhidos, gestos e

comandos de canções e danças”.                28




43
   Bolsas que mantêm o equilíbrio em animais marinhos, tais como a água-viva.
44
   Marshall MacLuhan, op. cit., p. 97.
45
   Ibid.

                                                                                                       52
O ouvido capta, amplifica, converte e transmite para o cérebro,

simultaneamente, o que os dispositivos artificiais só conseguem fazer em

seqüência. Dentro da abóboda cerebral, não são os sons, mas os estímulos é

que provocam as reações que respondem a esses mesmos estímulos.

             O som vivo do ambiente provoca uma gama enorme de emoções e de

reações físicas. O reflexo do movimento do mundo, da fala, desperta

lembranças e imagens mentais remotas e esquecidas. É a memória do som

que põe em movimento as imagens esquecidas na memória. No centro de

memória sonora no interior do cérebro, os sons acumulados são referências

precisas para o estado de alerta e prevenção de perigos.

             Mas é justamente na atualidade, em que a audição em si passa alertar

e prevenir. Uma ciência cujo método está em busca de orientação para a

compreensão dos mecanismos de equilíbrio do meio ambiente. Investiga-se                      29




hoje a complexidade destes mecanismos naturais, para desenvolver formas de

controle biológico que surtam efeitos mais duradouros. Assim a ecologia pode

ser considerada a ciência que busca ouvir, em vez de devassar para

determinar ou provar, que busca orientar e equilibrar seus métodos com a

complexidade ambiental.

             Físicos, matemáticos, biólogos, e astrônomos estão criando uma série

de idéias alternativas. Sistemas simples dão origem ao comportamento




46
     GLEIK,James. Caos: a criação de uma nova ciência. Rio de Janeiro: Campus, op. cit., p. 292.
                                                                                                   53
complexo e sistemas complexos dão origem a comportamentos simples: as

leis da complexidade têm validade universal.                   30




              Os mecanismos complexos não são visíveis e estão submersos em

associações tão sutis que, de forma independente, se equilibram e orientam,

sujeitos a mudanças inesperadas, condicionadas a mínimas variações

impostas pelo ambiente. Variações tão dinâmicas quanto as nuvens do céu,

que exigem, portanto, experimentos de observação que apresentem o mesmo

dinamismo.

              MacArthur compreendeu que a ecologia baseada num senso de

equilíbrio “estático” está condenada a falhar. Os modelos tradicionais são

traídos por suas tendências lineares.

              A audição é um sentido complexo. Para cifrar sinais perfeitamente

claros exige malabarismos do aparelho auditivo. Cada fibra nervosa que

maneja um sinal forma ligeiramente modificada. Seus numerosos elementos

parecem todos exercer as funções de captar, para gerar energia, a qual

partindo do sistema nervoso central é sinalizada para todo o organismo. São

os impulsos nervosos, e não a fonte externa de eletricidade, que realmente

geram a sensação. Esta “marcha do som para a audição, das vibrações

mecânicas             aos      impulsos       elétricos,   é        marchada   por   elaboração   e

complexidade cada vez maiores”.                 31




47
     lbid.
48
     Stevens e Warshofsky, op. cit., p. 60.
                                                                                                  54
Os pássaros, em posição relevante na escala do desenvolvimento

evolucionário, têm ouvidos bem parecidos com os do homem. Mas os ouvidos

dos insetos são considerados os mais eficientes sistemas de audição. Apesar

dos pássaros ouvirem mais ou menos com o mesmo alcance dos homens,

chegam a superá-los. Este sistema auditivo mais avançado está relacionado
                             32




com a complexidade de seu sistema vocal.Uma única espécie pode emitir

mais de 50 tipos de vocalizações diferentes derivadas de um vocabulário de

mais de 300 notas estudos etológicos têm demonstrado uma paralelismo não

desprezível entre aves e mamíferos (primatas)                      33
                                                                        no que diz respeito aos

sistemas de comunicação. Os chamados complexos, que servem de

espaçamento em populações de primatas são comparáveis aos de

passeriformes.

          Ondas sonoras são usadas, também para “ver” objetos na escuridão,

ou invisíveis, porque fora do alcance do raio de visão, usam a audição para

colher informações detalhadas dos                      obstáculos. A observação destes

mecanismos inatos estão na base da descoberta do sonar e do ultra-som.

          A velocidade do som foi alcançada, mas a da luz esta distante as

gerações mais próximas. Porém, mais veloz que a luz somente o cérebro – a

velocidade do pensamento, do insight.




49
   Uma pequena diferença na cóclea, que nos pássaros é ligeiramente encurvada e nos mamíferos, enrolada em
espiral.
50
   Hernán Fandiño Mariño , op. cit . , p. 107.


                                                                                                       55
Entre o dito de uma descoberta cientifica e a sua prova visível reina o

silêncio. Assim o tempo desse silêncio funciona como um eco. É neste eco

que ressoa a verdadeira descoberta. O silencio do tempo ´e quem fala. Assim o

tempo social-histórico não acompanha o tempo cientifico.




           II. OUVINDO VOZES DO CÉU E DA TERRA




           Hércules Florence, em 1829, durante a expedição Langsdorff realizou

uma experiência de registro de “vozes” de animais, a qual denominou

zoophonia . Um relato publicado sobre essas experiências ofereceu pistas
              1                                                                                               2




sobre um novo caminho para a percepção dos sons naturais. Apesar de ser

um documentário científico importante, não pode ser classificado como um

texto da ciência que hoje se encarrega da investigação da vocalização dos

animais, a bioacústica. Esta ciência investiga a vocalização dos amimais como




1
 Ver Hercules Florence, Zoophonia. Rio de Janeiro: R.I.H.G.B. , tomo 39, 1876.
2
  Recentemente, foi publicado pela UFMT uma tradução de Jacques Vielliard de um dos textos escritos por
Florence sobre zoofonia. O texto de Taunay foi escolhido para análise, por ter sido autorizado para a publicação
pelo próprio Florence, entre 1875 e 1976 e que, portanto possui um timbre mais próximo do século em que o
autor produziu sua obra como artista e pesquisador, vindo a falecer em Campinas em 1879. Ver Viagem Fluvial
do Tietê ao Amazonas pelas Províncias de So Paulo e do Grão- Pará (1825 – 1829). Museu de Arte de São
Paulo Assis Chateaubriand, 1977.
                                                                                                             56
“exibições comportamentais” e detém seu interesse exclusivamente no que
                                             3




concerne a “ função biológica destas exibições”.

              Tampouco se tratava de uma investigação musical. Isto porque, na

época, não havia outra forma de registrar essas “vocalizações” a não ser

através de notas musicais. De certo modo, isso não era novidade, outros já

haviam se adiantado nesta forma de registro.

              Novidade era a ousadia de Florence de esboçar uma união da ciência

da natureza (biologia) com a sensibilidade (música), ou de demonstrar que em

matéria do estudo dos sons de animais não é possível descartar sensibilidade,

ao afirmar:




                                           [...] a ninguém ocorreu a ideia de tornar a voz dos animais

                                assunto de estudos e cuidadosas observações, como sem dúvida é

                                sua história natural. Entretanto dentre todas as majestosas ou suaves

                                harmonias da esplendida e nunca assaz admirada natureza é a

                                zoofonia unicamente que fere nossos sentidos por meio de notas

                                musicais[...]4




              No entanto, o lugar híbrido onde aparece que estas afirmações vão

dar, na verdade, é o terreno fértil em que Florence semeia suas ideias. Nas


3
    Herman Fandiño Mariño, op. cit., p. 106.
4
    Hercules Florence, pó. cit., p. 221.
                                                                                                    57
observações do tradutor Taunay, encontramos afirmações que definem o

“viajante” Florence como homem de “ variado fundo de instrução”, cuja

vitalidade criativa e espírito inventivo já havia imaginado diversos meios, “todos

engenhosos”, quando inventou a polygraphia . Segundo Taunay, as tentativas
                                                       5




de Florence de inventar a fotografia, antes de Niepoe e Daguerre, só não foram

reconhecidas porque o pesquisador viva numa província onde faltavam

recursos, e quando soube que outros, com melhores condições, tinham lhe

tirado o valor da prioridade do invento, caiu em desânimo e retraimento.

              Apesar de não caber neste estudo uma indagação sobre a veracidade

destas afirmações, elas fielmente demonstram a vivacidade da mente

inventiva de Florence e certificam que ele não era um viajante comum. Sua

sensibilidade criativa está presente na obra iconográfica da expedição

Langsdorff e também na intuição da zoophonia:




                                    [...] quando o sábio examina cuidadosamente e lentamente

                         tudo o que o cerca; quando o mais insignificante inseto não escapa à

                         sua análise, que perscruta até o mundo microscópico, não lhe deve

                         parecer inútil e despido de qualquer vantagem apreciar, debaixo de

                         determinadas regra, não direi a linguagem, porém sim a voz dos

                         animais[...] .
                                      6




5
    Op. cit., p. 322.
6
    Op. cit. , p. 323.
                                                                                           58
A proposta de exame cuidadoso e lento demonstra o rigor científico de

perscrutar, não devendo parecer inútil ou desvantajoso apreciar, no sentido de

estimar e avaliar a voz dos animais (como ele mesmo deixa bem claro) dentro

de determinadas regras. Fica evidente, também, a preocupação com a

utilidade de suas indagações. A suspeita de que talvez estivesse atendo-se em

causas inúteis e estéreis.

            Mas se, nem tanto como precursor da bioacústica, a intenção de

Florence parece esboçar timidamente um novo campo de conhecimento, que

não era a bioacústica, também não somente se tratava de uma investigação

musical, mas sim da zoophonia, talvez um limiar entre estes dois campos.




                               Ainda quando não servisse esse estudo mais do que para

                        mero entendimento do espírito, não deverá merecer indiferença e

                        pouco caso; mas não é só isso que nela acharemos, encontrando

                        também cores novas e vivas, faces do verdadeiro valor cientifico e

                        juntando sem contestação o tão apregoado útil ao agradável[...]   7




            Florence se refere à música da natureza e busca o verdadeiro valor

científico desta música que não deveria soar aos ouvidos apenas por sua

beleza, e para tanto encontra um álibi na união (insuspeita) do tão apregoado

útil ao agradável. Na verdade, a beleza de que nos fala é a experiência estética


7
    Ibid.
                                                                                              59
estética. Mesmo porque seria hipocrisia admitir que as atividades mais

racionais não perpassam pelo sentimento estético.

             Demonstrando estar consciente da suspeita metodológica (da

inutilidade) sobre as reações que poderia suscitar esta aproximação entre a

ciência biológica e a ciência musical como os meios de expressar as

mensagens da natureza. Florence busca apoio recorrendo ao tão apregoado

útil, este sim, insuspeito. A suspeita ocorre de fato, mas não porque estivesse

seguindo o caminho errado. Se ainda hoje são raros os esforços

interdisciplinares neste campo, que dirá há 150 anos?

             Há pelo menos duas décadas ouvimos discursos sobre a multi, inter

ou transdisciplinaridade e temos visto que não forma suficientes para eliminar

as suspeitas metodológicas. Essa desconfiança e marginalização das

pesquisas multi-referenciadas continuam sem poder fazer o devido contrapeso

à especialização acelerada e a marcha automatizada da tendência que                             8




funciona como reator super-aquecido.

             Por outro lado, o surgimento de novas ciências como a do caos, só é

possível mediante o desafio dos modos de pesquisa atuais. O caos, valendo-se

do comportamento universal da complexidade, investiga o aleatório e i

complexo, “extremidades entrecortadas e saltos súbitos” , especula o                      9




determinismo e o livre arbítrio, a evolução e a natureza da inteligência




8
    Cornelius Catoriadis, op. cit. , p. 97.
9
    Cf. James Gleik, Caos: a criação de uma nova ciência., Rio de Janeiro: Campus, 1990, p.5.
                                                                                                    60
consciente. Estes cientistas sentem que estão fazendo recuar a propensão da

ciência ao reducionismo, e “ acreditam estarem a busca do todo” .                         10




           Não existe aqui a intenção de apresentar a zoofonia como campo de

conhecimento ligado ao caos; mas apenas a de demonstrar que inúmeros

outros campos de conhecimento estão surgindo no lugar dos saberes em

dissolução. A própria ecologia, como disciplina da biologia, ao abarcar outros

campos de conhecimento muda a fisionomia da própria biologia.

           A ousadia de Florence é ter proposto a zoofonia no limiar de duas

disciplinas científicas, não escondendo sua sensibilidade criativa ao captar as

mensagens das vozes do céu e da terra.

           Não entraremos no mérito ou na análise das partituras que elaborou

durante a viagem (que apenas esboçam tentativas de aproximação), visto que

só recentemente, com a possibilidade de gravar audioespectogramas , as                               11




vocalizações podem ser traduzidas mais fielmente. Mas não é neste aspecto

que interessam estes registros, mas as associações e as relações investigadas:




                                     [...]ao passarmos de uma região para outra surpreendiam-nos

                            os gritos de viventes que nos eram desconhecidos, ao passo que

                            desapareciam outros que já se nos tinham tornado familiares ou, se

                            continuavam a se fazer ouvir, era já com modificação sensível do

                            órgão vocal[...]   12




10
   Ibid.
11
   Mostra a altura em quilohertz por segundo; a intensidade pela espessura das linhas e a duração.
12
   Hercules Florence, op. Cit., p. 321.
                                                                                                          61
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O canto de céu aberto e de mata fechada para impressão

  • 1. O canto de céu aberto e de mata fechada, Marta Catunda 1
  • 2. Marcador de página(0relha) A questão ambiental é o assunto do momento, mais polêmico do que esclarecedor. Marta Catunda, buscou inspiração na incontestável monumentabilidade sonora universal do canto dos pássaros. Demonstra como nossa sensibilidade para a ecologia e suas implicações na vida contemporânea está comprometida até para a percepção de um simples canto de pássaro e nos convida a ouvir. Ouvindo, nos estimula a pensar na própria audição como um sentido enfraquecido em nossa época de comunicação intermediada por meios tão sofisticados. Assim, nos leva a compreender por que considera a ecologia uma disciplina que nos fala ao pé do ouvido. O trabalho ora apresentado por esta pedagoga, artista plástica e compositora autodidata é baseado na dissertação de mestrado em Ciências da Comunicação, defendida na Escola de Comunicações e Artes da USP/SP, em junho de 1993. Durante três anos a pesquisadora dedicou-se a ouvir e classificar os timbres de dezenas de pássaros do Pantanal (Céu Aberto) e da Amazônia (Mata Fechada), selecionando, a partir de audições, em laboratório e em campo, 23 espécies por critérios próprios que considera de aproximação, na tentativa de tornar o estudo do canto dos pássaros mais acessível ao leigo. Mas, não se deteve apenas nesse aspecto. Segundo o processo de pesquisa, recolheu informações em várias disciplinas biológicas e sociais, objetivando iniciar a formação de um quadro conceitual multidisciplinar para o que 2
  • 3. considera um campo de conhecimento para os músicos do ouvido e para pesquisadores em bioacústica e geofonia. Para tanto, teve como ponto de partida os estudos de zoophonia de Hercules Florence, pesquisador e desenhista participante da expedição Langsdorff, que tem merecido atenção especial da Universidade Federal de Mato Grosso (UFMT) em publicações recentes. Florence é mais conhecido como desenhista por suas aguadas, mas é também apontado como um dos inventores da fotografia e por muitos considerado pai da bioacústica. Finalmente, Marta Catunda conseguiu produzir uma obra inquietante, sensível e palpitante, que acaba por conceder uma amplitude notável ao tema, até então restrito a bioacústica e músicos, isoladamente. Por isso, enfrentou dificuldades acadêmicas que, no entanto, transformaram este livro numa leitura desafiante para os que acreditam na liberdade do conhecimento científico ou no rigor de observação imaginativa da ciência. Prof. Fernando Tadeu de Miranda Borges Coordenador da EDUFMT 3
  • 4. O Canto de Céu Aberto e de Mata Fechada Índice para catálogo sistemático. 1. Zoofonia – Ecologia 2. Canto de Pássaros – Ecologia 3. Música – Antropologia cultural 4. Audição – Percepção e espaço de tempo – Psicologia 5. Educação ambiental – Comunicação Copyright ©1994 by Marta Catunda ISB: 85-327-0032-2 Universidade Federal de Mato Grosso 4
  • 5. Ficha Catalográfica - Biblioteca Central/ UFMT C 355c CATUNDA, Marta O canto de céu aberto e de mata fechada/ Marta Catunda- Cuiabá Editora Universitária da UFMT, 1994. 138p.: il Dissertação de Mestrado : Ciências da Comunicação. Bibliografia: p. 131 – 138 CDU – 591.58 Copyright ©1994 by Marta Catunda ISB: 85-327-0032-2 5
  • 6. Universidade Federal de Mato Grosso Av. Fernando Correa da Costa, s/n, Coxipó 78.060-900 Cuiába – Mato Grosso Fax: (065)315-1119/ EdUFMT Telefone: (065) 315- 8322 Telex : 65137/UFMT/BRA Impresso no Brasil / Printed in Brazil Depósito legal / BN / Decreto 1825 (20/12/1907). Este ensaio recebeu o prêmio Allejandro Jose Cabassa de melhor ensaio cultural de 1995, pela União Brasileira de Escritores/UBE – Academia Brasileira de Letras 6
  • 7. Agradecimentos À colaboração da Universidade Federal de Mato Grosso (UFMT), que investiu, apoiou todos os desdobramentos da pesquisa. À participação estimuladora da Fundação Vitae do Arquivo Sonoro da UNICAMP e da Fundação Cultural do Acre. À Coordenação de Ensino e Superior, CAPES, o apoio financeiro para o curso de pós-graduação em Ciências da Comunicação e para a dissertação que foram a base deste livro. À fé criativa de Aline Figueiredo, Humberto Espíndola e Wlademir Dias Pino. À inspiração instigante dos professores Ciro Marcondes Filho e José Teixeira Coelho, da Escola de Comunicações de Artes ECA/USP. Ao geógrafo e tradutor Cláudio Frederico da Silva Ramos, que ajudou a questionar todos os embates metodológicos, todas as certezas, enfim, todos os momentos desafiantes, sem desmerecer os sinais da intuição. A Dante Renato Buzetti, por tantos ensinamentos nas audições em campo, cuja crença encorajadora foi fruto de inúmeras experimentações. Enquanto preparava os textos finais, fui auxiliada de várias maneiras por Alberto Elias Chenu, Maria Isabel da Silva Ramos, Alexandre e Márcia Marcovici, Carlos Navas, Joana Ferreira Daltro, Lincoln Barbosa e Ralf Wegmann. 7
  • 8. À paciente editoração eletrônica de João Batista Epaminondas Malhado. Ao entusiasmo dos associados do Centro de Estudos Ornitológicos CEO/USP, que, em tardes descontraídas de sábado, abrem espaço para todos os que se interessam pelo estudo de pássaros. Ao Povos da Floresta, dos seringais do Rio Macauã, no município de Sena Madureira. Acre, por sua acolhida calorosa e enriquecedora. A Tetê Espíndola e Arnaldo Black, pela oportunidade de ingressar no universo sonoro dos pássaros. Aos meus pais e irmãs e , finalmente, à compreensão e o carinho de Flávio Daltro Filho e de nossos filhos, Flávia e Guilherme. Cópia xerocrafada com paginação diferente da original sem/imagem 8
  • 9. Este livro é dedicado à memória de meu avô Ivar Catunda, por deixar como herança saudável e afetuosa o convívio na Praia das Cigarras, que despertou os acordes da liberdade: viver com as marés e construir sonhos com castelos de areia. E também a memória de Hercules Florence, por intuir, há um século e meio, a zoophonia, como semente do futuro. “Inumeráveis brechas, sobreviventes isoladas da destruição do tempo, jamais darão a ilusão de um timbre original lá, onde ressoaram harmonias perdidas” Lévi-Strauss, 1952 9
  • 10. SUMÁRIO APRESENTAÇÃO 12 Pássaros (para uma introdução) 23 I. OUVIR 26 Ou-vendo 34 Ou-vindo 38 Ou-vido 48 Audi-ação 52 II. OUVINDO VOZES DO CÉU E DA TERRA 56 Por uma geofonia da comunicação 67 Zoofonia (para uma aproximação música – bioacústica) 71 III. NO CÉU ABERTO E NA MATA FECHADA 76 Canto Instrumento 77 Critério sonoro 85 Critério ecológico 91 Critério biogeográfico 97 IV. PERCEBENDO CANTOS 99 Mata fechada ( Expedição Macuã) 105 Céu aberto (Pantanal) 110 10
  • 11. Seleção de espécies 112 Verbetes das espécies selecionadas 114 V. ANILHAMENTO 127 O pássaro e o sentido Nova sensibilidade 127 Considerações finais 139 VI. BIBLIOGRAFIA 143 11
  • 12. APRESENTAÇÃO A pesquisa que levou ao Canto do Céu Aberto e de Mata Fechada surgiu de um processo de audição ocorrida em três etapas – em laboratório, no dia a dia e em campo- de 23 espécies dos ecossistemas Pantanal e Amazônia, selecionadas por critérios próprios advindos deste processo. No entanto, é importante notar que diversos caminhos foram seguidos antes de se chegar a este resultado preliminar, ora apresentado. Tanto da seleção, como das associações observadas. Isto porque a relação investigada homem – ambiente é um objeto de estudo riquíssimo, no qual, à profusão dos cantos, timbres e tons, acrescenta-se a façanha de uma antiga e longínqua história de comunicação e convivência com o homem. Esta investigação poderia ter sido feita na cidade, ou onde estivéssemos; em qualquer lugar do planeta, lá estarão os pássaros. A escolha do Pantanal e da Amazônia nasceu de duas preocupações. A primeira é que apesar da terça parte da avifauna planetária pertencer a América Neotropical, o estudo de aves em seu ambiente é ainda pouco desenvolvido no Brasil. A segunda é que dos estudos desenvolvidos na área específica da ornitologia, 12
  • 13. bem poucos se dedicaram exclusivamente ao estudo da vocalização dos pássaros. A escolha do Pantanal e da Amazônia deveu-se em grande parte à oportunidade aberta pela existência do Arquivo Sonoro Neotropical da 1 UNICAMP, que possibilitou a consulta a partir dos cantos de pássaros ali registrados, com condições técnicas adequadas para investigação. Por outro lado, apesar de ser cada dia maior o interesse científico, muito ainda nos resta conhecer sobre o Pantanal e a Amazônia. De qualquer modo, seria difícil, no estudo sobre o canto de pássaros no Brasil, passar despercebida a prodigiosidade e a profusão de cantos daqueles ecossistemas. Uma verdadeira biblioteca sonora, como referência. As 23 espécies escolhidas mereceram um destaque especial pó: melhor representarem a ambiência sonora dos ecossistemas escolhidos (sonoridade, musicalidade); pelas características onomatopaicas do canto (toponímia do mundo tupi); por serem as mais conhecidas, mais comuns ou familiares (popularidade), e pela função ecológica (distribuição de sementes, controle biológico) e uma atenção especial à qualidade timbrística desses cantos. A participação no projeto de pesquisa para o Lp Ouvir, de Tetê Espíndola e Arnaldo Black, premiação pela FUNDAÇÃO VITAE, em 1990, possibilitou abertura para o desenvolvimento deste estudo. Os compositores pretendiam identificar, a partir de experimentações diversas com o canto da 1 A região Neotrópica ( adaptado por Haffer, 1974) se estende do sul do México (20º N) até o Cabo de Horn (57º S), incluindo a parte meridional não- tropical da América do Sul. 13
  • 14. avifauna, o que definiam como pássaros da comédia, da tragédia e do drama. A partir de observações diretas em laboratório e em campo, sugeri aos compositores e elaborei os critérios, que serviram de referência para as composições do Lp Ouvir e que, posteriormente, levaram à elaboração da dissertação de mestrado e finalmente a este livro. Outro motivo da escolha do Pantanal e da Amazônia vai ao encontro das primeiras observações amadoras sobre o canto dos pássaros, feita em 1975, com o canto da araras da Chapada dos Guimarães, em Mato Grosso . 2 Neste período, a Universidade Federal de Mato Grosso (UFMT) conceituava-se como UNISELVA, uma das instituições participantes do Projeto Aripuanã (1973/76), que propunham a lançar bases para conhecimento científico da Amazônia (Cidade Laboratório de Humboldt), visando ao aproveitamento racional de seus recursos em consonância com o projeto de integração nacional. Havia um clima verde aliado ao apelo à causa indígena. Este clima era disseminado por uma política estatal de regionalização, para a integração nacional. Inauguravam-se projetos culturais em vária frentes na UNISELVA, destacando-se: o Museu Rondon (MR), em 1973, voltado para o índio; o Museu de Arte e de Cultura Popular (MACP/ 1973), e mais tarde, o Núcleo de Documentação e Informação Histórica e Regional(NDHR/ 1976). A euforia contagiante pela Amazônia era gerada por grande quantidade de recursos e investimentos vultuosos que fomentaram projetos grandiosos – todos componentes do que se convencionou chamar de milagre brasileiro. 2 Em exercícios vocais com o canto das aves, Tetê Espíndola descobrira o timbre agudo de sua voz. Na ocasião, cursávamos Pedagogia, na Universidade Federal de Mato Grosso (UFMT). 14
  • 15. No entanto, até o momento, a falta de pesquisas que reúnam o referencial documental da UNISELVA, para uma análise criteriosa, tem dificultado a compreensão da medida deste ousado gesto instituidor. Tanto a importância da criação de uma base científica na Amazônia, como a nova frente do Museu Rondon para a causa indígena, bem como a capacidade de reunir movimentos culturais, científicos e artísticos, nascentes ou marginais em Mato Grosso têm sido clivados em avaliações superficiais, reducionistas e por vezes oportunistas, até mesmo ingênuas. A UFMT não soube ainda ocupar o território aberto pelo canto da UNISELVA, não captou esta chance da história, não soube ouvir, renovar e atualizar conceitos para exorcizar o milagre, dando concretude à inteligência. Isso impede que se reconheça , de forma adequada, a vocação ambiental da UFMT de 1970, como uma universidade de e para o ambiente no agora, vinte e quatro anos depois. Nesta confusão de homens e causas, enfim dos interesses mesquinhos, o lado obscuro da academia, todo esforço da causa maior da construção do homem do Brasil de dentro foi terreno fértil para o rolo compressor da infindável crise universitária geral. Poucas universidades tiveram um veio tão rico em suas origens. Há ainda necessidade de identificar a UNISELVA como um vetor de significações imaginárias e sociais para que se possa estabelecer como um marco de sementes lançadas. Poucos souberam cultivá-las com distanciamentos das idiossincrasias ideológicas e particulares, portanto, não tiveram a sensibilidade de ultrapassar criativamente aquilo que 15
  • 16. as circunstâncias ditatoriais do período não permitiram a produção dos fundadores, dos primeiros professores, técnicos e estudantes. Mas o canto da bandeira UNISELVA pode ser reconhecido para continuar ecoando e motivando crítica e imaginativamente toda a comunidade da UFMT. Neste contexto é que tem sido despertada a atenção para o grande potencial biológico do estado de Mato Grosso. Premiado com duas grandes bacias hidrográficas, a Amazônia ao norte e a do Pantanal ao sul, situado entre a Cordilheira Andina e o Planalto Brasileiro. Mato Grosso é o estado divisor destas águas. Agraciado com nada menos que três ecossistemas: Pantanal, Amazônia e Cerrado – o destino pulsante de ser o coração da América e com a marca deste magnetismo geodésico, firmado com a criação de Brasília. A vocação ambientalista da UFMT de 1972, como Universidade da Selva, deverá ser firmado de fato. De julho a outubro de 1990, foram realizadas audições semanais em laboratório, no Acervo Sonoro Neotropical da UNICAMP, sob a orientação e a responsabilidade do Prof. Dr. Jacques Vielliard, pesquisador em canto de pássaros que já realizou o registro de aproximadamente 17.000 cantos nesta região. Enquanto ouvia as fitas preparadas no laboratório em audições em casa, me dedicava à disciplina Nova Teoria da Comunicação, do Prof. Dr. Ciro Marcondes Filho, que abordava a nova sensibilidade nas chamadas sociedades pós-industriais, a mediatização da vida pelos meios de 16
  • 17. comunicação e a revolução eletrônica, Marcondes oferecia subsídios para a discussão sobre a crise dos modelos duais, a crítica da ciência (iluminismo) e o retorno do místico, como novas formas de neutralização das oposições, num universo de desaparecimento da realidade e das perspectivas ideológicas. Em outubro do mesmo ano, formamos uma equipe e realizamos a expedição Macauã, em Sena Madureira, Acre, durante cinco dias, para ouvir a ambiência sonora. Neste lugar de matas altas, pousamos nossa esperança na margem de uma rica troca. O processo de audição possibilitou a percepção de como o ouvido urbano é surdo para captar sons sutis, e que a compreensão da nova sensibilidade passa necessariamente pela mudança dos sentidos e das formas de comunicação com o mundo. A audição em si leva à aproximação do ambiente, principalmente por sua complexidade enquanto sentido. O ouvido é, também, sede do equilíbrio e da orientação. Do ponto de vista das Ciências da Comunicação, dentro da linha de pesquisa escolhida – Comunicação, Arte e Educação- , a questão ambiental foi compreendida nos matizes que apresenta, como uma preocupação das sociedades contemporâneas com a qualidade de vida. A sugestão aqui contida procura, a partir do canto de pássaros, contribuir para experiências que auxiliem a educação ambiental. No entanto, é importante esclarecer que o processo de pesquisa e a metodologia não pretenderam desenvolver o que pode ser identificado como uma pedagogia para audição do canto de 17
  • 18. pássaros, e se as inúmeras estratégias para ação neste campo. Ou seja, foram indicados alguns caminhos ou pistas (no processo de audição) que podem ser entendidos como feixe de opções a serem seguidos para o desenvolvimento de uma ação pedagógica, ou possível modelo pedagógico. Isto porque pode- se considerá-la uma etapa posterior. O objetivo inicial foi estabelecer uma aproximação do canto dos pássaros do ponto de vista das Ciências da Comunicação, hoje restrito à bioacústica. Notou-se que diversos compositores utilizaram o canto dos pássaros como tema de inspiração, mas a abordagem aqui proposta busca a compreensão da zoofonia como uma forma de comunicação entre o homem e o ambiente, tentando compreender os entraves e as possibilidades deste campo multidisciplinar. Portanto, seria prematuro determinar um modelo. O tema proposto situa a pesquisa na fronteira entre o dado e o criado, ou seja, entre a natureza e a cultura. Ao aproximar-se da bioacústica, descobre- se uma ciência que ouve a vida como uma linguagem falada antes que pareça ou independente de qualquer locutor. Para introduzir a comunicação homem- natureza, procura perceber a sensibilidade humana como articulação de um desejo constituído diferente e independente do que diz a consciência. Para aproximar-se da ecologia como uma ciência do meio ambiente, procurou não se isolar das estruturas naturais, já que a ecologia transforma a extensão indefinida das construções sociais. O material sonoro (canto de pássaros) pertence ao Arquivo Sonoro da UNICAMP e foi utilizado apenas para fins de pesquisa. 18
  • 19. O objetivo é sensibilizar os agentes educativos ou formadores de opinião, quais sejam: professores, arte-educadores, guias turísticos, agentes culturais, músicos e outros interessados. O roteiro seguiu as estratégias que se evidenciaram no processo de audição em laboratório e em campo e teve como objetivos específicos: (1) treinar o ouvido para identificar o canto de pássaros em três etapas de audição; (2) identificar os critérios propostos: sonoro, ecológico e biogeográfico durante a audição; (3) discriminar as diferenças dos tipos de canto e analisar a associação sugerida: canto- instrumento musical, e (4) aproximar(diferente de classificar) da ambiência sonora a partir de audições em campo: no Pantanal e na Amazônia. A educação ambiental é hoje uma tarefa não só da escola, mas de toda a sociedade, a fim de estimular a compreensão dos limites e possibilidades da ação humana para a elaboração da cidadania planetária. Diante da horizontalidade azul do Pantanal, que funde céu e terra num ritmo de cheia e vazante, e da verticalidade verde da Amazônia, num ritmo caleidoscópio de umidade e calor, boa parte do potencial musical da cultura brasileira, na terra e no ar, está presente nos animais que sonorizam a 19
  • 20. paisagem. Como os demais ecossistemas do planeta, estes trazem muitas perguntas sem resposta. Porém, mais que respostas mecânicas, emergentes de soluções racionais e modelos prontos, nos cabe compreender, antes, nossas próprias inquietações sobre estes lugares, numa era de dissensos e incertezas, repleta de caminhos e igualmente de obstáculos. A ecologia como disciplina biológica adquire importância para as Ciências Sócias quando os conflitos da relação homem-natureza mudam de polo de reflexão para a relação homem-meio ambiente. Ao nível global esta compreensão só se dá, efetivamente, neste século. Assim, todo o esforço do homem de se distinguir da natureza e de sobrepujá-la com sua cultura, é extinto como uma espécie de condenação e substituído pela necessidade de interação, que começa a ser largamente estudada. A natureza passa a ser vista antes como ambiente, embora os conflitos biológicos e sociais não se confinem nem se restrinjam mais entre si. Os dons da natureza são exortados de seu lado benéfico (que justificou todas as atrocidades e excessos cometidos pela Humanidade contra seu ambiente). Assim, os mecanismos desconhecidos dos equilíbrios sociais e biológicos se libertam de leis fixas e estáticas e passam a se aproximar do dinamismo e da complexidade frágil de viver, do sobreviver. A natureza é generosa quando fala da vida. Cantos também contam as estórias de seu próprio som – estão pelo ar, para ouvir e sentir, compreender e investigar. 20
  • 21. Avisos, alarmes. A Terra engloba uma pluralidade sonora monumental: a geofonia- como universo sonoro que contém as galáxias dos ecossistemas, que possuem dentro de si inúmeros sistemas sonoros tais quais os sistemas estelares, solares e planetários, em escalas diferentes e muitas vezes inaudíveis ao ouvido humano (o infra-som). A zoofonia pode ser vista como um destes sistemas, onde o canto dos pássaros se integra. Em 1829, Hercules Florence transcreveu para notas musicais, durante a Expedição Langsdorff, a vocalização de vários animais, inaugurando um novo terreno de conhecimento que nomeou zoophonia. A preocupação do pesquisador não se prendia apenas ao aspecto científico, hoje objeto da bioacústica, mas acreditava, também, na possibilidade de expressar, por meio de partituras musicais especialmente elaboradas com códigos próprios, o sentimento de estimulação da sensibilidade humana despertado pela vocalização dos animais em seu ambiente. Na época, a elaboração de partituras consistia na única forma de registro das vocalizações dos animais. Em suas observações sobre a zoofonia, Florence demonstrou a importância da formação de novos campos de conhecimento. Seus estudos são fruto de uma mente inquisidora e sensível, que tanto expressa o rigor cientifico quanto a vitalidade criativa. Durante as etapas da pesquisa, foi possível notar que escala ocidental, ou qualquer outra criada pelo homem, não é adequada para demonstrar toda a gama de tons e timbres da fauna planetária. 21
  • 22. As velhas acústicas naturais oferecem uma outra dimensão para a compreensão dos sons à nossa volta, uma vez que hoje dispomos de tecnologia necessária para bem investigá-los. Um terreno pouco conhecido e estudado, onde tanto os ritmos dos ecossistemas, quanto os ritmos humanos, são afetados pelo impacto ambiental no compasso da multissinfonia da vida, seus sinais, seu movimento, enfim, sua harmonia dissonante. Pássaros em viveiros ou animais em zoológicos não favorecem as condições de reprodução e só podem oferecer uma pálida representação do que é a vida em seu próprio ambiente: nem a dieta, nem a cor, nem as características comportamentais são as mesmas, embora venham se intensificando formas de controle das populações de diversas espécies criadas em cativeiro, para reintegração posterior em seus habitats naturais. Também os Acervos Sonoros, por mais sofisticados que sejam seus recursos tecnológicos para o registro e reprodução, apresentam limitações metodológicas para a compreensão da ambiência sonora. Em todos os campos do conhecimento científico correm-se os riscos da estória de João e Maria que, na ânsia da busca dos elos perdidos com o passado, passaporte para o futuro, e obrigados a seguir um caminho que não foi escolhido previamente (condicionamento biológico e social), tiveram o cuidado de marcá-lo ingenuamente com migalhas de pão. 22
  • 23. PÁSSAROS (para uma introdução) Costuma-se dizer que a imaginação tem asas . O voo dos pássaros predispõem associações que simbolizam a comunicação entre o céu e a terra. Mensagem, presságio, avisa-nos sobre mudanças, perigos e outros fenômenos naturais. Em todas as religiões e culturas, o pássaro é sinônimo de sagrado. Anjos são homens com asas, mensageiros, protetores. Representam os estados superiores do ser, da alma e da imortalidade. De certo modo, todas estas associações estão ligadas às potencialidades destes ágeis seres em relação à distribuição de sementes e à polinização. Basta pensarmos que, se todas as aves fossem extintas de uma só vez, os insetos tornariam a vida humana impossível em poucos dias. Como animais voláteis, percorrem grandes extensões o dia inteiro e necessitam de quantidade de comida proporcional ao tamanho de seu corpo. Com idade aproximada de 150 milhões de anos, sobreviveram ao Cretáceo e, de lá pra cá, proliferaram velozmente. Ao deixar sua marca semi-réptil suavemente desenhada no barro, há cerca de 140 milhões de anos, o arqueoptérix (Archaeopteryx) relata-nos a história de sua característica peculiar: penas. Esse vestígio suave, mas consistente (descoberto em 1861), a certeza de que já não se tratava de um verdadeiro réptil, tornava indiscutível o elo, não mais perdido, entre os répteis e as aves. Cabeça de lagarto, mandíbulas 23
  • 24. providas de dentes, delgada cauda e vértebras móveis, em tudo o esqueleto semelhante ao de um réptil, com ossos e asas terminando em dedos finos, não fundidos e com garras. Se a vida na Terra abrange dois bilhões e meio de anos, as aves são criaturas recentes. Os Paleontólogos acreditam tenham elas se originado dos tecodontes, animais possuidores de longos membros posteriores, sobre os quais corriam semi-eretos, usando a longa cauda para manter o equilíbrio. A era atual, conhecida como Idade dos Mamíferos, surgiu em oposição à Idade dos Répteis, que chegou ao fim com o desaparecimento dos dinossauros e pterossauros. As aves derivam do tronco dos répteis, surgiram pouco depois dos primeiros mamíferos. Um elo entre as Idades. Se lembrarmos que os dinossauros reinaram na Terra e estão extintos há 60 milhões de anos, vislumbramos uma encruzilhada onde homens e dinossauros se espreitam, no voo do tempo, nas asas emplumadas das aves. As aves em evolução tiveram que romper a barreira reptiliana que impedia o vôo verdadeiro para que pudessem se tornar veículos da herança dos dinossauros e do advento dos mamíferos. As aves atuais, adaptando-se e transformando-se, ocuparam praticamente todos os habitats disponíveis do globo. Por essa versatilidade são notáveis animais vertebrados, os mais conhecidos e estudados. Já na tradição bíblica, Noé aparece como o primeiro criados de pombos. Os egípcios criaram pombos para a alimentação e, provavelmente, para a transmissão de mensagens (3.000 a.C.). Não se sabe, exatamente, 24
  • 25. quando foram usados pela primeira vez como meio de comunicação a longa distância. Sabe-se que Júlio César mandava por meio deles notícias de suas vitórias. No oriente, foram também utilizados como meio de comunicação. Só na Segunda Guerra Mundial, os pombos-correio foram suplantados pelos equipamentos eletrônicos. Fica aqui um convite e um aviso. Refletir sobre pássaros é exercitar a liberdade. De saltar sobre assuntos, arriscar curiosidades, tecendo ligações, aninhando coisas aparentemente desconexas. É afastar para avaliar de longe, é pousar para observar com firmeza, é migrar para o continente de diversas ciências, na busca de alimento para seguir refletindo, exercitando a própria natureza do conhecimento, que em si não tem fronteiras. Os ornitólogos costumam anilhar (anéis de metais e outros materiais) para monitorar as rotas cíclicas das aves migratórias; assim, algumas conexões e associações foram aqui anilhadas para melhor compreensão dos desdobramentos do processo da pesquisa. Enfim, apesar de a proposta do tema não possuir bibliografia específica, à medida que as observações foram se efetuando no decorrer da pesquisa, buscou-se a fundamentação necessária na bioacústica, na ornitologia, comunicação, ecologia, antropologia, sociologia e na música, de acordo com os objetivos propostos. Pássaros têm a ver com a comunicação não só porque voa – ou porque voar requeira uma aerodinâmica própria que, de Ícaro a Santos Dumont, até as naves espaciais e as esportivas asas delta, inspiram o homem 25
  • 26. a libertar-se do peso da gravidade – mas também porque voar significa conhecer detalhadamente o espaço terrestre. Nem tão somente porque emite alertas naturais, mas porque, além de tudo isso, canta. O canto é a mensagem, sobretudo porque nos sensibiliza. O filósofo grego Heráclito observou o paradoxo do pensamento que pretende imobilizar coisas móveis, no limite de definições fixas. Se pudermos compreender a importância do cuidado das áreas verdes, porque nelas vivem seres especialmente notáveis pelo canto e pelo constante ir e vir por sobre praças, jardins e ruas arborizadas, estaremos mais próximos do meio-ambiente. Talvez possamos enxergar melhor o verde não como escudo da vida, porque ouvindo-o estaremos em sintonia com sua celebrização. Ouvir pássaros é notá-los, e notá-los é deixar de perceber o verde auto- ecologicamente. Por sua inquietude expressiva, os pássaros põem a ecologia em movimento. I. Ouvir Desde o início deste estudo, verificou-se que a análise das formas de ouvir ao fundamentais para a comunicação. Do homem em seu ambiente, porque implicam profundo conhecimento foi originalmente desenvolvido pelas espécies não-humanas que destacam as aves, depois dos insetos, como os 26
  • 27. seres vivos vertebrados mis bem dotados. As culturas humanas chamadas primitivas, por necessidade de adaptação e sobrevivência, também desenvolveram, como veremos, formas de conhecimento das diferenças ambientais a partir da percepção auditiva. As aves desenvolveram complexo sistema de comunicação sonora. Dentre eles, o principal é o canto territorial que perpetua as espécies. Acredita- se que estes sistemas estejam alicerçados numa eco-lógica. Por outro lado, as culturas humanas desenvolveram-se na defesa e contra a natureza. Nisso todas as formas de civilização agem de maneira semelhante. Foi justamente por causa da percepção dos perigos com que a natureza ameaça, que a civilização foi criada, a qual também, entre outras coisas, se destina a tornar possível a vida comunal, pois a principal missão da civilização, “sua raison d’être real, era nos defender da natureza” , ou seja, 1 defender-nos contra a eco-lógica. A civilização não se detém apenas na tarefa de defender o homem contra a natureza, mas como afirma Freud prossegue por outros meios. Trata- se, portanto, de um múltipla tarefa. O pesado fardo de sacrifícios que se espera dos indivíduos a fim de tornar possível a vida comunitária, faz com que a civilização seja defendida, num plano, contra o próprio indivíduo e, em outro, contra a natureza. Este é um dos aspectos que se evidencia na comunicação com o ambiente. A mesma natureza que sinaliza os perigos a partir do som que avisa 1 Sigmund Freud. O futuro de uma ilusão. Rio de Janeiro: Imago, 1974, p. 26. 27
  • 28. terremotos, erupções vulcânicas e a proximidade de inundações perceptíveis à longa distância, a chegada de tempestades e ciclones arrasadores, em outro extremo, ostenta o poder de se fazer presente e ativa através do silêncio das doenças a cada dia mais complexas e, por último, do enigma da morte, como o fim do som, o silencio radical. As vozes da natureza que avisam, protegem, também coíbem e condenam ao mais total dos silêncios. O poder inexorável do som, leva ao terror do som. E cada vez mais a civilizações fazem calar o poder dessas vozes, ouvindo outras em seu lugar. A voz da salvação é a voz da civilização e a de todos os instrumentos tecnológicos “inclusive os musicas” que esta ou estas, em qualquer estágio civilizatório fazem ouvir. Também as vozes “in off” dos mitos, das religiões e da política. As vozes dos gênios da humanidade podem ser consideradas as únicas vozes que ouvem detalhadamente: portanto destoam das vozes que ressoam. “tudo que é sólido desmancha no ar” como o som. A solidez do som 2 é apenas perceptiva e não a sua essência como fenômeno físico. O papel da ciência é de ser a voz questionadora, fundamenta-se no diálogo entre a fala das teorias e a voz dos dados observados ou tirados da 2 Baseado nesta frase de Marx, Berman desenvolve sua crítica da modernidade, investigando a dialética da modernização de um lado e do modernismo do outro ( dissonância de vozes), que no séc XX leva os processos sociais a um constante turbilhão e a um perpetuo “vir a ser”. Refere-se ao “ ritmo afogueado” compartilhado por Marx e Nietzsche como “uma voz que ressoa como autodescoberta e auto-repúdio, como auto-satisfação e auto- defesa”, acreditando na capacidade bem sucedida de conhecer a dor e o terror. Marshall Berman . Tudo que é sólido desmancha no ar. São Paulo: Companhia das Letras, 1986, pp.16, 22-5. 28
  • 29. experiência. Assim, a racionalidade cientifica pode ser definida na ressonância – um acordo orientado entre a voz dessas teorias e desses dados. Em cada grande momento tecnológico da civilização, vamos encontrar outro funcionamento das palavras, que se fazem acompanhar tanto por uma política como por uma razão nova. Em nossa época, numa cultura altamente visual, é tão difícil comunicar propriedades não-visuais das formas espaciais “quanto explicar a visualidade dos cegos” . 3 Freqüentemente, nos referimos a coisas ouvidas como coisas vitais. Um exemplo da necessidade de dar ênfase visual ao que ouvido encontramos na própria bioacústica. Para demonstrar que a “eficiência de propagação de uma fonte emissora próxima do solo é baixíssima, devido à grande absorção de energia sonora pelo solo e outros gradientes atmosférico, ocorre o que chamamos como zona de sombreamento (shadow zone) 4 Um outro exemplo encontramos na definição de “ruído branco”. O som do mar é considerado um ruído branco porque oferece durações oscilantes entre a pulsação e a inconstância num movimento ilimitado, com alturas em todas as frequências, das mais graves às mais agudas. Por causa das alturas e frequências, acaba sendo um ruído, para usarmos um adjetivo do ouvido, brando. Mas, a adjetivação visual das propriedades sonoras não pára por aí. Sons ouvidos são frequentemente referidos como sons visíveis. È mais do que comum usar expressões, como : “-Você viu o que fulano disse?” , quando na 3 Marshall MacLuhan : os meios de comunicação como extensões do homem. São Paulo, Cultrix, 1964, p. 347. 4 Hernán Fandiño Marino . A comunicação sonora do anu-branco. Campinas: Unicamp, 1989, p. 97. 29
  • 30. verdade acabamos de “ouvir” estas declarações. O próprio texto musical, ao invés de ser apresentado em termos sonoros é substituído por comandos óticos, “espécies de sinais de trânsito” 5 Adorno observou que os ouvintes costumam não dar atenção ao que ouvem, mesmo durante o próprio ato da audição. Sempre se acreditou que, como as demais formas de expressão humana, a música possuísse a ação saneadora e educativa. No sentido disciplinar, Platão propunha um programa ético-musical que possuísse a característica de “ação de purificação Ática”, ou seja, uma campanha de saneamento de estilo espartano. 6 No sentido em que foi realizado o processo de audição do canto de pássaros, a proposição foi captar, com o ouvido, os sons, e tentar identificá-los sonoramente ou musicalmente. Apesar de as formas de audição serem permeadas pela cultura, pelo ambiente, incluindo o gosto musical e a própria acuidade auditiva (capacidade de ouvir medida em decibéis), a audição é o sentido-suporte que leva à profundidade do que é vivenciado musicalmente. Portanto, o treino da audição deve ser anterior à própria educação musical. Antes de ouvir música, seja de qual tipo for, é necessário, sobretudo, aprender a ouvir. Nos processos de alfabetização, vamos encontrar ema ênfase nas técnicas de audição. As crianças são iniciadas, na mais tenra idade, na educação musical, antes de aprenderem a discernir sons intensos, de sons 5 Theodoro Adorno . Fetichismo na música e na regressão da audição, Textos escolhidos XLVIII. São Paulo: Abril., 1967, p. 192. 6 Op. cit. ,p. 174. 30
  • 31. frequentes, o colorido timbrístico dos sons, o sentido do ritmo e da passagem dinâmica para a melodia. 7 Decididamente, não estamos numa época de ouvir. A psicologia dos ouvintes é regressiva, porque está desvinculada de qualquer relação com a música; dirige-se, antes, ao sucesso acumulado comandado pela mídia, não se expressa mais pela espontaneidade ou subjetividade. Assim, Adorno anuncia a desaurização da música, cuja aparência externa cede em favor do puramente lúdico. Mas, não podemos compreender a aparência externa da música se não pudermos compreender que o próprio som não tem nada a ver com a aparência. Tudo que compreendemos como aparência não tem nada a ver com a música ou com as músicas. A performance da obra musical erudita há muito substituiu o lugar original da música. Visa a identidade entre o intérprete e a obra, entre o intérprete e o ouvinte, levando, finalmente, a ilusão ao próprio intérprete e ao ouvinte da criação da obra no ato da execução. 8 A noção de que existe uma música séria e uma música ligeira não satisfaz, não é uma percepção suficiente que possamos ter do próprio som 7 Sobre educação musical O som e o sentido, São Paulo: Companhia das Letras, 1989, p. 19) José Miguel Wisnick afirma que a pedagogia musical costuma dar nenhuma atenção a essa passagem, a essa correspondência entre diferentes dimensões vibratórias, e perde aí todo um horizonte de insights possíveis extremamente estimulantes para fazer e pensar músicas. 8 Edward Said. Elaborações musicais São Paulo: Imago, 1992, p. 142. 31
  • 32. eletrônico e deste som como matéria-prima da música, seja ela séria ou ligeira. 9 A música, como trilha-sonora do cinema, tem uma aparência, assim como o vídeo-clip investe exclusivamente na aparência visual da música ao invés de investir na própria música. A pior faceta do momento, das chamadas sociedades pós-industriais, é investir na aparência de tudo, e , definitivamente, pretender transformar o mundo na aparência, enquanto questões seculares tais como o racismo, as desigualdades, a violência, a destruição ambiental continuam a desafiar os caminhos da civilização e da civilidade. O tipo de audição que se tem na música-trilha ou no clip tem a ver com o audível apenas na aparência. É o produto de uma sociedade que precisa se contentar com um mundo aparente, nele viver como se fosse real. Não que se condene a visualidade como superfície, já que ela pode investir na visibilidade. A conexão som-imagem em nossa época investe na redução da imagem ao visual, assim como na redução do som ao áudio. De forma alguma promove a ampliação da imagem como visibilidade ou no audível do som; ao contrário, funde os dois sentidos para promover um terceiro, o da aparência, que substitui o lugar da essência de ambos os sentidos. Uma sociedade que não satisfaz as necessidades humanas essenciais deve preencher esse vazio com som e imagens e todo um recheio de necessidades aparentes e virtuais, para dissimular sua incapacidade de 9 Sobre a música eletrônica, observe-se que a orquestra sinfônica tradicional, em comparação, pode ser tida como uma máquina de instrumentos separados, que produziam o efeito de uma unidade orgânica. Com o instrumental eletrônico, começa-se com a própria unidade orgânica, com um fato imediato de sincronização perfeita, fazendo com que a busca de efeitos de unidade orgânica careça de maior sentido. Marshall MacLuhan, op. cit. , p. 400. 32
  • 33. resolvê-las essencialmente. Resolve-as não só as ignorando, mas criando outras em seu lugar. Como se pode apenas dissimular o lugar da essência, o vazio é indisfarçável. De um outro lado, existe uma impossibilidade técnica. É recente a conexão som-imagem. Vive ainda sob o impacto do fascínio da revolução eletrônica. Os efeitos implosivos desta revolução são deslocalizados no tempo e no espaço. Por um lado, leva à especialização acelerada e por outro abre territórios para a invenção de códigos e combinações. No que tange o conhecimento musical, percebe-se que não está mais necessariamente vinculado ao domínio da escala e das regras musicais tradicionais. A impossibilidade técnica é também uma questão de tempo acelerado. Falar de som sem recorrer à imagem é praticamente impossível; principalmente com a palavra escrita. Deste modo, vamos recorrer a uma imagem que se assemelhe ao desenho invisível que o som faz no ar. A mudança profunda que estamos vivendo funciona tal qual uma pedra lançada na água, se faz perceber apenas na superfície, no movimento circular geométrico. É ela que se agita, é ela que levará ao abismo ou ao aprofundamento deste gesto. Quanto mais fundo for a pedra, maior será a ressonância do gesto na superfície. 33
  • 34. Ou-vendo Desde a exploração do Novo Mundo, os viajantes observaram com espanto e decepção, nossas selvas majestosas. O cenário esplendoroso sugeria uma fauna exuberante, animais fantásticos , de grande porte como os 10 do continente africano. Assim, o “olha ávido dos conquistadores a procurar no emaranhado das nossas selvas a figura gigantesca de qualquer animal que lhes lembrasse o elefante ou o rinoceronte, ou na vastidão dos nossos campos, a mancha movediça do que poderiam ser bandos de búfalos, zebras ou antílopes.” 11 Ao contrário, o ambiente das florestas tropicais não facilita a movimentação das plantas forrageiras. A densidade da floresta impõe a vida nômade e solitária, afasta o gregarismo ligado aos rebanhos. Se comparada aos mamíferos, a grandeza da avifauna Neotropical é significativa. Para cada seis espécies de aves, encontramos uma espécie de mamífero. A América do Sul é o continente das aves. O testemunho de ouvir está presente nas culturas indígenas como tradução do que o ambiente à volta comunica. Ao selecionar nomes tupis de algumas aves, a intenção foi identificar tipos semelhantes de canto a partir das 10 Sobre os seres imaginários, ver BORGES,Jorge Luis ; GUERRERO,Margarita. O livro dos seres imaginários.Porto Alegre: Globo, 1981. 11 Gastão Cruls . Hiléia amazônica. Rio de Janeiro: Companhia Editora Nacional, 1944, p. 60. 34
  • 35. características onomatopaicas. Chama atenção, a toponímia da língua tupi, por oferecer pistas detalhadas do território e,e portanto da cartografia. A língua Tupi, Nheêngatu, Língua Geral ou Língua Brasílica, é um campo de investigação científica para a biogeografia e para a ecologia humana. Os topônimos são sempre descrições ricas, traduzindo a fina observação ao incluir, no nome do lugar, as características dele; associações com o tipo de terreno, clima e até muitas vezes o som dos lugares, por exemplo: Amazonas = Ama(chuva) + ssununga (barulho ou ruidoso). Podemos encontrar nomes de aves, fora aqueles onomatopaicos, relacionados a um rio, por exemplo: Anhembi = rio das anhumas ou anhimas – como eram chamadas antigamente. Sem dúvida estas associações sugerem pistas para a observação de inúmeras relações biogeográficas, fitogeográficas e outras que de certo modo faziam parte do conhecimento destas nações, sinalizadas na própria toponímia da língua. A região Amazônica e o Pantanal somam centenas e milhares de espécies que junto ao Cerrado formam um continente para a biodiversidade. 12 Mesmo assim, toda essa fabulosa fauna e flora foi nomenclaturada pelas nações indígenas até suas ínfimas variedades. A audição como reconhecimento espacial implica conhecimento minucioso da geografia, como forma de equilíbrio com o meio ambiente a partir da identificação sonora. A audição biaural (dos dois ouvidos) só foi 12 Diversidade biológica significa a variedade dos seres vivos (animais, vegetais ou microorganismos). Não se refere apenas à diversidade das espécies, mas também às variações entre indivíduos de cada espécie que são transmitidas hereditariamente (diversidade genética) – assim como às variações que ocorrem entre diferentes habitats naturais (diversidade de ecossistemas). 35
  • 36. devidamente estudada e reconhecida em 1934 por cientistas da Universidade de Harvard. O homem tropical utilizava, instintivamente, este potencial para calcular distâncias, orientar caminhadas e prever perigos de longe. Mas quantos viajantes não morriam e ainda morrem na inanição dentro da floresta? Morte por inanição, claro, do sentido da audição – falta de sensibilidade auditiva para se orientar no monocromatismo da floresta. As culturas pré-letradas que contrastam “os caracteres francamente divergentes da palavra escrita e falada podem hoje ser mais bem estudados” , graças ao contato íntimo que com elas temos hoje. Diz MacLuhan que um 13 único nativo alfabetizado de seu grupo, ao falar de sua função de leitor de cartas para os outros, sentia-se impelido a tapar os ouvidos com os dedos, durante a leitura, para não violar a intimidade das cartas. Sem a “pressão visual” da escrita fonética, a palavra falada não permite extensão e a ampliação da força visual requerida para os hábitos do individualismo e da intimidade. O autor aponta o filósofo francês Henri Bérgson como representante de uma tradição de pensamento que considera a língua, como uma “debilitadora dos valores do inconsciente coletivo”. Bergson opina que sem a linguagem a inteligência humana teria permanecida totalmente envolvida nos objetos de sua atenção. Esta linha de raciocínio acredita que a 14 fala supera o homem e a humanidade do inconsciente cósmico, e como 13 Ver Marshall MacLuhan. Os meios de comunicação como extensões do homem, São Paulo: Cultrix, 1964,p. 96. 14 A linguagem é para a inteligência o que a roda é para os pés, “permite deslocar de uma coisa para outra com desenvoltura e rapidez, envolvendo-se cada vez menos. Projeta e amplia o homem, mas também divide suas faculdades, a consciência coletiva e o conhecimento ficam diminuídos por esta extensão técnica da consciência que é a fala”. Op. cit. , p. 98. 36
  • 37. “extensão” , manifestação ou exposição de todos os nossos sentidos a um só tempo, a linguagem sempre foi considerada a mais rica forma de arte humana, posto que a distingue da criação animal. 15 Com os descobrimentos, inaugura-se o período dos grandes relatos escritos sobre trópicos. Eles apresentam uma clara oposição entre o visto e o ouvido. 16 O olho está a serviço da “descoberta do mundo”. Existe uma verdadeira “vertigem de curiosidade” está a serviço do que está oculto. A vertigem da curiosidade desloca os sentidos, o olho que a tudo devassa também fareja a riqueza camuflada, desconhecida. Os sons ouvidos são como fantasmas – inarticulados, ruídos sem conteúdo inteligível -, são “chamados fora da órbita do sentido” – sons sem referência na memória. O 17 impacto visual da fábula ofusca impedindo a visibilidade, o delírio do olho a serviço da escrita promove o deslocamento fracionando o mundo dos sentidos. Com os “descobrimentos” inaugura-se o período dos deslocamentos. A Europa ocidental (XVI ao XVIII) se deslocaliza. Esta deslocalização generalizada está na base das clivagens sociais que acompanham o nascimento de uma política e de uma razão nova, que a partir dos relatos de viagem “engendram 15 Em Antropologia Estrutural (Rio de Janeiro, 2. ed. 1985, pp. 77-83; cap. III, Lévi-Strauss afirma que, de todos os fenômenos sociais somente a linguagem parece presentemente suscetível de um estudo verdadeiramente científico, que explique a maneira pela qual ela se formou e preveja certas modalidades de sua evolução ulterior 16 Em A Escrita da História (Rio de Janeiro, 1988, pp. 21-41, “Etnografia, A oralidade e o espaço do outro: Léry”) Michel de Certeau mostra a pressão da escrita como uma energia demolidora dos próprios estatutos da etnologia. Demonstra a oposição entre o visto e o ouvido dos relatos de viagem, o “face a face do descobridor, vestido, armado, cruzado e da índia nua”; - o desnudar sem compreender. 17 As estruturas do sentido “projetadas nas diversas línguas, são tão diversas como os estilos na moda e na arte”. Cada língua materna “ensina aos seus usuários um certo modo de ver e sentir o mundo, um certo modo de agir no mundo e que é único.” Marshall MacLuhan , op. cit. P. 98. 37
  • 38. um outro funcionamento da escrita e da palavra”. 18 Esta verdadeira compulsividade pela descoberta foi reforçada no século XVIII, veio favorecer a “expansão ilimitada do domínio racional”. 19 Ou-vindo Na caça, na transmissão de sinais e defesa de seu território é costume antigo entre indígenas a utilização de pios para arremedar certas aves, sobretudo os tinamídeos. Geralmente são aves que cantam à noite, assim, o 3 arremedo do canto noturno destas aves servia à emboscada – quando o invasor era surpreendido na escuridão. Esta antiga arte de defesa demonstra que, a seu modo, os índios desenvolveram formas de observação que auxiliaram na diferenciação dos diversos chamados, identificando as características comportamentais das aves pelo canto e pela vocalização. O arremedo dos pios indica uma compreensão da relação canto-defesa de território, que, assim, era utilizado para os mesmos fins. 18 Michel de Certeau, op. cit. P. 213. 19 Ver , CASTORIADIS,Cornelius. O mundo fragmentado: as encruzilhadas do labirinto 3. Rio de Janeiro: paz e Terra, p. 96. 20 Aves pertencentes a uma ordem típica das Américas (Neotrópico), possuem uma família com nove gêneros divididos em diversas espécies e subespécies. Carne saborosa, são características: o esterno bem desenvolvido e capacidade de voar limitada pela pequena envergadura das asas. Terrícolas, vivem exclusivamente em matas ou campos. São os conhecidos nhambus, perdizes e codornas. 38
  • 39. A função do canto territorial das aves é processada durante longos períodos com intervalos regulares; estas emissões independem de uma estimulação externa. Isto é, o canto territorial de aves é dado constante na 4 ambiência sonora das paisagens. Vai daí, justamente, a utilização por índios deste tipo de emissão, em situações de defesa de território, pois a chance de o invasor identificar estes arremedos é quase nenhuma. No continente das aves, o homem ou qualquer outro mamífero sempre foram minoria. E talvez esta percepção tenha sido inata entre as grandes nações tropicais que partilham este território, mesmo antes da chegada do invasor. É possível que, ao observarem a grande quantidade e qualidade de aves, em sua faina diária à busca de alimento, atraídos pelo canto ( o que permite a localização) descobrissem territórios favoráveis (de caça e pesca) para o desenvolvimento de suas culturas. Não é mero acaso, a importância das aves na cosmologia indígena, na arte plumária , na arte de defesa.5 A ideia que supõe a América Neotropical antes do século XVI como continente que vivia na plenitude de sua natureza exuberante e tórrida, onde o homem tropical em suas nações e tribos numerosas vivia com amplo conforto e plena liberdade espacial para o desenvolvimento de suas culturas, vai de encontro à base dos sentimentos que condenam e restringem a colonização como um processo brutal de escravização, opressão e clivagem. A conquista territorial levada a cabo por espanhóis e portugueses, sem negar as 21 Ver Hernán Fandiño, op. cit. , p. 107. 22 Haja vista a técnica da tapiragem, pela qual os índios modificavam ao seu gosto a cor das penas dos pássaros em geral. 39
  • 40. atrocidades e violências cometidas, acabam escondendo outros elementos que insistem em ficar de fora. A diversidade ecológica guarda um destino submerso no qual a monumentalidade da riqueza natural sempre fez frente de igual altura, senão de maior envergadura, aos processos sociais e culturais. Sem dúvida a biodiversidade contribuiu e contribui para que, apesar dos feitos conseguidos, do jugo e da destruição de boa parte dos sistemas tradicionais de sobrevivência de seus povos nativos, continue sendo a América Neotropical a pátria planetária das possibilidades, pela qualidade e quantidade de seus ecossistemas. Não havia aqui antes da chegada dos colonizadores nada semelhante à harmonia . Pelo menos a harmonia como costumamos compreendê-la. As 6 dificuldades e limitações ambientais obrigavam à vida nômade, desenraizada. Os territórios de caça de animais de que porte. No mosaico das grandes sombras florestais da mata Atlântica à Amazônica, a vida se desenrolava entre os perigos e a lentidão do tempo gotejado. Algumas tribos conseguiam se fixar em litorâneas e menos acidentadas, ou próximas a manguezais. É sabido que do lado oriental da Amazônia, próximo à região dos Yanomamis, os rios são considerados famintos . A vida nestes territórios é de diário desafio. 7 Tal qual pássaros, as tribos partilhavam este território que impunha ritmos de constantes deslocamentos entre as grandes estações de cheia e 23 Ver na epígrafe a mensagem que Lévi-Strauss nos deixou sobre as “harmonias perdidas” e o timbre original do tempo, op. cit.,p. 139. 24 Ver documentário de Rondon sobre a expedição Cuniná, que revela a decepção da pobreza da fauna amazônica. Conferências. Rio de janeiro, 1916. 40
  • 41. seca. A disputa pelos territórios que impunha ritmos de constante movimento, lentos cíclicos entre as grandes estações de cheia e seca. A disputa pelos territórios de caça favorecia o surgimento de tribos guerreiras que escravizavam outras menos desenvolvidas na arte da guerra silenciosa dos pios e outros sinais sonoros. Menos desenvolvidas na arte da zoofonia. O descobrimento da América foi fundamental para o desenvolvimento das ciências naturais e antropológicas. Nos fins do século XVII, a botânica era descritiva; consistia unicamente na classificação de espécies. Com as expedições científicas, as relações entre os caracteres climáticos, junto às complicações dos botânicos, se avolumaram de tal modo que houve uma “verdadeira revolução no domínio da taxinomia”. Isso contribuiu, diretamente, 8 para o aparecimento da ecologia como disciplina da biologia. Como vimos, o continente das aves é sobretudo o da grande variedade de vegetais que, por sua vez, está diretamente relacionada com a riqueza da avifauna: a ecologia surgiu da geografia das plantas. 9 Mas, até hoje, é incômodo admitir que formas de observação da natureza, das chamadas civilizações primitivas, possam estar na base da formulação da biogeografia e da própria ecologia, formulada mais adiante. Evidentemente, a grande quantidade de espécies vegetais classificadas iam acompanhadas não só de seus nomes, mas também de outras informações 25 Ver .ACOT,Pascal , História da Ecologia, Rio de Janeiro: Campus, 1990, p. 13. 26 “Onde se vê que a geografia vegetal do século XIX, integrando no seus desenvolvimento os métodos e resultados de disciplinas vizinhas, constituiu o quadro conceitual da elaboração dos conceitos centrais de ecologia”. Ibid 41
  • 42. fornecidas pelos próprios “habitantes” dos locais onde eram encontradas, informações dobre o clima, sobre a geografia, que serviam para compor um panorama detalhado. As teorias que expandiram a noção da Amazônia como um grande vazio, isolado, perdido na imensidão infestada de selvagens, não conseguem esconder este paradoxo. O vazio, na verdade, estava ocupado por numerosas tribos. Sensíveis foram os contrastes fornecidos por estes grupos ambientados com a natureza 10 tropical e estrategicamente localizados, que se movimentavam com destreza por todo o complexo continental, ou parte dele, convivendo, intimamente, com a textura da terra e conhecendo precisamente suas mudanças climáticas. Grupos que possuíam compreensão diretamente do tempo e do espaço, o ontem e o hoje, e o próximo ou distante. Enfim, homens que não tinham para si nada de sui generis: grupos organizados, com seus conflitos próprios, convivendo com tudo aquilo que para o colonizador ou naturalista viajante era um imenso e tenebroso vazio. Na verdade o desconhecido não foi apenas impacto entre o civilizador e o civilizado; mais para um do que para o outro, existiram formas de interação, embora isso nem sempre seja admitido. O conceito sobre as culturas “primitivas” continua contaminado de equívocos. 27 Sobre o caráter ambíguo da noção de natureza entre os povos ditos “primitivos”. “A natureza é pré-cultura e também subcultura, o terreno no qual o homem pode entrar em contato com seus ancestrais, os espíritos e deuses”. Portanto, na noção de natureza há um componente “sobrenatural” e esta “sobre-natureza está incontestavelmente acima da cultura, como a própria natureza abaixo dela” (Lévi-Strauss, Antropologia estrutural dois, cap. XVII; B, “O respeito pela natureza”). Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro., p. 325. 42
  • 43. Um matiz desta questão está cravado na própria tradição antropológica. As ciências sociais e antropológicas desenvolveram poucos conceitos para analisar, por exemplo, como os grupos indígenas reproduzem em seu interior o desenvolvimento capitalista, para melhor compreender como constituem dentro dele “formações mistas” . Cancline afirma que os estudos 11 etnológicos tendem a registrar de um lado a sociedade colonial e de outro o grupo étnico, como blocos homogêneos. As desigualdades internas são camufladas e vistas como unidades compactamente enfrentadas pelo poder invasor. Assim, as formas de interação permanecem clivadas. O etnocentrismo dificulta a compreensão das culturas populares, que continuam a ser enxergadas como “resquícios de tradições étnicas” ou como subculturas e não como configurações concretas do social, ou como fragmentos, partes de um sistema maior de dominação. 12 Mesmo não sendo um fenômeno à parte, não foi apenas a desnutrição e a exploração direta ou indireta das culturas ditas primitivas, mas foi também a apropriação do conhecimento e da sabedoria desses povos que permitiu que boa parte do desenvolvimento ocidental. O contato com culturas que desenvolveram modos de comunicação, de convivência e de conhecimento minucioso da natureza inspirou e até gerou metodologias de observação científica. 28 Ver , CLACINI, Nestor Garcia, Um debate entre tradicion y modernidad, Clacso XVII, 52, 1987, p. 40. 29 Para Canclini é o próprio vínculo da antropologia com a história que provoca estas distorções, pois ao abarcar a larga temporalidade da dimensão diacrônica acaba por fortalecer a estratégia de dominação dos grupos indígenas, que sempre foi manter a sua diferença, ibid. 43
  • 44. Não é segredo a vasta contribuição destas culturas para as ciências biológicas e farmacológicas; como também hábitos e costumes alimentares e medicinais, conhecidos como “naturais”, são desde a colonização, até hoje, largamente utilizados e popularizados no mundo inteiro. Também boa parte da indústria farmacológicas alopática utiliza substâncias retiradas de diversos vegetais e animais da floresta tropical, a partir da medicina praticada há milhares de anos por estes povos, que não recebem retribuição alguma por essa incalculável contribuição. Por isso as interpelações feitas hoje aos indígenas, como guardiões ideais das reservas florestais, merecem uma reflexão à parte. Não há como esconder que o desenvolvimento ocidental tem sido orquestrador de diversas atrocidades que encontram na clivagem das interações e conflitos sociais um dos seus maiores desafios. Não seria exagero admitir que as penas de pássaros presentes nos adereços ou empalhadas em museus são sintomáticas de um fenômeno: a partir do quinhentismo, acertam- se os ponteiros para a contemporaneidade da devastação acelerada. O calvinista Jean Lery (1557) foi o primeiro a registrar os nomes indígenas de aves nas aldeias tupinambás, tendo escrito uma canção desses índios sobre o canindé (Ara ararauna), uma arara de barriga amarela. A convite do Conde Maurício de Nassau-Siegen, muito interessado em zoologia, o naturalista George MacGrave (1610-1643) foi incubido de executar de executar a primeira expedição científica zoológica, botânica e astronômica 44
  • 45. em solo brasileiro . Apesar de não ter coletado material científico, MacGrave 13 organizou vasto material iconográfico a óleo e aquarelas. Em 1783, Alexandre Rodrigues Ferreira (nascido na Bahia, em 1756), veio chefiando a “Viagem filosófica pelas capitanias do Grão Pará, Rio Negro, Mato Grosso e Cuiabá”, organizada em Portugal, para fazer pesquisas durante dez anos. As coleções desta viagem constituíram-se no primeiro material científico que foi do Brasil para a Europa. 14 Uma experiência de apresentar vozes de pássaros em notas musicais foi elaborada, primeiramente, pelo príncipe Maximilian Von Wied Neuwied (1816), quando registrou, no Brasil, o assobio do saci (Tapera naevia). A narrativa da viagem do príncipe Wied contém vasto material sobre fauna, flora e sobre a vida nativa e constitui-se, também, em documento do mais alto interesse biogeográfico. O registro do canto dos pássaros em notas musicais se tornou uma prática entre alguns cientistas e viajantes que conheciam teoria musical. Era o único instrumento de registro do canto das aves; outras técnicas surgiram mais tarde, como examinaremos mais adiante. No período colonial era prática comum a captura de animais, principalmente das aves. O Brasil era conhecido como a terra dos papagaios. Como troféus das façanhas empreendidas nos continentes conquistados eram 30 A Historia naturalis Brasiliae de MacGrave foi editada em 1648. 31 Ver Helmut Sick. Ornitologia Brasileira: uma introdução. Brasília, UNB, vol. 1, 1984, p. 107. 45
  • 46. exibidas para o deleite do mundo europeu, como exóticas. Práticas como a 15 Caça de Altaneira foram registradas na corte do infante Dom Luís (1616), um tipo de caça desconhecido nos trópicos. 16 No século XIX, proliferaram as expedições científicas aos estudos biológicos e zoológicos. Milhares de espécimes de aves foram coletados e depositados em museus da Europa. Entre as coleções que está a de Friedrich Sellow (1814), que enviou 5.457 aves empalhadas para o museu de Berlim. Suas coleções só foram superadas por Johannes Spix e Johannes Natterer. Estes dois naturalistas alemães, ao lado do botânico Carl Friedrich Philip Von Martius, fizeram parte da expedição que veio ao Brasil com a princesa Leopoldina em 1817. As coleções de Natterer contavam com 12.239 aves empalhadas, 1.000 mamíferos, 35.000 plantas secas e milhares de objetos indígenas, enviados ao Museu de Viena. Em 1800, Humboldt, que também incluía aves em seus estudos, veio ao Brasil com o botânico Bompland, mas foi proibido de entrar no país por decisão da Coroa. Na Venezuela, descobriu o guácharo (Steotornis caripensis). O cientista pertenceu a uma corrente que elaborou conceitos importantes para a ecologia – sendo um dos precursores da biogeografia. 32 Exótico é tudo aquilo que se desconhece. Ser exótico é, sobretudo não ser compreendido, é ser considerado mal feito, mal acabado, curioso e intrigante, justamente por ser desconhecido. V. Aurélio Buarque de Hollanda, Pequeno Dicionário da Língua Portuguesa. 33 A caça de altaneira é típica de savanas, desertos e de montanhas desprovidas de mata. 46
  • 47. Os naturalistas Alfred Russel Wallace e Henry Walter Bates viajaram pelo Brasil em 1848. A obra de Bates, O naturalista e o rio Amazonas, (1863) está entre as publicações mais conhecidas e estudadas sobre a Amazônia. Wallace ficou mais famoso pela formulação da teoria da seleção natural, em 1859, em conjunto com Charles Darwin. Seus estudos baseavam-se em registros feitos na região oriental da Amazônia. Darwin, que aqui esteve em 1832, conclui que a botânica e a ornitologia do Brasil já eram bastante conhecidas. Poucos cientistas reconheciam a nomenclatura nativa de aves e animais. A própria forma de classificação implicava, na época das expedições, 17 verdadeira corrida científica. Isto porque os nomes das espécies novas que iam sendo descobertas podiam e podem incluir o nome de pessoas, dentro da sistematização introduzida por Linneu, 18 em 1758. A classificação proposta por Linneu fez nascer grande interesse pelo estudo científico de aves, estimulando verdadeira corrida à consagração científica. As viagens pelos trópicos proporcionavam aos viajantes naturalistas o verdadeiro mérito e reconhecimento científico. O ato de dar nomes científicos hoje é controlado pela Comissão Internacional de Nomenclatura Zoológica (C.L.N.Z.) e baseia-se na lei da 34 Martius compreendeu a importância da língua tupi, para estudos de zoologia, na publicação Nomina animaliun in língua tupi, 1863 -, e Rodolfo Garcia realizou uma interpretação de nomes indígenas em Nome de Aves em Tupi, 1913. 35 Autores bem familiarizados com o latim latinizam o nome na nomenclatura, por exemplo: Spixius, em vez de Spix. Em conseqüência, o respectivo nome deve ser escrito com dois “i” no genitivo latino, por exemplo: Cyanopsita spixii, Wagler, 1932; e ainda se escreve Synallaxis spixi, Sclater, 1856, simples genitivo de Spix sem latinização, op. cit., p. 36, Op. cit.,p.38. 47
  • 48. prioridade: o nome válido é o mais antigo, para evitar que a nomenclatura se torne caótica. A taxonomia baseia-se principalmente na morfologia externa, mas existem hoje outras técnicas para métodos bioquímicos (quimio- taxonomia e sistemática genética), estudos etológicos e pesquisas fisiológicas, tais como: análise da vocalização para tentar investigar problemas não solucionados com as técnicas morfológicas. Até 1950, técnicas morfológicas predominaram. Nos anos posteriores, inicia-se a investigação de técnicas não-morfológicas. Destacam-se pesquisas sobre a musculatura mandibular dos passeriformes; de possíveis caracteres nos esqueletos, que sirvam para separar famílias e ordens; dos estapes , uma 19 parte do ouvido interno: e ainda das estruturas que não estão sujeitas à seleção. A capacidade de comunicação pelo canto ou vocalização subentende mecanismos desenvolvidos ao longo da evolução, nas aves extremamente ligados à audição. Ou-vido Em repouso ou em movimento o ar é um material elástico que transmite o som. A sutileza sonora e as forças constitutivas da audição, presentes nos pássaros demonstram inequivocamente a leveza de ser. 36 Op. cit. P. 37. 48
  • 49. Só se pode perceber o quanto a audição é preciosa, quando ela falta. Se uma criança nasce surda terá enorme dificuldade de adaptar-se ao mundo. Fatalmente seu desenvolvimento intelectual estará comprometido, não podendo ouvir sequer o próprio choro, primeira forma de comunicação. Como centro auditivo, o ouvido é tão ativo, quanto sensível, por isso considerado pedra fundamental da comunicação. A audição biaural permite aos cegos calcular com exatidão a distância dos objetos. O ouvido é a sede não só da audição, mas de outros dois sentidos independentes: o equilíbrio e a orientação, situados no labirinto. No século XVIII, questionava-se a existência do som. Perguntava-se: Se uma árvore cair na floresta haverá som? A natureza era colocada em dúvida 20 nesta procura de um mundo real. Especulava-se o som como fenômeno organizado, ou como uma sensação que só poderia ser reconhecida pela mente ouvinte. Ainda no início do século XIX, acreditava-se que o som não ocupava espaço. Assim como os objetos têm textura e forma e podem ser vistos pelos olhos e tocados pelo tato, o som, ao contrário, não poderia ser localizado por meios auditivos. Até pouco tempo, muitas destas ideias impediam a compreensão da audição biaural. Existem outras razões para a audição ter sido um sentido relegado ao segundo plano. 37 Sobre a discussão de causa e efeito do som entre filósofos e físicos, Stevens e Warshofsky, O som e a audição, Rio de Janeiro: Edições Life, 1968, p. 9. 49
  • 50. Com a escrita, o som passa a ser uma “extensão da função visual”. O 21 alfabeto fonético leva à redução do papel dos sentidos da audição, do tato e do paladar. MacLuhan afirma que isto não se deu em culturas como a chinesa, que utilizam a escrita não-fonética, o que capacita à manutenção de uma percepção abrangente e profunda da experiência. Nas culturas do alfabeto não fonético, o ideograma é uma gestalt abrangente, que ao mesmo tempo não promove a dissociação analítica dos sentidos e das funções, como ocorre coma escrita fonética. A separação introduzida entre o som e a visão, de um lado e o conteúdo verba e semântico, de outro, transforma esses dois sentidos na mais radical das tecnologias que tange à tradição. O alfabeto fonético divide a experiência antes unida, “dando um olho, por um ouvido, liberando o homem do transe tribal, da ressonância da palavra mágica e da teia do parentesco”. 22 Assim as culturas tribais não conseguem compreender a ideia do indivíduo separado. Para elas, a ideia de espaço e tempo é descontínua e desuniforme, seu fundamento é emotivo. Somente as culturas letradas dominaram as sequências lineares, concatenadas como formas de organização psíquica e social, fragmentando a experiência em unidades uniformes capazes de produzir ações e mudanças formais mais rápidas através do conhecimento aplicado. Este último é o segredo do domínio ocidental sobre o homem e sobre a natureza. Baseada na 38 Marshall MacLuhan, op. cit. P. 103. 39 Op. cit., p. 103. 50
  • 51. alfabetização, a civilização promove um processamento uniforme da cultura pelo sentido da visão, projetado no tempo e no espaço pelo alfabeto. Nas culturas tribais, o que organiza a experiência no mundo é o sentido vital da audição, que reprime os valores visuais. MacLuhan, em sua “tese genérica” , preconiza a Idade Elétrica como o 23 fim da cultura visual, da divisão técnica, do individualismo, do nacionalismo reintroduzindo a comunicação instantânea e a relação tribal (como foi com as culturas orais que precederam a imprensa). Anuncia a Era Elétrica (implosão) como um período de reencontro com os esquemas de participação das culturas orais e tribais, que precederam a Era Gutemberguiana (explosão). As afirmações de MacLuhan abrem caminho para o estudo da História Moderna, em função dos meios de comunicação dominantes em sua leitura otimista e atraente de divisão da história em grandes eras tecnológicas. O 24 caráter imediato da tele-informação faz do mundo uma tele-aldeia, introduz o neoarcaismo, um fenômeno importantíssimo que está diretamente ligado ao 25 neomodernismo. MacLuhan viu a humanidade em três grandes idades. A primeira dá ênfase à audição nas culturas orais; a segunda, à visão nas culturas do alfabeto fonético; e a terceira, ao tato nas culturas elétricas. No momento 40 , BADRILARD,Jean. Analisis de Marshall MacLuhan : Undersatnding Media, Buenos Aires, Tempo Contemporâneo, 1967, p. 26. 41 Jean Baudrillard afirma que o autor omite o conhecimento da história social destes meios, apesar de apoiado em grandes verdades. Ao enfatizar que “o medo é a mensagem”, MacLuhan esvazia a sociologia e a história política destes meios; suas revoluções e convulsões históricas, omitindo os nacionalismos e o feudalismo burocrático numa era de participação acelerada, “astúcia sutil”, op. cit., p. 35. 42 MORIN,Edgar. Para compreender MacLuhan, op. cit., p. 39: à maneira de Lévi-Strauss, MacLuhan redescobre a notável modernidade da consciência arcaica. 51
  • 52. vivemos um período de interpenetração da passagem da segunda para a terceira. No entanto, a mudança de ênfase do visual para o tátil retornava as formas de envolvimento das culturas orais, do ouvido. Audi-ação A audição, como sentinela dos sentidos, por suas funções independentes de equilíbrio e orientação, evoluiu de mecanismos simples, os estatocitos. Primeiro órgão sensitivo, esse mecanismo é conhecido nos peixes 26 como “linha lateral” e são extremamente semelhantes, em construção, às células ciliadas do ouvido interno dos mamíferos que convertem vibrações em impulsos nervosos. Comparável a um receptor de rádio, o ouvido humano é capaz de decodificar as ondas eletromagnéticas e redecodificá-las como som. Assim, a 27 voz humana pode ser comparada a um transmissor de rádio, ao traduzir o som em ondas eletromagnéticas. A voz tem o poder de moldar o ar e o espaço em formas verbais, embora se acredite que tenha sido precedida, provavelmente, de uma expressão menos especializada: “de gritos, grunhidos, gestos e comandos de canções e danças”. 28 43 Bolsas que mantêm o equilíbrio em animais marinhos, tais como a água-viva. 44 Marshall MacLuhan, op. cit., p. 97. 45 Ibid. 52
  • 53. O ouvido capta, amplifica, converte e transmite para o cérebro, simultaneamente, o que os dispositivos artificiais só conseguem fazer em seqüência. Dentro da abóboda cerebral, não são os sons, mas os estímulos é que provocam as reações que respondem a esses mesmos estímulos. O som vivo do ambiente provoca uma gama enorme de emoções e de reações físicas. O reflexo do movimento do mundo, da fala, desperta lembranças e imagens mentais remotas e esquecidas. É a memória do som que põe em movimento as imagens esquecidas na memória. No centro de memória sonora no interior do cérebro, os sons acumulados são referências precisas para o estado de alerta e prevenção de perigos. Mas é justamente na atualidade, em que a audição em si passa alertar e prevenir. Uma ciência cujo método está em busca de orientação para a compreensão dos mecanismos de equilíbrio do meio ambiente. Investiga-se 29 hoje a complexidade destes mecanismos naturais, para desenvolver formas de controle biológico que surtam efeitos mais duradouros. Assim a ecologia pode ser considerada a ciência que busca ouvir, em vez de devassar para determinar ou provar, que busca orientar e equilibrar seus métodos com a complexidade ambiental. Físicos, matemáticos, biólogos, e astrônomos estão criando uma série de idéias alternativas. Sistemas simples dão origem ao comportamento 46 GLEIK,James. Caos: a criação de uma nova ciência. Rio de Janeiro: Campus, op. cit., p. 292. 53
  • 54. complexo e sistemas complexos dão origem a comportamentos simples: as leis da complexidade têm validade universal. 30 Os mecanismos complexos não são visíveis e estão submersos em associações tão sutis que, de forma independente, se equilibram e orientam, sujeitos a mudanças inesperadas, condicionadas a mínimas variações impostas pelo ambiente. Variações tão dinâmicas quanto as nuvens do céu, que exigem, portanto, experimentos de observação que apresentem o mesmo dinamismo. MacArthur compreendeu que a ecologia baseada num senso de equilíbrio “estático” está condenada a falhar. Os modelos tradicionais são traídos por suas tendências lineares. A audição é um sentido complexo. Para cifrar sinais perfeitamente claros exige malabarismos do aparelho auditivo. Cada fibra nervosa que maneja um sinal forma ligeiramente modificada. Seus numerosos elementos parecem todos exercer as funções de captar, para gerar energia, a qual partindo do sistema nervoso central é sinalizada para todo o organismo. São os impulsos nervosos, e não a fonte externa de eletricidade, que realmente geram a sensação. Esta “marcha do som para a audição, das vibrações mecânicas aos impulsos elétricos, é marchada por elaboração e complexidade cada vez maiores”. 31 47 lbid. 48 Stevens e Warshofsky, op. cit., p. 60. 54
  • 55. Os pássaros, em posição relevante na escala do desenvolvimento evolucionário, têm ouvidos bem parecidos com os do homem. Mas os ouvidos dos insetos são considerados os mais eficientes sistemas de audição. Apesar dos pássaros ouvirem mais ou menos com o mesmo alcance dos homens, chegam a superá-los. Este sistema auditivo mais avançado está relacionado 32 com a complexidade de seu sistema vocal.Uma única espécie pode emitir mais de 50 tipos de vocalizações diferentes derivadas de um vocabulário de mais de 300 notas estudos etológicos têm demonstrado uma paralelismo não desprezível entre aves e mamíferos (primatas) 33 no que diz respeito aos sistemas de comunicação. Os chamados complexos, que servem de espaçamento em populações de primatas são comparáveis aos de passeriformes. Ondas sonoras são usadas, também para “ver” objetos na escuridão, ou invisíveis, porque fora do alcance do raio de visão, usam a audição para colher informações detalhadas dos obstáculos. A observação destes mecanismos inatos estão na base da descoberta do sonar e do ultra-som. A velocidade do som foi alcançada, mas a da luz esta distante as gerações mais próximas. Porém, mais veloz que a luz somente o cérebro – a velocidade do pensamento, do insight. 49 Uma pequena diferença na cóclea, que nos pássaros é ligeiramente encurvada e nos mamíferos, enrolada em espiral. 50 Hernán Fandiño Mariño , op. cit . , p. 107. 55
  • 56. Entre o dito de uma descoberta cientifica e a sua prova visível reina o silêncio. Assim o tempo desse silêncio funciona como um eco. É neste eco que ressoa a verdadeira descoberta. O silencio do tempo ´e quem fala. Assim o tempo social-histórico não acompanha o tempo cientifico. II. OUVINDO VOZES DO CÉU E DA TERRA Hércules Florence, em 1829, durante a expedição Langsdorff realizou uma experiência de registro de “vozes” de animais, a qual denominou zoophonia . Um relato publicado sobre essas experiências ofereceu pistas 1 2 sobre um novo caminho para a percepção dos sons naturais. Apesar de ser um documentário científico importante, não pode ser classificado como um texto da ciência que hoje se encarrega da investigação da vocalização dos animais, a bioacústica. Esta ciência investiga a vocalização dos amimais como 1 Ver Hercules Florence, Zoophonia. Rio de Janeiro: R.I.H.G.B. , tomo 39, 1876. 2 Recentemente, foi publicado pela UFMT uma tradução de Jacques Vielliard de um dos textos escritos por Florence sobre zoofonia. O texto de Taunay foi escolhido para análise, por ter sido autorizado para a publicação pelo próprio Florence, entre 1875 e 1976 e que, portanto possui um timbre mais próximo do século em que o autor produziu sua obra como artista e pesquisador, vindo a falecer em Campinas em 1879. Ver Viagem Fluvial do Tietê ao Amazonas pelas Províncias de So Paulo e do Grão- Pará (1825 – 1829). Museu de Arte de São Paulo Assis Chateaubriand, 1977. 56
  • 57. “exibições comportamentais” e detém seu interesse exclusivamente no que 3 concerne a “ função biológica destas exibições”. Tampouco se tratava de uma investigação musical. Isto porque, na época, não havia outra forma de registrar essas “vocalizações” a não ser através de notas musicais. De certo modo, isso não era novidade, outros já haviam se adiantado nesta forma de registro. Novidade era a ousadia de Florence de esboçar uma união da ciência da natureza (biologia) com a sensibilidade (música), ou de demonstrar que em matéria do estudo dos sons de animais não é possível descartar sensibilidade, ao afirmar: [...] a ninguém ocorreu a ideia de tornar a voz dos animais assunto de estudos e cuidadosas observações, como sem dúvida é sua história natural. Entretanto dentre todas as majestosas ou suaves harmonias da esplendida e nunca assaz admirada natureza é a zoofonia unicamente que fere nossos sentidos por meio de notas musicais[...]4 No entanto, o lugar híbrido onde aparece que estas afirmações vão dar, na verdade, é o terreno fértil em que Florence semeia suas ideias. Nas 3 Herman Fandiño Mariño, op. cit., p. 106. 4 Hercules Florence, pó. cit., p. 221. 57
  • 58. observações do tradutor Taunay, encontramos afirmações que definem o “viajante” Florence como homem de “ variado fundo de instrução”, cuja vitalidade criativa e espírito inventivo já havia imaginado diversos meios, “todos engenhosos”, quando inventou a polygraphia . Segundo Taunay, as tentativas 5 de Florence de inventar a fotografia, antes de Niepoe e Daguerre, só não foram reconhecidas porque o pesquisador viva numa província onde faltavam recursos, e quando soube que outros, com melhores condições, tinham lhe tirado o valor da prioridade do invento, caiu em desânimo e retraimento. Apesar de não caber neste estudo uma indagação sobre a veracidade destas afirmações, elas fielmente demonstram a vivacidade da mente inventiva de Florence e certificam que ele não era um viajante comum. Sua sensibilidade criativa está presente na obra iconográfica da expedição Langsdorff e também na intuição da zoophonia: [...] quando o sábio examina cuidadosamente e lentamente tudo o que o cerca; quando o mais insignificante inseto não escapa à sua análise, que perscruta até o mundo microscópico, não lhe deve parecer inútil e despido de qualquer vantagem apreciar, debaixo de determinadas regra, não direi a linguagem, porém sim a voz dos animais[...] . 6 5 Op. cit., p. 322. 6 Op. cit. , p. 323. 58
  • 59. A proposta de exame cuidadoso e lento demonstra o rigor científico de perscrutar, não devendo parecer inútil ou desvantajoso apreciar, no sentido de estimar e avaliar a voz dos animais (como ele mesmo deixa bem claro) dentro de determinadas regras. Fica evidente, também, a preocupação com a utilidade de suas indagações. A suspeita de que talvez estivesse atendo-se em causas inúteis e estéreis. Mas se, nem tanto como precursor da bioacústica, a intenção de Florence parece esboçar timidamente um novo campo de conhecimento, que não era a bioacústica, também não somente se tratava de uma investigação musical, mas sim da zoophonia, talvez um limiar entre estes dois campos. Ainda quando não servisse esse estudo mais do que para mero entendimento do espírito, não deverá merecer indiferença e pouco caso; mas não é só isso que nela acharemos, encontrando também cores novas e vivas, faces do verdadeiro valor cientifico e juntando sem contestação o tão apregoado útil ao agradável[...] 7 Florence se refere à música da natureza e busca o verdadeiro valor científico desta música que não deveria soar aos ouvidos apenas por sua beleza, e para tanto encontra um álibi na união (insuspeita) do tão apregoado útil ao agradável. Na verdade, a beleza de que nos fala é a experiência estética 7 Ibid. 59
  • 60. estética. Mesmo porque seria hipocrisia admitir que as atividades mais racionais não perpassam pelo sentimento estético. Demonstrando estar consciente da suspeita metodológica (da inutilidade) sobre as reações que poderia suscitar esta aproximação entre a ciência biológica e a ciência musical como os meios de expressar as mensagens da natureza. Florence busca apoio recorrendo ao tão apregoado útil, este sim, insuspeito. A suspeita ocorre de fato, mas não porque estivesse seguindo o caminho errado. Se ainda hoje são raros os esforços interdisciplinares neste campo, que dirá há 150 anos? Há pelo menos duas décadas ouvimos discursos sobre a multi, inter ou transdisciplinaridade e temos visto que não forma suficientes para eliminar as suspeitas metodológicas. Essa desconfiança e marginalização das pesquisas multi-referenciadas continuam sem poder fazer o devido contrapeso à especialização acelerada e a marcha automatizada da tendência que 8 funciona como reator super-aquecido. Por outro lado, o surgimento de novas ciências como a do caos, só é possível mediante o desafio dos modos de pesquisa atuais. O caos, valendo-se do comportamento universal da complexidade, investiga o aleatório e i complexo, “extremidades entrecortadas e saltos súbitos” , especula o 9 determinismo e o livre arbítrio, a evolução e a natureza da inteligência 8 Cornelius Catoriadis, op. cit. , p. 97. 9 Cf. James Gleik, Caos: a criação de uma nova ciência., Rio de Janeiro: Campus, 1990, p.5. 60
  • 61. consciente. Estes cientistas sentem que estão fazendo recuar a propensão da ciência ao reducionismo, e “ acreditam estarem a busca do todo” . 10 Não existe aqui a intenção de apresentar a zoofonia como campo de conhecimento ligado ao caos; mas apenas a de demonstrar que inúmeros outros campos de conhecimento estão surgindo no lugar dos saberes em dissolução. A própria ecologia, como disciplina da biologia, ao abarcar outros campos de conhecimento muda a fisionomia da própria biologia. A ousadia de Florence é ter proposto a zoofonia no limiar de duas disciplinas científicas, não escondendo sua sensibilidade criativa ao captar as mensagens das vozes do céu e da terra. Não entraremos no mérito ou na análise das partituras que elaborou durante a viagem (que apenas esboçam tentativas de aproximação), visto que só recentemente, com a possibilidade de gravar audioespectogramas , as 11 vocalizações podem ser traduzidas mais fielmente. Mas não é neste aspecto que interessam estes registros, mas as associações e as relações investigadas: [...]ao passarmos de uma região para outra surpreendiam-nos os gritos de viventes que nos eram desconhecidos, ao passo que desapareciam outros que já se nos tinham tornado familiares ou, se continuavam a se fazer ouvir, era já com modificação sensível do órgão vocal[...] 12 10 Ibid. 11 Mostra a altura em quilohertz por segundo; a intensidade pela espessura das linhas e a duração. 12 Hercules Florence, op. Cit., p. 321. 61