Este documento apresenta uma pesquisa sobre o canto de pássaros nos ecossistemas do Pantanal e da Amazônia brasileira. A autora selecionou 23 espécies de pássaros desses locais e analisou seus cantos em laboratório, no dia a dia e em campo. Ela propõe critérios para classificar os cantos e discute a importância de se estudar a comunicação entre pássaros e seres humanos. O objetivo é iniciar um quadro conceitual multidisciplinar sobre a "zoofonia", ou comunicação entre anim
PROJETO DE EXTENSÃO I - SERVIÇOS JURÍDICOS, CARTORÁRIOS E NOTARIAIS.pdf
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1. O canto de céu aberto e de mata fechada,
Marta Catunda
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A questão ambiental é o assunto do momento, mais polêmico do que
esclarecedor. Marta Catunda, buscou inspiração na incontestável
monumentabilidade sonora universal do canto dos pássaros. Demonstra como
nossa sensibilidade para a ecologia e suas implicações na vida
contemporânea está comprometida até para a percepção de um simples canto
de pássaro e nos convida a ouvir. Ouvindo, nos estimula a pensar na própria
audição como um sentido enfraquecido em nossa época de comunicação
intermediada por meios tão sofisticados. Assim, nos leva a compreender por
que considera a ecologia uma disciplina que nos fala ao pé do ouvido.
O trabalho ora apresentado por esta pedagoga, artista plástica e
compositora autodidata é baseado na dissertação de mestrado em Ciências da
Comunicação, defendida na Escola de Comunicações e Artes da USP/SP, em
junho de 1993. Durante três anos a pesquisadora dedicou-se a ouvir e
classificar os timbres de dezenas de pássaros do Pantanal (Céu Aberto) e da
Amazônia (Mata Fechada), selecionando, a partir de audições, em laboratório e
em campo, 23 espécies por critérios próprios que considera de aproximação,
na tentativa de tornar o estudo do canto dos pássaros mais acessível ao leigo.
Mas, não se deteve apenas nesse aspecto. Segundo o processo de pesquisa,
recolheu informações em várias disciplinas biológicas e sociais, objetivando
iniciar a formação de um quadro conceitual multidisciplinar para o que
2
3. considera um campo de conhecimento para os músicos do ouvido e para
pesquisadores em bioacústica e geofonia.
Para tanto, teve como ponto de partida os estudos de zoophonia de
Hercules Florence, pesquisador e desenhista participante da expedição
Langsdorff, que tem merecido atenção especial da Universidade Federal de
Mato Grosso (UFMT) em publicações recentes.
Florence é mais conhecido como desenhista por suas aguadas, mas é
também apontado como um dos inventores da fotografia e por muitos
considerado pai da bioacústica.
Finalmente, Marta Catunda conseguiu produzir uma obra inquietante,
sensível e palpitante, que acaba por conceder uma amplitude notável ao tema,
até então restrito a bioacústica e músicos, isoladamente. Por isso, enfrentou
dificuldades acadêmicas que, no entanto, transformaram este livro numa leitura
desafiante para os que acreditam na liberdade do conhecimento científico ou
no rigor de observação imaginativa da ciência.
Prof. Fernando Tadeu de Miranda Borges
Coordenador da EDUFMT
3
6. Universidade Federal de Mato Grosso
Av. Fernando Correa da Costa, s/n, Coxipó
78.060-900 Cuiába – Mato Grosso
Fax: (065)315-1119/ EdUFMT
Telefone: (065) 315- 8322
Telex : 65137/UFMT/BRA
Impresso no Brasil / Printed in Brazil
Depósito legal / BN / Decreto 1825 (20/12/1907).
Este ensaio recebeu o prêmio Allejandro Jose Cabassa de melhor
ensaio cultural de 1995, pela União Brasileira de Escritores/UBE – Academia
Brasileira de Letras
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7. Agradecimentos
À colaboração da Universidade Federal de Mato Grosso (UFMT), que
investiu, apoiou todos os desdobramentos da pesquisa.
À participação estimuladora da Fundação Vitae do Arquivo Sonoro da
UNICAMP e da Fundação Cultural do Acre.
À Coordenação de Ensino e Superior, CAPES, o apoio financeiro para o
curso de pós-graduação em Ciências da Comunicação e para a dissertação
que foram a base deste livro.
À fé criativa de Aline Figueiredo, Humberto Espíndola e Wlademir Dias
Pino.
À inspiração instigante dos professores Ciro Marcondes Filho e José
Teixeira Coelho, da Escola de Comunicações de Artes ECA/USP.
Ao geógrafo e tradutor Cláudio Frederico da Silva Ramos, que ajudou a
questionar todos os embates metodológicos, todas as certezas, enfim, todos os
momentos desafiantes, sem desmerecer os sinais da intuição.
A Dante Renato Buzetti, por tantos ensinamentos nas audições em
campo, cuja crença encorajadora foi fruto de inúmeras experimentações.
Enquanto preparava os textos finais, fui auxiliada de várias maneiras
por Alberto Elias Chenu, Maria Isabel da Silva Ramos, Alexandre e Márcia
Marcovici, Carlos Navas, Joana Ferreira Daltro, Lincoln Barbosa e Ralf
Wegmann.
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8. À paciente editoração eletrônica de João Batista Epaminondas
Malhado.
Ao entusiasmo dos associados do Centro de Estudos Ornitológicos
CEO/USP, que, em tardes descontraídas de sábado, abrem espaço para todos
os que se interessam pelo estudo de pássaros.
Ao Povos da Floresta, dos seringais do Rio Macauã, no município de
Sena Madureira. Acre, por sua acolhida calorosa e enriquecedora.
A Tetê Espíndola e Arnaldo Black, pela oportunidade de ingressar no
universo sonoro dos pássaros.
Aos meus pais e irmãs e , finalmente, à compreensão e o carinho de
Flávio Daltro Filho e de nossos filhos, Flávia e Guilherme.
Cópia xerocrafada com paginação diferente da original sem/imagem
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9. Este livro é dedicado à memória de meu avô Ivar Catunda, por deixar como
herança saudável e afetuosa o convívio na Praia das Cigarras, que despertou
os acordes da liberdade: viver com as marés e construir sonhos com castelos
de areia. E também a memória de Hercules Florence, por intuir, há um século e
meio, a zoophonia, como semente do futuro.
“Inumeráveis brechas, sobreviventes isoladas da destruição do tempo,
jamais darão a ilusão de um timbre original lá, onde ressoaram harmonias
perdidas”
Lévi-Strauss, 1952
9
10. SUMÁRIO
APRESENTAÇÃO 12
Pássaros (para uma introdução) 23
I. OUVIR 26
Ou-vendo 34
Ou-vindo 38
Ou-vido 48
Audi-ação 52
II. OUVINDO VOZES DO CÉU E DA TERRA 56
Por uma geofonia da comunicação 67
Zoofonia (para uma aproximação música – bioacústica) 71
III. NO CÉU ABERTO E NA MATA FECHADA 76
Canto Instrumento 77
Critério sonoro 85
Critério ecológico 91
Critério biogeográfico 97
IV. PERCEBENDO CANTOS 99
Mata fechada ( Expedição Macuã) 105
Céu aberto (Pantanal) 110
10
11. Seleção de espécies 112
Verbetes das espécies selecionadas 114
V. ANILHAMENTO 127
O pássaro e o sentido
Nova sensibilidade 127
Considerações finais 139
VI. BIBLIOGRAFIA 143
11
12. APRESENTAÇÃO
A pesquisa que levou ao Canto do Céu Aberto e de Mata Fechada
surgiu de um processo de audição ocorrida em três etapas – em laboratório,
no dia a dia e em campo- de 23 espécies dos ecossistemas Pantanal e
Amazônia, selecionadas por critérios próprios advindos deste processo. No
entanto, é importante notar que diversos caminhos foram seguidos antes de se
chegar a este resultado preliminar, ora apresentado. Tanto da seleção, como
das associações observadas. Isto porque a relação investigada homem –
ambiente é um objeto de estudo riquíssimo, no qual, à profusão dos cantos,
timbres e tons, acrescenta-se a façanha de uma antiga e longínqua história de
comunicação e convivência com o homem.
Esta investigação poderia ter sido feita na cidade, ou onde
estivéssemos; em qualquer lugar do planeta, lá estarão os pássaros. A escolha
do Pantanal e da Amazônia nasceu de duas preocupações. A primeira é que
apesar da terça parte da avifauna planetária pertencer a América Neotropical,
o estudo de aves em seu ambiente é ainda pouco desenvolvido no Brasil. A
segunda é que dos estudos desenvolvidos na área específica da ornitologia,
12
13. bem poucos se dedicaram exclusivamente ao estudo da vocalização dos
pássaros.
A escolha do Pantanal e da Amazônia deveu-se em grande parte à
oportunidade aberta pela existência do Arquivo Sonoro Neotropical da 1
UNICAMP, que possibilitou a consulta a partir dos cantos de pássaros ali
registrados, com condições técnicas adequadas para investigação. Por outro
lado, apesar de ser cada dia maior o interesse científico, muito ainda nos resta
conhecer sobre o Pantanal e a Amazônia. De qualquer modo, seria difícil, no
estudo sobre o canto de pássaros no Brasil, passar despercebida a
prodigiosidade e a profusão de cantos daqueles ecossistemas. Uma
verdadeira biblioteca sonora, como referência.
As 23 espécies escolhidas mereceram um destaque especial pó:
melhor representarem a ambiência sonora dos ecossistemas escolhidos
(sonoridade, musicalidade); pelas características onomatopaicas do canto
(toponímia do mundo tupi); por serem as mais conhecidas, mais comuns ou
familiares (popularidade), e pela função ecológica (distribuição de sementes,
controle biológico) e uma atenção especial à qualidade timbrística desses
cantos.
A participação no projeto de pesquisa para o Lp Ouvir, de Tetê
Espíndola e Arnaldo Black, premiação pela FUNDAÇÃO VITAE, em 1990,
possibilitou abertura para o desenvolvimento deste estudo. Os compositores
pretendiam identificar, a partir de experimentações diversas com o canto da
1
A região Neotrópica ( adaptado por Haffer, 1974) se estende do sul do México (20º N) até o Cabo de Horn (57º
S), incluindo a parte meridional não- tropical da América do Sul.
13
14. avifauna, o que definiam como pássaros da comédia, da tragédia e do drama.
A partir de observações diretas em laboratório e em campo, sugeri aos
compositores e elaborei os critérios, que serviram de referência para as
composições do Lp Ouvir e que, posteriormente, levaram à elaboração da
dissertação de mestrado e finalmente a este livro.
Outro motivo da escolha do Pantanal e da Amazônia vai ao encontro
das primeiras observações amadoras sobre o canto dos pássaros, feita em
1975, com o canto da araras da Chapada dos Guimarães, em Mato Grosso . 2
Neste período, a Universidade Federal de Mato Grosso (UFMT) conceituava-se
como UNISELVA, uma das instituições participantes do Projeto Aripuanã
(1973/76), que propunham a lançar bases para conhecimento científico da
Amazônia (Cidade Laboratório de Humboldt), visando ao aproveitamento
racional de seus recursos em consonância com o projeto de integração
nacional. Havia um clima verde aliado ao apelo à causa indígena. Este clima
era disseminado por uma política estatal de regionalização, para a integração
nacional. Inauguravam-se projetos culturais em vária frentes na UNISELVA,
destacando-se: o Museu Rondon (MR), em 1973, voltado para o índio; o Museu
de Arte e de Cultura Popular (MACP/ 1973), e mais tarde, o Núcleo de
Documentação e Informação Histórica e Regional(NDHR/ 1976). A euforia
contagiante pela Amazônia era gerada por grande quantidade de recursos e
investimentos vultuosos que fomentaram projetos grandiosos – todos
componentes do que se convencionou chamar de milagre brasileiro.
2
Em exercícios vocais com o canto das aves, Tetê Espíndola descobrira o timbre agudo de sua voz. Na ocasião,
cursávamos Pedagogia, na Universidade Federal de Mato Grosso (UFMT).
14
15. No entanto, até o momento, a falta de pesquisas que reúnam o
referencial documental da UNISELVA, para uma análise criteriosa, tem
dificultado a compreensão da medida deste ousado gesto instituidor. Tanto a
importância da criação de uma base científica na Amazônia, como a nova
frente do Museu Rondon para a causa indígena, bem como a capacidade de
reunir movimentos culturais, científicos e artísticos, nascentes ou marginais em
Mato Grosso têm sido clivados em avaliações superficiais, reducionistas e por
vezes oportunistas, até mesmo ingênuas.
A UFMT não soube ainda ocupar o território aberto pelo canto da
UNISELVA, não captou esta chance da história, não soube ouvir, renovar e
atualizar conceitos para exorcizar o milagre, dando concretude à inteligência.
Isso impede que se reconheça , de forma adequada, a vocação ambiental da
UFMT de 1970, como uma universidade de e para o ambiente no agora, vinte e
quatro anos depois.
Nesta confusão de homens e causas, enfim dos interesses
mesquinhos, o lado obscuro da academia, todo esforço da causa maior da
construção do homem do Brasil de dentro foi terreno fértil para o rolo
compressor da infindável crise universitária geral. Poucas universidades
tiveram um veio tão rico em suas origens. Há ainda necessidade de identificar
a UNISELVA como um vetor de significações imaginárias e sociais para que se
possa estabelecer como um marco de sementes lançadas. Poucos souberam
cultivá-las com distanciamentos das idiossincrasias ideológicas e particulares,
portanto, não tiveram a sensibilidade de ultrapassar criativamente aquilo que
15
16. as circunstâncias ditatoriais do período não permitiram a produção dos
fundadores, dos primeiros professores, técnicos e estudantes. Mas o canto da
bandeira UNISELVA pode ser reconhecido para continuar ecoando e
motivando crítica e imaginativamente toda a comunidade da UFMT.
Neste contexto é que tem sido despertada a atenção para o grande
potencial biológico do estado de Mato Grosso. Premiado com duas grandes
bacias hidrográficas, a Amazônia ao norte e a do Pantanal ao sul, situado entre
a Cordilheira Andina e o Planalto Brasileiro. Mato Grosso é o estado divisor
destas águas.
Agraciado com nada menos que três ecossistemas: Pantanal,
Amazônia e Cerrado – o destino pulsante de ser o coração da América e com a
marca deste magnetismo geodésico, firmado com a criação de Brasília. A
vocação ambientalista da UFMT de 1972, como Universidade da Selva, deverá
ser firmado de fato.
De julho a outubro de 1990, foram realizadas audições semanais em
laboratório, no Acervo Sonoro Neotropical da UNICAMP, sob a orientação e a
responsabilidade do Prof. Dr. Jacques Vielliard, pesquisador em canto de
pássaros que já realizou o registro de aproximadamente 17.000 cantos nesta
região.
Enquanto ouvia as fitas preparadas no laboratório em audições em
casa, me dedicava à disciplina Nova Teoria da Comunicação, do Prof. Dr. Ciro
Marcondes Filho, que abordava a nova sensibilidade nas chamadas
sociedades pós-industriais, a mediatização da vida pelos meios de
16
17. comunicação e a revolução eletrônica, Marcondes oferecia subsídios para a
discussão sobre a crise dos modelos duais, a crítica da ciência (iluminismo) e o
retorno do místico, como novas formas de neutralização das oposições, num
universo de desaparecimento da realidade e das perspectivas ideológicas.
Em outubro do mesmo ano, formamos uma equipe e realizamos a
expedição Macauã, em Sena Madureira, Acre, durante cinco dias, para ouvir a
ambiência sonora. Neste lugar de matas altas, pousamos nossa esperança na
margem de uma rica troca.
O processo de audição possibilitou a percepção de como o ouvido
urbano é surdo para captar sons sutis, e que a compreensão da nova
sensibilidade passa necessariamente pela mudança dos sentidos e das formas
de comunicação com o mundo.
A audição em si leva à aproximação do ambiente, principalmente por
sua complexidade enquanto sentido. O ouvido é, também, sede do equilíbrio e
da orientação.
Do ponto de vista das Ciências da Comunicação, dentro da linha de
pesquisa escolhida – Comunicação, Arte e Educação- , a questão ambiental foi
compreendida nos matizes que apresenta, como uma preocupação das
sociedades contemporâneas com a qualidade de vida. A sugestão aqui
contida procura, a partir do canto de pássaros, contribuir para experiências que
auxiliem a educação ambiental. No entanto, é importante esclarecer que o
processo de pesquisa e a metodologia não pretenderam desenvolver o que
pode ser identificado como uma pedagogia para audição do canto de
17
18. pássaros, e se as inúmeras estratégias para ação neste campo. Ou seja, foram
indicados alguns caminhos ou pistas (no processo de audição) que podem ser
entendidos como feixe de opções a serem seguidos para o desenvolvimento
de uma ação pedagógica, ou possível modelo pedagógico. Isto porque pode-
se considerá-la uma etapa posterior. O objetivo inicial foi estabelecer uma
aproximação do canto dos pássaros do ponto de vista das Ciências da
Comunicação, hoje restrito à bioacústica. Notou-se que diversos compositores
utilizaram o canto dos pássaros como tema de inspiração, mas a abordagem
aqui proposta busca a compreensão da zoofonia como uma forma de
comunicação entre o homem e o ambiente, tentando compreender os
entraves e as possibilidades deste campo multidisciplinar. Portanto, seria
prematuro determinar um modelo.
O tema proposto situa a pesquisa na fronteira entre o dado e o criado,
ou seja, entre a natureza e a cultura. Ao aproximar-se da bioacústica, descobre-
se uma ciência que ouve a vida como uma linguagem falada antes que pareça
ou independente de qualquer locutor. Para introduzir a comunicação homem-
natureza, procura perceber a sensibilidade humana como articulação de um
desejo constituído diferente e independente do que diz a consciência. Para
aproximar-se da ecologia como uma ciência do meio ambiente, procurou não
se isolar das estruturas naturais, já que a ecologia transforma a extensão
indefinida das construções sociais.
O material sonoro (canto de pássaros) pertence ao Arquivo Sonoro da
UNICAMP e foi utilizado apenas para fins de pesquisa.
18
19. O objetivo é sensibilizar os agentes educativos ou formadores de
opinião, quais sejam: professores, arte-educadores, guias turísticos, agentes
culturais, músicos e outros interessados. O roteiro seguiu as estratégias que se
evidenciaram no processo de audição em laboratório e em campo e teve
como objetivos específicos:
(1) treinar o ouvido para identificar o canto de pássaros em três etapas
de audição;
(2) identificar os critérios propostos: sonoro, ecológico e biogeográfico
durante a audição;
(3) discriminar as diferenças dos tipos de canto e analisar a associação
sugerida: canto- instrumento musical, e
(4) aproximar(diferente de classificar) da ambiência sonora a partir de
audições em campo: no Pantanal e na Amazônia.
A educação ambiental é hoje uma tarefa não só da escola, mas de
toda a sociedade, a fim de estimular a compreensão dos limites e
possibilidades da ação humana para a elaboração da cidadania planetária.
Diante da horizontalidade azul do Pantanal, que funde céu e terra num
ritmo de cheia e vazante, e da verticalidade verde da Amazônia, num ritmo
caleidoscópio de umidade e calor, boa parte do potencial musical da cultura
brasileira, na terra e no ar, está presente nos animais que sonorizam a
19
20. paisagem. Como os demais ecossistemas do planeta, estes trazem muitas
perguntas sem resposta. Porém, mais que respostas mecânicas, emergentes
de soluções racionais e modelos prontos, nos cabe compreender, antes,
nossas próprias inquietações sobre estes lugares, numa era de dissensos e
incertezas, repleta de caminhos e igualmente de obstáculos.
A ecologia como disciplina biológica adquire importância para as
Ciências Sócias quando os conflitos da relação homem-natureza mudam de
polo de reflexão para a relação homem-meio ambiente. Ao nível global esta
compreensão só se dá, efetivamente, neste século. Assim, todo o esforço do
homem de se distinguir da natureza e de sobrepujá-la com sua cultura, é
extinto como uma espécie de condenação e substituído pela necessidade de
interação, que começa a ser largamente estudada. A natureza passa a ser vista
antes como ambiente, embora os conflitos biológicos e sociais não se
confinem nem se restrinjam mais entre si.
Os dons da natureza são exortados de seu lado benéfico (que justificou
todas as atrocidades e excessos cometidos pela Humanidade contra seu
ambiente). Assim, os mecanismos desconhecidos dos equilíbrios sociais e
biológicos se libertam de leis fixas e estáticas e passam a se aproximar do
dinamismo e da complexidade frágil de viver, do sobreviver.
A natureza é generosa quando fala da vida. Cantos também contam as
estórias de seu próprio som – estão pelo ar, para ouvir e sentir, compreender e
investigar.
20
21. Avisos, alarmes. A Terra engloba uma pluralidade sonora monumental:
a geofonia- como universo sonoro que contém as galáxias dos ecossistemas,
que possuem dentro de si inúmeros sistemas sonoros tais quais os sistemas
estelares, solares e planetários, em escalas diferentes e muitas vezes
inaudíveis ao ouvido humano (o infra-som). A zoofonia pode ser vista como um
destes sistemas, onde o canto dos pássaros se integra.
Em 1829, Hercules Florence transcreveu para notas musicais, durante a
Expedição Langsdorff, a vocalização de vários animais, inaugurando um novo
terreno de conhecimento que nomeou zoophonia. A preocupação do
pesquisador não se prendia apenas ao aspecto científico, hoje objeto da
bioacústica, mas acreditava, também, na possibilidade de expressar, por meio
de partituras musicais especialmente elaboradas com códigos próprios, o
sentimento de estimulação da sensibilidade humana despertado pela
vocalização dos animais em seu ambiente. Na época, a elaboração de
partituras consistia na única forma de registro das vocalizações dos animais.
Em suas observações sobre a zoofonia, Florence demonstrou a importância da
formação de novos campos de conhecimento. Seus estudos são fruto de uma
mente inquisidora e sensível, que tanto expressa o rigor cientifico quanto a
vitalidade criativa.
Durante as etapas da pesquisa, foi possível notar que escala ocidental,
ou qualquer outra criada pelo homem, não é adequada para demonstrar toda
a gama de tons e timbres da fauna planetária.
21
22. As velhas acústicas naturais oferecem uma outra dimensão para a
compreensão dos sons à nossa volta, uma vez que hoje dispomos de
tecnologia necessária para bem investigá-los. Um terreno pouco conhecido e
estudado, onde tanto os ritmos dos ecossistemas, quanto os ritmos humanos,
são afetados pelo impacto ambiental no compasso da multissinfonia da vida,
seus sinais, seu movimento, enfim, sua harmonia dissonante.
Pássaros em viveiros ou animais em zoológicos não favorecem as
condições de reprodução e só podem oferecer uma pálida representação do
que é a vida em seu próprio ambiente: nem a dieta, nem a cor, nem as
características comportamentais são as mesmas, embora venham se
intensificando formas de controle das populações de diversas espécies criadas
em cativeiro, para reintegração posterior em seus habitats naturais.
Também os Acervos Sonoros, por mais sofisticados que sejam seus
recursos tecnológicos para o registro e reprodução, apresentam limitações
metodológicas para a compreensão da ambiência sonora.
Em todos os campos do conhecimento científico correm-se os riscos
da estória de João e Maria que, na ânsia da busca dos elos perdidos com o
passado, passaporte para o futuro, e obrigados a seguir um caminho que não
foi escolhido previamente (condicionamento biológico e social), tiveram o
cuidado de marcá-lo ingenuamente com migalhas de pão.
22
23. PÁSSAROS (para uma introdução)
Costuma-se dizer que a imaginação tem asas . O voo dos pássaros
predispõem associações que simbolizam a comunicação entre o céu e a terra.
Mensagem, presságio, avisa-nos sobre mudanças, perigos e outros fenômenos
naturais. Em todas as religiões e culturas, o pássaro é sinônimo de sagrado.
Anjos são homens com asas, mensageiros, protetores. Representam os
estados superiores do ser, da alma e da imortalidade.
De certo modo, todas estas associações estão ligadas às
potencialidades destes ágeis seres em relação à distribuição de sementes e à
polinização. Basta pensarmos que, se todas as aves fossem extintas de uma só
vez, os insetos tornariam a vida humana impossível em poucos dias.
Como animais voláteis, percorrem grandes extensões o dia inteiro e
necessitam de quantidade de comida proporcional ao tamanho de seu corpo.
Com idade aproximada de 150 milhões de anos, sobreviveram ao Cretáceo e,
de lá pra cá, proliferaram velozmente.
Ao deixar sua marca semi-réptil suavemente desenhada no barro, há
cerca de 140 milhões de anos, o arqueoptérix (Archaeopteryx) relata-nos a
história de sua característica peculiar: penas.
Esse vestígio suave, mas consistente (descoberto em 1861), a certeza
de que já não se tratava de um verdadeiro réptil, tornava indiscutível o elo, não
mais perdido, entre os répteis e as aves. Cabeça de lagarto, mandíbulas
23
24. providas de dentes, delgada cauda e vértebras móveis, em tudo o esqueleto
semelhante ao de um réptil, com ossos e asas terminando em dedos finos, não
fundidos e com garras.
Se a vida na Terra abrange dois bilhões e meio de anos, as aves são
criaturas recentes. Os Paleontólogos acreditam tenham elas se originado dos
tecodontes, animais possuidores de longos membros posteriores, sobre os
quais corriam semi-eretos, usando a longa cauda para manter o equilíbrio.
A era atual, conhecida como Idade dos Mamíferos, surgiu em oposição
à Idade dos Répteis, que chegou ao fim com o desaparecimento dos
dinossauros e pterossauros. As aves derivam do tronco dos répteis, surgiram
pouco depois dos primeiros mamíferos. Um elo entre as Idades.
Se lembrarmos que os dinossauros reinaram na Terra e estão extintos
há 60 milhões de anos, vislumbramos uma encruzilhada onde homens e
dinossauros se espreitam, no voo do tempo, nas asas emplumadas das aves.
As aves em evolução tiveram que romper a barreira reptiliana que impedia o
vôo verdadeiro para que pudessem se tornar veículos da herança dos
dinossauros e do advento dos mamíferos.
As aves atuais, adaptando-se e transformando-se, ocuparam
praticamente todos os habitats disponíveis do globo. Por essa versatilidade são
notáveis animais vertebrados, os mais conhecidos e estudados.
Já na tradição bíblica, Noé aparece como o primeiro criados de
pombos. Os egípcios criaram pombos para a alimentação e, provavelmente,
para a transmissão de mensagens (3.000 a.C.). Não se sabe, exatamente,
24
25. quando foram usados pela primeira vez como meio de comunicação a longa
distância. Sabe-se que Júlio César mandava por meio deles notícias de suas
vitórias. No oriente, foram também utilizados como meio de comunicação. Só
na Segunda Guerra Mundial, os pombos-correio foram suplantados pelos
equipamentos eletrônicos.
Fica aqui um convite e um aviso. Refletir sobre pássaros é exercitar a
liberdade. De saltar sobre assuntos, arriscar curiosidades, tecendo ligações,
aninhando coisas aparentemente desconexas. É afastar para avaliar de longe,
é pousar para observar com firmeza, é migrar para o continente de diversas
ciências, na busca de alimento para seguir refletindo, exercitando a própria
natureza do conhecimento, que em si não tem fronteiras.
Os ornitólogos costumam anilhar (anéis de metais e outros materiais)
para monitorar as rotas cíclicas das aves migratórias; assim, algumas
conexões e associações foram aqui anilhadas para melhor compreensão dos
desdobramentos do processo da pesquisa.
Enfim, apesar de a proposta do tema não possuir bibliografia
específica, à medida que as observações foram se efetuando no decorrer da
pesquisa, buscou-se a fundamentação necessária na bioacústica, na
ornitologia, comunicação, ecologia, antropologia, sociologia e na música, de
acordo com os objetivos propostos.
Pássaros têm a ver com a comunicação não só porque voa – ou
porque voar requeira uma aerodinâmica própria que, de Ícaro a Santos
Dumont, até as naves espaciais e as esportivas asas delta, inspiram o homem
25
26. a libertar-se do peso da gravidade – mas também porque voar significa
conhecer detalhadamente o espaço terrestre. Nem tão somente porque emite
alertas naturais, mas porque, além de tudo isso, canta. O canto é a mensagem,
sobretudo porque nos sensibiliza.
O filósofo grego Heráclito observou o paradoxo do pensamento que
pretende imobilizar coisas móveis, no limite de definições fixas.
Se pudermos compreender a importância do cuidado das áreas
verdes, porque nelas vivem seres especialmente notáveis pelo canto e pelo
constante ir e vir por sobre praças, jardins e ruas arborizadas, estaremos mais
próximos do meio-ambiente.
Talvez possamos enxergar melhor o verde não como escudo da vida,
porque ouvindo-o estaremos em sintonia com sua celebrização. Ouvir
pássaros é notá-los, e notá-los é deixar de perceber o verde auto-
ecologicamente. Por sua inquietude expressiva, os pássaros põem a ecologia
em movimento.
I. Ouvir
Desde o início deste estudo, verificou-se que a análise das formas de
ouvir ao fundamentais para a comunicação. Do homem em seu ambiente,
porque implicam profundo conhecimento foi originalmente desenvolvido pelas
espécies não-humanas que destacam as aves, depois dos insetos, como os
26
27. seres vivos vertebrados mis bem dotados. As culturas humanas chamadas
primitivas, por necessidade de adaptação e sobrevivência, também
desenvolveram, como veremos, formas de conhecimento das diferenças
ambientais a partir da percepção auditiva.
As aves desenvolveram complexo sistema de comunicação sonora.
Dentre eles, o principal é o canto territorial que perpetua as espécies. Acredita-
se que estes sistemas estejam alicerçados numa eco-lógica.
Por outro lado, as culturas humanas desenvolveram-se na defesa e
contra a natureza. Nisso todas as formas de civilização agem de maneira
semelhante. Foi justamente por causa da percepção dos perigos com que a
natureza ameaça, que a civilização foi criada, a qual também, entre outras
coisas, se destina a tornar possível a vida comunal, pois a principal missão da
civilização, “sua raison d’être real, era nos defender da natureza” , ou seja, 1
defender-nos contra a eco-lógica.
A civilização não se detém apenas na tarefa de defender o homem
contra a natureza, mas como afirma Freud prossegue por outros meios. Trata-
se, portanto, de um múltipla tarefa.
O pesado fardo de sacrifícios que se espera dos indivíduos a fim de
tornar possível a vida comunitária, faz com que a civilização seja defendida,
num plano, contra o próprio indivíduo e, em outro, contra a natureza.
Este é um dos aspectos que se evidencia na comunicação com o
ambiente. A mesma natureza que sinaliza os perigos a partir do som que avisa
1
Sigmund Freud. O futuro de uma ilusão. Rio de Janeiro: Imago, 1974, p. 26.
27
28. terremotos, erupções vulcânicas e a proximidade de inundações perceptíveis à
longa distância, a chegada de tempestades e ciclones arrasadores, em outro
extremo, ostenta o poder de se fazer presente e ativa através do silêncio das
doenças a cada dia mais complexas e, por último, do enigma da morte, como
o fim do som, o silencio radical.
As vozes da natureza que avisam, protegem, também coíbem e
condenam ao mais total dos silêncios. O poder inexorável do som, leva ao
terror do som. E cada vez mais a civilizações fazem calar o poder dessas vozes,
ouvindo outras em seu lugar.
A voz da salvação é a voz da civilização e a de todos os instrumentos
tecnológicos “inclusive os musicas” que esta ou estas, em qualquer estágio
civilizatório fazem ouvir. Também as vozes “in off” dos mitos, das religiões e da
política.
As vozes dos gênios da humanidade podem ser consideradas as
únicas vozes que ouvem detalhadamente: portanto destoam das vozes que
ressoam. “tudo que é sólido desmancha no ar” como o som. A solidez do som
2
é apenas perceptiva e não a sua essência como fenômeno físico.
O papel da ciência é de ser a voz questionadora, fundamenta-se no
diálogo entre a fala das teorias e a voz dos dados observados ou tirados da
2
Baseado nesta frase de Marx, Berman desenvolve sua crítica da modernidade, investigando a dialética da
modernização de um lado e do modernismo do outro ( dissonância de vozes), que no séc XX leva os processos
sociais a um constante turbilhão e a um perpetuo “vir a ser”. Refere-se ao “ ritmo afogueado” compartilhado por
Marx e Nietzsche como “uma voz que ressoa como autodescoberta e auto-repúdio, como auto-satisfação e auto-
defesa”, acreditando na capacidade bem sucedida de conhecer a dor e o terror. Marshall Berman . Tudo que é
sólido desmancha no ar. São Paulo: Companhia das Letras, 1986, pp.16, 22-5.
28
29. experiência. Assim, a racionalidade cientifica pode ser definida na ressonância
– um acordo orientado entre a voz dessas teorias e desses dados.
Em cada grande momento tecnológico da civilização, vamos encontrar
outro funcionamento das palavras, que se fazem acompanhar tanto por uma
política como por uma razão nova. Em nossa época, numa cultura altamente
visual, é tão difícil comunicar propriedades não-visuais das formas espaciais
“quanto explicar a visualidade dos cegos” . 3
Freqüentemente, nos referimos a coisas ouvidas como coisas vitais.
Um exemplo da necessidade de dar ênfase visual ao que ouvido encontramos
na própria bioacústica. Para demonstrar que a “eficiência de propagação de
uma fonte emissora próxima do solo é baixíssima, devido à grande absorção
de energia sonora pelo solo e outros gradientes atmosférico, ocorre o que
chamamos como zona de sombreamento (shadow zone) 4
Um outro exemplo encontramos na definição de “ruído branco”. O som
do mar é considerado um ruído branco porque oferece durações oscilantes
entre a pulsação e a inconstância num movimento ilimitado, com alturas em
todas as frequências, das mais graves às mais agudas. Por causa das alturas e
frequências, acaba sendo um ruído, para usarmos um adjetivo do ouvido,
brando.
Mas, a adjetivação visual das propriedades sonoras não pára por aí.
Sons ouvidos são frequentemente referidos como sons visíveis. È mais do que
comum usar expressões, como : “-Você viu o que fulano disse?” , quando na
3
Marshall MacLuhan : os meios de comunicação como extensões do homem. São Paulo, Cultrix, 1964, p. 347.
4
Hernán Fandiño Marino . A comunicação sonora do anu-branco. Campinas: Unicamp, 1989, p. 97.
29
30. verdade acabamos de “ouvir” estas declarações. O próprio texto musical, ao
invés de ser apresentado em termos sonoros é substituído por comandos
óticos, “espécies de sinais de trânsito” 5
Adorno observou que os ouvintes costumam não dar atenção ao que
ouvem, mesmo durante o próprio ato da audição. Sempre se acreditou que,
como as demais formas de expressão humana, a música possuísse a ação
saneadora e educativa. No sentido disciplinar, Platão propunha um programa
ético-musical que possuísse a característica de “ação de purificação Ática”, ou
seja, uma campanha de saneamento de estilo espartano. 6
No sentido em que foi realizado o processo de audição do canto de
pássaros, a proposição foi captar, com o ouvido, os sons, e tentar identificá-los
sonoramente ou musicalmente. Apesar de as formas de audição serem
permeadas pela cultura, pelo ambiente, incluindo o gosto musical e a própria
acuidade auditiva (capacidade de ouvir medida em decibéis), a audição é o
sentido-suporte que leva à profundidade do que é vivenciado musicalmente.
Portanto, o treino da audição deve ser anterior à própria educação
musical. Antes de ouvir música, seja de qual tipo for, é necessário, sobretudo,
aprender a ouvir.
Nos processos de alfabetização, vamos encontrar ema ênfase nas
técnicas de audição. As crianças são iniciadas, na mais tenra idade, na
educação musical, antes de aprenderem a discernir sons intensos, de sons
5
Theodoro Adorno . Fetichismo na música e na regressão da audição, Textos escolhidos XLVIII. São Paulo:
Abril., 1967, p. 192.
6
Op. cit. ,p. 174.
30
31. frequentes, o colorido timbrístico dos sons, o sentido do ritmo e da passagem
dinâmica para a melodia. 7
Decididamente, não estamos numa época de ouvir. A psicologia dos
ouvintes é regressiva, porque está desvinculada de qualquer relação com a
música; dirige-se, antes, ao sucesso acumulado comandado pela mídia, não se
expressa mais pela espontaneidade ou subjetividade. Assim, Adorno anuncia a
desaurização da música, cuja aparência externa cede em favor do puramente
lúdico.
Mas, não podemos compreender a aparência externa da música se
não pudermos compreender que o próprio som não tem nada a ver com a
aparência.
Tudo que compreendemos como aparência não tem nada a ver com
a música ou com as músicas. A performance da obra musical erudita há muito
substituiu o lugar original da música. Visa a identidade entre o intérprete e a
obra, entre o intérprete e o ouvinte, levando, finalmente, a ilusão ao próprio
intérprete e ao ouvinte da criação da obra no ato da execução. 8
A noção de que existe uma música séria e uma música ligeira não
satisfaz, não é uma percepção suficiente que possamos ter do próprio som
7
Sobre educação musical O som e o sentido, São Paulo: Companhia das Letras, 1989, p. 19) José Miguel
Wisnick afirma que a pedagogia musical costuma dar nenhuma atenção a essa passagem, a essa correspondência
entre diferentes dimensões vibratórias, e perde aí todo um horizonte de insights possíveis extremamente
estimulantes para fazer e pensar músicas.
8
Edward Said. Elaborações musicais São Paulo: Imago, 1992, p. 142.
31
32. eletrônico e deste som como matéria-prima da música, seja ela séria ou
ligeira. 9
A música, como trilha-sonora do cinema, tem uma aparência, assim
como o vídeo-clip investe exclusivamente na aparência visual da música ao
invés de investir na própria música. A pior faceta do momento, das chamadas
sociedades pós-industriais, é investir na aparência de tudo, e , definitivamente,
pretender transformar o mundo na aparência, enquanto questões seculares
tais como o racismo, as desigualdades, a violência, a destruição ambiental
continuam a desafiar os caminhos da civilização e da civilidade.
O tipo de audição que se tem na música-trilha ou no clip tem a ver
com o audível apenas na aparência. É o produto de uma sociedade que
precisa se contentar com um mundo aparente, nele viver como se fosse real.
Não que se condene a visualidade como superfície, já que ela pode
investir na visibilidade. A conexão som-imagem em nossa época investe na
redução da imagem ao visual, assim como na redução do som ao áudio. De
forma alguma promove a ampliação da imagem como visibilidade ou no
audível do som; ao contrário, funde os dois sentidos para promover um
terceiro, o da aparência, que substitui o lugar da essência de ambos os
sentidos. Uma sociedade que não satisfaz as necessidades humanas
essenciais deve preencher esse vazio com som e imagens e todo um recheio
de necessidades aparentes e virtuais, para dissimular sua incapacidade de
9
Sobre a música eletrônica, observe-se que a orquestra sinfônica tradicional, em comparação, pode ser tida como
uma máquina de instrumentos separados, que produziam o efeito de uma unidade orgânica. Com o instrumental
eletrônico, começa-se com a própria unidade orgânica, com um fato imediato de sincronização perfeita, fazendo
com que a busca de efeitos de unidade orgânica careça de maior sentido. Marshall MacLuhan, op. cit. , p. 400.
32
33. resolvê-las essencialmente. Resolve-as não só as ignorando, mas criando
outras em seu lugar. Como se pode apenas dissimular o lugar da essência, o
vazio é indisfarçável.
De um outro lado, existe uma impossibilidade técnica. É recente a
conexão som-imagem. Vive ainda sob o impacto do fascínio da revolução
eletrônica. Os efeitos implosivos desta revolução são deslocalizados no tempo
e no espaço.
Por um lado, leva à especialização acelerada e por outro abre
territórios para a invenção de códigos e combinações. No que tange o
conhecimento musical, percebe-se que não está mais necessariamente
vinculado ao domínio da escala e das regras musicais tradicionais. A
impossibilidade técnica é também uma questão de tempo acelerado.
Falar de som sem recorrer à imagem é praticamente impossível;
principalmente com a palavra escrita. Deste modo, vamos recorrer a uma
imagem que se assemelhe ao desenho invisível que o som faz no ar.
A mudança profunda que estamos vivendo funciona tal qual uma
pedra lançada na água, se faz perceber apenas na superfície, no movimento
circular geométrico. É ela que se agita, é ela que levará ao abismo ou ao
aprofundamento deste gesto. Quanto mais fundo for a pedra, maior será a
ressonância do gesto na superfície.
33
34. Ou-vendo
Desde a exploração do Novo Mundo, os viajantes observaram com
espanto e decepção, nossas selvas majestosas. O cenário esplendoroso
sugeria uma fauna exuberante, animais fantásticos , de grande porte como os
10
do continente africano. Assim, o “olha ávido dos conquistadores a procurar no
emaranhado das nossas selvas a figura gigantesca de qualquer animal que
lhes lembrasse o elefante ou o rinoceronte, ou na vastidão dos nossos
campos, a mancha movediça do que poderiam ser bandos de búfalos, zebras
ou antílopes.” 11
Ao contrário, o ambiente das florestas tropicais não facilita a
movimentação das plantas forrageiras. A densidade da floresta impõe a vida
nômade e solitária, afasta o gregarismo ligado aos rebanhos. Se comparada
aos mamíferos, a grandeza da avifauna Neotropical é significativa. Para cada
seis espécies de aves, encontramos uma espécie de mamífero. A América do
Sul é o continente das aves.
O testemunho de ouvir está presente nas culturas indígenas como
tradução do que o ambiente à volta comunica. Ao selecionar nomes tupis de
algumas aves, a intenção foi identificar tipos semelhantes de canto a partir das
10
Sobre os seres imaginários, ver BORGES,Jorge Luis ; GUERRERO,Margarita. O livro dos seres
imaginários.Porto Alegre: Globo, 1981.
11
Gastão Cruls . Hiléia amazônica. Rio de Janeiro: Companhia Editora Nacional, 1944, p. 60.
34
35. características onomatopaicas. Chama atenção, a toponímia da língua tupi,
por oferecer pistas detalhadas do território e,e portanto da cartografia.
A língua Tupi, Nheêngatu, Língua Geral ou Língua Brasílica, é um
campo de investigação científica para a biogeografia e para a ecologia
humana. Os topônimos são sempre descrições ricas, traduzindo a fina
observação ao incluir, no nome do lugar, as características dele; associações
com o tipo de terreno, clima e até muitas vezes o som dos lugares, por
exemplo: Amazonas = Ama(chuva) + ssununga (barulho ou ruidoso). Podemos
encontrar nomes de aves, fora aqueles onomatopaicos, relacionados a um rio,
por exemplo: Anhembi = rio das anhumas ou anhimas – como eram
chamadas antigamente. Sem dúvida estas associações sugerem pistas para a
observação de inúmeras relações biogeográficas, fitogeográficas e outras que
de certo modo faziam parte do conhecimento destas nações, sinalizadas na
própria toponímia da língua.
A região Amazônica e o Pantanal somam centenas e milhares de
espécies que junto ao Cerrado formam um continente para a biodiversidade. 12
Mesmo assim, toda essa fabulosa fauna e flora foi nomenclaturada pelas
nações indígenas até suas ínfimas variedades.
A audição como reconhecimento espacial implica conhecimento
minucioso da geografia, como forma de equilíbrio com o meio ambiente a
partir da identificação sonora. A audição biaural (dos dois ouvidos) só foi
12
Diversidade biológica significa a variedade dos seres vivos (animais, vegetais ou microorganismos). Não se
refere apenas à diversidade das espécies, mas também às variações entre indivíduos de cada espécie que são
transmitidas hereditariamente (diversidade genética) – assim como às variações que ocorrem entre diferentes
habitats naturais (diversidade de ecossistemas).
35
36. devidamente estudada e reconhecida em 1934 por cientistas da Universidade
de Harvard. O homem tropical utilizava, instintivamente, este potencial para
calcular distâncias, orientar caminhadas e prever perigos de longe. Mas
quantos viajantes não morriam e ainda morrem na inanição dentro da
floresta? Morte por inanição, claro, do sentido da audição – falta de
sensibilidade auditiva para se orientar no monocromatismo da floresta.
As culturas pré-letradas que contrastam “os caracteres francamente
divergentes da palavra escrita e falada podem hoje ser mais bem estudados” ,
graças ao contato íntimo que com elas temos hoje. Diz MacLuhan que um 13
único nativo alfabetizado de seu grupo, ao falar de sua função de leitor de
cartas para os outros, sentia-se impelido a tapar os ouvidos com os dedos,
durante a leitura, para não violar a intimidade das cartas. Sem a “pressão
visual” da escrita fonética, a palavra falada não permite extensão e a
ampliação da força visual requerida para os hábitos do individualismo e da
intimidade. O autor aponta o filósofo francês Henri Bérgson como
representante de uma tradição de pensamento que considera a língua, como
uma “debilitadora dos valores do inconsciente coletivo”. Bergson opina que
sem a linguagem a inteligência humana teria permanecida totalmente
envolvida nos objetos de sua atenção. Esta linha de raciocínio acredita que a
14
fala supera o homem e a humanidade do inconsciente cósmico, e como
13
Ver Marshall MacLuhan. Os meios de comunicação como extensões do homem, São Paulo: Cultrix, 1964,p.
96.
14
A linguagem é para a inteligência o que a roda é para os pés, “permite deslocar de uma coisa para outra com
desenvoltura e rapidez, envolvendo-se cada vez menos. Projeta e amplia o homem, mas também divide suas
faculdades, a consciência coletiva e o conhecimento ficam diminuídos por esta extensão técnica da consciência
que é a fala”. Op. cit. , p. 98.
36
37. “extensão” , manifestação ou exposição de todos os nossos sentidos a um só
tempo, a linguagem sempre foi considerada a mais rica forma de arte
humana, posto que a distingue da criação animal.
15
Com os descobrimentos, inaugura-se o período dos grandes relatos
escritos sobre trópicos. Eles apresentam uma clara oposição entre o visto e o
ouvido. 16
O olho está a serviço da “descoberta do mundo”. Existe uma
verdadeira “vertigem de curiosidade” está a serviço do que está oculto.
A vertigem da curiosidade desloca os sentidos, o olho que a tudo
devassa também fareja a riqueza camuflada, desconhecida. Os sons ouvidos
são como fantasmas – inarticulados, ruídos sem conteúdo inteligível -, são
“chamados fora da órbita do sentido” – sons sem referência na memória. O
17
impacto visual da fábula ofusca impedindo a visibilidade, o delírio do olho a
serviço da escrita promove o deslocamento fracionando o mundo dos
sentidos.
Com os “descobrimentos” inaugura-se o período dos deslocamentos. A
Europa ocidental (XVI ao XVIII) se deslocaliza. Esta deslocalização generalizada
está na base das clivagens sociais que acompanham o nascimento de uma
política e de uma razão nova, que a partir dos relatos de viagem “engendram
15
Em Antropologia Estrutural (Rio de Janeiro, 2. ed. 1985, pp. 77-83; cap. III, Lévi-Strauss afirma que, de
todos os fenômenos sociais somente a linguagem parece presentemente suscetível de um estudo verdadeiramente
científico, que explique a maneira pela qual ela se formou e preveja certas modalidades de sua evolução ulterior
16
Em A Escrita da História (Rio de Janeiro, 1988, pp. 21-41, “Etnografia, A oralidade e o espaço do outro:
Léry”) Michel de Certeau mostra a pressão da escrita como uma energia demolidora dos próprios estatutos da
etnologia. Demonstra a oposição entre o visto e o ouvido dos relatos de viagem, o “face a face do descobridor,
vestido, armado, cruzado e da índia nua”; - o desnudar sem compreender.
17
As estruturas do sentido “projetadas nas diversas línguas, são tão diversas como os estilos na moda e na arte”.
Cada língua materna “ensina aos seus usuários um certo modo de ver e sentir o mundo, um certo modo de agir
no mundo e que é único.” Marshall MacLuhan , op. cit. P. 98.
37
38. um outro funcionamento da escrita e da palavra”. 18
Esta verdadeira
compulsividade pela descoberta foi reforçada no século XVIII, veio favorecer a
“expansão ilimitada do domínio racional”. 19
Ou-vindo
Na caça, na transmissão de sinais e defesa de seu território é costume
antigo entre indígenas a utilização de pios para arremedar certas aves,
sobretudo os tinamídeos. Geralmente são aves que cantam à noite, assim, o
3
arremedo do canto noturno destas aves servia à emboscada – quando o
invasor era surpreendido na escuridão.
Esta antiga arte de defesa demonstra que, a seu modo, os índios
desenvolveram formas de observação que auxiliaram na diferenciação dos
diversos chamados, identificando as características comportamentais das aves
pelo canto e pela vocalização. O arremedo dos pios indica uma compreensão
da relação canto-defesa de território, que, assim, era utilizado para os mesmos
fins.
18
Michel de Certeau, op. cit. P. 213.
19
Ver , CASTORIADIS,Cornelius. O mundo fragmentado: as encruzilhadas do labirinto 3. Rio de Janeiro: paz
e Terra, p. 96.
20
Aves pertencentes a uma ordem típica das Américas (Neotrópico), possuem uma família com nove gêneros
divididos em diversas espécies e subespécies. Carne saborosa, são características: o esterno bem desenvolvido e
capacidade de voar limitada pela pequena envergadura das asas. Terrícolas, vivem exclusivamente em matas ou
campos. São os conhecidos nhambus, perdizes e codornas.
38
39. A função do canto territorial das aves é processada durante longos
períodos com intervalos regulares; estas emissões independem de uma
estimulação externa. Isto é, o canto territorial de aves é dado constante na
4
ambiência sonora das paisagens. Vai daí, justamente, a utilização por índios
deste tipo de emissão, em situações de defesa de território, pois a chance de o
invasor identificar estes arremedos é quase nenhuma.
No continente das aves, o homem ou qualquer outro mamífero sempre
foram minoria. E talvez esta percepção tenha sido inata entre as grandes
nações tropicais que partilham este território, mesmo antes da chegada do
invasor. É possível que, ao observarem a grande quantidade e qualidade de
aves, em sua faina diária à busca de alimento, atraídos pelo canto ( o que
permite a localização) descobrissem territórios favoráveis (de caça e pesca)
para o desenvolvimento de suas culturas. Não é mero acaso, a importância
das aves na cosmologia indígena, na arte plumária , na arte de defesa.5
A ideia que supõe a América Neotropical antes do século XVI como
continente que vivia na plenitude de sua natureza exuberante e tórrida, onde o
homem tropical em suas nações e tribos numerosas vivia com amplo conforto
e plena liberdade espacial para o desenvolvimento de suas culturas, vai de
encontro à base dos sentimentos que condenam e restringem a colonização
como um processo brutal de escravização, opressão e clivagem. A conquista
territorial levada a cabo por espanhóis e portugueses, sem negar as
21
Ver Hernán Fandiño, op. cit. , p. 107.
22
Haja vista a técnica da tapiragem, pela qual os índios modificavam ao seu gosto a cor das penas dos pássaros
em geral.
39
40. atrocidades e violências cometidas, acabam escondendo outros elementos
que insistem em ficar de fora.
A diversidade ecológica guarda um destino submerso no qual a
monumentalidade da riqueza natural sempre fez frente de igual altura, senão
de maior envergadura, aos processos sociais e culturais. Sem dúvida a
biodiversidade contribuiu e contribui para que, apesar dos feitos conseguidos,
do jugo e da destruição de boa parte dos sistemas tradicionais de
sobrevivência de seus povos nativos, continue sendo a América Neotropical a
pátria planetária das possibilidades, pela qualidade e quantidade de seus
ecossistemas.
Não havia aqui antes da chegada dos colonizadores nada semelhante
à harmonia . Pelo menos a harmonia como costumamos compreendê-la. As
6
dificuldades e limitações ambientais obrigavam à vida nômade, desenraizada.
Os territórios de caça de animais de que porte. No mosaico das grandes
sombras florestais da mata Atlântica à Amazônica, a vida se desenrolava entre
os perigos e a lentidão do tempo gotejado. Algumas tribos conseguiam se fixar
em litorâneas e menos acidentadas, ou próximas a manguezais. É sabido que
do lado oriental da Amazônia, próximo à região dos Yanomamis, os rios são
considerados famintos . A vida nestes territórios é de diário desafio.
7
Tal qual pássaros, as tribos partilhavam este território que impunha
ritmos de constantes deslocamentos entre as grandes estações de cheia e
23
Ver na epígrafe a mensagem que Lévi-Strauss nos deixou sobre as “harmonias perdidas” e o timbre original do
tempo, op. cit.,p. 139.
24
Ver documentário de Rondon sobre a expedição Cuniná, que revela a decepção da pobreza da fauna
amazônica. Conferências. Rio de janeiro, 1916.
40
41. seca. A disputa pelos territórios que impunha ritmos de constante movimento,
lentos cíclicos entre as grandes estações de cheia e seca. A disputa pelos
territórios de caça favorecia o surgimento de tribos guerreiras que
escravizavam outras menos desenvolvidas na arte da guerra silenciosa dos
pios e outros sinais sonoros. Menos desenvolvidas na arte da zoofonia.
O descobrimento da América foi fundamental para o desenvolvimento
das ciências naturais e antropológicas. Nos fins do século XVII, a botânica era
descritiva; consistia unicamente na classificação de espécies. Com as
expedições científicas, as relações entre os caracteres climáticos, junto às
complicações dos botânicos, se avolumaram de tal modo que houve uma
“verdadeira revolução no domínio da taxinomia”. Isso contribuiu, diretamente,
8
para o aparecimento da ecologia como disciplina da biologia.
Como vimos, o continente das aves é sobretudo o da grande variedade
de vegetais que, por sua vez, está diretamente relacionada com a riqueza da
avifauna: a ecologia surgiu da geografia das plantas. 9
Mas, até hoje, é incômodo admitir que formas de observação da
natureza, das chamadas civilizações primitivas, possam estar na base da
formulação da biogeografia e da própria ecologia, formulada mais adiante.
Evidentemente, a grande quantidade de espécies vegetais classificadas iam
acompanhadas não só de seus nomes, mas também de outras informações
25
Ver .ACOT,Pascal , História da Ecologia, Rio de Janeiro: Campus, 1990, p. 13.
26
“Onde se vê que a geografia vegetal do século XIX, integrando no seus desenvolvimento os métodos e
resultados de disciplinas vizinhas, constituiu o quadro conceitual da elaboração dos conceitos centrais de
ecologia”. Ibid
41
42. fornecidas pelos próprios “habitantes” dos locais onde eram encontradas,
informações dobre o clima, sobre a geografia, que serviam para compor um
panorama detalhado. As teorias que expandiram a noção da Amazônia como
um grande vazio, isolado, perdido na imensidão infestada de selvagens, não
conseguem esconder este paradoxo.
O vazio, na verdade, estava ocupado por numerosas tribos. Sensíveis
foram os contrastes fornecidos por estes grupos ambientados com a natureza 10
tropical e estrategicamente localizados, que se movimentavam com destreza
por todo o complexo continental, ou parte dele, convivendo, intimamente, com
a textura da terra e conhecendo precisamente suas mudanças climáticas.
Grupos que possuíam compreensão diretamente do tempo e do espaço, o
ontem e o hoje, e o próximo ou distante. Enfim, homens que não tinham para si
nada de sui generis: grupos organizados, com seus conflitos próprios,
convivendo com tudo aquilo que para o colonizador ou naturalista viajante era
um imenso e tenebroso vazio.
Na verdade o desconhecido não foi apenas impacto entre o civilizador
e o civilizado; mais para um do que para o outro, existiram formas de interação,
embora isso nem sempre seja admitido. O conceito sobre as culturas
“primitivas” continua contaminado de equívocos.
27
Sobre o caráter ambíguo da noção de natureza entre os povos ditos “primitivos”. “A natureza é pré-cultura e
também subcultura, o terreno no qual o homem pode entrar em contato com seus ancestrais, os espíritos e
deuses”. Portanto, na noção de natureza há um componente “sobrenatural” e esta “sobre-natureza está
incontestavelmente acima da cultura, como a própria natureza abaixo dela” (Lévi-Strauss, Antropologia
estrutural dois, cap. XVII; B, “O respeito pela natureza”). Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro., p. 325.
42
43. Um matiz desta questão está cravado na própria tradição
antropológica. As ciências sociais e antropológicas desenvolveram poucos
conceitos para analisar, por exemplo, como os grupos indígenas reproduzem
em seu interior o desenvolvimento capitalista, para melhor compreender como
constituem dentro dele “formações mistas” . Cancline afirma que os estudos
11
etnológicos tendem a registrar de um lado a sociedade colonial e de outro o
grupo étnico, como blocos homogêneos. As desigualdades internas são
camufladas e vistas como unidades compactamente enfrentadas pelo poder
invasor. Assim, as formas de interação permanecem clivadas.
O etnocentrismo dificulta a compreensão das culturas populares, que
continuam a ser enxergadas como “resquícios de tradições étnicas” ou como
subculturas e não como configurações concretas do social, ou como
fragmentos, partes de um sistema maior de dominação. 12
Mesmo não sendo um fenômeno à parte, não foi apenas a desnutrição
e a exploração direta ou indireta das culturas ditas primitivas, mas foi também
a apropriação do conhecimento e da sabedoria desses povos que permitiu
que boa parte do desenvolvimento ocidental. O contato com culturas que
desenvolveram modos de comunicação, de convivência e de conhecimento
minucioso da natureza inspirou e até gerou metodologias de observação
científica.
28
Ver , CLACINI, Nestor Garcia, Um debate entre tradicion y modernidad, Clacso XVII, 52, 1987, p. 40.
29
Para Canclini é o próprio vínculo da antropologia com a história que provoca estas distorções, pois ao abarcar
a larga temporalidade da dimensão diacrônica acaba por fortalecer a estratégia de dominação dos grupos
indígenas, que sempre foi manter a sua diferença, ibid.
43
44. Não é segredo a vasta contribuição destas culturas para as ciências
biológicas e farmacológicas; como também hábitos e costumes alimentares e
medicinais, conhecidos como “naturais”, são desde a colonização, até hoje,
largamente utilizados e popularizados no mundo inteiro. Também boa parte da
indústria farmacológicas alopática utiliza substâncias retiradas de diversos
vegetais e animais da floresta tropical, a partir da medicina praticada há
milhares de anos por estes povos, que não recebem retribuição alguma por
essa incalculável contribuição. Por isso as interpelações feitas hoje aos
indígenas, como guardiões ideais das reservas florestais, merecem uma
reflexão à parte.
Não há como esconder que o desenvolvimento ocidental tem sido
orquestrador de diversas atrocidades que encontram na clivagem das
interações e conflitos sociais um dos seus maiores desafios. Não seria exagero
admitir que as penas de pássaros presentes nos adereços ou empalhadas em
museus são sintomáticas de um fenômeno: a partir do quinhentismo, acertam-
se os ponteiros para a contemporaneidade da devastação acelerada.
O calvinista Jean Lery (1557) foi o primeiro a registrar os nomes
indígenas de aves nas aldeias tupinambás, tendo escrito uma canção desses
índios sobre o canindé (Ara ararauna), uma arara de barriga amarela.
A convite do Conde Maurício de Nassau-Siegen, muito interessado em
zoologia, o naturalista George MacGrave (1610-1643) foi incubido de executar
de executar a primeira expedição científica zoológica, botânica e astronômica
44
45. em solo brasileiro . Apesar de não ter coletado material científico, MacGrave
13
organizou vasto material iconográfico a óleo e aquarelas.
Em 1783, Alexandre Rodrigues Ferreira (nascido na Bahia, em 1756),
veio chefiando a “Viagem filosófica pelas capitanias do Grão Pará, Rio Negro,
Mato Grosso e Cuiabá”, organizada em Portugal, para fazer pesquisas durante
dez anos. As coleções desta viagem constituíram-se no primeiro material
científico que foi do Brasil para a Europa. 14
Uma experiência de apresentar vozes de pássaros em notas musicais
foi elaborada, primeiramente, pelo príncipe Maximilian Von Wied Neuwied
(1816), quando registrou, no Brasil, o assobio do saci (Tapera naevia). A
narrativa da viagem do príncipe Wied contém vasto material sobre fauna, flora
e sobre a vida nativa e constitui-se, também, em documento do mais alto
interesse biogeográfico.
O registro do canto dos pássaros em notas musicais se tornou uma
prática entre alguns cientistas e viajantes que conheciam teoria musical. Era o
único instrumento de registro do canto das aves; outras técnicas surgiram
mais tarde, como examinaremos mais adiante.
No período colonial era prática comum a captura de animais,
principalmente das aves. O Brasil era conhecido como a terra dos papagaios.
Como troféus das façanhas empreendidas nos continentes conquistados eram
30
A Historia naturalis Brasiliae de MacGrave foi editada em 1648.
31
Ver Helmut Sick. Ornitologia Brasileira: uma introdução. Brasília, UNB, vol. 1, 1984, p. 107.
45
46. exibidas para o deleite do mundo europeu, como exóticas. Práticas como a 15
Caça de Altaneira foram registradas na corte do infante Dom Luís (1616), um
tipo de caça desconhecido nos trópicos. 16
No século XIX, proliferaram as expedições científicas aos estudos
biológicos e zoológicos. Milhares de espécimes de aves foram coletados e
depositados em museus da Europa. Entre as coleções que está a de Friedrich
Sellow (1814), que enviou 5.457 aves empalhadas para o museu de Berlim.
Suas coleções só foram superadas por Johannes Spix e Johannes Natterer.
Estes dois naturalistas alemães, ao lado do botânico Carl Friedrich Philip Von
Martius, fizeram parte da expedição que veio ao Brasil com a princesa
Leopoldina em 1817.
As coleções de Natterer contavam com 12.239 aves empalhadas, 1.000
mamíferos, 35.000 plantas secas e milhares de objetos indígenas, enviados ao
Museu de Viena.
Em 1800, Humboldt, que também incluía aves em seus estudos, veio
ao Brasil com o botânico Bompland, mas foi proibido de entrar no país por
decisão da Coroa. Na Venezuela, descobriu o guácharo (Steotornis caripensis).
O cientista pertenceu a uma corrente que elaborou conceitos importantes para
a ecologia – sendo um dos precursores da biogeografia.
32
Exótico é tudo aquilo que se desconhece. Ser exótico é, sobretudo não ser compreendido, é ser considerado
mal feito, mal acabado, curioso e intrigante, justamente por ser desconhecido. V. Aurélio Buarque de Hollanda,
Pequeno Dicionário da Língua Portuguesa.
33
A caça de altaneira é típica de savanas, desertos e de montanhas desprovidas de mata.
46
47. Os naturalistas Alfred Russel Wallace e Henry Walter Bates viajaram
pelo Brasil em 1848. A obra de Bates, O naturalista e o rio Amazonas, (1863)
está entre as publicações mais conhecidas e estudadas sobre a Amazônia.
Wallace ficou mais famoso pela formulação da teoria da seleção natural, em
1859, em conjunto com Charles Darwin. Seus estudos baseavam-se em
registros feitos na região oriental da Amazônia. Darwin, que aqui esteve em
1832, conclui que a botânica e a ornitologia do Brasil já eram bastante
conhecidas.
Poucos cientistas reconheciam a nomenclatura nativa de aves e
animais. A própria forma de classificação implicava, na época das expedições,
17
verdadeira corrida científica. Isto porque os nomes das espécies novas que
iam sendo descobertas podiam e podem incluir o nome de pessoas, dentro da
sistematização introduzida por Linneu, 18
em 1758. A classificação proposta por
Linneu fez nascer grande interesse pelo estudo científico de aves, estimulando
verdadeira corrida à consagração científica. As viagens pelos trópicos
proporcionavam aos viajantes naturalistas o verdadeiro mérito e
reconhecimento científico.
O ato de dar nomes científicos hoje é controlado pela Comissão
Internacional de Nomenclatura Zoológica (C.L.N.Z.) e baseia-se na lei da
34
Martius compreendeu a importância da língua tupi, para estudos de zoologia, na publicação Nomina
animaliun in língua tupi, 1863 -, e Rodolfo Garcia realizou uma interpretação de nomes indígenas em Nome de
Aves em Tupi, 1913.
35
Autores bem familiarizados com o latim latinizam o nome na nomenclatura, por exemplo: Spixius, em vez de
Spix. Em conseqüência, o respectivo nome deve ser escrito com dois “i” no genitivo latino, por exemplo:
Cyanopsita spixii, Wagler, 1932; e ainda se escreve Synallaxis spixi, Sclater, 1856, simples genitivo de Spix
sem latinização, op. cit., p. 36, Op. cit.,p.38.
47
48. prioridade: o nome válido é o mais antigo, para evitar que a nomenclatura se
torne caótica. A taxonomia baseia-se principalmente na morfologia externa,
mas existem hoje outras técnicas para métodos bioquímicos (quimio-
taxonomia e sistemática genética), estudos etológicos e pesquisas fisiológicas,
tais como: análise da vocalização para tentar investigar problemas não
solucionados com as técnicas morfológicas.
Até 1950, técnicas morfológicas predominaram. Nos anos posteriores,
inicia-se a investigação de técnicas não-morfológicas. Destacam-se pesquisas
sobre a musculatura mandibular dos passeriformes; de possíveis caracteres
nos esqueletos, que sirvam para separar famílias e ordens; dos estapes , uma
19
parte do ouvido interno: e ainda das estruturas que não estão sujeitas à
seleção. A capacidade de comunicação pelo canto ou vocalização subentende
mecanismos desenvolvidos ao longo da evolução, nas aves extremamente
ligados à audição.
Ou-vido
Em repouso ou em movimento o ar é um material elástico que
transmite o som. A sutileza sonora e as forças constitutivas da audição,
presentes nos pássaros demonstram inequivocamente a leveza de ser.
36
Op. cit. P. 37.
48
49. Só se pode perceber o quanto a audição é preciosa, quando ela falta.
Se uma criança nasce surda terá enorme dificuldade de adaptar-se ao mundo.
Fatalmente seu desenvolvimento intelectual estará comprometido, não
podendo ouvir sequer o próprio choro, primeira forma de comunicação.
Como centro auditivo, o ouvido é tão ativo, quanto sensível, por isso
considerado pedra fundamental da comunicação. A audição biaural permite
aos cegos calcular com exatidão a distância dos objetos. O ouvido é a sede
não só da audição, mas de outros dois sentidos independentes: o equilíbrio e a
orientação, situados no labirinto.
No século XVIII, questionava-se a existência do som. Perguntava-se: Se
uma árvore cair na floresta haverá som? A natureza era colocada em dúvida
20
nesta procura de um mundo real. Especulava-se o som como fenômeno
organizado, ou como uma sensação que só poderia ser reconhecida pela
mente ouvinte.
Ainda no início do século XIX, acreditava-se que o som não ocupava
espaço. Assim como os objetos têm textura e forma e podem ser vistos pelos
olhos e tocados pelo tato, o som, ao contrário, não poderia ser localizado por
meios auditivos. Até pouco tempo, muitas destas ideias impediam a
compreensão da audição biaural. Existem outras razões para a audição ter
sido um sentido relegado ao segundo plano.
37
Sobre a discussão de causa e efeito do som entre filósofos e físicos, Stevens e Warshofsky, O som e a
audição, Rio de Janeiro: Edições Life, 1968, p. 9.
49
50. Com a escrita, o som passa a ser uma “extensão da função visual”. O
21
alfabeto fonético leva à redução do papel dos sentidos da audição, do tato e
do paladar. MacLuhan afirma que isto não se deu em culturas como a chinesa,
que utilizam a escrita não-fonética, o que capacita à manutenção de uma
percepção abrangente e profunda da experiência. Nas culturas do alfabeto
não fonético, o ideograma é uma gestalt abrangente, que ao mesmo tempo
não promove a dissociação analítica dos sentidos e das funções, como ocorre
coma escrita fonética.
A separação introduzida entre o som e a visão, de um lado e o
conteúdo verba e semântico, de outro, transforma esses dois sentidos na mais
radical das tecnologias que tange à tradição. O alfabeto fonético divide a
experiência antes unida, “dando um olho, por um ouvido, liberando o homem
do transe tribal, da ressonância da palavra mágica e da teia do parentesco”. 22
Assim as culturas tribais não conseguem compreender a ideia do indivíduo
separado. Para elas, a ideia de espaço e tempo é descontínua e desuniforme,
seu fundamento é emotivo.
Somente as culturas letradas dominaram as sequências lineares,
concatenadas como formas de organização psíquica e social, fragmentando a
experiência em unidades uniformes capazes de produzir ações e mudanças
formais mais rápidas através do conhecimento aplicado. Este último é o
segredo do domínio ocidental sobre o homem e sobre a natureza. Baseada na
38
Marshall MacLuhan, op. cit. P. 103.
39
Op. cit., p. 103.
50
51. alfabetização, a civilização promove um processamento uniforme da cultura
pelo sentido da visão, projetado no tempo e no espaço pelo alfabeto.
Nas culturas tribais, o que organiza a experiência no mundo é o
sentido vital da audição, que reprime os valores visuais.
MacLuhan, em sua “tese genérica” , preconiza a Idade Elétrica como o
23
fim da cultura visual, da divisão técnica, do individualismo, do nacionalismo
reintroduzindo a comunicação instantânea e a relação tribal (como foi com as
culturas orais que precederam a imprensa). Anuncia a Era Elétrica (implosão)
como um período de reencontro com os esquemas de participação das
culturas orais e tribais, que precederam a Era Gutemberguiana (explosão).
As afirmações de MacLuhan abrem caminho para o estudo da História
Moderna, em função dos meios de comunicação dominantes em sua leitura
otimista e atraente de divisão da história em grandes eras tecnológicas. O 24
caráter imediato da tele-informação faz do mundo uma tele-aldeia, introduz o
neoarcaismo, um fenômeno importantíssimo que está diretamente ligado ao
25
neomodernismo.
MacLuhan viu a humanidade em três grandes idades. A primeira dá
ênfase à audição nas culturas orais; a segunda, à visão nas culturas do
alfabeto fonético; e a terceira, ao tato nas culturas elétricas. No momento
40
, BADRILARD,Jean. Analisis de Marshall MacLuhan : Undersatnding Media, Buenos Aires, Tempo
Contemporâneo, 1967, p. 26.
41
Jean Baudrillard afirma que o autor omite o conhecimento da história social destes meios, apesar de apoiado
em grandes verdades. Ao enfatizar que “o medo é a mensagem”, MacLuhan esvazia a sociologia e a história
política destes meios; suas revoluções e convulsões históricas, omitindo os nacionalismos e o feudalismo
burocrático numa era de participação acelerada, “astúcia sutil”, op. cit., p. 35.
42
MORIN,Edgar. Para compreender MacLuhan, op. cit., p. 39: à maneira de Lévi-Strauss, MacLuhan
redescobre a notável modernidade da consciência arcaica.
51
52. vivemos um período de interpenetração da passagem da segunda para a
terceira. No entanto, a mudança de ênfase do visual para o tátil retornava as
formas de envolvimento das culturas orais, do ouvido.
Audi-ação
A audição, como sentinela dos sentidos, por suas funções
independentes de equilíbrio e orientação, evoluiu de mecanismos simples, os
estatocitos. Primeiro órgão sensitivo, esse mecanismo é conhecido nos peixes
26
como “linha lateral” e são extremamente semelhantes, em construção, às
células ciliadas do ouvido interno dos mamíferos que convertem vibrações em
impulsos nervosos.
Comparável a um receptor de rádio, o ouvido humano é capaz de
decodificar as ondas eletromagnéticas e redecodificá-las como som. Assim, a 27
voz humana pode ser comparada a um transmissor de rádio, ao traduzir o som
em ondas eletromagnéticas. A voz tem o poder de moldar o ar e o espaço em
formas verbais, embora se acredite que tenha sido precedida, provavelmente,
de uma expressão menos especializada: “de gritos, grunhidos, gestos e
comandos de canções e danças”. 28
43
Bolsas que mantêm o equilíbrio em animais marinhos, tais como a água-viva.
44
Marshall MacLuhan, op. cit., p. 97.
45
Ibid.
52
53. O ouvido capta, amplifica, converte e transmite para o cérebro,
simultaneamente, o que os dispositivos artificiais só conseguem fazer em
seqüência. Dentro da abóboda cerebral, não são os sons, mas os estímulos é
que provocam as reações que respondem a esses mesmos estímulos.
O som vivo do ambiente provoca uma gama enorme de emoções e de
reações físicas. O reflexo do movimento do mundo, da fala, desperta
lembranças e imagens mentais remotas e esquecidas. É a memória do som
que põe em movimento as imagens esquecidas na memória. No centro de
memória sonora no interior do cérebro, os sons acumulados são referências
precisas para o estado de alerta e prevenção de perigos.
Mas é justamente na atualidade, em que a audição em si passa alertar
e prevenir. Uma ciência cujo método está em busca de orientação para a
compreensão dos mecanismos de equilíbrio do meio ambiente. Investiga-se 29
hoje a complexidade destes mecanismos naturais, para desenvolver formas de
controle biológico que surtam efeitos mais duradouros. Assim a ecologia pode
ser considerada a ciência que busca ouvir, em vez de devassar para
determinar ou provar, que busca orientar e equilibrar seus métodos com a
complexidade ambiental.
Físicos, matemáticos, biólogos, e astrônomos estão criando uma série
de idéias alternativas. Sistemas simples dão origem ao comportamento
46
GLEIK,James. Caos: a criação de uma nova ciência. Rio de Janeiro: Campus, op. cit., p. 292.
53
54. complexo e sistemas complexos dão origem a comportamentos simples: as
leis da complexidade têm validade universal. 30
Os mecanismos complexos não são visíveis e estão submersos em
associações tão sutis que, de forma independente, se equilibram e orientam,
sujeitos a mudanças inesperadas, condicionadas a mínimas variações
impostas pelo ambiente. Variações tão dinâmicas quanto as nuvens do céu,
que exigem, portanto, experimentos de observação que apresentem o mesmo
dinamismo.
MacArthur compreendeu que a ecologia baseada num senso de
equilíbrio “estático” está condenada a falhar. Os modelos tradicionais são
traídos por suas tendências lineares.
A audição é um sentido complexo. Para cifrar sinais perfeitamente
claros exige malabarismos do aparelho auditivo. Cada fibra nervosa que
maneja um sinal forma ligeiramente modificada. Seus numerosos elementos
parecem todos exercer as funções de captar, para gerar energia, a qual
partindo do sistema nervoso central é sinalizada para todo o organismo. São
os impulsos nervosos, e não a fonte externa de eletricidade, que realmente
geram a sensação. Esta “marcha do som para a audição, das vibrações
mecânicas aos impulsos elétricos, é marchada por elaboração e
complexidade cada vez maiores”. 31
47
lbid.
48
Stevens e Warshofsky, op. cit., p. 60.
54
55. Os pássaros, em posição relevante na escala do desenvolvimento
evolucionário, têm ouvidos bem parecidos com os do homem. Mas os ouvidos
dos insetos são considerados os mais eficientes sistemas de audição. Apesar
dos pássaros ouvirem mais ou menos com o mesmo alcance dos homens,
chegam a superá-los. Este sistema auditivo mais avançado está relacionado
32
com a complexidade de seu sistema vocal.Uma única espécie pode emitir
mais de 50 tipos de vocalizações diferentes derivadas de um vocabulário de
mais de 300 notas estudos etológicos têm demonstrado uma paralelismo não
desprezível entre aves e mamíferos (primatas) 33
no que diz respeito aos
sistemas de comunicação. Os chamados complexos, que servem de
espaçamento em populações de primatas são comparáveis aos de
passeriformes.
Ondas sonoras são usadas, também para “ver” objetos na escuridão,
ou invisíveis, porque fora do alcance do raio de visão, usam a audição para
colher informações detalhadas dos obstáculos. A observação destes
mecanismos inatos estão na base da descoberta do sonar e do ultra-som.
A velocidade do som foi alcançada, mas a da luz esta distante as
gerações mais próximas. Porém, mais veloz que a luz somente o cérebro – a
velocidade do pensamento, do insight.
49
Uma pequena diferença na cóclea, que nos pássaros é ligeiramente encurvada e nos mamíferos, enrolada em
espiral.
50
Hernán Fandiño Mariño , op. cit . , p. 107.
55
56. Entre o dito de uma descoberta cientifica e a sua prova visível reina o
silêncio. Assim o tempo desse silêncio funciona como um eco. É neste eco
que ressoa a verdadeira descoberta. O silencio do tempo ´e quem fala. Assim o
tempo social-histórico não acompanha o tempo cientifico.
II. OUVINDO VOZES DO CÉU E DA TERRA
Hércules Florence, em 1829, durante a expedição Langsdorff realizou
uma experiência de registro de “vozes” de animais, a qual denominou
zoophonia . Um relato publicado sobre essas experiências ofereceu pistas
1 2
sobre um novo caminho para a percepção dos sons naturais. Apesar de ser
um documentário científico importante, não pode ser classificado como um
texto da ciência que hoje se encarrega da investigação da vocalização dos
animais, a bioacústica. Esta ciência investiga a vocalização dos amimais como
1
Ver Hercules Florence, Zoophonia. Rio de Janeiro: R.I.H.G.B. , tomo 39, 1876.
2
Recentemente, foi publicado pela UFMT uma tradução de Jacques Vielliard de um dos textos escritos por
Florence sobre zoofonia. O texto de Taunay foi escolhido para análise, por ter sido autorizado para a publicação
pelo próprio Florence, entre 1875 e 1976 e que, portanto possui um timbre mais próximo do século em que o
autor produziu sua obra como artista e pesquisador, vindo a falecer em Campinas em 1879. Ver Viagem Fluvial
do Tietê ao Amazonas pelas Províncias de So Paulo e do Grão- Pará (1825 – 1829). Museu de Arte de São
Paulo Assis Chateaubriand, 1977.
56
57. “exibições comportamentais” e detém seu interesse exclusivamente no que
3
concerne a “ função biológica destas exibições”.
Tampouco se tratava de uma investigação musical. Isto porque, na
época, não havia outra forma de registrar essas “vocalizações” a não ser
através de notas musicais. De certo modo, isso não era novidade, outros já
haviam se adiantado nesta forma de registro.
Novidade era a ousadia de Florence de esboçar uma união da ciência
da natureza (biologia) com a sensibilidade (música), ou de demonstrar que em
matéria do estudo dos sons de animais não é possível descartar sensibilidade,
ao afirmar:
[...] a ninguém ocorreu a ideia de tornar a voz dos animais
assunto de estudos e cuidadosas observações, como sem dúvida é
sua história natural. Entretanto dentre todas as majestosas ou suaves
harmonias da esplendida e nunca assaz admirada natureza é a
zoofonia unicamente que fere nossos sentidos por meio de notas
musicais[...]4
No entanto, o lugar híbrido onde aparece que estas afirmações vão
dar, na verdade, é o terreno fértil em que Florence semeia suas ideias. Nas
3
Herman Fandiño Mariño, op. cit., p. 106.
4
Hercules Florence, pó. cit., p. 221.
57
58. observações do tradutor Taunay, encontramos afirmações que definem o
“viajante” Florence como homem de “ variado fundo de instrução”, cuja
vitalidade criativa e espírito inventivo já havia imaginado diversos meios, “todos
engenhosos”, quando inventou a polygraphia . Segundo Taunay, as tentativas
5
de Florence de inventar a fotografia, antes de Niepoe e Daguerre, só não foram
reconhecidas porque o pesquisador viva numa província onde faltavam
recursos, e quando soube que outros, com melhores condições, tinham lhe
tirado o valor da prioridade do invento, caiu em desânimo e retraimento.
Apesar de não caber neste estudo uma indagação sobre a veracidade
destas afirmações, elas fielmente demonstram a vivacidade da mente
inventiva de Florence e certificam que ele não era um viajante comum. Sua
sensibilidade criativa está presente na obra iconográfica da expedição
Langsdorff e também na intuição da zoophonia:
[...] quando o sábio examina cuidadosamente e lentamente
tudo o que o cerca; quando o mais insignificante inseto não escapa à
sua análise, que perscruta até o mundo microscópico, não lhe deve
parecer inútil e despido de qualquer vantagem apreciar, debaixo de
determinadas regra, não direi a linguagem, porém sim a voz dos
animais[...] .
6
5
Op. cit., p. 322.
6
Op. cit. , p. 323.
58
59. A proposta de exame cuidadoso e lento demonstra o rigor científico de
perscrutar, não devendo parecer inútil ou desvantajoso apreciar, no sentido de
estimar e avaliar a voz dos animais (como ele mesmo deixa bem claro) dentro
de determinadas regras. Fica evidente, também, a preocupação com a
utilidade de suas indagações. A suspeita de que talvez estivesse atendo-se em
causas inúteis e estéreis.
Mas se, nem tanto como precursor da bioacústica, a intenção de
Florence parece esboçar timidamente um novo campo de conhecimento, que
não era a bioacústica, também não somente se tratava de uma investigação
musical, mas sim da zoophonia, talvez um limiar entre estes dois campos.
Ainda quando não servisse esse estudo mais do que para
mero entendimento do espírito, não deverá merecer indiferença e
pouco caso; mas não é só isso que nela acharemos, encontrando
também cores novas e vivas, faces do verdadeiro valor cientifico e
juntando sem contestação o tão apregoado útil ao agradável[...] 7
Florence se refere à música da natureza e busca o verdadeiro valor
científico desta música que não deveria soar aos ouvidos apenas por sua
beleza, e para tanto encontra um álibi na união (insuspeita) do tão apregoado
útil ao agradável. Na verdade, a beleza de que nos fala é a experiência estética
7
Ibid.
59
60. estética. Mesmo porque seria hipocrisia admitir que as atividades mais
racionais não perpassam pelo sentimento estético.
Demonstrando estar consciente da suspeita metodológica (da
inutilidade) sobre as reações que poderia suscitar esta aproximação entre a
ciência biológica e a ciência musical como os meios de expressar as
mensagens da natureza. Florence busca apoio recorrendo ao tão apregoado
útil, este sim, insuspeito. A suspeita ocorre de fato, mas não porque estivesse
seguindo o caminho errado. Se ainda hoje são raros os esforços
interdisciplinares neste campo, que dirá há 150 anos?
Há pelo menos duas décadas ouvimos discursos sobre a multi, inter
ou transdisciplinaridade e temos visto que não forma suficientes para eliminar
as suspeitas metodológicas. Essa desconfiança e marginalização das
pesquisas multi-referenciadas continuam sem poder fazer o devido contrapeso
à especialização acelerada e a marcha automatizada da tendência que 8
funciona como reator super-aquecido.
Por outro lado, o surgimento de novas ciências como a do caos, só é
possível mediante o desafio dos modos de pesquisa atuais. O caos, valendo-se
do comportamento universal da complexidade, investiga o aleatório e i
complexo, “extremidades entrecortadas e saltos súbitos” , especula o 9
determinismo e o livre arbítrio, a evolução e a natureza da inteligência
8
Cornelius Catoriadis, op. cit. , p. 97.
9
Cf. James Gleik, Caos: a criação de uma nova ciência., Rio de Janeiro: Campus, 1990, p.5.
60
61. consciente. Estes cientistas sentem que estão fazendo recuar a propensão da
ciência ao reducionismo, e “ acreditam estarem a busca do todo” . 10
Não existe aqui a intenção de apresentar a zoofonia como campo de
conhecimento ligado ao caos; mas apenas a de demonstrar que inúmeros
outros campos de conhecimento estão surgindo no lugar dos saberes em
dissolução. A própria ecologia, como disciplina da biologia, ao abarcar outros
campos de conhecimento muda a fisionomia da própria biologia.
A ousadia de Florence é ter proposto a zoofonia no limiar de duas
disciplinas científicas, não escondendo sua sensibilidade criativa ao captar as
mensagens das vozes do céu e da terra.
Não entraremos no mérito ou na análise das partituras que elaborou
durante a viagem (que apenas esboçam tentativas de aproximação), visto que
só recentemente, com a possibilidade de gravar audioespectogramas , as 11
vocalizações podem ser traduzidas mais fielmente. Mas não é neste aspecto
que interessam estes registros, mas as associações e as relações investigadas:
[...]ao passarmos de uma região para outra surpreendiam-nos
os gritos de viventes que nos eram desconhecidos, ao passo que
desapareciam outros que já se nos tinham tornado familiares ou, se
continuavam a se fazer ouvir, era já com modificação sensível do
órgão vocal[...] 12
10
Ibid.
11
Mostra a altura em quilohertz por segundo; a intensidade pela espessura das linhas e a duração.
12
Hercules Florence, op. Cit., p. 321.
61