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O urbano tem sido objeto de interesse por
parte dos geógrafos desde, pelo menos, os
primeiros anos do século XX, consoante as
profundas transformações, em curso, verificadas
tanto no espaço urbano quanto na rede urbana.
Tratava-se de registrar e interpretar aqueles
impactos que o capitalismo industrial produziu
nas velhas cidades européias e nas novas
cidades americanas. O interesse foi crescente e
marcado, como em outras áreas de interesse por
parte dos geógrafos, pela adoção de muitas
matrizes teórico-metodológicas que caracte-
rizaram a geografia e as ciências sociais em
geral. Uma perspectiva determinista foi incor-
porada aos estudos da cidade. A influência da
Escola de Chicago, de Robert Park, foi, e ainda
é, muito grande. Um viés calcado no positi-
vismo lógico, com seus modelos hipotético-
dedutivos, marcou os estudos geográficos sobre
o urbano. A análise crítica, fundada nas semi-
nais contribuições de Henri Lefébvre, iria
ampliar o interesse dos geógrafos sobre o
urbano: os trabalhos de David Harvey e
Edward Soja são expressões de grande cali-
bre dessa influência.
Recentemente ainda, a partir de meados dos
anos 70, os geógrafos incorporaram, em suas
análises sobre o urbano, uma perspectiva que
inclui as práticas socioespaciais e seus
significados, envolvendo crenças, valores e
intersubjetividades diversas, admitindo a coe-
xistência de múltiplas espacialidades cons-
1ruídas, percebidas e vivenciadas por uma
sllCÍl'dadc gue é fragmentada, estando longe de
A CONDIÇÃO URBANA
Do Autor:
Geografia e Modernidade
Paulo Cesar da Costa Gomes
-
A CONDIÇAO URBANA
ENSAIOS DE GEOPOlÍTICA
DA CIDADE
IBBERTRAND BRASIL
Copyright © 2001 Paulo Cesar da Costa Gomes
Capa: Rodrigo Rodrigues
2002
Impresso no Brasil
Printed in Brazil
CJP-BRASIL. CATALOGAÇÃO-NA-FO'ITE
SJ'IDICATO NACIONAL DOS EDITORES DE LIVROS. RJ
G616c Gomes, Paulo Cesar da Costa
A condição urbana: ensaios de geopolítica da cidade 1
Paulo Cesar da Costa Gomes. -Rio de Janeiro: Bcrtrand
Brasil, 2002
304p.
Inclui bibliografia
ISBN 85-286-0956-1
1. Espaço urbano - Rio de Janeiro (RJ). 2. Espaço
urbano- Paris (França). 3. Geopolítica. L Título.
02-0406
Todos os direitos reservados pela:
EDITORA BERTRAND BRASIL LTDA.
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Apresentação 7
Introdução 11
SUMÁRIO
Primeira Parte
DUAS MATRIZES TERRITORIAIS:
NOMOESPAÇO E GENOESPAÇO
I. O nomoespaço 31
Os espaços contratuais: Exemplos e dinâmicas 40
11. O genoespaço 60
Quando a idéia da diferença funda um espaço 66
Ill. Os modelos políticos: Que lugares para a cidadania
moderna? O Estado, a Nação e os Estados-nações 81
IV. Os modelos sociológicos: Os espaços da civilização
ou territórios das culturas 102
V. Os limites metodológicos dos modelos de
nomoespaço e geuoespaço 113
O recurso às matrizes como modo de operação
analítico 121
Segunda Parte
A APLICAÇÃO DAS MATRIZES AOS CASOS
VI. Cidadania e espaço público: O que a geografia
tem a dizer? 129
Um olhar geográfico sobre o debate da cidadania
moderna 141
A importância da dimensão física: Os espaços
públicos 159
VII. O espaço público e as manifestações do recuo
da cidadania 169
VIII.
IX.
A atual dinâmica do espaço público 176
A apropriação privada dos espaços comuns 176
A progressão das identidades ten-itoriais 180
O emuralhamento da vida social J82
O crescimento das ilhas utópicas 186
O recuo da cidadania 188
Rio-Paris-Rio: Ida e volta com escalas 192
A ida: Das praias aos bulcvares ou dos arrastões
aos casseurs 192
As escalas ou como cada local mobiliza elementos de
alcance diverso na compreensão de sua dinâmica 206
A volta: Uma territorialidade na praia 216
O futebol e sua dimensão estética: Entre a geopolítica
da bola e a geopolítica dos torcedores 231
O f~tebol como metáfora de uma disputa territorial 234
A c1dade como metáfora do futebol 242
X. Viva o Quebec livre! Os paradoxos de uma
democracia 252
Do tradicional ao moderno: Mudanças na escala
territorial da identidade 255
O pós-moderno: Um novo contexto na Juta pela
soberania? 262
Democracia e território: As lições do Canadá 265
Versões e contraversões: As diferentes leituras
da diversidade socioterritorial 273
Os paradoxos de uma democracia 282
Últimas notas 287
Bibliografia citada 294
APRESENTAÇÃO
O que pode haver de comum entre ir à praia ou ao jogo de
futebol, no Rio de Janeiro, as manifestações estudantis que
ocorrem no Boulevard Beaumarchais, em Paris, ou a luta pela
independência da Província do Quebec, no Canadá? O que
poderia relacionar estes eventos com a discussão sobre a cida-
dania? O que estes assuntos, aparentemente tão díspares,
podem conter de geográfico?
Nosso grande desafio é demonstrar que estes fenômenos,
habitualmente tratados por especialistas de áreas muito diver-
sas (cientistas políticos, historiadores, antropólogos, sociólo-
gos etc.), possuem um componente comum e essencial: uma
dinâmica espacial. Mais especificamente queremos trazer à
tona um elemento que nos parece estrutural nestes fenômenos:
a disputa territorial. Se lograrmos êxito nesta demonstração,
teremos que concordar que, daqui por diante, estes temas
merecem figurar na agenda da geografia.
Durante muito tempo predominou, e ainda hoje persiste, a
idéia de que a geografia estaria fadada a produzir longos inven-
tários descritivos de lugares -quando bem-feita, a obra geo-
gráfica se confundia com um exercício de erudição; quando
malfeita, o resultado se avizinhava à pura banalidade. Hoje,
cada vez mais conscientemente, a geografia toma para si ares-
ponsabilidade de produzir uma verdadeira interpretação dos
fenômenos, por meio de uma inovadora análise espacial. Isto
implica manter-se fiel ao compromisso de exprimir primor-
dialmente a importância e o alcance da dimensão espacial nos
fenômenos que ela estuda. Duas principais conseqüências deri-
vam daí. Em primeiro lugar, a ordem espacial dos objetos e das
práticas sociais passa a ser o elemento central desta análise, ou
seja, a trama relaciona! das localizações é um dos elementos-
chave na compreensão dos fenômenos. Em segundo lugar, esta
ordem espacial, além de ser uma das condições básicas para a
existência das práticas, é também concebida, simultaneamente,
como portadora de sentidos, ou seja, esta análise espacial pode
produzir uma interpretação original desses fenômenos.
Convém insistir no fato de que, por tratar-se de uma inter-
pretação, alguns elementos e aspectos serão mais valorizados
do que outros neste trabalho e, dessa forma, uma leitura sui
generis acena para a possibilidade de um verdadeiro diálogo
interdisciplinar, mantendo-se, todavia, a identidade do olhar
geográfico. Assim, reafirmamos aqui a intenção de somar, e
não a de substituir. Em outras palavras, os princípios de coe-
rência e lógica na dispersão das coisas sobre o espaço podem
trazer à luz um novo ângulo para a compreensão de certas dinâ-
micas sociais e constituem a contribuição propriamente geo-
gráfica na análise dos fenômenos que habitualmente são estu-
dados por áreas disciplinares vizinhas.
Voltando aos temas citados no início, como já o dissemos, o
que há neles de constante, segundo o ponto de vista defendido
aqui, é uma central valorização do papel da espacialidade no
seio destes eventos e da capacidade que a análise desta dimen-
são pode trazer para a compreensão de certas manifestações e
características destes movimentos sociais. Assim, a questão do
regionalismo ou do nacionalismo do Quebec é examinada sob a
ótica dos desafios e dos impasses que uma identidade territorial
pode criar quando se associa a um discurso que pretende obter
legitimidade a partir da idéia de democracia ou de consulta
popular. O futebol é visto como uma atividade que tira suaforça
8 )lflJ
da estetização do processo de luta e de domínio territorial e,
como tal, tende a se transformar em um veículo de referência
para outras arenas de luta, fora do controle imposto pelas regras
que o limitam dentro do campo. Igualmente, a freqüência às
praias do Rio de Janeiro e os recentes movimentos dos arrastões
são examinados como fenômenos territoriais, ou seja, como fru-
tos de uma classificação das pessoas a partir do espaço que con-
quistam e ocupam, ou ainda, pelas referências ao espaço de
onde elas procedem. Assim, é-nos permitido aproximar esta
dinâmica carioca de uma outra, esta parisiense, que também
classifica e distingue os sujeitos pela sua procedência e delimita
práticas diferenciadas sobre um espaço de luta, como no caso
dos casseurs I infiltrados nas passeatas estudantis dos bulevares
da capital francesa. Finalmente, prosseguindo na apresentação
do raciocínio que guia este livro, a cidadania é aqui concebida
como algo que se traduz no cotidiano e nas ações mais habituais
do cenário da vida pública, ou seja, onde há vida pública há dis-
cussão e conflitos, que, de uma forma ou de outra, traduzem-se
em uma disputa tenitorial. Dentro desta perspectiva, cidadaniae
democracia não podem ser pensadas sem refletirmos sobre a
noção de espaço público e sobre as dinâmicas sociais que aí se
desenvolvem.
Esperamos que os leitores se sintam interpelados e seduzi-
dos a prosseguir a leitura após esta primeira e breve enunciação
dos nossos propósitos. Para cada um destes exemplos, dedica-
mos um capítulo, em que tentamos construir um quadro de ele-
mentos que justificam a centralidade da dinâmica territorial.
Escolhemos a forma de ensaio para trabalhar estes casos como
uma estratégia para tornar a leitura mais agradável e dar autono-
mia ao leitor, que poderá optar livremente sobre a ordem ou
1 A tradução literal para esta expressão é "quebradores" e se aplica aos jovens pro~e­
nientes dos subúrbios parienses que promoveram um ceno número de saques às loJaS
por ocasião das grandes manifestações estudantis ocorridas nos anos 90.
~ 9
escolha dos capítulos a serem lidos. Eles são, no entanto, prece-
didos por uma necessária discussão teórica geral em que figuram
as matrize~_ epistemológicas desta reflexão e que dão o funda-
mental suporte metodológico e analítico ao que se segue.
Esperamos também que o prazer vivido ao longo da pesquisa
que nos levou a estas "pequenas descobertas" esteja fielmente
retratado nesta narrativa, para poder ser compartilhado com nos-
sos eventuais leitores.2
2
Esta pesquisa contou com o apoio do CNPq e, por meio de bolsas de Iniciação
Ctentffica: permitiuque alunos de graduação em geogralia desenvolvessem alguns dos
temas aqUJ apresentados em seus trdbalhos de monografia. O autor também estende os
agradecimentos a todos os seus colegas professores do Dcpto. de Geografia da UFRJ
e aos alunos da Graduação e da Pôs-Graduação em Geografia da mesma instituição,
asstm como aos alunos c professores da Uni versidade de La Rochelle, pelas renovadas
e instigantes discussões realizadas durante os cursos e seminários.
1o )lf1f
INTRODUÇÃO
Três noções básicas estruturam toda a reflexão contida neste
livro: teJTitório, política e cidade. Evitaremos a tentadora velei-
datl.c de buscar nestas noções um sentido único, estabelecido de
uma vez por todas, de forma definitiva. O interesse que nos move
aqui é muito mais o de percorrer alguns dos temerádos acessos
que podem existir entre elas ou, ainda de forma mais precisa, a
tentativa é a de valodzar as zonas de sombreamento que existem
na superposição e na interseção destas três noções. Aliás, esta
intenção já está sinteticamente contida no título escolhido. A
expressão "condição urbana" era utilizada na época do Império
Romano para distinguir um estatuto próprio adquirido por um
ce11o adensamento populacional, dotado de formas estritamente
relacionadas à organização urbana: Jari, templos, e a orientação
dos arruamentos, seguindo o cardo e o decumanus. Indissociável
destas formas era a estrutura de poder, e as cidades constituíam
simultaneamente sua sede, sua representação e a condição para o
seu exercício. A concepção romana do poder o associava neces-
sariamente a uma extensão física, um território, sobre a qual ele
se organizava e se exprimia. A herança grega da polis, simulta-
neamente forma física e fonna de organização social, foi, neste
sentido, inteiramente reatualizada. Acrescentemos a isto o fato
de que a divisão espa~ial é uma daSToiTiiãSmaiSãntigas gue
cõnheéemos de classificar as coisas, não apenas por seus atribu-
tc>s ou valores singulares, mas sobretudo por sua localização.
...... 11
Sem a pretensão de estabelecer uma definição acabada, um
certo número de precisões parece ser necessário no uso da idéia
de território, visto o seu largo emprego na geografia. Entende-
mos aqui por territorializar o movimento de um agente titular no
ato de presidir a lógica da distribuição de objetos sobre uma
dada superfície e de, simultaneamente, controlar as dinâmicas
que afetam as práticas sociais que aí terão lugar. O território é,
pois, neste sentido, parte de urna extensão física do espaço,
mobilizada como elemento decisivo no estabelecimento de um
poder. Ele é assim uma parcela de um terreno utilizada como
forma de expressão e exercício do controle sobre outrem. Por
meio deste controle é possível a imposição das regras de acesso,
de circulação e a normatização de usos, de atitudes e comporta-
mentos sobre este espaço. Este controle do território é a expres-
são de um poder, ou seja, ele é aquilo que está emjogo em gran-
de parte das disputas sociais, aí incluídas aquelas que disputam
um direito à cidade. Finalmente, a territorialidade é vista aqui
como o conjunto de estratégias, de ações, utilizadas para estabe-
lecer este poder, mantê-lo e reforçá-lo)
Por isso, ao contrário de muitos geógrafos, não acredita-
mos que a noção de território se confunda com qualquer
dimensão emotiva ou de identidade, pois estas já seriam parte
de uma estratégia de tomada de controle.4Tampouco, asseme-
lhamos tout court a noção de território à idéia de apropriação,
pois esta última pode ser construída a partir de múltiplos veícu-
los, imaginário, sentimentos, posse, propriedade, uso, sem que
3 Somos inteiramente tributários das reflexões sobre o tema desenvolvidas por Sack,
R. The Human territoriality: lts cheory and history, Cambridge University Press,
Cambridge, 1986.
4 Esta visão do território como definido pelo sentimento de identidade é uma das mais
utilizadas pela geografia. Ver, por exemplo, Bailly, A. & Ferras, R. Éléments
d'épistémologie de la géograpl1ie, Armand Colin, Paris, 1997;e Raffestin, C. Por uma
geograjia do poder, Ed. Ática, São Paulo, 1993.
12 ftl]
nenhum deles signifique sempre o exercício efetivo de um con-
trole sobre os objetos e as práticas sociais que aí ocorrem.
Queremos dizer que a idéia de território traduz, ao m-esmo
tempo, uma classificação que exclui e inclui; um exercício de
gestão que é objeto de mecanismos de controle e de subversão;
e uma qualificação do espaço que cria valores diferenciais, rede-
finindo uma morfologia de cunho socioespacial. Estes pares-
exclusão/inclusão, submissão/subversão, e valorização/desvalo-
rização- criam tensões e resultam em lutas territoriais que alme-
jam modificar seus limites, sua dinâmica, suas regras ou seus
valores. Por isso, chamamos este fenômeno de geopolítica, ou
seja, lutas que têm como objeto de disputa a busca pela afirma-
ção de ufi.fiJÕderque étãmbérn a luta por um território.-Aesco-
111ãdã._dênominãção "geopolítica urbana" se fez pelõ"fato de que
esta luta se constrói dentro de um quadro restrito, ou melhor, a
partir de uma certa estrutura que associa pessoas a uma forma
física específica, a cidade. Estas pessoas, movidas por diferentes
anseios e expectativas, estão reunidas sobre este terreno comum
da cidade e aí desenvolvem relações orientadas e organizadas
tenitorialmente. Como nos ensina Arendt, "a política trata da
convivência entre diferentes. Os homens se organizam politica-
mente para certas coisas em comum, essenciais num caos abso-
luto, ou a partir do caos absoluto das diferenças".s A cidade
exprime com eloqüência, em sua forma física e em sua dinâmi-
ca, urna das modalidades fundamentais de "organização" destas
diferenças; poderíamos mesmo dizer que esta é uma de suas
condições fundadoras. Voltaremos à questão da definição de
cidade; antes, entretanto, vejamos rapidamente dois exemplos.
Recentemente, em um documentário televisivo sobre os
problemas dos direitos civis dos negros nos EUA, foram mos-
tradas cenas e entrevistas que faziam alusão à violência que
s Arendt, Hannah. Oque é política?, Bertrand Brasil, Rio de Janeiro, 1998, p. 21.
~ 13
caracterizou as lutas raciais ocorridas na cidade de Chicago no
final dos anos 50. O discurso dessa apresentação fazia apelo a
expressões diretamente inspiradas na imagem da guerra.
Assim, palavras como invasão, ocupação, terra de ninguém,
conquistas, avanços, zona limítrofe etc. foram utilizadas como
material narrativo adequado para caracterizar esse movimento.
O objeto central da discussão eram as lutas pelos direitos dos
negros norte-americanos na cidade de Chicago, mas a forma da
apresentação, ao valorizar a idéia de uma guerra, chamava
indiretamente a atenção para um dos elementos estruturantes
do evento: a disputa territorial. Havia estratégias espaciais de
lado a lado: das organizações negras, cotizando-se para adqui-
rir casas em bairros brancos; dos brancos, organizando barrei-
ras físicas legais e manifestações para impedir o livre acesso
dos negros a determinadas áreas. O problema dos negros na
cidade de Chicago era em grande parte o do confinamento
espacial no gueto, no qual eles deveriam permanecer margina-
lizados do resto da cidade, assim como o eram da ordem social
hegemônica. Na evolução dos acontecimentos, o conhecido
gueto negro extrapolou seus lirrútes, conquistou direito à cida-
de, e uma nova geografia surgiu deste movimento. O poder
público, representado sobretudo pela prefeitura, organizou pla-
nos de deslocamento e assentamento das populações, contro-
lou preços, e o setor sul da cidade passou a ser objeto de gran-
des intervenções, após os incêndios e as depredações que lem-
bravam claramente manobras de guerra.6
Atualmente, no Rio de Janeiro, com freqüência podemos
ler nas manchetes dos jornais que a polícia "ocupou", "inva-
diu" ou "fez um cerco" à favela. Este vocabulário nos revela
6 O confronto étnico/territorial na cidade de Chicago já havia inspirado, no primeiro
quarto do século XX, a escola de sociologia urbana, conhecida como Escola de
Chitago, corrente pioneira em valorizar a idéia de disputa tetTitorial entre diferentes
comunidades, muito embora a concepção de território ainda fosse largamente tributá-
ria dos modelos ecológicos e, portanto, carregada de fortes tintas naturalizantes.
11, ,nnJ
Inlos lx~stante interessantes. Ele nos indica que se trata de uma
·.tttt:t~ão de guerra entre territórios, por meio da qual se afirma
'l:tramcnte que estes espaços estariam submetidos a forças
ltl'p.cmônicas diferentes: de um lado, a sociedade "legalmente"
'onslituída; de outro, um território controlado "informalmen-
lt>" pela força ou pelo prestigio de grupos marginais. O fato
rciL:vante aqui é apresentarmos esses relatos fazendo apelo a
um raciocínio que se nutre da imagem de uma oposição entre
dois territórios mutuamente excludentes, embora, em princi-
pio, ambos façamp;:rt~ e-~on~tituam aquilo que denominamos
a cidade do Rio de Janeiro. Esta dualidade não existe apenas no
discurso dos meios de comunicação; ela se manifesta como
uma experiência vivida no cotidiano dos moradores e se traduz
de várias formas) Uma delas se revela na expressão "favela-
dos" e "moradores do asfalto". A pavimentação age aqui como
símbolo da demarcação de territórios diferentes, e a fronteira
l'ísica pretende delimitar formas diferentes de comportamentos
espacial e social. Dessa maneira, a exclusão social deixa de ser
apenas um estatuto abstrato; ela ganha a forma de um território.
Estes dois exemplos poderiam ser multiplicados infinita-
mente na demonstração do ponto de vista que será aqui susten-
tado: a cidade é também, sem dúvida, um fenômeno de origem
político-espacial, e a manifestação deste caráter se revela em
sua dinâmica territorial.8 Em outros termos, a ordem espacial
7 Outra forma discursiva largamente utilizada para se referir às pessoas que habitam a
favela é a denominação de "comunidade". De fato, esta categoria, que, à primeira
vista, pode parecer simpática, pois confere um estatuto de grupo organizado e "harmô-
nico" a estas pessoas, na verdade, age como um reforço da idéia de exclusão. na medi-
da em que diferencia estas "comunidades" de uma sociedade urbana global que forma
a cidade. A este respeito, ver também Souza, Marcelo L. O desafio metropolitano.
Bertr.J.nd Brasil, Rio de Janeiro, 2000, p. 62.
8 Em seu ensaio sobre a cidade, Max Weber (La ville, ed. Aubier Montaignc, Paris.
1982), afirmava que o conceito de cidade é próprio da civilização ocidental, pois é
fruto da simultaneidade histórica das regulamentações próprias a uma economia urba-
na, associadas à afirmação de uma autoridade político-administrativa que reunia, em
um mesmo território e sob uma mesma gestão, uma população sujeita às mesmas
regras. A cidade para ele é, pois, ao mesmo tempo um fato econômico e uma relação
polftica.
.al&â 15
da cidade, isto é, sua disposição física unida à sua dinâmica
sociocomportamental, são os elementos fundadores da condi-
ção urbana. A tal ponto isto é importante, que, ao procurarmos
uma definição para o fato urbano, podemos nos perder deta-
lhando critérios que podem parecer para cada situação mais ou
menos apropriados, mas não possuem a capacidade de abran-
gência. Os autores que se debruçaram sobre este problema ten-
dem a matizar sempre seus critérios e a admitir, por fim, que
nenhum deles é suficientemente capaz de recobrir o essencial
na idéia de cidade.9 O critério demográfico está entre os mais
freqüentes; entretanto, facilmente compreendemos que a sim-
ples densidade de população não pode ser responsável pelo
aparecimento da cidade. Além disso, ainda que saibamos que o
gradiente de densidade da ocupação populacional do espaço
varie enormemente, os limites que estabelecem os umbrais do
fenômeno urbano são obrigatoriamente arbitrários. lO
Em uma publicação multidisciplinar que pretende fazer
um balanço dos estudos sobre a cidade e o urbano, o artigo
referente à contribuição dos geógrafos demonstra a perenidade
O papel precursor desta obrajá foi, aliás, reconhecido por inúmeros comcntadores que
se debruçaram sobre o mesmo tema. Ver, por exemplo, Cardoso, Fernando Henrique.
Autoritarismo e democratização, Paz e Terra, Rio de Janeiro, 1975, e McCrone, D. &
Elliot, B. The Cily: Patterns ofdomiJtaliOil andconflicr. The McMillan Press, Londres,
1982. Para mais detalhes sobre as relações entre cidade e política no pensamento
weberiano, consultar Bruhns, H. "La ville bourgeoise ct l'émergence du capitalisme
moderne" in Lepetit, B e Topalov (dir.), La vi/le des sciences sociafes, Belin, Paris.
2001, pp. 47-78.
9 Esta constatação é quase uma regra para todos aqueles autores que se confrontaram
com o problema da generalização do fenômeno urbano, seja em sua extensão espacial,
seja na história ou em ambas as dimensões, como, por exemplo, Bairoeh, Paul. De
Jéricho à Mexico. Vifles er économie dans l'histoire, Gallimard, Paris, 1985; Beaujeu
Garnicr, J. Géographie urbaine, Armand Colin, Paris, 1980; Mumford, Lewis The Ciry
in llisrory, Harcourt Brace & Co, Orlando, 1961; Bnwdcl, Fernand. Civilisarion maté-
rielfe. économie et capiralisme, XV•-XVIII• siecle (capítulo "Les Villes"), Armand
Colin, Paris, 1967; Duby. Gcorges, (dir.) Hi.stoire de la France urbaine, Seuil, Paris,
1985; Roncayolo Mareei. La vii/eet ses terriroires, Gallimard, Paris, 1990, entre outros.
lll Ver a este respeito a idéia de contimmm exposta em Catter, Harold. Study ojurban
gmgmphy. Arnold, Londres, 1973.
IG ,llflf.
dl! uma tripla orientação que marca este campo da pesquisa na
grografia francesa.Jl Em primeiro plano, os trabalhos sobre a
ridade foram concebidos como a descrição da morfologia de
ruas e atividades, e esta orientação esteve sempre presente, seja
nas grandes monografias urbanas, seja nos estudos mais
sistemáticos que tendiam a concluir por uma tipologia da
forma urbana. A segunda grande tendência é aquela que parte
de um sistema de aglomerações, ou seja, concebe o fato urba-
no como um conjunto de cidades, e estas são vistas como ele-
mentos de um território. Este segundo tipo de abordagem teve
como grande marco inicial o trabalho de Christaller sobre as
localidades centrais. Atualmente, ainda que os modelos sejam
outros, como no caso de Pumain, que busca inspiração na teo-
ria da auto-organização, continua-se a se procurar explicar e
mensurar a geometria do processo de urbanização e suas prin-
cipais inflexões, sendo a cidade tomada como unidade dentro
de um processo mais geral, que é o verdadeiro objeto destas
pesquisas.12 Finalmente, uma terceira grande linha de orienta-
ção das pesquisas foi aquela de analizar a organização interna
das cidades. Este tipo de abordagem tem raízes antigas na geo-
grafia e sofreu fortes influências, primeiro, do modelo funcio-
nalista e, em seguida, da escola de Chicago e das correntes da
economia espacial de cunho neoclássico. Mais tarde, estes
estudos agregaram também uma preocupação marxista e
desenvolveram a idéia de produção do espaço e de divisão ter-
ritorial do trabalho urbano. Os fenômenos investigados, no
entanto, têm uma certa recorrência; dizem respeito à segrega-
t1 Lussault, Michel. « La ville des géographes » in Paquot, T. & Lussault M. Body-
Gendrot (dir.) La vil/e et l'urbainl'état des savoirs, La Découverte, Paris, 2000, pp.
21-35.
12 A adoção de um modelo fundado na teoria da auto-organização é apresentada e jus-
tificada pela própria Pumain como estudo da interdependência entre as cidades, ~m
um breve artigo, "Le devenir des villt!S el la mod~lisation" Íl! Michaud, Yves (dtr.)
L'Université de ww;les savoirs. qu'est-ce que lasociété, Odile Jacob,Paris, 2000, pp.
l81·92.
-"" 17
ção espacial, à funcionalidade ou à qualificação das diferentes
pattes da cidade, e o que se procura fundamentalmente é inter-
pretar o processo de organização e diferenciação do espaço no
interior da cidade de forma mais ou menos classificatória.l3
Este quadro esboçado para a geografia urbana francesa
bem poderia ser aplicado ao Brasil, e, tanto em um caso como
no outro, só muito recentemente a geografia vem se mostrando
mais sensível nestes estudos urbanos às representações institu-
cionais no espaço aos verdadeiros sistemas de valores e qua-
dros de referência que se exprimem por meio de imaginários
complexos e diferenciados que têm uma importância funda-
mental na definição da vivência urbana e de sua dimensão
espacial. O que se pode concluir desta breve descrição é que só
muito recentemente a tentação de tomar a morfologia como
uma referência objetiva e a finalidade classificatória têm sido
abandonadas pelos geógrafos.l4 As formas urbanas ganham
assim outras dimensões, já não sendo associadas de maneira
unívoca a uma atividade ou função. O comportamento, dinâ-
mico e mutável, dos atores sociais é considerado de forma rele-
vante, e surge tod~ ga~a de problemas e de ~~qualifica­
ções do espaço, estranhas ao modelo das tip?logias tradicio-
nais. Este tipo de abordagem obriga também os geógrafos a
uma colaboração mais estreita com profissionais de outras dis-
ciplinas que também vêm estudando o fenômeno urbano:
arquitetos, sociólogos, antroprólogos e historiadores.
13 Uma exceção dentro deste quadro foi o hvm de Clava!, Paul. La logique des villes,
Litec, Paris, 1982,em que a cidade é concebida como o lugar de maximização das inte-
rações sociais.
14 Uma contribuição decisiva neste sentido tem sido dada nos últimos anos pela assim
chamada "nova geografia cultural", e dois exemplos significativos destas novas orien-
tações dos trabalhos sobre o urbano são Cosgrove, D. Tlle pal/adian /andscape:
Environmentaltransformations and its cultural representatiollS and renais~·ance ltaly,
Leiccster University Press, Leicester, 1992,e Duncan, J. "The city as a text: The polite
of Jandscape interpretation", in The Kandian Kingdom, Cambridge Uoiversity Press,
Cambridgc, 1990.
18 )1f1J
A <:idade não pode, pois, ser concebida como uma forma
qtw ~t· produz simplesmente pela contigüidade das moradias ou
JWitl ~in1ples adensamento de população; ela é, antes de qual-
qtlct rllis;l, um tipo de associação entre as pessoas, associação
t'"'" que é uma forma física e um conteúdo.l5 Muitas vezes,
qtt.ltHio CLudamos a cidade parece que nos referimos a uma evi-
dl'tK·ia que se apresenta direta e inteiramente formada diante dos
11ossos oll1os. Trabalhamos com critérios de densidade ou com
h111i les administrativos, como se estes não fossem passíveis de
st·r submelidos a uma análise lógica que, em última instância,
ptldcria nos conduzir a questionar a idéia do que é uma cidade.
Por isso, cometemos freqüentemente o equívoco de consi-
derar o fato urbano sob o ângulo único de uma morfologia. A
l'volução urbana é concebida como a transformação ou a pro-
gressão simples da forma urbana, e assim nos oferecemos o
conforto de trabalhar com uma categolia descontextualizada e
trans-histórica. Ao assim fazê-lo, perdemos em contrapartida a
capacidade de compreender o conteúdo desta morfologia ou,
em outras palavras, escapa-nos a idéia mesmo de vida urbana.
Freqüentemente, falamos de formas que parecem perma-
nentes no tempo: de praças, por exemplo, espaços abertos entre
o casaria, espaços estes que podem ser encontrados desde a
Antigüidade até os dias atuais. Ao assim procedermos, esta-
mos abdicando da análise que nos mostraria a verdadeira dia-
lética entre espaço e sociedade. Para insistir no mesmo exem-
plo, basta ver que uma mesma cidade contemporânea dispõe
de diversas praças, nem todas apresentando as mesmas dinâmi-
cas sociais ou o mesmo conteúdo. A cidade é uma forma
necessária a um certo gênero de associação humana, e suas
mudanças morfológicas são condições para que esta associa-
15 Ninguém melhor do que Milton Santos exprime a importância desta relação para a
compreensão dos processos estudados pela geografia. Ver, por exemplo, A natureza
do espaço. Técnica e tempo. Razão e emoçüo, Hucitec, São Paulo, 1996.
... 19
ção se transforme. Assim, uma análise geográfica do espaço
urbano deve imperativamente ser nutrida da disposição loca-
cional dos objetos espaciais confrontados com o comporta-
mento social que aí tem lugar.
Se este é o caso, o caminho mais apropriado parece ser o
de reconhecer, para cada situação estudada na evolução urba-
na, os fatores que historicamente geraram estas unidades físi-
cas e sociais.l6 Polis, urbes, burgo, cidade e metrópole são
diferentes denominações para diferentes coisas. Parecidas
entre si, por vezes somos tentados a ver nessa evolução a sim-
ples progressão dessa forma de adensamento. Erramos. Cada
tipo de associação criou na história formas físicas e comporta-
mentos distintos. Ao tecermos um mesmo fio lógico, estamos
de fato diminuindo a coerência que a dinâmica deste adensa-
mento possuía a cada momento.l7 Isto não quer dizer que não
existam analogias e relações evolutivas entre elas, mas estas só
podem ser estabelecidas à medida que vislumbrarmos a intera-
ção necessária que existe, a cada momento histórico, entre a
morfologia urbana e o conteúdo comportamentaJ.I8
Não é, pois, fortuito o fato de que diversos sistemas de com-
portamento tenham raízes etimológicas que remetem às deno-
núnações que caracterizaram, em momentos diferentes, a forma
urbana: cidadania, civilidade, polidez, cortesia, urbanidade.
16 Há muitas rcfcrencias bibliográficasque recobrem este tema, entre as maisconheci·
daseutilizadasaquiestão, entreoutras: Bairoch, P. De Jéricho à Mexico. Villes et éco·
nomie dans l'histoire, Gallimard. Paris, 1985; Benevolo, L. História da cidade,
Perspectiva, São Paulo, 1983; Harouel, Jean-Louis. História do urbanismo, Papirus,
São Paulo, 1990; Lavedan, P. Hístoire de /'urbanisme, Paris, 1926; Mumford, Lewis.
Tfze City in His10ry, Harcourt Brace & Co, Orlando, 1961.
17 Um exemploatual: os tempospós-modernos inspiram, pelaconcepçãode mosaicos,
de pequenasnarrativas, aidéiafrequentemente utilizada de "aglomeração", que tende
asubstituiraexpressão grandecidade.
IB Mais umavez, Milton Santosfoium dospioneiros ademonstrar oritmo diferente
dastransformações nas formas físicas,emfunção mesmodaresistência material delas
emrelação às transformações de conteúdo. Ver, por exemplo, Espaço e método,
Nobel, São Paulo, 1985.
20 ;ú1f
h tas denominações correspondem a conjuntos comportamen-
l.lls :1ssociados a idéias que se desenvolveram a partir de dife-
lt'tlll's concepções da cidade. Tudo muda, a forma física, sua
t•-,tr111 ura, seus valores, sua dinâmica, também as práticas
'•tll'Íil is,os usos, a estruturade poder e prestígio social etc. O que
pnmanece? A relação dialética entre território e política, erigi-
da em um ideal de um determinado desenho físico e de uma
dada arquitetura social. Utopia ·política, utopia urbana; estas
i1nagens sempre se confundiram. Produto de sonhos de perfei-
 ao confrontados com a realidade dialética entre organização
política e dinâmica territorial, a história nos legou diferentes
simulacros reunidos nesta entidade particular chamada cidade.
Em um dos livros de G. Balandier há um capítulo intitulado
"o poder em algum lugar."l9 Nesse texto o autor enfatiza a
11ccessidade de reconhecer na dinâmica do poder mais do que a
"des~rição, a identificação e a classificação das formas políti-
cas; o estudo das funções, dos 'personagens', das práticas e das
representações; a interpretação das formas de controle social e
dos conflitos; a relação do poder com o parentesco, com a estra-
tificação social, com a religião e com o direito". Infelizmente, as
formas simbólicas do imaginário político preconizadas como
renovadoras do estudo sobre a naturezado poder, mais uma vez,
tocam apenas tangencialmente o território, embora o autor
admita que "a relação com a terra é tão valorizada, que o poder
é indissociável de um território, de um espaço político". Acredi-
tamos, modestamente, que a geografia tem condições de de-
monstrar que as práticas e representações do poder têm uma
incontornável dimensão espacial e que as formas de controle
social e do direito se situam em uma posição de dependência
direta em relação às disposições territoriais. Esta é a tarefa que
nos damos aqui, o desafio ao qual nos lançamos agora.
19 Balandier,G. O contorno: Poder e modernidade, Bertrand Brasil, Rio de Janeiro,
1997.
.a&lâ 21
PRIMEIRA PARTE
Duas matrizes territoriais:
Nomoespaço e Genoespaço
1imtaríamos de introduzir este tema com uma discussão
Jlll 11m. parece básica para a definição do alcance e das possi-
ltllitl.tlks de um campo de pesquisas propriamente geográfico:
" 111)'111' da reflexão espacial, suas propriedades, sua importân-
' 11 1' Mia colaboração dentro do domínio das ciências sociais.
1 llltlils vezes, temos lido, em textos de origens diversas, a de-
lj'llill,;iio de "condições geográficas", sendo utilizada para des-
' l l ver os elementos morfológicos e ambientai:> de uma certa
lll l';l. Dentro deste quadro, estas "condições" são vistas como
, ,plit.:ativas, quando não determinantes, de certos aspectos so-
l lilis. Parece, assim, que a geografia pode contribuir apenas
1 lllll a descrição do quadro físico no qual são estudados os
ll'ltômenos sociais e que a única relação possível entre esses
dumínios é aquela que estabelece uma relação simplista de
cklcrminação entre eles.2o
Paralelamente, nos propósitos gerais dos geógrafos, perce-
l1emos uma pretensão muito diversa, que é a de demonstrar, por
L"xcmplo, como o espaço constitui um elemento ativo na organi-
/ação social, ou seja, que ele é de forma simultânea agente e
!U Um dos últimos exemplos éo livro de Landes, David S. Tl!e wealth and poverty oj
nations. Why some are so rirh and some so poor, W. W. Norton & Co., New York,
1998, que aliás recebeu de Souza, Marcelo L. um comentário crítico a propósito des-
sas teses um poucosimplificadoras sobre as "condições geográficas", Rev. Turit6rio,
ll. 8, 1998,pp.l05-9.
.,... 25
paciente nessa dinâmica. Desse descompasso, podemos tirar
duas hipóteses. A primeira diria respeito ao problema de
comunicação ou de diálogo entre a geografia e as demais ciên-
cias sociais, no qual as responsabilidades são divididas, ou
seja, os geógrafos não conseguem, em sua maior parte, desper-
tar o interesse dos colegas de outros domínios sobre os temas
realmente discutidos pela geografia contemporânea;21 a segun-
da hipótese é a de que estes outros campos disciplinares ainda
não conseguiram atentar para a importante contribuição de
uma verdadeira análise espacial na compreensão dos proble-
mas sociais.22
Nenhuma das duas parece inteiramente satisfatória. Sem
fazer do espaço uma categoria central dos seus estudos, a
antropologia, por exemplo, tem, já ao longo de muitos anos,
valorizado esse ângulo como tendo uma dimensão fundamen-
tal na compreensão de certos processos sociais. Um dos exem-
plos mais eloqüentes é o de Claude Lévi-Strauss, que, ao estu-
dar os sistemas de parentesco ou a estrutura social de algumas
sociedades concretas, mostrou que a composição espacial não
corresponde simplesmente à imagem de uma sociedade, seu
reflexo rebatido sobre o plano da extensão, mas também que
essa composição é produtora de sistemas sociais, uma de suas
causas. Mas parece que Lévi-Strauss não é um grande leitor da
bibliografia geográfica, e, infelizmente, os geógrafos tampou-
21 Um exemplo eloqüente é ode Pierre Bourdieu,que,a despeito do seuexemplarestu-
do sobre a casa Kabilia ("La maison ou le monde renversé" in Esquisse d'une théorie
de la pratique, Seuil, Paris, [1972], 2000), em que demonstra a impo11ância estrutural
da dimensão espacial no quadro da vida social, manifestou-se frontalmente contra a
manutenção da geografia nos currículos escolares sob a argumentação de que esta
nunca havia demonstrado seu possível estatuto científico.
22 De fato, esse não é o caso de muitos cientistas sociais de grande renome, entre eles
Fernand Braudel, Michel Foucault, Henri Lefebvre, Artthony Giddens, entre outros,
para quem a dimensão espacial teve sempre uma importância primordial na compreen-
são elos processos sociais. Infelizmente, na valorização de suas obras tem prevalecido
a apreciação de outros aspectos, e a centralidade da análise espacial nas ciências
sociais ainda não se nutre de muitos seguidores.
2G ,1Jlfl..._
tlt p,llt't t'lll inclinados à leitura dos textos antropológicos, e
'1111'1 p• '~'I veis pontes ficaram mais ou menos desertas.
I 111 11111 outro livro consagrado à antropologia, parte-se de
tilli 1 lt ""l' d~.: Gcorges Perec, para se chegar a propósitos muito
p11• llllll:o. dos que aqui estamos definindo como um campo de
111 ·'it ll ~a~ geográfico:
Mudar o lugar de uma praça é mudar na cidade ou mudar de
t'rdade'! E o que é uma cidade? Lugar de uma coisa, lugares de
nlisas em um conjunto que as contém, lugar de um conjunto,
lugares destes conjuntos; relações entre as coisas, entre lugares
das coisas, entre os conjuntosque os contêm; lugares de pessoas,
rl'lações de pessoas com as coisas, com os lugares das coisas.
eutrc elas, entre seus lugares, com os conjuntos que os contêm,
representações destes lugares, destes conjuntos e de suas rela-
çoes etc.23
Ao que parece, essas complexas interações entre lugares,
ruisas, pessoas e comportamentos só podem ser analisadas se
IIJ<tntivermos em sua base uma visão dialética, em suas mais
v;triadas combinações, ou seja, evitando-se tomá-las como se
'stivessem simplesmente dispostas em um círculo de determi-
IJaÇões.24 A tarefa não é simples.
Na famosa querela que opunha os marxistas "althusse-
ri<mos" aos "historicistas", um elemento fundamental da con-
trovérsia era o estatuto de independência do espaço.2s Para os
assim chamados historicistas, o espaço é uma "instância" onto-
lógica, no mesmo patamar do capital e do trabalho, ou seja, a
~· Paul-Lévy, F. & Segaud. M. Anthropologie de /'espace, collection Alors, Centre
Gcorges Pompidou, Paris, 1983, p. 19.
1~ Notemos o paralelismo desses propósitos com aqueles defendidos por Santos,
~ilton como definidores de um campo de pesquisas geográfico, em A 11atureza do
espaço. Técnica e tempo. razüo e emoçüo, Hucitec, São Paulo, 1996.
25 Os termos desse debate são muito bem apresentados por Gottdicncr, Mark, A produ·
çcio do espaço urbano, Edusp, São Paulo, 1993.
.al.ul 27
forma espacial é parte do processo de reprodução social. Para
Lefebvre. por exemplo, há um espaço de consumo. mas há
simultaneamente um consumo do espaço, ou seja, o espaço
também é propriamente um objeto de consumo. As relações
socioespaciais estão presentes no modo de produção e o espa-
ço atua, simultaneamente, como produtor e como produto,
como relação e como objeto.26 Esta posição é contrária àquela,
exemplificada por M. Castells, que concebe o espaço como
uma unidade específica onde atua a articulação geral das ins-
tâncias (econômica, política e ideológica), ou seja, onde a
forma espacial, neste caso o urbano, é um subsistema comprá-
ticas análogas às do sistema estrutural; ele é assim uma unida-
de particular onde se reproduz a força de trabalho.27
A repercussão desse debate na geografia não foi tão grande,
muito embora devamos admitir que a obra de Lefebvre tenha
sido muito bemrecebida por parte de alguns geógrafos que nela
encontraram efetivamente a afirmação da independência de um
campo analítico para o espaço e, p01tanto, um estatuto episte-
mológico novo para a geografia. No geral, no entanto, a dialéti-
ca na geografia parece ter tido um emprego quase sempre bas-
tante limitado.
Ela foi utilizada como uma simples extensão das catego-
rias tradicionais do discurso marxista elevadas a parâmetros
essenciais: lutas de classe/segregação espacial, acumulação de
capital/divisão territorial do trabalho, produção do espaço/
reprodução social. A dialética foi ainda mais amplamente re-
clamadana idéia de um espaço geográfico, fruto da relação en-
tre natureza e sociedade. No caso dessa imagem, no entanto,
essas categorias foram comumente tomadas como dados, coi-
sas, e não como construções históricas, e fatalmente se costu-.
26 Lefebvre, H. Laproduction de I'espace, Anlhropos, Paris, 1975.
21 Para uma apreciação crítica desse debate fundada sobre um estudo de caso ver, por
exemplo, Santos, Carlos Nelson F. Movimenros soriais urbanos no Rio de Janeiro,
Zahar ed., Rio de Janeiro, 1981.
28 )lf1J
111 t'Hcai r na armadilha de um espaço sobredeterminado so-
l Itltlll'llh.!, ou para simplificar, a cada modo de produção cor-
' L pnndl'ria um espaço-tipo.
<'n tamcnte, essa concepção é mais um sintoma da doença
•111p111sta queexiste latente na geografia, e que, de vez em quan-
tln. dl'llagra um novo surto de febre morfológica, impondo seus
t .p11s111Údicos acessos de razão classificatória.28 A despeito
tlll.ln, u dialética pode nos ajudar a compreender conceitos que
.t t•xprimcm por meio de jogos de oposições e confrontos, tais
1 tlllll•os de moderno e tradicional, de novo e velho, de público e
Jlllvauo, de relações contratuais e relações contextuais e, sobre-
ltltl(1, de forma e conteúdo.
É dentro dessa perspectiva que tentaremos trabalhar aqui,
''"piorando as possibilidades desses jogos de confronto. Ao lado
d.ts categoriasjá consagradas, propomos duas outras, que. acre-
dilamos, sãoformas propriamente geográficas de pensar o espa-
'Oemrelação direta com a sociedade, e, por isso,chamamo-nas
de matrizes. Nesse sentido, o significado de matriz é aquele dado
pela matemática, de um quadro de relações entre n colunas e p
linhas. Podemos, todavia, acrescentar que uma segunda signifi-
cação vem se somar à primeira, esta de ordem técnica, como de
uma forma que serve para reproduzir uma certa marca sobre um
objeto submetido à sua ação. Acreditamos assim que as caracte-
rísticas contidas nessas duas matrizes constituem marcas durá-
veis, profundas e distintas de conceber e de viver o espaço, e
resultam em modelos igualmente distintos de refletir sobre a
dimensão política do espaço; por conseguinte, de escrever uma
geografia política. Pretendemos, assim, criar as condições para
28Groethuysen nota com propriedade que esse comportamentoclassiftcatório é caroà
época de nascimento do "gênio burguês" e sua obsessão pelos museus, coleçôes, jar-
dins botânicos e zoológicos; todo um momento de valorização da nomenclatura que
procura reunir parte da dispersão em um pequeno mundo construído e ordenado. A
geografia moderna é filha desse momento, e por isso, talvez, um dos grandes projetos
que mobilizou grandes nomes foi o de escrever uma geografia universal, espécie de
catálogo de toda a diversidade contida no mundo. Groethuysen, B. Philosophie de la
révolutionjrançaise, Gallimard, Paris, 1956.
• 29
um diálogo explícito com outros domínios das ciências sociais
que trabalharam o mesmo campo da política sob outros ângulos
preferenciais: a antropologia, a história, a sociologia e, propria-
mente, a ciência política.
Para dar início a essa reflexão, suponhamos, por um ins-
tante, que haja apenas esses dois modelos fundamentais e
excludentes de relação entre um grupo de pessoas e o território
onde vivem: o nomoespaço e o genoespaço.
30 )lflJ.
I - O nomoespaço
N.t p1imcira forma, essa relação da sociedade com o espa-
1" p11·ssupõc a existência de indivíduos, ou seja, unidades
11111lllllllaS, com variadas gamas e níveis de expectativas, inte-
" ,,,..., pmpostas e práticas sociais. As diferenças entre esses
111rllvld11os são, em princípio, infinitas, e os únicos fundamen-
, , ,., ,.,1111lll1S são a consciência da diversidade e a crença de que
1 11,•,nciação dessas diferenças pode ser a estratégia mais ade-
q11.1d.1 para se ter êxito na realização de seus interesses, tanto
ll'llll'll:s que são gerais quanto os particulares a cada um. Para
, ''"segui-lo, é necessário que se estabeleçam bases formais
lfl",sa associação, contratos que limitem, coíbam e punam cer-
111 ~ aritudes em nome do equilíbrio do conjunto. Ao mesmo
,,.,,,po, essa associação deve garantir, resguardar e proteger
dl'lerminados direitos e liberdades que constituem os maiores
lll'ncfícios supostos nessa cooperação.
A forma de traçar um limite entre o condenável e o desejá-
vl'l- entre o que deve ser objeto de coerção e a garantia dos di-
tl'itos- é a criação de um código de normas para regular, de
lnrma estável, geral e lógica, a dinâmica social. Daqui por
diante, chamaremos simplesmente esse conjunto de regras de
lei. A palavra latina para direito é jus, o mesmo radical que de-
' ivou em justiça, aplicação objetiva de normas sociais preven-
tivas e punitivas feitas em nome do bem comum. A diferença
entre o que é legal e o que é justo constitui matéria de amplo
debate nas ciências j urídicas, mas o direito ou a lei, dentro de
.,. 31
..
um sistema social fundado na lógica, sempre tem como princi-
pal justificativa para sua existência e seu exercício o princípio
de justiça.
Como se trata de uma associação entre indivíduos, com
variados graus de investimento e interesses, com uma variada
capacidade de julgamento e de adesão a esse conjunto, a lei
pretende ser a garantia dos limites da liberdade comportamen-
tal dentro de um espectro de atitudes possíveis e plausíveis ao
conjunto das pessoas.
Compattilhamos da crença de que essa forma de sociedade
tem como elemento fundamental de regulação e de ordenamen-
to a disposição espacial, ou seja, a lei se exprime pela forma
como as coisas estão organizadas e distlibuídas no território
segundo uma coerência formal que é lógica e deve atender aos
preceitos estabelecidos pela idéia geral, e um tanto quanto vaga,
de equilíbrio entre o bem comum e as liberdades individuais.29
Esses limites entre os princípios gerais coercitivos que devem se
justificar pela idéia de bem comum e o domínio da liberdade
individual são um dos temas recorrentes entre os teórico~ que se
debruçaram sobre ajustiça social no seio dos Estados modernos.
Para Jean-Jacques Rousseau, a lei é a expressão de uma
unanimidade consensual, estabelecida e justificada pela racio-
nalidade, que pode serresumida na fórmula da ''vontade geral".
Assim, para ele, "a obediência à lei prescrita por nós mesmos é
Iiberdade".30 Para Hobbes, a tensão entre a dimensão humana,
natural, e a cidadã, nascida de um pacto social, só pode ser paci-
ficada pela aceitação de alguns princípios fundamentais de obe-
diência: "A obediência e a liberdade são contrários rígidos."3l
29 Maquiaveljá propunha a concepção do território como um fator essencial na dura-
bilidade da lei.
JO Rousseau, Jean-Jacques, Discours sur /'origine et les fondeme/1/s de l'inegalité
parmi les hommes, Gallimard, Paris (1755), 1964, p. 365.
31 Mannet, Pierre. "Thomas Hobbes" in Dicionário das obras poUticas, Chatelet, F.;
Duhamel, O.; Pisier, E. (org.), Civilização Brasileira, Rio de Janeiro, 1993, p. 497.
32 )lJ1f
1 ~sitn, a liberdade é tanto maior quanto for a ausência de obs-
l.tt tdos c entraves para realizarmos nossa vontade.
Mais recentemente, Isaiah Berlin, ao examinar as perspecti-
 us desses autores, desenvolveu uma concepção que opõe dois
tlpns de Liberdade. Uma liberdade negativa, definida pela sim-
pll-s ausência de obstáculos, e uma liberdade positiva, estabele-
t ltl:i pela disponibilidade de meios para realizarmos certas
11tll.'S, sendo esta disponibilidade a condição primeira para uma
Vl'tdadeira autonomia.32 Ele reagiu assim contra os regimes
;HtloritáJios, que confundem muito facilmente a vontade geral
1 tllll a vontade indivjdual, posição rousseauniana, e simultanea-
tllt'ntc contra ajustificativado absolutismo hobbesiano. Sua cri-
ltra se estende da mesma maneira contra o excessivo laissez-
foire liberal que, de Locke a Stuart Mill, na Inglaterra, e de
<'nnstant a Tocqueville, na França, pretende que possa existir
ullla efetiva liberdade quando sabemos que os meios disponí-
wis para o seu exercício não são de forma alguma distribuídos
'I'Ualmente.33
O fato fundamental para nós nessa discussão é que as dife-
ll'ntes compreensões do estatuto desejável para a liberdade
ciL·I"inem limites diversos de esferas de poder e de autonomia
l'tltre o Estado e os indivíduos, e que estas esferas correspon-
dem a limites físicos, espaciais e comportamentais entre um
domínio público e um domínio privado.
'-' Essa idéia de liberdade positiva, em grande parte, tem justificado a chamada polfti-
L"H da discrimina,·ão posiriva nos EUA, pois, na medida em que a liberdade de um
grupo foi violada por outro, este último tem o direito de receber dos responsáveis por
essa violação um ressarcimento que recolocará o primeiw grupo novamente em posi-
o;ilo de conquistar uma autonomia.
11 Para maiores esclarecimentos e detalhes sobre esse ponto, sugerimos a leitura do
livro de Berlin, Isaiah, Four essays onliberty, Oxford University Press, Oxford, 1969,
especialmente o capftulo III, "Duas concepções da liberdade". Para um ponto de vista
crítico, ver também: Miller, David, Liberty, Oxford University Press, Oxford, 1991 .
.al.u 33
A lei, como convenção que é, pressupõe limites físicos
para seu vigor e extensão, extensão esta que é também coinci-
dente com os limites da efetividade do poder que as promul-
gou: "O território [um dos três elementos constitutivos do
Estado moderno] torna-se o limite da validade espacial do
direito do Estado, no sentido em que as normas jurídicas ema-
nadas do poder soberano valem apenas dentro de determinadas
fronteiras."34 Assim, a instituição da lei diferencia espaços à
medida que exclui aqueles que não são por ela atingidos; então,
cria e formaliza territórios de inclusão e de exclusão social. No
interior do tenitório no qual se aplica, no entanto, ela é equâni-
me; em outras palavras, o espaço sobre o qual se projeta a lei é
composto de equivalências, ou seja, ainda que materialmente
diferente, esse espaço deve ser visto, sob o ponto de vista do
direito, como o terreno abstrato de uma isonomia.
Nós estamos acostumados a entender lei e direito no sentido dos
dez mandamentos, enquanto mandamentos e proibições, cujo
único sentido consiste em que eles exigem obediência e que dei-
xamos cair no esquecimento, com facilidade, o caráter espacial
original da lei.Toda lei cria, antes de mais nada, um espaço onde
ela vale, e esse espaço é o mundo onde podemos mover-nos em
liberdade. O que está fora desse espaço está sem lei e, falando
com exatidão, sem mundo; no sentido do convívio humano, é
um deserto.35
Uma conseqüência direta disso é que os limites desse terri-
tório são precisos, tanto globalmente como nas diversas hierar-
quias em que se subdividem a administração e a gestão dessas
34 Bobbio, Norberto. Estado, governo, sociedade: Para uma teoria geral da polftica,
Paz e Terra, Rio de Janeiro, 1992, p. 94.
35 Arendt, H. O que é a política?, op. cit., p. 123.
h 1111 ~ A~. arcas de fronteiras não têm transição; são linhas ela-
"' 1 dl' tllarc..:ad<~s com precisão e rigor.36 Heráclito comparava
"'"" ltlt~·ao das muralhas urbanas ao estabelecimento das leis
11 llllll'l:bia como processos correlatos à criação de uma
ld 11h· IJma polis definia-se assim, para ele, como a fronteira
.t,, , t1111ms c de suas leis.
A lei é a circunvalação-fronteira produzida e feita por um homem,
dl'lllro da qual nasce então o espaço da verdadeira coisa política,
1•11de muitos se movem livremente. Por isso, Platão invoca Zeus,
t 1 protetor das fronteiras e dos marcos, antes de pôr mãos à obra e
JIHimulgar suas leis para uma cidade recém-fundada.37
lpwlmente, o exemplo romano, que formalizou a idéia do
dtll'tlo e da lei, é, também nesse caso, bastante eloqüente e,
t.l'}'.lllldo Moatti,
a história romana começa sob o reino da obsessão dos confins
(...).Delimitar, marcar seu território: tal é a dinâmica da funda-
~ão da cidade- e de toda cidade. Tal é igualmente o da conquis-
ta: a de terras e sua organização, a redistribuição da propriedade,
acompanham-se de uma divisão do solo e de uma delimitação
das parcelas, necessitando de instrumentos de medida iguais e
precisos e, sob o Império, é pela organização defensiva das fron-
teiras que se encontram garantidas a integridade e segurança do
Império. Centuriation e limitatio, pomerium e limes, eis aí as
.16 São conhecidos os diversos estratagemas (transporte dentro de cestos. disfarces etc.)
ulilizados pelos romanos para transpor as muralhas da cidade e, assim liberados das
leis e das penas, podiam dar livre curso a ações que eram condenadas dentro dos limi-
lcs da ~idade, sem prejuízo dos ideais da dignidade e da virtude, sempre tão valoriza-
dos na cidade. Neste exemplo é muito clara a estrita coincidência entre os limites fisi-
cos e os limites da transgressão que marcam esta idéia de nomoespaço. Ver a esse res-
peito, Veyne, Paul, "L'Empire romain" in llisiOire de la vie privée, Ariês, P. & Duby,
G. (dir.), Seuil, Paris, !999, I'Oll, pp 17-214.
37 Arcndt, Hannah. Oque é a política?, op. cit., p. 1!4.
... 35
formas romanas de organização do território. A propriedade pri-
vada, a cidade e o Império devem estar circunscritos e rigorosa-
mente definidos.38
Vemos nessa descrição como a delimitação espacial é soli-
dária e está associada à organização social. Poderíamos mesmo
dizer que essa "obsessão" de delimitar, denominar, classificar,
em suma, ordenar o território, é uma condição fundadora do
fenômeno social. Quando comparamos o comentário acima
com a observação de um outro historiador, especialista da
Idade Média - segundo o qual, "os limites feudais desespera-
ram durante muito tempo os medievistas. Eles os viam tão
mutáveis, tão complexos, tão imprecisos, que se recusavam
mesmo a descrevê-los e a desenhá-los" -, percebemos a rele-
vância desse processo de delimitação e classificação normati-
va do território como definidora de uma dinâmica própria e
singular que estamos chamando aqui de nomoespaço.39
Percebemos também quanto essa relação pode se apresentar de
forma diferente e resultar em outras dinâmicas quando este
processo não tem o mesmo curso, como é o caso majoritário na
organização da sociedade medieval.
As pessoas que transitam por esse espaço normatizado,
entretanto, nem sempre são objeto da mesma lei que rege o
conjunto associativo, ou seja, há maneiras também regulamen-
tares de distinguir os compromissos formais, as normas que
regem os direitos e os deveres, de indivíduos diferentemente
associados ao espaço. Em Roma, por exemplo, distinguia-se o
jus civitatis, direito composto de normas referentes apenas
àqueles que detinham a cidadania, ou o direito àcidade, do jus
gentium ou jus peregrini, concernente aos homens livres não-
JB Moatti, Claude. Archives et panage de la terre dans /e monde romain, École
Françaisc de Rome, Paris, 1993, p. 3.
39 Guenée, Bernard. << Des limites féodales aux frontieres polítiques ''• in Nora, Pierre
(dir.) Les /ieu.x de mémoire, Gallimard, Paris, 1997, pp. 1.103-46.
3G .nrú
1 ulndãos que também habitavam ou transitavam pelos domí-
llllls do Império.
Segundo essa compreensão, o direito à cidade é próprio a
1 mla povo e denota o domínio de um certo grupo sobre um ter-
•110rio onde ele desfruta de privilégios e direitos superiores aos
doqucles que não têm compromisso com a reprodução das rela-
't)l.lS formais e da manutenção do controle social sobre esse ter-
1itório. Da mesma forma, o acesso de elementos estranhos à
associação fundada nesse espaço é também objeto de regula-
llle!ltações e coerção, tudo isso sob a perspectiva da preserva-
':lo do bem comum dos membros privilegiados, signatários do
ronlrato social original e emanados das leis que regem esse
lerritório.
Dentro dessa maneira de se relacionar com o espaço, é
m:cessário constatar que cada unidade territorial interior, ou
subdivisão do conjunto global, corresponde a competências,
l'unções e esferas bem-delimitadas com atributos e práticas
diferentes. O espaço é hierarquizado, assim como os poderes
que sobre ele são exercidos. Sua estrutura é complexa, assim
como o são as disposições formais (da lei) que o regem e con-
trolam sua dinâmica. A esse tipo de relação social com o terri-
tório demos o nome de nomoespaço, ou seja, uma extensão
física, limitada, instituída e regida pela lei. Trata-se de um
espaço definido por uma associação de indivíduos, unidos
pelos laços de solidariedade de interesses comuns e próprios, e
pela aceitação e aplicação de certos princípios logicamente
justificados.
Idealmente, esse espaço define um limite de adesão volun-
tária. Nesse sentido, trata-se hipoteticamente de um espaço
inclusivo, pois para todos aqueles que se propuserem a obede-
cer à ordem é, em princípio, garantido o acesso em igualdade
de situação com os outros. Na prática, essa adesão se faz
segundo os interesses daqueles que controlam a associação e
~ 37
pode variar em função dos diferentes contextos dos momentos.
Mais uma vez, embora o direito de acesso seja livre, ele deve
sempre estar submetido àidéia do bem comumdas pessoas que
compõem essa associação ou a controlam.
Um bom exemplo disso nos é dado pelos procedimentos
que levavam à concessão da cidadania, que datam dos primór-
dios das cidades gregas na Antigüidade, especialmente em
Atenas. Antes de conceder direitos políticos a alguém que não
tivesse nascido de outros cidadãos da polis, esse indivíduo
deveria passar por diversos processos que demonstrariam sua
capacidade e empenho em renunciar aos costumes de sua área
de origem e simultaneamente demonstrar, conhecer, respeitar e
defender as leis que regiam a ordem daquela polis.40 Nesse
caso, em particular, a naturalização era um processo muito
difícil e raro, embora fosse sempre citada como uma possibili-
dade.4I Assim, fazer parte dessa associação, desse espaço, sig-
nifica aceitar suas regras, endossar os contratos que unem os
indivíduos e, conseqüentemente, preservar os limites da lei,
limites territoriais e sociais. Significa também renunciar a to-
das as outras formas de regulação do comportamento que
entrem em conflito com o código de conduta estabelecido
nesses domínios. Até hoje, na maioria das sociedades contem-
porâneas, as cerimônias de outorga da cidadania seguem o rito
que prevê a assinatura de um contrato de adesão e umjuramen-
to, pronunciado solenemente, diante de uma autoridade jurídi-
ca, juramento este que implica fidelidade e aceitação das con-
dições normativas do país ao qual está sendo demandado o
direito à cidadania.
Além de ser aberta a novas adesões, essas sociedades se
40 Ver, por exemplo, Baslez, Marie F. L'étrallger dans la Grêce Antique, Les Bclles
Lettres. Paris, 1984.
41 Havia duas definições de estrangeiros para os gregos, uma política, os não-cidadãos,
e outra cultural, os bárbaros. Baslez, Marie F. op. cit.
38 fi1J
•'· l11wm pela estabilidade dos princípios legais que as origi11a-
, 1111 llú, por assim dizer, princípios fundamentais que dão
I• ''"'"econtorno legais a todos os outros instrumentos norma-
11 't.~ Llllllplementares e funcionam como base de legitimidade
111~.o legisladora ulterior.42 Os outros instrumentos legais que
,,,..,,.,,uram seu funcionamento, no entanto, são mutáveis e ten-
dnll a ser revistos segundo uma lógica de aperfeiçoamento e
ptn)•rcssividade. É importante perceber que estes grandes prin-
• lptos que originam as associações estão sempre relacionados
,t tutidades territoriais formais, também mais ou menos está-
' •.,.. ( 'ontudo, a gestão interna do território, suas subdivisões,
.n.ts competências e sua forma de hierarquia e controle são,
pl'tltlanentemenle, objeto de debates e mudanças.
I transgressão à lei é, nesse sentido, o único crime e nos
'.t'liS mais graves ela deve ser penalizadacom a completa exclu-
, tu, social e territorial. Mais uma vez, o exemplo grego é enfáti-
' •1; atinai, quase tão grave quanto a condenação à morte era o
~ ~~lracismo, que significava, simultaneamente, uma "morte sim-
ln•lica" acrescida da humilhante expulsão, que implicava perder
iudos os direitos relativos àquele território (muito embora exls-
t1sscm penas de ostracismo com duração de apenas alguns anos,
rolllumente dez anos). Em nossas sociedades contemporâneas,
l•cqüentemente, as penalidades impostas pelo descumprimento
das leis podem conduzir ao encarceramento, que corresponde
igualmente a uma exclusão teJTitorial.43
Este nomoespaço é assim construído de maneira a expri-
mir relações formais de pertencimento, mas sobretudo de orde-
namento. Assim, cada instituição social dispõe de sua área de
lZ Estamos pensando aqui nos princípios constitucionais da maioria das sociedades
modernas.
11 Na França, paraosestrangeiros, há a dupla pena, ou seja, oencarceramento em uma
prisão no território francês, seguido da expulsão do país após o cumprimento da pena-
lidade.
controle e vigilância, as práticas sociais são regulamentadas no
espaço, e os signos de delimitação territorial são inequívocos.
As interdições e a coerção são sempre matéria de comunicação
e sinalização territorial, ou, em outras palavras, o espaço é
internamente qualificado por uma regulamentação formal e
uma visibilidade explícita de suas normas e fronteiras. Os rela-
cionamentos tendem a ser impessoais e regulares dentro dos
limites das diferentes esferas socioterritoriais. Dessa maneira,
há marcos territoriais que delimitam esferas de práticas regula-
res, e eles são, simultaneamente, a condição para que essas prá-
ticas existam e o reflexo delas.
De fato, esse tipo de espaço é a base que funda uma socie-
dade de contrato. O nomoespaço é assim uma condição neces-
sária para que se configure a idéia de um pacto social do tipo
contratual. Diferentes pactos dão origem a diferentes composi-
ções espaciais. Um breve percurso histórico pode nos ajudar a
compreender essas distinções e algumas características essen-
ciais das sociedades fundadas sobre a idéia de um espaço nor-
mativo, regulador e formalizador de práticas.
Os espaços contratuais: Exemplos e dinâmicas
A cidade grega, o fato político que funda a sociedade oci-
dental, estabelece um novo vínculo social, não mais a função
de uma comunhão religiosa, familiar ou da submissão a um
mesmo .monarca, e sim da integração de indivíduos, como
sujeitos de direito, de uma nova associação, fundada na co-
participação de uma soberania política. Assim, a polis grega
cria um novo domínio da vida coletiva e redefine seus quadros
físicos e comportamentais.
A simetria igualdade e reciprocidade das relações entre
esses novos personagens sociais, os cidadãos, definidos pelas
40 ft1J
I['' <il' isonomia de Clístenes, pressupõe um novo arranjo espa-
1li,lll'spaço dapolis é então pensado e figurado como um cír-
' 11111 Ao centro, a ágora, antigo espaço aberto destinado ao
1111 1~ ado, é desde então delimitado e ganha o estatuto de espa-
ll llllhlico, lugar de encontro dos isoi (iguais).44
llssc espaço público só se torna político quando assegurado
numa cidade, quer dizer, quando ligado a um lugar palpável que
possa sobreviver tanto aos feitos memoráveis quanto aos nomes
dos memoráveis autores, e possa ser transmitido à posteridade na
seqüência das gerações. Essa cidade a oferecer aos homens mor-
tais e a seus feitos e palavras passageiros um lugar duradouro
constitui a polis - que é política e, desse modo, diferente de
outros povoamentos, porque originalmente foi construída só em
torno do espaço público, em torno da praça do mercado, onde os
livres e iguais poderiam encontrar-se a qualquer hora.4s
A antiga distinção entre cidade baixae acrópole, fortemen-
le hierarquizada, de acesso discricionário, dissolver-se em uma
abstração geométrica. A localização do bouleutério (assem-
bléia), recém-criado, entre a colina e a ágora, ajuda a dissolver
a antiga hierarquia.46 A distinção fundamental do espaço já não
é entre o sagrado e o profano; agora se trata das distinções
entre o público e o privado (oikos).
A dessacralização·do espaço foi uma das primeiras conse-
qüências e pode ser avaliada, por exemplo, no imediato impe-
dimento de enterraros mortos dentro dos limites definidos pela
muralha das cidades. Assim, a ancestralidade deixa de fazer
44 Grande parte dos elementos dessa descrição se encontram em Vernant,
Jean-Pierre. Mythe et pensée chez les grecs, Maspero, Paris, 1980, especial-
mente no capítulo 3, "L'organisation de !'espace".
45 Arendt, H., op. cit., p. 54.
46 A esse respeito, consultar Vernant, Jean-Pierre, op cit., pp. 207-22.
42
parte da ordem primária da polis. Em parte dessacralizado, o
espaço ganha um novo estatuto: espaço público. O culto a
Réstia, deusa dos lares, tradicionalmente mantido no interior
de cada casa, passa a ser um culto comum e público, com o
templo no centro da aglomeração.
Isso não quer dizer que os grupos familiares perderam toda
a sua antiga importância. Na verdade, os oikoi continuaram a
ser a base da organização social, sua associação na fundação da
polis definia uma organização social, e fundada na idéia de um
ethnos (povo). Esta é a explicação comumente apontada para
se compreender a razão pela qual os limites das democracias
gregas nunca tenham ido além da unidade básica da cidade,
pois nesta se configurava o quadro estreito da vida das ethne.
Assim, a reforma de 507 a.C., que estabeleceu a isonomia e
as trinta circunscrições de Atenas, mudou completamenteos cri-
térios legais de pertencimento, que passaram a ser unicamente a
cidadania e o lugar de domicílio. Essa nova organização substi-
tuiu o modelo exclusivo de funcionamento das cidades, que era
dado pelas grandes e tradicionais familias, que monopolizavam
completamente os direitos civis e fundiários obtidos pelo con-
trole sobre as parcelas de terra, os kleros, e que mantinham sua
exclusividade e prestígio pela ocupação dos cargos e obrigações
políticos e militares. O que se denomina até a reforma de
Clístenes como polis era, assim, o agrupamento de habitações e
templos, e as áreas de atividade agropastoril que formavam a
chora e pertenciam aos aristocratas. A transformação do genos
em demos, ou seja, a passagem de uma comunidade étnica a
uma sociedade civil, aliás, foi um fenômeno limitado às cidades
do Sul da península balcânica, e no Noroeste a tônica foi a per-
manência de uma aristocracia apoiada em grupos de afmidade
familiar continuar no poder das cidades. Todavia, a partir de
Atenas e nesse momento, a polis passa a ser também a denomi-
nação dessa sociedade civil isonômica, sede do poder cidadão,
tltt l11s1iluiçõcs que a definem, e sua imagem passa a se confun-
1ll1 ttll1 n própria morfologia urbana que a abriga.
(I :--l'culo de Péricles, comumente visto como um rnomen-
111 dt 11pogcu das cidades gregas e, sobretudo, de Atenas foi de
11111 11111 primeiro marco de mudanças ocorridas dentro dessa
l111111ra inicial da polis. Com essas mudanças surgem novos
,''"IIHlllt.:ntes na vida social grega, que vão assim ensejar novas
1 I",,.s tio espaço, novas hierarquias, novos segmentos sociais,
lllil is uma vez, isso demanda necessariamente um novo
lll •llljll espacial.
<) modelo hipodêmico, sua divisão em três grandes classes
olt lwhit.antes, que correspondem a três funções (artesãos, agri-
l llll mes e guerreiros) e a três tipos de estatuto do espaço
1'-111'' ado, público e privado), dispostos em uma grade ortogonal,
• u lonna dominante das novas cidades e corresponde a uma
1111Va imagem de proporcionalidade geométrica que substitui a
IJ'IIiddadc aritmética do círculo. Este modelo é aplicado larga-
lllt'llte nas colônias da Sicília e do Mar Negro ou na reconstrução
d11~. cidades destruídas pela guerra, como a de Mileto, ou ainda
1u•s 11ovos empreendimentos, como no porto do Pireu.
A difícil comunhão entre estes dois tipos de organização
,...pacial da polis serviu, aliás, de tema para uma comédia de
/1istôfanes, As vespas, que, por intermédio do personagem de
11111 arquiteto, procurava demonstrar a difícil conciliação entre
II II W sociedade que pretendia a isonomia, a forma circular, e
lltl, mesmo tempo, a hierarquia, traduzida na forma ortogonal.
Ml'lon, o personagem arquiteto, constrói assim uma imagem
,·spacial absurda, propondo a quadratura do círculo, que
tklllonstra de certa forma o paradoxo mesmo de imaginar uma
hierarquia entre iguais: "Eu tomarei minhas dimensões com
llllla régua e as aplico de maneira a inscrever o círculo em um
quadrado. No centro haverá uma praça pública, aonde chega-
...
rão as ruas retas; convergindo para o centro, como um astro
redondo, partirão em todas as direções raios retos."47
Outro fato inédito e de grande repercussão posterior trazi-
do pela nova composição socioespacial dapolis grega é a idéia
de um Direito Urbano, que vai se aplicar e que irá reger o
desenvolvimento desses espaços. Desde o momento em que a
cidade começa a ser vista como o lugar de uma sociedade civil,
isto é de uma comunidade política de cidadãos, o arranjo espa-
cial passa também a ser matéria de exame e intervenção do
público. Assim, são votadas leis de regulamentação e constru-
ção, estabelecidas segundo critérios gerais e justificados por
razões de saúde, higiene, segurança, mas também de ordem
estética. Na cidade de Pérgamo, por exemplo, as novas cons-
truções eram objeto de regras muito precisas e rigorosas, e o
não-cumprimento delas era passível de multas, demolições e
de condenação dos seus construtores.48
O Direito Urbano vai conhecer umdesenvolvimento muito
mais amplo em Roma, onde quase todos os elementos de um
código de obras, recuo, altura, proporção, tamanho etc. esta-
vam previstos e eram supervisionados por funcionários espe-
cialmente delegados para essa missão. Entretanto, o fato mais
importante que marcará fundamentalmente esta forma de pen-
sar o espaço são as inéditas noções de legalidade e legitimida-
de, aplicadas também na produção do espaço construído.
Aliás, segundo Ferry, há uma solidariedade básica entre os
princípios de legalidade, inscritos na gênese do estado de direi-
to, e o de civilidade, que explica a gênese da sociedade civil.49
A República romana e posteriormente o Império foram,
como repetidamente nos afirmam, os herdeiros e prolongadores
do espólio grego. Trata-se também de uma sociedade funda-
47 Citado por Blanquart, Paul. Une ilistoire de la vil/e: Pour repenser la societé, La
Découverte, Paris, 1977, p. 52.
48 Martin, R L'Urbanisme dans la Grêo: Antique, Picard, Paris, 1956.
49 Ferry, Jean-Marc. "CiviliLé, légaciLé, publicité", Urbcmisme, n. 318, pp. 58-61.
44 )lf1f
lttl'111.1da primordialmente sob um ideal contratual e formalista.
11111.1 dlli.:rcnça em relação àcidade grega, no entanto, deve ser
11111 tllalamcnte percebida no que diz respeito ao grau de inclu-
I! '' dv Roma em uma mesma unidade jurídico-política dos
tllt'l:o.os espaços e pessoas sob seus domínios em comparação
'1 1111 a manutenção de fronteiras socioespaciais, um tanto quan-
h111g1das, da polis grega. Na verdade, a cidadania romana vai,
111111 o tempo, reafirmando cada vez mais uma vocação univer-
'llillsla..'0
I>csde muito cedo, Roma começa a conceder a cidadania
fp, uristocracias das cidades aliadas. Para que tal processo fosse
ll'lilllado, exigiam-se a adoção do Direito Romano e a renún-
' 1.1 a loda outra forma de costume que pudesse ferir essa legis-
l.l~·ao, podendo, no entanto, cada cidade permanecer com suas
lllt'rarquias internas preservadas, sua língua, costumes e reli-
••H>l'S. Na maior parte dos casos, esse processo incluía a orga-
111/ação física de uma nova cidade, quando não a reforma de
LILHa antiga e a adoção de um arranjo espacial semelhante ao
pmlrão romano.s1 De fato, a relação formal entre o estatuto
político da população e o estatuto territorial sempre foi uma
das marcas fundamentais da administração romana, e isso per-
sistiu até o decreto de Caracala no ano de 212. Assim, podem-
~l' distinguir três classes de territórios, a colônia, composta, a
fJriori, por cidadãos de procedência romana ou latina, em geral
'11 Ern princípio, a aquisição da cidadania romana passava pela transformação das
•omunidades aliadas em municípios. Entre os séculos 1e illa.C., o número de cidadãos
H'l'Onhecidos variou bastante, e, repetidas vezes, os direitos civis de alguns grupos
ln1am suspensos, mas manteve-se uma ordem de grandeza de mais ou menos 300 mil
mladãos. A chamada "'guerra social" impôs o reconhecimento de todos os ''italianos"
,·omo estratégia de paz, e esse número passou então em 70 a.C. a 910 mil pessoas. A
partir de então, esse efetivo não cessou de aumentar com a incorporação progressiva de
novos cidadãos das províndas, até o ato do imperador Caracala, em 212, quando final-
lilente todos os habitantes livres do Império se transformaram em cidadãos.
~ 1 llomo. Leon. Rome impériale et l'urbanisme dans l 'amiquité, Albin Michel, Paris,
1971, e David, Jean·Michel. La République romaine: De la deuxieme guerre punique
!lia baraille d 'actium, 218-31, Seuil, Paris, 2000, p. 172.
.aa.... 45
veteranos do exército; o município, onde uma elite latina ou
local podia pretender obter a cidadania, mas a maior parte da
população ficava excluída desta condição, ainda que todos
estivessem submetidos ao direito civil romano (sobretudo às
regras do conu.bium e do commercium); e as cidades peregri-
nas, submetidas ao poder romano, mas completamente excluí-
das dos direitos civis, e que fundonavam segundo as normas
do direito consuetudinário local. Em muitos casos, na Gália, na
Espanha ou na Anatólia, a autoridade dos grupos familiares e
clânicos se dissolveu com o tempo, em face da autoridade dos
pretores romanos, uma vez que, contrariamente ao caso das
cidades gregas, o poder e gestão não emanavam diretamente de
um corpo civil, mas sim das magistraturas. Dessa forma, tal
administração centralizada e sempre submetida às instituições
romanas foi freqüentemente acompanhada da criação de uma
aristocacia-cidadã e da adoção crescente do Direito Romano, o
que terminou por transformar o estatuto de uma grande parte
destas cidades peregrinas em municípios.52
Há também uma outra diferença não-negligenciável em
relação à Grécia Clássica, referente ao papel permanentemente
ativo de uma aristocracia romana e, portanto, de uma distinção
social de base entre patrícios e plebeus. Ainda que desde a pro-
mulgação da Lei das Doze Tábuas, no século V a.C., ou seja,
antes da grande expansão romana, o direito do populus tenha,
sobretudo no que diz respeito à propriedade fundiária, começa-
do a se afirmar em igualdade ao das gentes, as diferenças ainda
permaneceram bastante ativas. A propriedade individual agora
poderia ser concedida a todos, mas os direitos sobre a explora-
ção do ager publicus, as terras coletivas, permaneceram como
um elemento de conflito persistente entre plebeus e patrícios
52 A província romana continha uma idéia mais ampla de soma dos povos sob domi-
nação direta de Roma e podia, em seu interior, abrigar diferentes estatutos territoriais,
cidades, colônias. municípios, embora contasse sempre com uma capital provincial,
principal urbe daquela área.
46 A
h11 tltil' tltllilo tempo. A tendência destes últimos, sobretudo
1111 lilli'ltllttdio do direito à herança, foi de se apossar de gran-
" '"n·las nessas áreas e assim constituírem grandes domí-
l 1 <'ttitHl a organização social e militar estava fortemente
tl1 • ltil,iuo sistema de transmissão e exploração da terra, a dinâ-
lttl• 1rll' ocupação do ager publicus foi um elemento decisivo
tltt  ',JII~·üo c expansão da condição da cidadania.53A partir do
, ttltt I a.C., essas diferenças tenderam a diminuir, sem, no
l itlllllltl, desaparecer. No geral, a aplicação de um mesmo direi-
Ht lllll.l lodos passou a predominar à medida que se alargavam
1 1111111d ras do domínio romano e o direito tradicional passou a
Ih 111 t :tda vez mais confinado à esfera doméstica.
Acrescente-se a isso o fato de que o regime de representação
1  111os promovidos pelos comícios era organizado por inter-
ltt•1illu das tribos, ou seja, não havia representação individual e o
' Ji,•ttld ismo e a dependência entre membros de cada grupo eram
111t1111>grandes.54 A idéia de proporcionalidade geométrica, figu-
' ul1tno modelo do tipo hipodêmico, parece ter sido conveniente
1t''>C tipo de organização, uma vez que se difundiu como um
/, 11111otiv do urbanismo romano e ficou conhecida como ocas-
tnlrll. Ele era composto em sua base de dois eixos, o cardo, de
tlll'lltação norte-sul, e o decumanus, de orientação leste-oeste, e
1111sua interseção situavam-se os fori, as principais basílicas
1
I '"'srelações são complexas e estreitas. e demonstram em sua transformação a pas-
·l)•.n n de uma comunidade familiar para uma comunidade cívica: "A centúria é o ele-
tllo' iilo de base da cúria e da composição da legião; ela é também uma unidade agrária.
'u111prcendendo cem vezes uma unidade fundamental, o heredium. Por sua vez, esmé
'' 11111dade mínima da explotação agrícola que o paterfamilias transmitia a seu filho."
l'oll'll mais detalhes. ver Trochet. Jean-René. Géographie historique, Natllan-
t lnivcrsité, Paris, 1998, pp. 55-7.
' 1 Segundo muitos historiadores, à dualidade entre as duas principais esferas da vida
·<~t:ial romana, a res privada e ares publica, somava-se uma segunda dualidade entre
11 111 comportamento formal, de relações oficiais, e as relações clientelistas ou de fac-
~·ks políticas, que eram o eco da antiga organização tribal ou clânica, que persistiu,
• 111110 um legado, na organização social romana. Ver, por exemplo, Mann, M. The
wurces ofpower, Cambridge University Press, Cambridge, 1986, vol. I, "A history of
power from tlle begínning to A. D. 1760". p. 251.
(edifícios públicos) e os principais templos. A partir desse cen-
tro e dos dois eixos, definem-se quatro setores ou bairros, com
uma sucessão de arruamentos, desenhando um padrão em tabu-
leiro de xadrez, onde cada unidade ou insula é individualizada
pelo desenho geométrico das vias. Ainda que não possamos
falar de uma efetiva segregação espacial de atividades ou de
classes, pode-se, todavia, perceber uma certa orientação dos
usos e do estatuto social de alguns trechos, como nos mostram,
por exemplo, as ruínas de Pompéia.
Os ritos que marcavam a fundação das urbes romanas
eram derivados dos etruscos e seguiam uma cerimônia em que
um perímetro era traçado a partir de uma charrua amarrada a
um touro, que definia o pomerium, limite e terreno sagrado da
cidade. De fato, ainda que essa tradição tenha sido mantida
durante todo o período de domínio dos romanos, os desenhos
urbanos em xadrez eram na maior parte das vezes preestabele-
cidos segundo as direções cardeais e freqüentemente se adap-
tavam à topografia local. A cidade de Roma não foi propria-
mente a inspiradora desse desenho, uma vez que sua origem
mítica estava associada aos Limites do pomerium, que com-
preendia as sete colinas, e sua estrutura interna pouco repousa-
va sobre os ângulos retos.
Isso não impediu que Silas, o grande tirano reformador da
República, e César, o imperador, tentassem redefinir o desenho
e os limites da cidade. De fato, nesses dois períodos tratava de
simbolicamente refundar a cidade, assim como o pacto social
que a definia. As grandes reformas urbanas empreendidas por
esses dois personagens são, ao lado da mudança dos limites da
urbe, outro elemento eloqüente na demonstração de que a cida-
de deveria dar nascimento, de maneira simultânea, a uma nova
composição física e social.SS A nova organização espacial da
ss "Ele [César) podia assim construirsobre o antigoforum uma nova basflica que tinha
seu nome no lugar da basílicaSempronia. Ele podia sobretudo seaproveitar da desrrui-
ção da cúria e do comitium de 52 para remodelar o conjunto, o inscrever de maneira
48 ~
1 td.tdc imperial, assim como o novo regime político, foram
1 n111plctados por Augusto, que, do ponto de vista urbanístico,
li•iriou o confisco gradual da colina do Palatino pelos impera-
dtucs c no plano geral da cidade incluiu novos territórios da
, ontinentia (subúrbios).56
Estas mudanças deram origem à criação de Roma, cidade
d.ts XlV regiões, em substituição às quatro anteriormente esta-
lil-IL-cidas, ou seja, uma nova delimitação do espaço e de seus
11t1Íbutos foi necessária para a construção de um novo pacto
~,~,~·ial na passagem da Roma republicana para a Roma imperi-
itl. ~' Uma das mudanças mais significativas que marcam este
111omcnto foi a inclusão do Campo de Marte à cidade. Nessa
lll l'a eram originalmente organizados os comícios em armas e
l1ravam lá depositadas as armas e as insígnias militares, impe-
d1das de penetrar o pomerium durante quase toda a fase republi-
1 .111a. Uma vez que o imperium havia sido completamente apro-
Jll iado por um único personagem, em grande parte pela força
d•ts armas, a interdição perdeu seu sentido e essa enorme área
uu lado do rio Tibre foi definitivamente incorporada à cidade,
ou seja, a força militar ganha direito à cidade.ss
111dcnada na extremidade da praça e o associar sobre o flanco setentrional ao pórtico
1k CU própriojorum, de tal maneira que unificava assim, em um mesmo quadro arqui-
h !l)nico, a legitimidade cívica que ele encarnava porsuas magistraturas à ascendência
d1vina pretendida por ele", David, Jean-Michel, op. cit., p. 239.
"' OIC1mo suburbia ou suburbinitas era utilizado para designar territórios muito mais
ul.llados de Roma, enquanto a expressão continemia correspondia à idéia propria-
llll"lllc de arredores.
'' Scnnet traça um paralelo entre o declínio da vida pública em Roma, a partir de
1llt'IISto, quando a cultura pública passa a ser vista como uma obrigaçãoformal, com
11111 Jcclínio que nos é conremporâneo, em que a sobrevalorização da intimidade esva-
' ""ia a dimensão pública e tomaria o espaço comum vazio de sentido, fenômeno visí-
1'<' 1, ~cgundo ele, nas amais grandes cidades. Sennet, R. Odeclínio do homem piÍblico,
<·,,,das Letras, São Paulo, 1989, p. l5.
'~ É muito interessante perceber que a atribuição de poderes institucionais em Roma
n t<IVa associada sempre a um certo território. Assim, o tribuno dispunha dos seus
p11tl~rcs até o raio de I milha (1.479m) do pomeriwn; a partirdesse limite ele se trans-
lmlllava em um simples cidadão. Da mesma forma, o imperium era um poder que se
Subseqüentemente à fragmentação e ao desmoronamento
do Império Romano, a formação de novas sociedades contra-
tuais se restringiu, durante a Idade Média européia, a pequenas
iniciativas de compra de direitos em cidades animadas pela
retomada dos circuitos comerciais e pela ascensão dos burgue-
ses. É nesse período que se localiza a origem do ditado alemão,
citado por M. Weber, e que se encontrava inscrito nas portas
das cidades germânicas, segundo o qual "o ar da cidade eman-
cipa". De fato, ainda que pequenas, essas iniciativas demons-
travam a possibilidade de uma nova forma de organização
social, liberada dos jugos senhoriais, e significaram, do ponto
de vista espacial, a conquista do espaço interno de um segmen-
to social e de atividades que haviam sido rechaçadas anterior-
mente para fora de seus limites.s9
A liberdade transforma-se em condição jurídica da burguesia,
em tal grau, que não é somente um privilégio pessoal, mas tam-
bém um privilégio territorial inerente ao solo urbano, da mesma
forma que a servidão é inerente ao solo senhorial, bastando para
isso ter residido um ano e um dia na cidade.60
O ápice desse processo foi a formação das cidades-estado
renascentistas e com elas toda uma nova preocupação com a
refundação da idéia de centralização do poder, paralela a uma
concedia por decretos, os quais estabeleciam simultaneamente as províncias sobre as
quais ele tinha validade. Na passagem da República ao Império, este poder, o impe·
riwn, foi apropriado por uma personagem e associado a ela. o imperador, e estendido
a todos os dorrúnios sob controle de Roma. Aymard, A. & Auboyer, J. "Roma e seu
Império" in Crouzet, Maurice (dir.), História Geral das Civilizações, Benrand Brasil,
Rio de Janeiro, 1993, pp. 152·63.
59 O lugar dessas pessoas e dessas atividades era conhecido entre os séculos X e XII
como burgusforis, o que literalmente quer dizer "fora da cidade".
60 Pirenne, Henri. História eco11ômica e social da Idade Média. Mestre Jou Ed., São
Paulo, 1978, p. 57 (o grifo é nosso).
)•rande transformação do espaço físico.61 O enfraquccimclllo
da solidariedade e lealdade dos clãs liberou novas forças fun-
dadas na racionalidade que gradativamente substituíram esses
sistemas de "afinidades" e terminaram por ganhar pleno direi-
lo à cidade.62
"A Renascença, nessa visão, é nada menos do que um paradig-
ma da modernização, sua história urbana um exemplo da teoria
da modernização contemporânea.De acordo com esta visão que
enfatizao triunfo do racional e do secular, o espaço é dotado de
um valor funcional ou instrumenlal. Vizinhanças e outras subdi-
visões não eram mais fontes de poder ou de influência e se tor-
naram sujeitas ao controle superiordo poder de uma nova ordem
social, econômica e política que Iransformou residentes em
cidadãos."63
Nesse momento vemos novamente emergirem as discus-
sões que pretendem distinguir os domínios e atributos do sobe-
rano, o "príncipe", e de seus sujeitos, ainda que esses não esti-
vessem ainda sido completamente transformados em sujeitos
de direito. A reinvenção da perspectiva, e da própria idéia de
"ponto príncipe", demonstra-nos a nova concepção do espaço
(oi Para Carter. o exemplo mais significativo dessa nova maneira de conceber o espaço
se encontra na proposição do desenho da cidade de Sforzinda (assim chamada, pois o
projeto foi uma encomenda do duque de Milão. Francisco Sforza), obra de Antonio
Pietro Avertino, também conhecido como Filarete, onde se entrecruzam preocupações
da linguagem arquitetônica, com preocupações funcionais acrescidas de uma base filo-
sófica em termos políticos que simbolizam o controle central e autocrático de quem a
construiria. Curter. Harold. An introduccion to urban historical geography, Edward
Amold, Londres, 1983, pp. Ll 5·6.
62 Essa expressão, direito à cidade, deve ser antes de mais nada compreendida no senti-
do dado por Lefebvre, da cidade como lugar do direito, o acesso a um espaço O[Ide o
direito protege a existência do indivíduo contra os poderosos, o acesso à cidade signi-
ficando assim a passagem de um sujeito de um senhor a um sujeito de direito. Henri
Lefebvre. Le droir à la ville, Editions Anthropos, Paris, 1968.
6) Muir. E. &Weissman, F. E. "Social and simbolic places in Renassence" in Agnew,
J & Duncan, J. The power ofplace - Bringing rogecher geogmphical and sociologi-
ca/ imaginatior1s, Cambridge University Press, Cambridge, l989.p. 81.
dialeticamente associada às novas dimensões da sociedade. O
jogo de cubos florentino constrói cenários urbanos e uma nova
profundidade do campo visual, que faz convergir o olhar para
um ponto imaginário situado fora do seu alcance. Por meio
desse jogo visual, simultaneamente, misturam-se realidade e
idealidade do olhar e do espaço, em um permanente vaivém
entre construção e utopia.64 A obra de Vitrúvio, escrita na An-
tigüidade romana, e suas preocupações com a disposição das
coisas sobre o espaço (o lugar dos edifícios públicos, os usos
dos espaços públicos, a forma e localização das praças e tem-
plos etc.) foram reapropriadas e se transformaram em inspira-
ção direta para numerosos tratados de urbanismo e arquitetura
renascentistas (Alberti, Palladio, Catâneo, entre outros), difun-
didos por toda a Europa, que reconstruía nesse momento seu
espaço e dava origem a uma nova organização socioespacial.
Simetria, proporção e geometria passam a ser os novos va-
lores que presidem a organização do espaço. O monumentalismo
é o ingrediente obrigatório nas cidades onde os soberanos pro-
curam estabelecer um domínio absoluto. Nascem também
nesse momento as raízes do Estado modemo.65 Com elas, surge
toda uma linha de raciocínio, as teorias do contrato social, que
pretendem explicar os princípios razoáveis de obediência que
regem governantes e governados. Estas teorias são baseadas na
idéia de que, a partir de um raciocino lógico, há um geral con-
sentimento em se submeter ao poder do soberano que estabele-
ce leis e regras de comportamento, mas estabelece também os
limites das esferas de poder, dos indivíduos e das instituições.
Um dos valores fundamentais do contrato social é essa idéia de
64 Note-se. nesse sentido. que nesse momento houve uma coincidência entre os
homens que fabricavam as máquinas do teatro e as máquinas de guerra, entre os que
construíam cenários teatrais e aqueles que faziam planos urbanos, como Girolano
Arduini 65 Diversos autores aproximam ,aliás, o modelo de dominação que constituiu
o Est:ado absoluto modemo ao processo socioespacial vivido por algumas cidades mais
ou menos um século antes. Ver, por exemplo, a este respeito: Garrison, J. Royaume,
Renoissance, Réjorme, 1483-1559, Paris, Fayard, I988, e Mandrou, R. L'histoire de la
civili.mtionfrançaise, Armand Colin, Paris, 1980.
52 ftlf,
cooperação mútua, ou seja, de uma nova forma de comunidade
política, em que vigora o princípio da universalização da liber-
dade política a partir de um indivíduo autônomo. Essa nova
ordem social deve ser equânime e fortemente unida por laços de
solidariedade. O poder do soberano deve ser limitado e expri-
mirá a vontade coletiva:
Esse contrato é uma simples idéia da razão, mas possui entretan-
to sua realidade indubitável, que consiste em obrigar toda pessoa
que legisla a produzir suas leis, de tal maneira que elas pudessem
ter nascido da vontade unida de todo um povo e a considerar
todo sujeito, na medida em que ele quer ser cidadão, como tendo
dado seu sufrágio a uma tal vontade.66
Dessa forma, há uma nítida separação entre o público e o
privado, uma vez que aos indivíduos cabe, no exercício de sua
liberdade, a escolha dos termos do contrato, a cooperação ge-
neralizada entre cidadãos e a solidariedade, fruto dessa cons-
trução coletiva; à potência pública cabem a garantia da igual-
dade de condições, a defesa dessa comunidade politica e de seu
território, a coerção social em nome da justiça e a organização
e desenvolvimento das instituições que promovem os valores
fundadores do contrato.67 Sem dúvida, o Estado moderno cor-
responde à territorialização desta nova sociedade, ou melhor,
para não deixar hesitações quanto ao papel ativo do espaço, é
por meio dessa nova organização espacial que uma nova or-
dem social se constrói, a sociedade contratual moderna.68
66 Kant, Immanuel, Oeuvres philosophiques, Gallimard, Paris, 1985,p. 279.
67 De fato, o modelo hobbesiano não se enquadra exatamente nesse caso, uma vez que
em sua proposta há uma alienação do poder por parte dos sujeitos em benefício da afir-
mação da soberania do monarca.
ó8 Ao utilizarmos a expressão "contratualista" estamos englobando todos os movimen-
tos que tendem a estabelecer as bases de um poder a partir de regras racionais c lógi-
cas. Assim, esta expressão recobre tanto os pensadores associados ao modelo conheci-
do como teoria do contrato social quanto aqueles identificados com o utilitarismo. A
idéia de contrato responde aqui por uma suposição de udesão lógica e voluntária a um
conjunto de regras.
Os espaços dos Estados modernos são construídos e uni-
dos por linhas intersecionadas por numerosas redes que ligam
os diversos elementos espaciais. Há uma idéia de composição
dos mesmos elementos segundo maneiras diferentes, dando
assim forma a configurações territoriais que são, simultanea-
mente, semelhantes, pois comportam um certo número de ele-
mentos comuns e diferentes, pois a soma destes elementos gera
em cada espaço unidades distintas. Departamentos, regiões,
estados, províncias etc., estão, no entanto, sempre unidos pelas
redes de colaboração e de solidariedade, mas também estão
unidos pela estrutura de poder que os conforma e os hierarqui-
za. De forma esquemática, diríamos que a geometria variável
dos espaços é compensada por um sentido geral de proporcio-
nalidade. O Estado é assim um lugar, no sentido material e abs-
trato, onde se reafirma a luta contra as desigualdades e a injus-
tiça, criadas pela ordem natural ou social.
Nossa pretensão não é a de produzir uma longa descrição
dos processos socioespaciais que deram origem às chamadas
sociedades modernas. Queremos apenas chamar a atenção para
o fato de que a cada momento de uma relação contratualista a
forma de organização do espaço foi uma das condições de base
para que essa ordem social se realizasse. Os princípios do con-
trato são os que regem a organização espacial e por meio dela
constroem-se os lugares para determinadas práticas e comporta-
mentos que põem em cena essa ordem social. Assim, o espaço
delimita os comp01tamentos, classifica as ações sociais, ordena
a dinâmica social e hierarquiza práticas e instituições.
Com o intuito de ser mais claros, tomemos um exemplo
simples. A historiografia francesa vem ultimamente reavalian-
do o papel do rei Henrique IV (1553-1610) como um dos gran-
des artífices do Estado moderno francês. Para tal demonstra-
ção, os historiadores têm aventado argumentos relativos à
posição desse monarca em relação à religião (o Edito de Nan-
tes), à união dos reinos da França e Navarra, à centralização do
poder em Paris, à política em face da Espanha, à importância
54 ,JIIlJ1..,
de sua popularidade, à afirmação de seu poder diante do parla-
mento e diante da nobreza, ao desenvolvimento da agricullura,
da indústria etc. Poderíamos afirmar a mesma coisa sob um ân-
gulo bastante diverso, ou melhor, utilizando um outro prisma,
por meio dos trabalhos urbanos realizados por Henrique IV em
Paris, particularmente dois, a Pont Neuf (a ponte nova) e a
Praça dos Vosges.
A Pont Neuf foi a primeira ponte construída sobre o rio
Sena sem ser financiada pela venda de lotes para construção de
casas, corno era o hábito generalizado à época. Primeira ponte
construída inteiramente em pedra, ela era parte de um conjunto
que previa o local de uma estátua eqüestre (inspirada na estátua
romana de Marco Aurélio, em Roma) e de uma praça triangular,
a Place Dauphine, onde seriam vendidos lotes para a construção
de casas bancárias e de comércio. O partido arquitetônico das
construções da praça, ainda que financiadas por particulares,
deveria seguir um plano preestabelecido, regular, uniforme e si-
métrico. Ao longo das edificações, um passeio funcionava como
espaço de circulação. Podemos, pois, constatar que esse peque-
no conjunto foi concebido corno urna nova forma de composi-
ção espacial, um espaço público que ultrapassava a dimensão
simplesmente utilitária da ponte, um verdadeiro espaço público
moderno, onde era previsto que as pessoas iriam transitar, pas-
sear e admirar a unidade física e institucional, simbolicamente
representada pelo espaço. Este simbolismo pode também ser
observado no fato de que a ponte unia as duas margens da cida-
de, passando pela ponta da ilha da Cité, tradicionalmente vista
como o coração da cidade, além de oferecer da amurada uma
vista perspectivada do palácio do Louvre, sede do poder real.
A mesma idéia de um espaço público foi desenvolvida na
concepção da Place des Vosges, larga, regular, geométrica, si-
métrica, um espaço aberto em meio ao casaria denso e de ruas
tortuosas do bairro do Marais. O projeto da praça previa um
certo número de exigências a ser cumpridas pelos compradores
dos lotes, tais como o de não parcelar as unidades, obedecer a
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A dinâmica territorial da cidadania moderna

  • 1.
  • 2. O urbano tem sido objeto de interesse por parte dos geógrafos desde, pelo menos, os primeiros anos do século XX, consoante as profundas transformações, em curso, verificadas tanto no espaço urbano quanto na rede urbana. Tratava-se de registrar e interpretar aqueles impactos que o capitalismo industrial produziu nas velhas cidades européias e nas novas cidades americanas. O interesse foi crescente e marcado, como em outras áreas de interesse por parte dos geógrafos, pela adoção de muitas matrizes teórico-metodológicas que caracte- rizaram a geografia e as ciências sociais em geral. Uma perspectiva determinista foi incor- porada aos estudos da cidade. A influência da Escola de Chicago, de Robert Park, foi, e ainda é, muito grande. Um viés calcado no positi- vismo lógico, com seus modelos hipotético- dedutivos, marcou os estudos geográficos sobre o urbano. A análise crítica, fundada nas semi- nais contribuições de Henri Lefébvre, iria ampliar o interesse dos geógrafos sobre o urbano: os trabalhos de David Harvey e Edward Soja são expressões de grande cali- bre dessa influência. Recentemente ainda, a partir de meados dos anos 70, os geógrafos incorporaram, em suas análises sobre o urbano, uma perspectiva que inclui as práticas socioespaciais e seus significados, envolvendo crenças, valores e intersubjetividades diversas, admitindo a coe- xistência de múltiplas espacialidades cons- 1ruídas, percebidas e vivenciadas por uma sllCÍl'dadc gue é fragmentada, estando longe de
  • 4. Do Autor: Geografia e Modernidade Paulo Cesar da Costa Gomes - A CONDIÇAO URBANA ENSAIOS DE GEOPOlÍTICA DA CIDADE IBBERTRAND BRASIL
  • 5. Copyright © 2001 Paulo Cesar da Costa Gomes Capa: Rodrigo Rodrigues 2002 Impresso no Brasil Printed in Brazil CJP-BRASIL. CATALOGAÇÃO-NA-FO'ITE SJ'IDICATO NACIONAL DOS EDITORES DE LIVROS. RJ G616c Gomes, Paulo Cesar da Costa A condição urbana: ensaios de geopolítica da cidade 1 Paulo Cesar da Costa Gomes. -Rio de Janeiro: Bcrtrand Brasil, 2002 304p. Inclui bibliografia ISBN 85-286-0956-1 1. Espaço urbano - Rio de Janeiro (RJ). 2. Espaço urbano- Paris (França). 3. Geopolítica. L Título. 02-0406 Todos os direitos reservados pela: EDITORA BERTRAND BRASIL LTDA. Rua Argentina, 171 - 1~andar- São Cristóvão 20921-380- Rio de Janeiro- RJ CDD - 307.76 CDU- 316.334 56 Tel.: (0xx21) 2585-2070- Fax: (0xx2l) 2585-2087 Não ·é permitida a reprodução total ou parcial desta obra, por quais- quer metos, sem a prévia autorização por escrito da Editora. Atendemos pelo Reembolso Postal. Apresentação 7 Introdução 11 SUMÁRIO Primeira Parte DUAS MATRIZES TERRITORIAIS: NOMOESPAÇO E GENOESPAÇO I. O nomoespaço 31 Os espaços contratuais: Exemplos e dinâmicas 40 11. O genoespaço 60 Quando a idéia da diferença funda um espaço 66 Ill. Os modelos políticos: Que lugares para a cidadania moderna? O Estado, a Nação e os Estados-nações 81 IV. Os modelos sociológicos: Os espaços da civilização ou territórios das culturas 102 V. Os limites metodológicos dos modelos de nomoespaço e geuoespaço 113 O recurso às matrizes como modo de operação analítico 121 Segunda Parte A APLICAÇÃO DAS MATRIZES AOS CASOS VI. Cidadania e espaço público: O que a geografia tem a dizer? 129 Um olhar geográfico sobre o debate da cidadania moderna 141 A importância da dimensão física: Os espaços públicos 159
  • 6. VII. O espaço público e as manifestações do recuo da cidadania 169 VIII. IX. A atual dinâmica do espaço público 176 A apropriação privada dos espaços comuns 176 A progressão das identidades ten-itoriais 180 O emuralhamento da vida social J82 O crescimento das ilhas utópicas 186 O recuo da cidadania 188 Rio-Paris-Rio: Ida e volta com escalas 192 A ida: Das praias aos bulcvares ou dos arrastões aos casseurs 192 As escalas ou como cada local mobiliza elementos de alcance diverso na compreensão de sua dinâmica 206 A volta: Uma territorialidade na praia 216 O futebol e sua dimensão estética: Entre a geopolítica da bola e a geopolítica dos torcedores 231 O f~tebol como metáfora de uma disputa territorial 234 A c1dade como metáfora do futebol 242 X. Viva o Quebec livre! Os paradoxos de uma democracia 252 Do tradicional ao moderno: Mudanças na escala territorial da identidade 255 O pós-moderno: Um novo contexto na Juta pela soberania? 262 Democracia e território: As lições do Canadá 265 Versões e contraversões: As diferentes leituras da diversidade socioterritorial 273 Os paradoxos de uma democracia 282 Últimas notas 287 Bibliografia citada 294 APRESENTAÇÃO O que pode haver de comum entre ir à praia ou ao jogo de futebol, no Rio de Janeiro, as manifestações estudantis que ocorrem no Boulevard Beaumarchais, em Paris, ou a luta pela independência da Província do Quebec, no Canadá? O que poderia relacionar estes eventos com a discussão sobre a cida- dania? O que estes assuntos, aparentemente tão díspares, podem conter de geográfico? Nosso grande desafio é demonstrar que estes fenômenos, habitualmente tratados por especialistas de áreas muito diver- sas (cientistas políticos, historiadores, antropólogos, sociólo- gos etc.), possuem um componente comum e essencial: uma dinâmica espacial. Mais especificamente queremos trazer à tona um elemento que nos parece estrutural nestes fenômenos: a disputa territorial. Se lograrmos êxito nesta demonstração, teremos que concordar que, daqui por diante, estes temas merecem figurar na agenda da geografia. Durante muito tempo predominou, e ainda hoje persiste, a idéia de que a geografia estaria fadada a produzir longos inven- tários descritivos de lugares -quando bem-feita, a obra geo- gráfica se confundia com um exercício de erudição; quando malfeita, o resultado se avizinhava à pura banalidade. Hoje, cada vez mais conscientemente, a geografia toma para si ares- ponsabilidade de produzir uma verdadeira interpretação dos fenômenos, por meio de uma inovadora análise espacial. Isto
  • 7. implica manter-se fiel ao compromisso de exprimir primor- dialmente a importância e o alcance da dimensão espacial nos fenômenos que ela estuda. Duas principais conseqüências deri- vam daí. Em primeiro lugar, a ordem espacial dos objetos e das práticas sociais passa a ser o elemento central desta análise, ou seja, a trama relaciona! das localizações é um dos elementos- chave na compreensão dos fenômenos. Em segundo lugar, esta ordem espacial, além de ser uma das condições básicas para a existência das práticas, é também concebida, simultaneamente, como portadora de sentidos, ou seja, esta análise espacial pode produzir uma interpretação original desses fenômenos. Convém insistir no fato de que, por tratar-se de uma inter- pretação, alguns elementos e aspectos serão mais valorizados do que outros neste trabalho e, dessa forma, uma leitura sui generis acena para a possibilidade de um verdadeiro diálogo interdisciplinar, mantendo-se, todavia, a identidade do olhar geográfico. Assim, reafirmamos aqui a intenção de somar, e não a de substituir. Em outras palavras, os princípios de coe- rência e lógica na dispersão das coisas sobre o espaço podem trazer à luz um novo ângulo para a compreensão de certas dinâ- micas sociais e constituem a contribuição propriamente geo- gráfica na análise dos fenômenos que habitualmente são estu- dados por áreas disciplinares vizinhas. Voltando aos temas citados no início, como já o dissemos, o que há neles de constante, segundo o ponto de vista defendido aqui, é uma central valorização do papel da espacialidade no seio destes eventos e da capacidade que a análise desta dimen- são pode trazer para a compreensão de certas manifestações e características destes movimentos sociais. Assim, a questão do regionalismo ou do nacionalismo do Quebec é examinada sob a ótica dos desafios e dos impasses que uma identidade territorial pode criar quando se associa a um discurso que pretende obter legitimidade a partir da idéia de democracia ou de consulta popular. O futebol é visto como uma atividade que tira suaforça 8 )lflJ da estetização do processo de luta e de domínio territorial e, como tal, tende a se transformar em um veículo de referência para outras arenas de luta, fora do controle imposto pelas regras que o limitam dentro do campo. Igualmente, a freqüência às praias do Rio de Janeiro e os recentes movimentos dos arrastões são examinados como fenômenos territoriais, ou seja, como fru- tos de uma classificação das pessoas a partir do espaço que con- quistam e ocupam, ou ainda, pelas referências ao espaço de onde elas procedem. Assim, é-nos permitido aproximar esta dinâmica carioca de uma outra, esta parisiense, que também classifica e distingue os sujeitos pela sua procedência e delimita práticas diferenciadas sobre um espaço de luta, como no caso dos casseurs I infiltrados nas passeatas estudantis dos bulevares da capital francesa. Finalmente, prosseguindo na apresentação do raciocínio que guia este livro, a cidadania é aqui concebida como algo que se traduz no cotidiano e nas ações mais habituais do cenário da vida pública, ou seja, onde há vida pública há dis- cussão e conflitos, que, de uma forma ou de outra, traduzem-se em uma disputa tenitorial. Dentro desta perspectiva, cidadaniae democracia não podem ser pensadas sem refletirmos sobre a noção de espaço público e sobre as dinâmicas sociais que aí se desenvolvem. Esperamos que os leitores se sintam interpelados e seduzi- dos a prosseguir a leitura após esta primeira e breve enunciação dos nossos propósitos. Para cada um destes exemplos, dedica- mos um capítulo, em que tentamos construir um quadro de ele- mentos que justificam a centralidade da dinâmica territorial. Escolhemos a forma de ensaio para trabalhar estes casos como uma estratégia para tornar a leitura mais agradável e dar autono- mia ao leitor, que poderá optar livremente sobre a ordem ou 1 A tradução literal para esta expressão é "quebradores" e se aplica aos jovens pro~e­ nientes dos subúrbios parienses que promoveram um ceno número de saques às loJaS por ocasião das grandes manifestações estudantis ocorridas nos anos 90. ~ 9
  • 8. escolha dos capítulos a serem lidos. Eles são, no entanto, prece- didos por uma necessária discussão teórica geral em que figuram as matrize~_ epistemológicas desta reflexão e que dão o funda- mental suporte metodológico e analítico ao que se segue. Esperamos também que o prazer vivido ao longo da pesquisa que nos levou a estas "pequenas descobertas" esteja fielmente retratado nesta narrativa, para poder ser compartilhado com nos- sos eventuais leitores.2 2 Esta pesquisa contou com o apoio do CNPq e, por meio de bolsas de Iniciação Ctentffica: permitiuque alunos de graduação em geogralia desenvolvessem alguns dos temas aqUJ apresentados em seus trdbalhos de monografia. O autor também estende os agradecimentos a todos os seus colegas professores do Dcpto. de Geografia da UFRJ e aos alunos da Graduação e da Pôs-Graduação em Geografia da mesma instituição, asstm como aos alunos c professores da Uni versidade de La Rochelle, pelas renovadas e instigantes discussões realizadas durante os cursos e seminários. 1o )lf1f INTRODUÇÃO Três noções básicas estruturam toda a reflexão contida neste livro: teJTitório, política e cidade. Evitaremos a tentadora velei- datl.c de buscar nestas noções um sentido único, estabelecido de uma vez por todas, de forma definitiva. O interesse que nos move aqui é muito mais o de percorrer alguns dos temerádos acessos que podem existir entre elas ou, ainda de forma mais precisa, a tentativa é a de valodzar as zonas de sombreamento que existem na superposição e na interseção destas três noções. Aliás, esta intenção já está sinteticamente contida no título escolhido. A expressão "condição urbana" era utilizada na época do Império Romano para distinguir um estatuto próprio adquirido por um ce11o adensamento populacional, dotado de formas estritamente relacionadas à organização urbana: Jari, templos, e a orientação dos arruamentos, seguindo o cardo e o decumanus. Indissociável destas formas era a estrutura de poder, e as cidades constituíam simultaneamente sua sede, sua representação e a condição para o seu exercício. A concepção romana do poder o associava neces- sariamente a uma extensão física, um território, sobre a qual ele se organizava e se exprimia. A herança grega da polis, simulta- neamente forma física e fonna de organização social, foi, neste sentido, inteiramente reatualizada. Acrescentemos a isto o fato de que a divisão espa~ial é uma daSToiTiiãSmaiSãntigas gue cõnheéemos de classificar as coisas, não apenas por seus atribu- tc>s ou valores singulares, mas sobretudo por sua localização. ...... 11
  • 9. Sem a pretensão de estabelecer uma definição acabada, um certo número de precisões parece ser necessário no uso da idéia de território, visto o seu largo emprego na geografia. Entende- mos aqui por territorializar o movimento de um agente titular no ato de presidir a lógica da distribuição de objetos sobre uma dada superfície e de, simultaneamente, controlar as dinâmicas que afetam as práticas sociais que aí terão lugar. O território é, pois, neste sentido, parte de urna extensão física do espaço, mobilizada como elemento decisivo no estabelecimento de um poder. Ele é assim uma parcela de um terreno utilizada como forma de expressão e exercício do controle sobre outrem. Por meio deste controle é possível a imposição das regras de acesso, de circulação e a normatização de usos, de atitudes e comporta- mentos sobre este espaço. Este controle do território é a expres- são de um poder, ou seja, ele é aquilo que está emjogo em gran- de parte das disputas sociais, aí incluídas aquelas que disputam um direito à cidade. Finalmente, a territorialidade é vista aqui como o conjunto de estratégias, de ações, utilizadas para estabe- lecer este poder, mantê-lo e reforçá-lo) Por isso, ao contrário de muitos geógrafos, não acredita- mos que a noção de território se confunda com qualquer dimensão emotiva ou de identidade, pois estas já seriam parte de uma estratégia de tomada de controle.4Tampouco, asseme- lhamos tout court a noção de território à idéia de apropriação, pois esta última pode ser construída a partir de múltiplos veícu- los, imaginário, sentimentos, posse, propriedade, uso, sem que 3 Somos inteiramente tributários das reflexões sobre o tema desenvolvidas por Sack, R. The Human territoriality: lts cheory and history, Cambridge University Press, Cambridge, 1986. 4 Esta visão do território como definido pelo sentimento de identidade é uma das mais utilizadas pela geografia. Ver, por exemplo, Bailly, A. & Ferras, R. Éléments d'épistémologie de la géograpl1ie, Armand Colin, Paris, 1997;e Raffestin, C. Por uma geograjia do poder, Ed. Ática, São Paulo, 1993. 12 ftl] nenhum deles signifique sempre o exercício efetivo de um con- trole sobre os objetos e as práticas sociais que aí ocorrem. Queremos dizer que a idéia de território traduz, ao m-esmo tempo, uma classificação que exclui e inclui; um exercício de gestão que é objeto de mecanismos de controle e de subversão; e uma qualificação do espaço que cria valores diferenciais, rede- finindo uma morfologia de cunho socioespacial. Estes pares- exclusão/inclusão, submissão/subversão, e valorização/desvalo- rização- criam tensões e resultam em lutas territoriais que alme- jam modificar seus limites, sua dinâmica, suas regras ou seus valores. Por isso, chamamos este fenômeno de geopolítica, ou seja, lutas que têm como objeto de disputa a busca pela afirma- ção de ufi.fiJÕderque étãmbérn a luta por um território.-Aesco- 111ãdã._dênominãção "geopolítica urbana" se fez pelõ"fato de que esta luta se constrói dentro de um quadro restrito, ou melhor, a partir de uma certa estrutura que associa pessoas a uma forma física específica, a cidade. Estas pessoas, movidas por diferentes anseios e expectativas, estão reunidas sobre este terreno comum da cidade e aí desenvolvem relações orientadas e organizadas tenitorialmente. Como nos ensina Arendt, "a política trata da convivência entre diferentes. Os homens se organizam politica- mente para certas coisas em comum, essenciais num caos abso- luto, ou a partir do caos absoluto das diferenças".s A cidade exprime com eloqüência, em sua forma física e em sua dinâmi- ca, urna das modalidades fundamentais de "organização" destas diferenças; poderíamos mesmo dizer que esta é uma de suas condições fundadoras. Voltaremos à questão da definição de cidade; antes, entretanto, vejamos rapidamente dois exemplos. Recentemente, em um documentário televisivo sobre os problemas dos direitos civis dos negros nos EUA, foram mos- tradas cenas e entrevistas que faziam alusão à violência que s Arendt, Hannah. Oque é política?, Bertrand Brasil, Rio de Janeiro, 1998, p. 21. ~ 13
  • 10. caracterizou as lutas raciais ocorridas na cidade de Chicago no final dos anos 50. O discurso dessa apresentação fazia apelo a expressões diretamente inspiradas na imagem da guerra. Assim, palavras como invasão, ocupação, terra de ninguém, conquistas, avanços, zona limítrofe etc. foram utilizadas como material narrativo adequado para caracterizar esse movimento. O objeto central da discussão eram as lutas pelos direitos dos negros norte-americanos na cidade de Chicago, mas a forma da apresentação, ao valorizar a idéia de uma guerra, chamava indiretamente a atenção para um dos elementos estruturantes do evento: a disputa territorial. Havia estratégias espaciais de lado a lado: das organizações negras, cotizando-se para adqui- rir casas em bairros brancos; dos brancos, organizando barrei- ras físicas legais e manifestações para impedir o livre acesso dos negros a determinadas áreas. O problema dos negros na cidade de Chicago era em grande parte o do confinamento espacial no gueto, no qual eles deveriam permanecer margina- lizados do resto da cidade, assim como o eram da ordem social hegemônica. Na evolução dos acontecimentos, o conhecido gueto negro extrapolou seus lirrútes, conquistou direito à cida- de, e uma nova geografia surgiu deste movimento. O poder público, representado sobretudo pela prefeitura, organizou pla- nos de deslocamento e assentamento das populações, contro- lou preços, e o setor sul da cidade passou a ser objeto de gran- des intervenções, após os incêndios e as depredações que lem- bravam claramente manobras de guerra.6 Atualmente, no Rio de Janeiro, com freqüência podemos ler nas manchetes dos jornais que a polícia "ocupou", "inva- diu" ou "fez um cerco" à favela. Este vocabulário nos revela 6 O confronto étnico/territorial na cidade de Chicago já havia inspirado, no primeiro quarto do século XX, a escola de sociologia urbana, conhecida como Escola de Chitago, corrente pioneira em valorizar a idéia de disputa tetTitorial entre diferentes comunidades, muito embora a concepção de território ainda fosse largamente tributá- ria dos modelos ecológicos e, portanto, carregada de fortes tintas naturalizantes. 11, ,nnJ Inlos lx~stante interessantes. Ele nos indica que se trata de uma ·.tttt:t~ão de guerra entre territórios, por meio da qual se afirma 'l:tramcnte que estes espaços estariam submetidos a forças ltl'p.cmônicas diferentes: de um lado, a sociedade "legalmente" 'onslituída; de outro, um território controlado "informalmen- lt>" pela força ou pelo prestigio de grupos marginais. O fato rciL:vante aqui é apresentarmos esses relatos fazendo apelo a um raciocínio que se nutre da imagem de uma oposição entre dois territórios mutuamente excludentes, embora, em princi- pio, ambos façamp;:rt~ e-~on~tituam aquilo que denominamos a cidade do Rio de Janeiro. Esta dualidade não existe apenas no discurso dos meios de comunicação; ela se manifesta como uma experiência vivida no cotidiano dos moradores e se traduz de várias formas) Uma delas se revela na expressão "favela- dos" e "moradores do asfalto". A pavimentação age aqui como símbolo da demarcação de territórios diferentes, e a fronteira l'ísica pretende delimitar formas diferentes de comportamentos espacial e social. Dessa maneira, a exclusão social deixa de ser apenas um estatuto abstrato; ela ganha a forma de um território. Estes dois exemplos poderiam ser multiplicados infinita- mente na demonstração do ponto de vista que será aqui susten- tado: a cidade é também, sem dúvida, um fenômeno de origem político-espacial, e a manifestação deste caráter se revela em sua dinâmica territorial.8 Em outros termos, a ordem espacial 7 Outra forma discursiva largamente utilizada para se referir às pessoas que habitam a favela é a denominação de "comunidade". De fato, esta categoria, que, à primeira vista, pode parecer simpática, pois confere um estatuto de grupo organizado e "harmô- nico" a estas pessoas, na verdade, age como um reforço da idéia de exclusão. na medi- da em que diferencia estas "comunidades" de uma sociedade urbana global que forma a cidade. A este respeito, ver também Souza, Marcelo L. O desafio metropolitano. Bertr.J.nd Brasil, Rio de Janeiro, 2000, p. 62. 8 Em seu ensaio sobre a cidade, Max Weber (La ville, ed. Aubier Montaignc, Paris. 1982), afirmava que o conceito de cidade é próprio da civilização ocidental, pois é fruto da simultaneidade histórica das regulamentações próprias a uma economia urba- na, associadas à afirmação de uma autoridade político-administrativa que reunia, em um mesmo território e sob uma mesma gestão, uma população sujeita às mesmas regras. A cidade para ele é, pois, ao mesmo tempo um fato econômico e uma relação polftica. .al&â 15
  • 11. da cidade, isto é, sua disposição física unida à sua dinâmica sociocomportamental, são os elementos fundadores da condi- ção urbana. A tal ponto isto é importante, que, ao procurarmos uma definição para o fato urbano, podemos nos perder deta- lhando critérios que podem parecer para cada situação mais ou menos apropriados, mas não possuem a capacidade de abran- gência. Os autores que se debruçaram sobre este problema ten- dem a matizar sempre seus critérios e a admitir, por fim, que nenhum deles é suficientemente capaz de recobrir o essencial na idéia de cidade.9 O critério demográfico está entre os mais freqüentes; entretanto, facilmente compreendemos que a sim- ples densidade de população não pode ser responsável pelo aparecimento da cidade. Além disso, ainda que saibamos que o gradiente de densidade da ocupação populacional do espaço varie enormemente, os limites que estabelecem os umbrais do fenômeno urbano são obrigatoriamente arbitrários. lO Em uma publicação multidisciplinar que pretende fazer um balanço dos estudos sobre a cidade e o urbano, o artigo referente à contribuição dos geógrafos demonstra a perenidade O papel precursor desta obrajá foi, aliás, reconhecido por inúmeros comcntadores que se debruçaram sobre o mesmo tema. Ver, por exemplo, Cardoso, Fernando Henrique. Autoritarismo e democratização, Paz e Terra, Rio de Janeiro, 1975, e McCrone, D. & Elliot, B. The Cily: Patterns ofdomiJtaliOil andconflicr. The McMillan Press, Londres, 1982. Para mais detalhes sobre as relações entre cidade e política no pensamento weberiano, consultar Bruhns, H. "La ville bourgeoise ct l'émergence du capitalisme moderne" in Lepetit, B e Topalov (dir.), La vi/le des sciences sociafes, Belin, Paris. 2001, pp. 47-78. 9 Esta constatação é quase uma regra para todos aqueles autores que se confrontaram com o problema da generalização do fenômeno urbano, seja em sua extensão espacial, seja na história ou em ambas as dimensões, como, por exemplo, Bairoeh, Paul. De Jéricho à Mexico. Vifles er économie dans l'histoire, Gallimard, Paris, 1985; Beaujeu Garnicr, J. Géographie urbaine, Armand Colin, Paris, 1980; Mumford, Lewis The Ciry in llisrory, Harcourt Brace & Co, Orlando, 1961; Bnwdcl, Fernand. Civilisarion maté- rielfe. économie et capiralisme, XV•-XVIII• siecle (capítulo "Les Villes"), Armand Colin, Paris, 1967; Duby. Gcorges, (dir.) Hi.stoire de la France urbaine, Seuil, Paris, 1985; Roncayolo Mareei. La vii/eet ses terriroires, Gallimard, Paris, 1990, entre outros. lll Ver a este respeito a idéia de contimmm exposta em Catter, Harold. Study ojurban gmgmphy. Arnold, Londres, 1973. IG ,llflf. dl! uma tripla orientação que marca este campo da pesquisa na grografia francesa.Jl Em primeiro plano, os trabalhos sobre a ridade foram concebidos como a descrição da morfologia de ruas e atividades, e esta orientação esteve sempre presente, seja nas grandes monografias urbanas, seja nos estudos mais sistemáticos que tendiam a concluir por uma tipologia da forma urbana. A segunda grande tendência é aquela que parte de um sistema de aglomerações, ou seja, concebe o fato urba- no como um conjunto de cidades, e estas são vistas como ele- mentos de um território. Este segundo tipo de abordagem teve como grande marco inicial o trabalho de Christaller sobre as localidades centrais. Atualmente, ainda que os modelos sejam outros, como no caso de Pumain, que busca inspiração na teo- ria da auto-organização, continua-se a se procurar explicar e mensurar a geometria do processo de urbanização e suas prin- cipais inflexões, sendo a cidade tomada como unidade dentro de um processo mais geral, que é o verdadeiro objeto destas pesquisas.12 Finalmente, uma terceira grande linha de orienta- ção das pesquisas foi aquela de analizar a organização interna das cidades. Este tipo de abordagem tem raízes antigas na geo- grafia e sofreu fortes influências, primeiro, do modelo funcio- nalista e, em seguida, da escola de Chicago e das correntes da economia espacial de cunho neoclássico. Mais tarde, estes estudos agregaram também uma preocupação marxista e desenvolveram a idéia de produção do espaço e de divisão ter- ritorial do trabalho urbano. Os fenômenos investigados, no entanto, têm uma certa recorrência; dizem respeito à segrega- t1 Lussault, Michel. « La ville des géographes » in Paquot, T. & Lussault M. Body- Gendrot (dir.) La vil/e et l'urbainl'état des savoirs, La Découverte, Paris, 2000, pp. 21-35. 12 A adoção de um modelo fundado na teoria da auto-organização é apresentada e jus- tificada pela própria Pumain como estudo da interdependência entre as cidades, ~m um breve artigo, "Le devenir des villt!S el la mod~lisation" Íl! Michaud, Yves (dtr.) L'Université de ww;les savoirs. qu'est-ce que lasociété, Odile Jacob,Paris, 2000, pp. l81·92. -"" 17
  • 12. ção espacial, à funcionalidade ou à qualificação das diferentes pattes da cidade, e o que se procura fundamentalmente é inter- pretar o processo de organização e diferenciação do espaço no interior da cidade de forma mais ou menos classificatória.l3 Este quadro esboçado para a geografia urbana francesa bem poderia ser aplicado ao Brasil, e, tanto em um caso como no outro, só muito recentemente a geografia vem se mostrando mais sensível nestes estudos urbanos às representações institu- cionais no espaço aos verdadeiros sistemas de valores e qua- dros de referência que se exprimem por meio de imaginários complexos e diferenciados que têm uma importância funda- mental na definição da vivência urbana e de sua dimensão espacial. O que se pode concluir desta breve descrição é que só muito recentemente a tentação de tomar a morfologia como uma referência objetiva e a finalidade classificatória têm sido abandonadas pelos geógrafos.l4 As formas urbanas ganham assim outras dimensões, já não sendo associadas de maneira unívoca a uma atividade ou função. O comportamento, dinâ- mico e mutável, dos atores sociais é considerado de forma rele- vante, e surge tod~ ga~a de problemas e de ~~qualifica­ ções do espaço, estranhas ao modelo das tip?logias tradicio- nais. Este tipo de abordagem obriga também os geógrafos a uma colaboração mais estreita com profissionais de outras dis- ciplinas que também vêm estudando o fenômeno urbano: arquitetos, sociólogos, antroprólogos e historiadores. 13 Uma exceção dentro deste quadro foi o hvm de Clava!, Paul. La logique des villes, Litec, Paris, 1982,em que a cidade é concebida como o lugar de maximização das inte- rações sociais. 14 Uma contribuição decisiva neste sentido tem sido dada nos últimos anos pela assim chamada "nova geografia cultural", e dois exemplos significativos destas novas orien- tações dos trabalhos sobre o urbano são Cosgrove, D. Tlle pal/adian /andscape: Environmentaltransformations and its cultural representatiollS and renais~·ance ltaly, Leiccster University Press, Leicester, 1992,e Duncan, J. "The city as a text: The polite of Jandscape interpretation", in The Kandian Kingdom, Cambridge Uoiversity Press, Cambridgc, 1990. 18 )1f1J A <:idade não pode, pois, ser concebida como uma forma qtw ~t· produz simplesmente pela contigüidade das moradias ou JWitl ~in1ples adensamento de população; ela é, antes de qual- qtlct rllis;l, um tipo de associação entre as pessoas, associação t'"'" que é uma forma física e um conteúdo.l5 Muitas vezes, qtt.ltHio CLudamos a cidade parece que nos referimos a uma evi- dl'tK·ia que se apresenta direta e inteiramente formada diante dos 11ossos oll1os. Trabalhamos com critérios de densidade ou com h111i les administrativos, como se estes não fossem passíveis de st·r submelidos a uma análise lógica que, em última instância, ptldcria nos conduzir a questionar a idéia do que é uma cidade. Por isso, cometemos freqüentemente o equívoco de consi- derar o fato urbano sob o ângulo único de uma morfologia. A l'volução urbana é concebida como a transformação ou a pro- gressão simples da forma urbana, e assim nos oferecemos o conforto de trabalhar com uma categolia descontextualizada e trans-histórica. Ao assim fazê-lo, perdemos em contrapartida a capacidade de compreender o conteúdo desta morfologia ou, em outras palavras, escapa-nos a idéia mesmo de vida urbana. Freqüentemente, falamos de formas que parecem perma- nentes no tempo: de praças, por exemplo, espaços abertos entre o casaria, espaços estes que podem ser encontrados desde a Antigüidade até os dias atuais. Ao assim procedermos, esta- mos abdicando da análise que nos mostraria a verdadeira dia- lética entre espaço e sociedade. Para insistir no mesmo exem- plo, basta ver que uma mesma cidade contemporânea dispõe de diversas praças, nem todas apresentando as mesmas dinâmi- cas sociais ou o mesmo conteúdo. A cidade é uma forma necessária a um certo gênero de associação humana, e suas mudanças morfológicas são condições para que esta associa- 15 Ninguém melhor do que Milton Santos exprime a importância desta relação para a compreensão dos processos estudados pela geografia. Ver, por exemplo, A natureza do espaço. Técnica e tempo. Razão e emoçüo, Hucitec, São Paulo, 1996. ... 19
  • 13. ção se transforme. Assim, uma análise geográfica do espaço urbano deve imperativamente ser nutrida da disposição loca- cional dos objetos espaciais confrontados com o comporta- mento social que aí tem lugar. Se este é o caso, o caminho mais apropriado parece ser o de reconhecer, para cada situação estudada na evolução urba- na, os fatores que historicamente geraram estas unidades físi- cas e sociais.l6 Polis, urbes, burgo, cidade e metrópole são diferentes denominações para diferentes coisas. Parecidas entre si, por vezes somos tentados a ver nessa evolução a sim- ples progressão dessa forma de adensamento. Erramos. Cada tipo de associação criou na história formas físicas e comporta- mentos distintos. Ao tecermos um mesmo fio lógico, estamos de fato diminuindo a coerência que a dinâmica deste adensa- mento possuía a cada momento.l7 Isto não quer dizer que não existam analogias e relações evolutivas entre elas, mas estas só podem ser estabelecidas à medida que vislumbrarmos a intera- ção necessária que existe, a cada momento histórico, entre a morfologia urbana e o conteúdo comportamentaJ.I8 Não é, pois, fortuito o fato de que diversos sistemas de com- portamento tenham raízes etimológicas que remetem às deno- núnações que caracterizaram, em momentos diferentes, a forma urbana: cidadania, civilidade, polidez, cortesia, urbanidade. 16 Há muitas rcfcrencias bibliográficasque recobrem este tema, entre as maisconheci· daseutilizadasaquiestão, entreoutras: Bairoch, P. De Jéricho à Mexico. Villes et éco· nomie dans l'histoire, Gallimard. Paris, 1985; Benevolo, L. História da cidade, Perspectiva, São Paulo, 1983; Harouel, Jean-Louis. História do urbanismo, Papirus, São Paulo, 1990; Lavedan, P. Hístoire de /'urbanisme, Paris, 1926; Mumford, Lewis. Tfze City in His10ry, Harcourt Brace & Co, Orlando, 1961. 17 Um exemploatual: os tempospós-modernos inspiram, pelaconcepçãode mosaicos, de pequenasnarrativas, aidéiafrequentemente utilizada de "aglomeração", que tende asubstituiraexpressão grandecidade. IB Mais umavez, Milton Santosfoium dospioneiros ademonstrar oritmo diferente dastransformações nas formas físicas,emfunção mesmodaresistência material delas emrelação às transformações de conteúdo. Ver, por exemplo, Espaço e método, Nobel, São Paulo, 1985. 20 ;ú1f h tas denominações correspondem a conjuntos comportamen- l.lls :1ssociados a idéias que se desenvolveram a partir de dife- lt'tlll's concepções da cidade. Tudo muda, a forma física, sua t•-,tr111 ura, seus valores, sua dinâmica, também as práticas '•tll'Íil is,os usos, a estruturade poder e prestígio social etc. O que pnmanece? A relação dialética entre território e política, erigi- da em um ideal de um determinado desenho físico e de uma dada arquitetura social. Utopia ·política, utopia urbana; estas i1nagens sempre se confundiram. Produto de sonhos de perfei- ao confrontados com a realidade dialética entre organização política e dinâmica territorial, a história nos legou diferentes simulacros reunidos nesta entidade particular chamada cidade. Em um dos livros de G. Balandier há um capítulo intitulado "o poder em algum lugar."l9 Nesse texto o autor enfatiza a 11ccessidade de reconhecer na dinâmica do poder mais do que a "des~rição, a identificação e a classificação das formas políti- cas; o estudo das funções, dos 'personagens', das práticas e das representações; a interpretação das formas de controle social e dos conflitos; a relação do poder com o parentesco, com a estra- tificação social, com a religião e com o direito". Infelizmente, as formas simbólicas do imaginário político preconizadas como renovadoras do estudo sobre a naturezado poder, mais uma vez, tocam apenas tangencialmente o território, embora o autor admita que "a relação com a terra é tão valorizada, que o poder é indissociável de um território, de um espaço político". Acredi- tamos, modestamente, que a geografia tem condições de de- monstrar que as práticas e representações do poder têm uma incontornável dimensão espacial e que as formas de controle social e do direito se situam em uma posição de dependência direta em relação às disposições territoriais. Esta é a tarefa que nos damos aqui, o desafio ao qual nos lançamos agora. 19 Balandier,G. O contorno: Poder e modernidade, Bertrand Brasil, Rio de Janeiro, 1997. .a&lâ 21
  • 14. PRIMEIRA PARTE Duas matrizes territoriais: Nomoespaço e Genoespaço
  • 15. 1imtaríamos de introduzir este tema com uma discussão Jlll 11m. parece básica para a definição do alcance e das possi- ltllitl.tlks de um campo de pesquisas propriamente geográfico: " 111)'111' da reflexão espacial, suas propriedades, sua importân- ' 11 1' Mia colaboração dentro do domínio das ciências sociais. 1 llltlils vezes, temos lido, em textos de origens diversas, a de- lj'llill,;iio de "condições geográficas", sendo utilizada para des- ' l l ver os elementos morfológicos e ambientai:> de uma certa lll l';l. Dentro deste quadro, estas "condições" são vistas como , ,plit.:ativas, quando não determinantes, de certos aspectos so- l lilis. Parece, assim, que a geografia pode contribuir apenas 1 lllll a descrição do quadro físico no qual são estudados os ll'ltômenos sociais e que a única relação possível entre esses dumínios é aquela que estabelece uma relação simplista de cklcrminação entre eles.2o Paralelamente, nos propósitos gerais dos geógrafos, perce- l1emos uma pretensão muito diversa, que é a de demonstrar, por L"xcmplo, como o espaço constitui um elemento ativo na organi- /ação social, ou seja, que ele é de forma simultânea agente e !U Um dos últimos exemplos éo livro de Landes, David S. Tl!e wealth and poverty oj nations. Why some are so rirh and some so poor, W. W. Norton & Co., New York, 1998, que aliás recebeu de Souza, Marcelo L. um comentário crítico a propósito des- sas teses um poucosimplificadoras sobre as "condições geográficas", Rev. Turit6rio, ll. 8, 1998,pp.l05-9. .,... 25
  • 16. paciente nessa dinâmica. Desse descompasso, podemos tirar duas hipóteses. A primeira diria respeito ao problema de comunicação ou de diálogo entre a geografia e as demais ciên- cias sociais, no qual as responsabilidades são divididas, ou seja, os geógrafos não conseguem, em sua maior parte, desper- tar o interesse dos colegas de outros domínios sobre os temas realmente discutidos pela geografia contemporânea;21 a segun- da hipótese é a de que estes outros campos disciplinares ainda não conseguiram atentar para a importante contribuição de uma verdadeira análise espacial na compreensão dos proble- mas sociais.22 Nenhuma das duas parece inteiramente satisfatória. Sem fazer do espaço uma categoria central dos seus estudos, a antropologia, por exemplo, tem, já ao longo de muitos anos, valorizado esse ângulo como tendo uma dimensão fundamen- tal na compreensão de certos processos sociais. Um dos exem- plos mais eloqüentes é o de Claude Lévi-Strauss, que, ao estu- dar os sistemas de parentesco ou a estrutura social de algumas sociedades concretas, mostrou que a composição espacial não corresponde simplesmente à imagem de uma sociedade, seu reflexo rebatido sobre o plano da extensão, mas também que essa composição é produtora de sistemas sociais, uma de suas causas. Mas parece que Lévi-Strauss não é um grande leitor da bibliografia geográfica, e, infelizmente, os geógrafos tampou- 21 Um exemplo eloqüente é ode Pierre Bourdieu,que,a despeito do seuexemplarestu- do sobre a casa Kabilia ("La maison ou le monde renversé" in Esquisse d'une théorie de la pratique, Seuil, Paris, [1972], 2000), em que demonstra a impo11ância estrutural da dimensão espacial no quadro da vida social, manifestou-se frontalmente contra a manutenção da geografia nos currículos escolares sob a argumentação de que esta nunca havia demonstrado seu possível estatuto científico. 22 De fato, esse não é o caso de muitos cientistas sociais de grande renome, entre eles Fernand Braudel, Michel Foucault, Henri Lefebvre, Artthony Giddens, entre outros, para quem a dimensão espacial teve sempre uma importância primordial na compreen- são elos processos sociais. Infelizmente, na valorização de suas obras tem prevalecido a apreciação de outros aspectos, e a centralidade da análise espacial nas ciências sociais ainda não se nutre de muitos seguidores. 2G ,1Jlfl..._ tlt p,llt't t'lll inclinados à leitura dos textos antropológicos, e '1111'1 p• '~'I veis pontes ficaram mais ou menos desertas. I 111 11111 outro livro consagrado à antropologia, parte-se de tilli 1 lt ""l' d~.: Gcorges Perec, para se chegar a propósitos muito p11• llllll:o. dos que aqui estamos definindo como um campo de 111 ·'it ll ~a~ geográfico: Mudar o lugar de uma praça é mudar na cidade ou mudar de t'rdade'! E o que é uma cidade? Lugar de uma coisa, lugares de nlisas em um conjunto que as contém, lugar de um conjunto, lugares destes conjuntos; relações entre as coisas, entre lugares das coisas, entre os conjuntosque os contêm; lugares de pessoas, rl'lações de pessoas com as coisas, com os lugares das coisas. eutrc elas, entre seus lugares, com os conjuntos que os contêm, representações destes lugares, destes conjuntos e de suas rela- çoes etc.23 Ao que parece, essas complexas interações entre lugares, ruisas, pessoas e comportamentos só podem ser analisadas se IIJ<tntivermos em sua base uma visão dialética, em suas mais v;triadas combinações, ou seja, evitando-se tomá-las como se 'stivessem simplesmente dispostas em um círculo de determi- IJaÇões.24 A tarefa não é simples. Na famosa querela que opunha os marxistas "althusse- ri<mos" aos "historicistas", um elemento fundamental da con- trovérsia era o estatuto de independência do espaço.2s Para os assim chamados historicistas, o espaço é uma "instância" onto- lógica, no mesmo patamar do capital e do trabalho, ou seja, a ~· Paul-Lévy, F. & Segaud. M. Anthropologie de /'espace, collection Alors, Centre Gcorges Pompidou, Paris, 1983, p. 19. 1~ Notemos o paralelismo desses propósitos com aqueles defendidos por Santos, ~ilton como definidores de um campo de pesquisas geográfico, em A 11atureza do espaço. Técnica e tempo. razüo e emoçüo, Hucitec, São Paulo, 1996. 25 Os termos desse debate são muito bem apresentados por Gottdicncr, Mark, A produ· çcio do espaço urbano, Edusp, São Paulo, 1993. .al.ul 27
  • 17. forma espacial é parte do processo de reprodução social. Para Lefebvre. por exemplo, há um espaço de consumo. mas há simultaneamente um consumo do espaço, ou seja, o espaço também é propriamente um objeto de consumo. As relações socioespaciais estão presentes no modo de produção e o espa- ço atua, simultaneamente, como produtor e como produto, como relação e como objeto.26 Esta posição é contrária àquela, exemplificada por M. Castells, que concebe o espaço como uma unidade específica onde atua a articulação geral das ins- tâncias (econômica, política e ideológica), ou seja, onde a forma espacial, neste caso o urbano, é um subsistema comprá- ticas análogas às do sistema estrutural; ele é assim uma unida- de particular onde se reproduz a força de trabalho.27 A repercussão desse debate na geografia não foi tão grande, muito embora devamos admitir que a obra de Lefebvre tenha sido muito bemrecebida por parte de alguns geógrafos que nela encontraram efetivamente a afirmação da independência de um campo analítico para o espaço e, p01tanto, um estatuto episte- mológico novo para a geografia. No geral, no entanto, a dialéti- ca na geografia parece ter tido um emprego quase sempre bas- tante limitado. Ela foi utilizada como uma simples extensão das catego- rias tradicionais do discurso marxista elevadas a parâmetros essenciais: lutas de classe/segregação espacial, acumulação de capital/divisão territorial do trabalho, produção do espaço/ reprodução social. A dialética foi ainda mais amplamente re- clamadana idéia de um espaço geográfico, fruto da relação en- tre natureza e sociedade. No caso dessa imagem, no entanto, essas categorias foram comumente tomadas como dados, coi- sas, e não como construções históricas, e fatalmente se costu-. 26 Lefebvre, H. Laproduction de I'espace, Anlhropos, Paris, 1975. 21 Para uma apreciação crítica desse debate fundada sobre um estudo de caso ver, por exemplo, Santos, Carlos Nelson F. Movimenros soriais urbanos no Rio de Janeiro, Zahar ed., Rio de Janeiro, 1981. 28 )lf1J 111 t'Hcai r na armadilha de um espaço sobredeterminado so- l Itltlll'llh.!, ou para simplificar, a cada modo de produção cor- ' L pnndl'ria um espaço-tipo. <'n tamcnte, essa concepção é mais um sintoma da doença •111p111sta queexiste latente na geografia, e que, de vez em quan- tln. dl'llagra um novo surto de febre morfológica, impondo seus t .p11s111Údicos acessos de razão classificatória.28 A despeito tlll.ln, u dialética pode nos ajudar a compreender conceitos que .t t•xprimcm por meio de jogos de oposições e confrontos, tais 1 tlllll•os de moderno e tradicional, de novo e velho, de público e Jlllvauo, de relações contratuais e relações contextuais e, sobre- ltltl(1, de forma e conteúdo. É dentro dessa perspectiva que tentaremos trabalhar aqui, ''"piorando as possibilidades desses jogos de confronto. Ao lado d.ts categoriasjá consagradas, propomos duas outras, que. acre- dilamos, sãoformas propriamente geográficas de pensar o espa- 'Oemrelação direta com a sociedade, e, por isso,chamamo-nas de matrizes. Nesse sentido, o significado de matriz é aquele dado pela matemática, de um quadro de relações entre n colunas e p linhas. Podemos, todavia, acrescentar que uma segunda signifi- cação vem se somar à primeira, esta de ordem técnica, como de uma forma que serve para reproduzir uma certa marca sobre um objeto submetido à sua ação. Acreditamos assim que as caracte- rísticas contidas nessas duas matrizes constituem marcas durá- veis, profundas e distintas de conceber e de viver o espaço, e resultam em modelos igualmente distintos de refletir sobre a dimensão política do espaço; por conseguinte, de escrever uma geografia política. Pretendemos, assim, criar as condições para 28Groethuysen nota com propriedade que esse comportamentoclassiftcatório é caroà época de nascimento do "gênio burguês" e sua obsessão pelos museus, coleçôes, jar- dins botânicos e zoológicos; todo um momento de valorização da nomenclatura que procura reunir parte da dispersão em um pequeno mundo construído e ordenado. A geografia moderna é filha desse momento, e por isso, talvez, um dos grandes projetos que mobilizou grandes nomes foi o de escrever uma geografia universal, espécie de catálogo de toda a diversidade contida no mundo. Groethuysen, B. Philosophie de la révolutionjrançaise, Gallimard, Paris, 1956. • 29
  • 18. um diálogo explícito com outros domínios das ciências sociais que trabalharam o mesmo campo da política sob outros ângulos preferenciais: a antropologia, a história, a sociologia e, propria- mente, a ciência política. Para dar início a essa reflexão, suponhamos, por um ins- tante, que haja apenas esses dois modelos fundamentais e excludentes de relação entre um grupo de pessoas e o território onde vivem: o nomoespaço e o genoespaço. 30 )lflJ. I - O nomoespaço N.t p1imcira forma, essa relação da sociedade com o espa- 1" p11·ssupõc a existência de indivíduos, ou seja, unidades 11111lllllllaS, com variadas gamas e níveis de expectativas, inte- " ,,,..., pmpostas e práticas sociais. As diferenças entre esses 111rllvld11os são, em princípio, infinitas, e os únicos fundamen- , , ,., ,.,1111lll1S são a consciência da diversidade e a crença de que 1 11,•,nciação dessas diferenças pode ser a estratégia mais ade- q11.1d.1 para se ter êxito na realização de seus interesses, tanto ll'llll'll:s que são gerais quanto os particulares a cada um. Para , ''"segui-lo, é necessário que se estabeleçam bases formais lfl",sa associação, contratos que limitem, coíbam e punam cer- 111 ~ aritudes em nome do equilíbrio do conjunto. Ao mesmo ,,.,,,po, essa associação deve garantir, resguardar e proteger dl'lerminados direitos e liberdades que constituem os maiores lll'ncfícios supostos nessa cooperação. A forma de traçar um limite entre o condenável e o desejá- vl'l- entre o que deve ser objeto de coerção e a garantia dos di- tl'itos- é a criação de um código de normas para regular, de lnrma estável, geral e lógica, a dinâmica social. Daqui por diante, chamaremos simplesmente esse conjunto de regras de lei. A palavra latina para direito é jus, o mesmo radical que de- ' ivou em justiça, aplicação objetiva de normas sociais preven- tivas e punitivas feitas em nome do bem comum. A diferença entre o que é legal e o que é justo constitui matéria de amplo debate nas ciências j urídicas, mas o direito ou a lei, dentro de .,. 31
  • 19. .. um sistema social fundado na lógica, sempre tem como princi- pal justificativa para sua existência e seu exercício o princípio de justiça. Como se trata de uma associação entre indivíduos, com variados graus de investimento e interesses, com uma variada capacidade de julgamento e de adesão a esse conjunto, a lei pretende ser a garantia dos limites da liberdade comportamen- tal dentro de um espectro de atitudes possíveis e plausíveis ao conjunto das pessoas. Compattilhamos da crença de que essa forma de sociedade tem como elemento fundamental de regulação e de ordenamen- to a disposição espacial, ou seja, a lei se exprime pela forma como as coisas estão organizadas e distlibuídas no território segundo uma coerência formal que é lógica e deve atender aos preceitos estabelecidos pela idéia geral, e um tanto quanto vaga, de equilíbrio entre o bem comum e as liberdades individuais.29 Esses limites entre os princípios gerais coercitivos que devem se justificar pela idéia de bem comum e o domínio da liberdade individual são um dos temas recorrentes entre os teórico~ que se debruçaram sobre ajustiça social no seio dos Estados modernos. Para Jean-Jacques Rousseau, a lei é a expressão de uma unanimidade consensual, estabelecida e justificada pela racio- nalidade, que pode serresumida na fórmula da ''vontade geral". Assim, para ele, "a obediência à lei prescrita por nós mesmos é Iiberdade".30 Para Hobbes, a tensão entre a dimensão humana, natural, e a cidadã, nascida de um pacto social, só pode ser paci- ficada pela aceitação de alguns princípios fundamentais de obe- diência: "A obediência e a liberdade são contrários rígidos."3l 29 Maquiaveljá propunha a concepção do território como um fator essencial na dura- bilidade da lei. JO Rousseau, Jean-Jacques, Discours sur /'origine et les fondeme/1/s de l'inegalité parmi les hommes, Gallimard, Paris (1755), 1964, p. 365. 31 Mannet, Pierre. "Thomas Hobbes" in Dicionário das obras poUticas, Chatelet, F.; Duhamel, O.; Pisier, E. (org.), Civilização Brasileira, Rio de Janeiro, 1993, p. 497. 32 )lJ1f 1 ~sitn, a liberdade é tanto maior quanto for a ausência de obs- l.tt tdos c entraves para realizarmos nossa vontade. Mais recentemente, Isaiah Berlin, ao examinar as perspecti- us desses autores, desenvolveu uma concepção que opõe dois tlpns de Liberdade. Uma liberdade negativa, definida pela sim- pll-s ausência de obstáculos, e uma liberdade positiva, estabele- t ltl:i pela disponibilidade de meios para realizarmos certas 11tll.'S, sendo esta disponibilidade a condição primeira para uma Vl'tdadeira autonomia.32 Ele reagiu assim contra os regimes ;HtloritáJios, que confundem muito facilmente a vontade geral 1 tllll a vontade indivjdual, posição rousseauniana, e simultanea- tllt'ntc contra ajustificativado absolutismo hobbesiano. Sua cri- ltra se estende da mesma maneira contra o excessivo laissez- foire liberal que, de Locke a Stuart Mill, na Inglaterra, e de <'nnstant a Tocqueville, na França, pretende que possa existir ullla efetiva liberdade quando sabemos que os meios disponí- wis para o seu exercício não são de forma alguma distribuídos 'I'Ualmente.33 O fato fundamental para nós nessa discussão é que as dife- ll'ntes compreensões do estatuto desejável para a liberdade ciL·I"inem limites diversos de esferas de poder e de autonomia l'tltre o Estado e os indivíduos, e que estas esferas correspon- dem a limites físicos, espaciais e comportamentais entre um domínio público e um domínio privado. '-' Essa idéia de liberdade positiva, em grande parte, tem justificado a chamada polfti- L"H da discrimina,·ão posiriva nos EUA, pois, na medida em que a liberdade de um grupo foi violada por outro, este último tem o direito de receber dos responsáveis por essa violação um ressarcimento que recolocará o primeiw grupo novamente em posi- o;ilo de conquistar uma autonomia. 11 Para maiores esclarecimentos e detalhes sobre esse ponto, sugerimos a leitura do livro de Berlin, Isaiah, Four essays onliberty, Oxford University Press, Oxford, 1969, especialmente o capftulo III, "Duas concepções da liberdade". Para um ponto de vista crítico, ver também: Miller, David, Liberty, Oxford University Press, Oxford, 1991 . .al.u 33
  • 20. A lei, como convenção que é, pressupõe limites físicos para seu vigor e extensão, extensão esta que é também coinci- dente com os limites da efetividade do poder que as promul- gou: "O território [um dos três elementos constitutivos do Estado moderno] torna-se o limite da validade espacial do direito do Estado, no sentido em que as normas jurídicas ema- nadas do poder soberano valem apenas dentro de determinadas fronteiras."34 Assim, a instituição da lei diferencia espaços à medida que exclui aqueles que não são por ela atingidos; então, cria e formaliza territórios de inclusão e de exclusão social. No interior do tenitório no qual se aplica, no entanto, ela é equâni- me; em outras palavras, o espaço sobre o qual se projeta a lei é composto de equivalências, ou seja, ainda que materialmente diferente, esse espaço deve ser visto, sob o ponto de vista do direito, como o terreno abstrato de uma isonomia. Nós estamos acostumados a entender lei e direito no sentido dos dez mandamentos, enquanto mandamentos e proibições, cujo único sentido consiste em que eles exigem obediência e que dei- xamos cair no esquecimento, com facilidade, o caráter espacial original da lei.Toda lei cria, antes de mais nada, um espaço onde ela vale, e esse espaço é o mundo onde podemos mover-nos em liberdade. O que está fora desse espaço está sem lei e, falando com exatidão, sem mundo; no sentido do convívio humano, é um deserto.35 Uma conseqüência direta disso é que os limites desse terri- tório são precisos, tanto globalmente como nas diversas hierar- quias em que se subdividem a administração e a gestão dessas 34 Bobbio, Norberto. Estado, governo, sociedade: Para uma teoria geral da polftica, Paz e Terra, Rio de Janeiro, 1992, p. 94. 35 Arendt, H. O que é a política?, op. cit., p. 123. h 1111 ~ A~. arcas de fronteiras não têm transição; são linhas ela- "' 1 dl' tllarc..:ad<~s com precisão e rigor.36 Heráclito comparava "'"" ltlt~·ao das muralhas urbanas ao estabelecimento das leis 11 llllll'l:bia como processos correlatos à criação de uma ld 11h· IJma polis definia-se assim, para ele, como a fronteira .t,, , t1111ms c de suas leis. A lei é a circunvalação-fronteira produzida e feita por um homem, dl'lllro da qual nasce então o espaço da verdadeira coisa política, 1•11de muitos se movem livremente. Por isso, Platão invoca Zeus, t 1 protetor das fronteiras e dos marcos, antes de pôr mãos à obra e JIHimulgar suas leis para uma cidade recém-fundada.37 lpwlmente, o exemplo romano, que formalizou a idéia do dtll'tlo e da lei, é, também nesse caso, bastante eloqüente e, t.l'}'.lllldo Moatti, a história romana começa sob o reino da obsessão dos confins (...).Delimitar, marcar seu território: tal é a dinâmica da funda- ~ão da cidade- e de toda cidade. Tal é igualmente o da conquis- ta: a de terras e sua organização, a redistribuição da propriedade, acompanham-se de uma divisão do solo e de uma delimitação das parcelas, necessitando de instrumentos de medida iguais e precisos e, sob o Império, é pela organização defensiva das fron- teiras que se encontram garantidas a integridade e segurança do Império. Centuriation e limitatio, pomerium e limes, eis aí as .16 São conhecidos os diversos estratagemas (transporte dentro de cestos. disfarces etc.) ulilizados pelos romanos para transpor as muralhas da cidade e, assim liberados das leis e das penas, podiam dar livre curso a ações que eram condenadas dentro dos limi- lcs da ~idade, sem prejuízo dos ideais da dignidade e da virtude, sempre tão valoriza- dos na cidade. Neste exemplo é muito clara a estrita coincidência entre os limites fisi- cos e os limites da transgressão que marcam esta idéia de nomoespaço. Ver a esse res- peito, Veyne, Paul, "L'Empire romain" in llisiOire de la vie privée, Ariês, P. & Duby, G. (dir.), Seuil, Paris, !999, I'Oll, pp 17-214. 37 Arcndt, Hannah. Oque é a política?, op. cit., p. 1!4. ... 35
  • 21. formas romanas de organização do território. A propriedade pri- vada, a cidade e o Império devem estar circunscritos e rigorosa- mente definidos.38 Vemos nessa descrição como a delimitação espacial é soli- dária e está associada à organização social. Poderíamos mesmo dizer que essa "obsessão" de delimitar, denominar, classificar, em suma, ordenar o território, é uma condição fundadora do fenômeno social. Quando comparamos o comentário acima com a observação de um outro historiador, especialista da Idade Média - segundo o qual, "os limites feudais desespera- ram durante muito tempo os medievistas. Eles os viam tão mutáveis, tão complexos, tão imprecisos, que se recusavam mesmo a descrevê-los e a desenhá-los" -, percebemos a rele- vância desse processo de delimitação e classificação normati- va do território como definidora de uma dinâmica própria e singular que estamos chamando aqui de nomoespaço.39 Percebemos também quanto essa relação pode se apresentar de forma diferente e resultar em outras dinâmicas quando este processo não tem o mesmo curso, como é o caso majoritário na organização da sociedade medieval. As pessoas que transitam por esse espaço normatizado, entretanto, nem sempre são objeto da mesma lei que rege o conjunto associativo, ou seja, há maneiras também regulamen- tares de distinguir os compromissos formais, as normas que regem os direitos e os deveres, de indivíduos diferentemente associados ao espaço. Em Roma, por exemplo, distinguia-se o jus civitatis, direito composto de normas referentes apenas àqueles que detinham a cidadania, ou o direito àcidade, do jus gentium ou jus peregrini, concernente aos homens livres não- JB Moatti, Claude. Archives et panage de la terre dans /e monde romain, École Françaisc de Rome, Paris, 1993, p. 3. 39 Guenée, Bernard. << Des limites féodales aux frontieres polítiques ''• in Nora, Pierre (dir.) Les /ieu.x de mémoire, Gallimard, Paris, 1997, pp. 1.103-46. 3G .nrú 1 ulndãos que também habitavam ou transitavam pelos domí- llllls do Império. Segundo essa compreensão, o direito à cidade é próprio a 1 mla povo e denota o domínio de um certo grupo sobre um ter- •110rio onde ele desfruta de privilégios e direitos superiores aos doqucles que não têm compromisso com a reprodução das rela- 't)l.lS formais e da manutenção do controle social sobre esse ter- 1itório. Da mesma forma, o acesso de elementos estranhos à associação fundada nesse espaço é também objeto de regula- llle!ltações e coerção, tudo isso sob a perspectiva da preserva- ':lo do bem comum dos membros privilegiados, signatários do ronlrato social original e emanados das leis que regem esse lerritório. Dentro dessa maneira de se relacionar com o espaço, é m:cessário constatar que cada unidade territorial interior, ou subdivisão do conjunto global, corresponde a competências, l'unções e esferas bem-delimitadas com atributos e práticas diferentes. O espaço é hierarquizado, assim como os poderes que sobre ele são exercidos. Sua estrutura é complexa, assim como o são as disposições formais (da lei) que o regem e con- trolam sua dinâmica. A esse tipo de relação social com o terri- tório demos o nome de nomoespaço, ou seja, uma extensão física, limitada, instituída e regida pela lei. Trata-se de um espaço definido por uma associação de indivíduos, unidos pelos laços de solidariedade de interesses comuns e próprios, e pela aceitação e aplicação de certos princípios logicamente justificados. Idealmente, esse espaço define um limite de adesão volun- tária. Nesse sentido, trata-se hipoteticamente de um espaço inclusivo, pois para todos aqueles que se propuserem a obede- cer à ordem é, em princípio, garantido o acesso em igualdade de situação com os outros. Na prática, essa adesão se faz segundo os interesses daqueles que controlam a associação e ~ 37
  • 22. pode variar em função dos diferentes contextos dos momentos. Mais uma vez, embora o direito de acesso seja livre, ele deve sempre estar submetido àidéia do bem comumdas pessoas que compõem essa associação ou a controlam. Um bom exemplo disso nos é dado pelos procedimentos que levavam à concessão da cidadania, que datam dos primór- dios das cidades gregas na Antigüidade, especialmente em Atenas. Antes de conceder direitos políticos a alguém que não tivesse nascido de outros cidadãos da polis, esse indivíduo deveria passar por diversos processos que demonstrariam sua capacidade e empenho em renunciar aos costumes de sua área de origem e simultaneamente demonstrar, conhecer, respeitar e defender as leis que regiam a ordem daquela polis.40 Nesse caso, em particular, a naturalização era um processo muito difícil e raro, embora fosse sempre citada como uma possibili- dade.4I Assim, fazer parte dessa associação, desse espaço, sig- nifica aceitar suas regras, endossar os contratos que unem os indivíduos e, conseqüentemente, preservar os limites da lei, limites territoriais e sociais. Significa também renunciar a to- das as outras formas de regulação do comportamento que entrem em conflito com o código de conduta estabelecido nesses domínios. Até hoje, na maioria das sociedades contem- porâneas, as cerimônias de outorga da cidadania seguem o rito que prevê a assinatura de um contrato de adesão e umjuramen- to, pronunciado solenemente, diante de uma autoridade jurídi- ca, juramento este que implica fidelidade e aceitação das con- dições normativas do país ao qual está sendo demandado o direito à cidadania. Além de ser aberta a novas adesões, essas sociedades se 40 Ver, por exemplo, Baslez, Marie F. L'étrallger dans la Grêce Antique, Les Bclles Lettres. Paris, 1984. 41 Havia duas definições de estrangeiros para os gregos, uma política, os não-cidadãos, e outra cultural, os bárbaros. Baslez, Marie F. op. cit. 38 fi1J •'· l11wm pela estabilidade dos princípios legais que as origi11a- , 1111 llú, por assim dizer, princípios fundamentais que dão I• ''"'"econtorno legais a todos os outros instrumentos norma- 11 't.~ Llllllplementares e funcionam como base de legitimidade 111~.o legisladora ulterior.42 Os outros instrumentos legais que ,,,..,,.,,uram seu funcionamento, no entanto, são mutáveis e ten- dnll a ser revistos segundo uma lógica de aperfeiçoamento e ptn)•rcssividade. É importante perceber que estes grandes prin- • lptos que originam as associações estão sempre relacionados ,t tutidades territoriais formais, também mais ou menos está- ' •.,.. ( 'ontudo, a gestão interna do território, suas subdivisões, .n.ts competências e sua forma de hierarquia e controle são, pl'tltlanentemenle, objeto de debates e mudanças. I transgressão à lei é, nesse sentido, o único crime e nos '.t'liS mais graves ela deve ser penalizadacom a completa exclu- , tu, social e territorial. Mais uma vez, o exemplo grego é enfáti- ' •1; atinai, quase tão grave quanto a condenação à morte era o ~ ~~lracismo, que significava, simultaneamente, uma "morte sim- ln•lica" acrescida da humilhante expulsão, que implicava perder iudos os direitos relativos àquele território (muito embora exls- t1sscm penas de ostracismo com duração de apenas alguns anos, rolllumente dez anos). Em nossas sociedades contemporâneas, l•cqüentemente, as penalidades impostas pelo descumprimento das leis podem conduzir ao encarceramento, que corresponde igualmente a uma exclusão teJTitorial.43 Este nomoespaço é assim construído de maneira a expri- mir relações formais de pertencimento, mas sobretudo de orde- namento. Assim, cada instituição social dispõe de sua área de lZ Estamos pensando aqui nos princípios constitucionais da maioria das sociedades modernas. 11 Na França, paraosestrangeiros, há a dupla pena, ou seja, oencarceramento em uma prisão no território francês, seguido da expulsão do país após o cumprimento da pena- lidade.
  • 23. controle e vigilância, as práticas sociais são regulamentadas no espaço, e os signos de delimitação territorial são inequívocos. As interdições e a coerção são sempre matéria de comunicação e sinalização territorial, ou, em outras palavras, o espaço é internamente qualificado por uma regulamentação formal e uma visibilidade explícita de suas normas e fronteiras. Os rela- cionamentos tendem a ser impessoais e regulares dentro dos limites das diferentes esferas socioterritoriais. Dessa maneira, há marcos territoriais que delimitam esferas de práticas regula- res, e eles são, simultaneamente, a condição para que essas prá- ticas existam e o reflexo delas. De fato, esse tipo de espaço é a base que funda uma socie- dade de contrato. O nomoespaço é assim uma condição neces- sária para que se configure a idéia de um pacto social do tipo contratual. Diferentes pactos dão origem a diferentes composi- ções espaciais. Um breve percurso histórico pode nos ajudar a compreender essas distinções e algumas características essen- ciais das sociedades fundadas sobre a idéia de um espaço nor- mativo, regulador e formalizador de práticas. Os espaços contratuais: Exemplos e dinâmicas A cidade grega, o fato político que funda a sociedade oci- dental, estabelece um novo vínculo social, não mais a função de uma comunhão religiosa, familiar ou da submissão a um mesmo .monarca, e sim da integração de indivíduos, como sujeitos de direito, de uma nova associação, fundada na co- participação de uma soberania política. Assim, a polis grega cria um novo domínio da vida coletiva e redefine seus quadros físicos e comportamentais. A simetria igualdade e reciprocidade das relações entre esses novos personagens sociais, os cidadãos, definidos pelas 40 ft1J I['' <il' isonomia de Clístenes, pressupõe um novo arranjo espa- 1li,lll'spaço dapolis é então pensado e figurado como um cír- ' 11111 Ao centro, a ágora, antigo espaço aberto destinado ao 1111 1~ ado, é desde então delimitado e ganha o estatuto de espa- ll llllhlico, lugar de encontro dos isoi (iguais).44 llssc espaço público só se torna político quando assegurado numa cidade, quer dizer, quando ligado a um lugar palpável que possa sobreviver tanto aos feitos memoráveis quanto aos nomes dos memoráveis autores, e possa ser transmitido à posteridade na seqüência das gerações. Essa cidade a oferecer aos homens mor- tais e a seus feitos e palavras passageiros um lugar duradouro constitui a polis - que é política e, desse modo, diferente de outros povoamentos, porque originalmente foi construída só em torno do espaço público, em torno da praça do mercado, onde os livres e iguais poderiam encontrar-se a qualquer hora.4s A antiga distinção entre cidade baixae acrópole, fortemen- le hierarquizada, de acesso discricionário, dissolver-se em uma abstração geométrica. A localização do bouleutério (assem- bléia), recém-criado, entre a colina e a ágora, ajuda a dissolver a antiga hierarquia.46 A distinção fundamental do espaço já não é entre o sagrado e o profano; agora se trata das distinções entre o público e o privado (oikos). A dessacralização·do espaço foi uma das primeiras conse- qüências e pode ser avaliada, por exemplo, no imediato impe- dimento de enterraros mortos dentro dos limites definidos pela muralha das cidades. Assim, a ancestralidade deixa de fazer 44 Grande parte dos elementos dessa descrição se encontram em Vernant, Jean-Pierre. Mythe et pensée chez les grecs, Maspero, Paris, 1980, especial- mente no capítulo 3, "L'organisation de !'espace". 45 Arendt, H., op. cit., p. 54. 46 A esse respeito, consultar Vernant, Jean-Pierre, op cit., pp. 207-22.
  • 24. 42 parte da ordem primária da polis. Em parte dessacralizado, o espaço ganha um novo estatuto: espaço público. O culto a Réstia, deusa dos lares, tradicionalmente mantido no interior de cada casa, passa a ser um culto comum e público, com o templo no centro da aglomeração. Isso não quer dizer que os grupos familiares perderam toda a sua antiga importância. Na verdade, os oikoi continuaram a ser a base da organização social, sua associação na fundação da polis definia uma organização social, e fundada na idéia de um ethnos (povo). Esta é a explicação comumente apontada para se compreender a razão pela qual os limites das democracias gregas nunca tenham ido além da unidade básica da cidade, pois nesta se configurava o quadro estreito da vida das ethne. Assim, a reforma de 507 a.C., que estabeleceu a isonomia e as trinta circunscrições de Atenas, mudou completamenteos cri- térios legais de pertencimento, que passaram a ser unicamente a cidadania e o lugar de domicílio. Essa nova organização substi- tuiu o modelo exclusivo de funcionamento das cidades, que era dado pelas grandes e tradicionais familias, que monopolizavam completamente os direitos civis e fundiários obtidos pelo con- trole sobre as parcelas de terra, os kleros, e que mantinham sua exclusividade e prestígio pela ocupação dos cargos e obrigações políticos e militares. O que se denomina até a reforma de Clístenes como polis era, assim, o agrupamento de habitações e templos, e as áreas de atividade agropastoril que formavam a chora e pertenciam aos aristocratas. A transformação do genos em demos, ou seja, a passagem de uma comunidade étnica a uma sociedade civil, aliás, foi um fenômeno limitado às cidades do Sul da península balcânica, e no Noroeste a tônica foi a per- manência de uma aristocracia apoiada em grupos de afmidade familiar continuar no poder das cidades. Todavia, a partir de Atenas e nesse momento, a polis passa a ser também a denomi- nação dessa sociedade civil isonômica, sede do poder cidadão, tltt l11s1iluiçõcs que a definem, e sua imagem passa a se confun- 1ll1 ttll1 n própria morfologia urbana que a abriga. (I :--l'culo de Péricles, comumente visto como um rnomen- 111 dt 11pogcu das cidades gregas e, sobretudo, de Atenas foi de 11111 11111 primeiro marco de mudanças ocorridas dentro dessa l111111ra inicial da polis. Com essas mudanças surgem novos ,''"IIHlllt.:ntes na vida social grega, que vão assim ensejar novas 1 I",,.s tio espaço, novas hierarquias, novos segmentos sociais, lllil is uma vez, isso demanda necessariamente um novo lll •llljll espacial. <) modelo hipodêmico, sua divisão em três grandes classes olt lwhit.antes, que correspondem a três funções (artesãos, agri- l llll mes e guerreiros) e a três tipos de estatuto do espaço 1'-111'' ado, público e privado), dispostos em uma grade ortogonal, • u lonna dominante das novas cidades e corresponde a uma 1111Va imagem de proporcionalidade geométrica que substitui a IJ'IIiddadc aritmética do círculo. Este modelo é aplicado larga- lllt'llte nas colônias da Sicília e do Mar Negro ou na reconstrução d11~. cidades destruídas pela guerra, como a de Mileto, ou ainda 1u•s 11ovos empreendimentos, como no porto do Pireu. A difícil comunhão entre estes dois tipos de organização ,...pacial da polis serviu, aliás, de tema para uma comédia de /1istôfanes, As vespas, que, por intermédio do personagem de 11111 arquiteto, procurava demonstrar a difícil conciliação entre II II W sociedade que pretendia a isonomia, a forma circular, e lltl, mesmo tempo, a hierarquia, traduzida na forma ortogonal. Ml'lon, o personagem arquiteto, constrói assim uma imagem ,·spacial absurda, propondo a quadratura do círculo, que tklllonstra de certa forma o paradoxo mesmo de imaginar uma hierarquia entre iguais: "Eu tomarei minhas dimensões com llllla régua e as aplico de maneira a inscrever o círculo em um quadrado. No centro haverá uma praça pública, aonde chega-
  • 25. ... rão as ruas retas; convergindo para o centro, como um astro redondo, partirão em todas as direções raios retos."47 Outro fato inédito e de grande repercussão posterior trazi- do pela nova composição socioespacial dapolis grega é a idéia de um Direito Urbano, que vai se aplicar e que irá reger o desenvolvimento desses espaços. Desde o momento em que a cidade começa a ser vista como o lugar de uma sociedade civil, isto é de uma comunidade política de cidadãos, o arranjo espa- cial passa também a ser matéria de exame e intervenção do público. Assim, são votadas leis de regulamentação e constru- ção, estabelecidas segundo critérios gerais e justificados por razões de saúde, higiene, segurança, mas também de ordem estética. Na cidade de Pérgamo, por exemplo, as novas cons- truções eram objeto de regras muito precisas e rigorosas, e o não-cumprimento delas era passível de multas, demolições e de condenação dos seus construtores.48 O Direito Urbano vai conhecer umdesenvolvimento muito mais amplo em Roma, onde quase todos os elementos de um código de obras, recuo, altura, proporção, tamanho etc. esta- vam previstos e eram supervisionados por funcionários espe- cialmente delegados para essa missão. Entretanto, o fato mais importante que marcará fundamentalmente esta forma de pen- sar o espaço são as inéditas noções de legalidade e legitimida- de, aplicadas também na produção do espaço construído. Aliás, segundo Ferry, há uma solidariedade básica entre os princípios de legalidade, inscritos na gênese do estado de direi- to, e o de civilidade, que explica a gênese da sociedade civil.49 A República romana e posteriormente o Império foram, como repetidamente nos afirmam, os herdeiros e prolongadores do espólio grego. Trata-se também de uma sociedade funda- 47 Citado por Blanquart, Paul. Une ilistoire de la vil/e: Pour repenser la societé, La Découverte, Paris, 1977, p. 52. 48 Martin, R L'Urbanisme dans la Grêo: Antique, Picard, Paris, 1956. 49 Ferry, Jean-Marc. "CiviliLé, légaciLé, publicité", Urbcmisme, n. 318, pp. 58-61. 44 )lf1f lttl'111.1da primordialmente sob um ideal contratual e formalista. 11111.1 dlli.:rcnça em relação àcidade grega, no entanto, deve ser 11111 tllalamcnte percebida no que diz respeito ao grau de inclu- I! '' dv Roma em uma mesma unidade jurídico-política dos tllt'l:o.os espaços e pessoas sob seus domínios em comparação '1 1111 a manutenção de fronteiras socioespaciais, um tanto quan- h111g1das, da polis grega. Na verdade, a cidadania romana vai, 111111 o tempo, reafirmando cada vez mais uma vocação univer- 'llillsla..'0 I>csde muito cedo, Roma começa a conceder a cidadania fp, uristocracias das cidades aliadas. Para que tal processo fosse ll'lilllado, exigiam-se a adoção do Direito Romano e a renún- ' 1.1 a loda outra forma de costume que pudesse ferir essa legis- l.l~·ao, podendo, no entanto, cada cidade permanecer com suas lllt'rarquias internas preservadas, sua língua, costumes e reli- ••H>l'S. Na maior parte dos casos, esse processo incluía a orga- 111/ação física de uma nova cidade, quando não a reforma de LILHa antiga e a adoção de um arranjo espacial semelhante ao pmlrão romano.s1 De fato, a relação formal entre o estatuto político da população e o estatuto territorial sempre foi uma das marcas fundamentais da administração romana, e isso per- sistiu até o decreto de Caracala no ano de 212. Assim, podem- ~l' distinguir três classes de territórios, a colônia, composta, a fJriori, por cidadãos de procedência romana ou latina, em geral '11 Ern princípio, a aquisição da cidadania romana passava pela transformação das •omunidades aliadas em municípios. Entre os séculos 1e illa.C., o número de cidadãos H'l'Onhecidos variou bastante, e, repetidas vezes, os direitos civis de alguns grupos ln1am suspensos, mas manteve-se uma ordem de grandeza de mais ou menos 300 mil mladãos. A chamada "'guerra social" impôs o reconhecimento de todos os ''italianos" ,·omo estratégia de paz, e esse número passou então em 70 a.C. a 910 mil pessoas. A partir de então, esse efetivo não cessou de aumentar com a incorporação progressiva de novos cidadãos das províndas, até o ato do imperador Caracala, em 212, quando final- lilente todos os habitantes livres do Império se transformaram em cidadãos. ~ 1 llomo. Leon. Rome impériale et l'urbanisme dans l 'amiquité, Albin Michel, Paris, 1971, e David, Jean·Michel. La République romaine: De la deuxieme guerre punique !lia baraille d 'actium, 218-31, Seuil, Paris, 2000, p. 172. .aa.... 45
  • 26. veteranos do exército; o município, onde uma elite latina ou local podia pretender obter a cidadania, mas a maior parte da população ficava excluída desta condição, ainda que todos estivessem submetidos ao direito civil romano (sobretudo às regras do conu.bium e do commercium); e as cidades peregri- nas, submetidas ao poder romano, mas completamente excluí- das dos direitos civis, e que fundonavam segundo as normas do direito consuetudinário local. Em muitos casos, na Gália, na Espanha ou na Anatólia, a autoridade dos grupos familiares e clânicos se dissolveu com o tempo, em face da autoridade dos pretores romanos, uma vez que, contrariamente ao caso das cidades gregas, o poder e gestão não emanavam diretamente de um corpo civil, mas sim das magistraturas. Dessa forma, tal administração centralizada e sempre submetida às instituições romanas foi freqüentemente acompanhada da criação de uma aristocacia-cidadã e da adoção crescente do Direito Romano, o que terminou por transformar o estatuto de uma grande parte destas cidades peregrinas em municípios.52 Há também uma outra diferença não-negligenciável em relação à Grécia Clássica, referente ao papel permanentemente ativo de uma aristocracia romana e, portanto, de uma distinção social de base entre patrícios e plebeus. Ainda que desde a pro- mulgação da Lei das Doze Tábuas, no século V a.C., ou seja, antes da grande expansão romana, o direito do populus tenha, sobretudo no que diz respeito à propriedade fundiária, começa- do a se afirmar em igualdade ao das gentes, as diferenças ainda permaneceram bastante ativas. A propriedade individual agora poderia ser concedida a todos, mas os direitos sobre a explora- ção do ager publicus, as terras coletivas, permaneceram como um elemento de conflito persistente entre plebeus e patrícios 52 A província romana continha uma idéia mais ampla de soma dos povos sob domi- nação direta de Roma e podia, em seu interior, abrigar diferentes estatutos territoriais, cidades, colônias. municípios, embora contasse sempre com uma capital provincial, principal urbe daquela área. 46 A h11 tltil' tltllilo tempo. A tendência destes últimos, sobretudo 1111 lilli'ltllttdio do direito à herança, foi de se apossar de gran- " '"n·las nessas áreas e assim constituírem grandes domí- l 1 <'ttitHl a organização social e militar estava fortemente tl1 • ltil,iuo sistema de transmissão e exploração da terra, a dinâ- lttl• 1rll' ocupação do ager publicus foi um elemento decisivo tltt ',JII~·üo c expansão da condição da cidadania.53A partir do , ttltt I a.C., essas diferenças tenderam a diminuir, sem, no l itlllllltl, desaparecer. No geral, a aplicação de um mesmo direi- Ht lllll.l lodos passou a predominar à medida que se alargavam 1 1111111d ras do domínio romano e o direito tradicional passou a Ih 111 t :tda vez mais confinado à esfera doméstica. Acrescente-se a isso o fato de que o regime de representação 1 111os promovidos pelos comícios era organizado por inter- ltt•1illu das tribos, ou seja, não havia representação individual e o ' Ji,•ttld ismo e a dependência entre membros de cada grupo eram 111t1111>grandes.54 A idéia de proporcionalidade geométrica, figu- ' ul1tno modelo do tipo hipodêmico, parece ter sido conveniente 1t''>C tipo de organização, uma vez que se difundiu como um /, 11111otiv do urbanismo romano e ficou conhecida como ocas- tnlrll. Ele era composto em sua base de dois eixos, o cardo, de tlll'lltação norte-sul, e o decumanus, de orientação leste-oeste, e 1111sua interseção situavam-se os fori, as principais basílicas 1 I '"'srelações são complexas e estreitas. e demonstram em sua transformação a pas- ·l)•.n n de uma comunidade familiar para uma comunidade cívica: "A centúria é o ele- tllo' iilo de base da cúria e da composição da legião; ela é também uma unidade agrária. 'u111prcendendo cem vezes uma unidade fundamental, o heredium. Por sua vez, esmé '' 11111dade mínima da explotação agrícola que o paterfamilias transmitia a seu filho." l'oll'll mais detalhes. ver Trochet. Jean-René. Géographie historique, Natllan- t lnivcrsité, Paris, 1998, pp. 55-7. ' 1 Segundo muitos historiadores, à dualidade entre as duas principais esferas da vida ·<~t:ial romana, a res privada e ares publica, somava-se uma segunda dualidade entre 11 111 comportamento formal, de relações oficiais, e as relações clientelistas ou de fac- ~·ks políticas, que eram o eco da antiga organização tribal ou clânica, que persistiu, • 111110 um legado, na organização social romana. Ver, por exemplo, Mann, M. The wurces ofpower, Cambridge University Press, Cambridge, 1986, vol. I, "A history of power from tlle begínning to A. D. 1760". p. 251.
  • 27. (edifícios públicos) e os principais templos. A partir desse cen- tro e dos dois eixos, definem-se quatro setores ou bairros, com uma sucessão de arruamentos, desenhando um padrão em tabu- leiro de xadrez, onde cada unidade ou insula é individualizada pelo desenho geométrico das vias. Ainda que não possamos falar de uma efetiva segregação espacial de atividades ou de classes, pode-se, todavia, perceber uma certa orientação dos usos e do estatuto social de alguns trechos, como nos mostram, por exemplo, as ruínas de Pompéia. Os ritos que marcavam a fundação das urbes romanas eram derivados dos etruscos e seguiam uma cerimônia em que um perímetro era traçado a partir de uma charrua amarrada a um touro, que definia o pomerium, limite e terreno sagrado da cidade. De fato, ainda que essa tradição tenha sido mantida durante todo o período de domínio dos romanos, os desenhos urbanos em xadrez eram na maior parte das vezes preestabele- cidos segundo as direções cardeais e freqüentemente se adap- tavam à topografia local. A cidade de Roma não foi propria- mente a inspiradora desse desenho, uma vez que sua origem mítica estava associada aos Limites do pomerium, que com- preendia as sete colinas, e sua estrutura interna pouco repousa- va sobre os ângulos retos. Isso não impediu que Silas, o grande tirano reformador da República, e César, o imperador, tentassem redefinir o desenho e os limites da cidade. De fato, nesses dois períodos tratava de simbolicamente refundar a cidade, assim como o pacto social que a definia. As grandes reformas urbanas empreendidas por esses dois personagens são, ao lado da mudança dos limites da urbe, outro elemento eloqüente na demonstração de que a cida- de deveria dar nascimento, de maneira simultânea, a uma nova composição física e social.SS A nova organização espacial da ss "Ele [César) podia assim construirsobre o antigoforum uma nova basflica que tinha seu nome no lugar da basílicaSempronia. Ele podia sobretudo seaproveitar da desrrui- ção da cúria e do comitium de 52 para remodelar o conjunto, o inscrever de maneira 48 ~ 1 td.tdc imperial, assim como o novo regime político, foram 1 n111plctados por Augusto, que, do ponto de vista urbanístico, li•iriou o confisco gradual da colina do Palatino pelos impera- dtucs c no plano geral da cidade incluiu novos territórios da , ontinentia (subúrbios).56 Estas mudanças deram origem à criação de Roma, cidade d.ts XlV regiões, em substituição às quatro anteriormente esta- lil-IL-cidas, ou seja, uma nova delimitação do espaço e de seus 11t1Íbutos foi necessária para a construção de um novo pacto ~,~,~·ial na passagem da Roma republicana para a Roma imperi- itl. ~' Uma das mudanças mais significativas que marcam este 111omcnto foi a inclusão do Campo de Marte à cidade. Nessa lll l'a eram originalmente organizados os comícios em armas e l1ravam lá depositadas as armas e as insígnias militares, impe- d1das de penetrar o pomerium durante quase toda a fase republi- 1 .111a. Uma vez que o imperium havia sido completamente apro- Jll iado por um único personagem, em grande parte pela força d•ts armas, a interdição perdeu seu sentido e essa enorme área uu lado do rio Tibre foi definitivamente incorporada à cidade, ou seja, a força militar ganha direito à cidade.ss 111dcnada na extremidade da praça e o associar sobre o flanco setentrional ao pórtico 1k CU própriojorum, de tal maneira que unificava assim, em um mesmo quadro arqui- h !l)nico, a legitimidade cívica que ele encarnava porsuas magistraturas à ascendência d1vina pretendida por ele", David, Jean-Michel, op. cit., p. 239. "' OIC1mo suburbia ou suburbinitas era utilizado para designar territórios muito mais ul.llados de Roma, enquanto a expressão continemia correspondia à idéia propria- llll"lllc de arredores. '' Scnnet traça um paralelo entre o declínio da vida pública em Roma, a partir de 1llt'IISto, quando a cultura pública passa a ser vista como uma obrigaçãoformal, com 11111 Jcclínio que nos é conremporâneo, em que a sobrevalorização da intimidade esva- ' ""ia a dimensão pública e tomaria o espaço comum vazio de sentido, fenômeno visí- 1'<' 1, ~cgundo ele, nas amais grandes cidades. Sennet, R. Odeclínio do homem piÍblico, <·,,,das Letras, São Paulo, 1989, p. l5. '~ É muito interessante perceber que a atribuição de poderes institucionais em Roma n t<IVa associada sempre a um certo território. Assim, o tribuno dispunha dos seus p11tl~rcs até o raio de I milha (1.479m) do pomeriwn; a partirdesse limite ele se trans- lmlllava em um simples cidadão. Da mesma forma, o imperium era um poder que se
  • 28. Subseqüentemente à fragmentação e ao desmoronamento do Império Romano, a formação de novas sociedades contra- tuais se restringiu, durante a Idade Média européia, a pequenas iniciativas de compra de direitos em cidades animadas pela retomada dos circuitos comerciais e pela ascensão dos burgue- ses. É nesse período que se localiza a origem do ditado alemão, citado por M. Weber, e que se encontrava inscrito nas portas das cidades germânicas, segundo o qual "o ar da cidade eman- cipa". De fato, ainda que pequenas, essas iniciativas demons- travam a possibilidade de uma nova forma de organização social, liberada dos jugos senhoriais, e significaram, do ponto de vista espacial, a conquista do espaço interno de um segmen- to social e de atividades que haviam sido rechaçadas anterior- mente para fora de seus limites.s9 A liberdade transforma-se em condição jurídica da burguesia, em tal grau, que não é somente um privilégio pessoal, mas tam- bém um privilégio territorial inerente ao solo urbano, da mesma forma que a servidão é inerente ao solo senhorial, bastando para isso ter residido um ano e um dia na cidade.60 O ápice desse processo foi a formação das cidades-estado renascentistas e com elas toda uma nova preocupação com a refundação da idéia de centralização do poder, paralela a uma concedia por decretos, os quais estabeleciam simultaneamente as províncias sobre as quais ele tinha validade. Na passagem da República ao Império, este poder, o impe· riwn, foi apropriado por uma personagem e associado a ela. o imperador, e estendido a todos os dorrúnios sob controle de Roma. Aymard, A. & Auboyer, J. "Roma e seu Império" in Crouzet, Maurice (dir.), História Geral das Civilizações, Benrand Brasil, Rio de Janeiro, 1993, pp. 152·63. 59 O lugar dessas pessoas e dessas atividades era conhecido entre os séculos X e XII como burgusforis, o que literalmente quer dizer "fora da cidade". 60 Pirenne, Henri. História eco11ômica e social da Idade Média. Mestre Jou Ed., São Paulo, 1978, p. 57 (o grifo é nosso). )•rande transformação do espaço físico.61 O enfraquccimclllo da solidariedade e lealdade dos clãs liberou novas forças fun- dadas na racionalidade que gradativamente substituíram esses sistemas de "afinidades" e terminaram por ganhar pleno direi- lo à cidade.62 "A Renascença, nessa visão, é nada menos do que um paradig- ma da modernização, sua história urbana um exemplo da teoria da modernização contemporânea.De acordo com esta visão que enfatizao triunfo do racional e do secular, o espaço é dotado de um valor funcional ou instrumenlal. Vizinhanças e outras subdi- visões não eram mais fontes de poder ou de influência e se tor- naram sujeitas ao controle superiordo poder de uma nova ordem social, econômica e política que Iransformou residentes em cidadãos."63 Nesse momento vemos novamente emergirem as discus- sões que pretendem distinguir os domínios e atributos do sobe- rano, o "príncipe", e de seus sujeitos, ainda que esses não esti- vessem ainda sido completamente transformados em sujeitos de direito. A reinvenção da perspectiva, e da própria idéia de "ponto príncipe", demonstra-nos a nova concepção do espaço (oi Para Carter. o exemplo mais significativo dessa nova maneira de conceber o espaço se encontra na proposição do desenho da cidade de Sforzinda (assim chamada, pois o projeto foi uma encomenda do duque de Milão. Francisco Sforza), obra de Antonio Pietro Avertino, também conhecido como Filarete, onde se entrecruzam preocupações da linguagem arquitetônica, com preocupações funcionais acrescidas de uma base filo- sófica em termos políticos que simbolizam o controle central e autocrático de quem a construiria. Curter. Harold. An introduccion to urban historical geography, Edward Amold, Londres, 1983, pp. Ll 5·6. 62 Essa expressão, direito à cidade, deve ser antes de mais nada compreendida no senti- do dado por Lefebvre, da cidade como lugar do direito, o acesso a um espaço O[Ide o direito protege a existência do indivíduo contra os poderosos, o acesso à cidade signi- ficando assim a passagem de um sujeito de um senhor a um sujeito de direito. Henri Lefebvre. Le droir à la ville, Editions Anthropos, Paris, 1968. 6) Muir. E. &Weissman, F. E. "Social and simbolic places in Renassence" in Agnew, J & Duncan, J. The power ofplace - Bringing rogecher geogmphical and sociologi- ca/ imaginatior1s, Cambridge University Press, Cambridge, l989.p. 81.
  • 29. dialeticamente associada às novas dimensões da sociedade. O jogo de cubos florentino constrói cenários urbanos e uma nova profundidade do campo visual, que faz convergir o olhar para um ponto imaginário situado fora do seu alcance. Por meio desse jogo visual, simultaneamente, misturam-se realidade e idealidade do olhar e do espaço, em um permanente vaivém entre construção e utopia.64 A obra de Vitrúvio, escrita na An- tigüidade romana, e suas preocupações com a disposição das coisas sobre o espaço (o lugar dos edifícios públicos, os usos dos espaços públicos, a forma e localização das praças e tem- plos etc.) foram reapropriadas e se transformaram em inspira- ção direta para numerosos tratados de urbanismo e arquitetura renascentistas (Alberti, Palladio, Catâneo, entre outros), difun- didos por toda a Europa, que reconstruía nesse momento seu espaço e dava origem a uma nova organização socioespacial. Simetria, proporção e geometria passam a ser os novos va- lores que presidem a organização do espaço. O monumentalismo é o ingrediente obrigatório nas cidades onde os soberanos pro- curam estabelecer um domínio absoluto. Nascem também nesse momento as raízes do Estado modemo.65 Com elas, surge toda uma linha de raciocínio, as teorias do contrato social, que pretendem explicar os princípios razoáveis de obediência que regem governantes e governados. Estas teorias são baseadas na idéia de que, a partir de um raciocino lógico, há um geral con- sentimento em se submeter ao poder do soberano que estabele- ce leis e regras de comportamento, mas estabelece também os limites das esferas de poder, dos indivíduos e das instituições. Um dos valores fundamentais do contrato social é essa idéia de 64 Note-se. nesse sentido. que nesse momento houve uma coincidência entre os homens que fabricavam as máquinas do teatro e as máquinas de guerra, entre os que construíam cenários teatrais e aqueles que faziam planos urbanos, como Girolano Arduini 65 Diversos autores aproximam ,aliás, o modelo de dominação que constituiu o Est:ado absoluto modemo ao processo socioespacial vivido por algumas cidades mais ou menos um século antes. Ver, por exemplo, a este respeito: Garrison, J. Royaume, Renoissance, Réjorme, 1483-1559, Paris, Fayard, I988, e Mandrou, R. L'histoire de la civili.mtionfrançaise, Armand Colin, Paris, 1980. 52 ftlf, cooperação mútua, ou seja, de uma nova forma de comunidade política, em que vigora o princípio da universalização da liber- dade política a partir de um indivíduo autônomo. Essa nova ordem social deve ser equânime e fortemente unida por laços de solidariedade. O poder do soberano deve ser limitado e expri- mirá a vontade coletiva: Esse contrato é uma simples idéia da razão, mas possui entretan- to sua realidade indubitável, que consiste em obrigar toda pessoa que legisla a produzir suas leis, de tal maneira que elas pudessem ter nascido da vontade unida de todo um povo e a considerar todo sujeito, na medida em que ele quer ser cidadão, como tendo dado seu sufrágio a uma tal vontade.66 Dessa forma, há uma nítida separação entre o público e o privado, uma vez que aos indivíduos cabe, no exercício de sua liberdade, a escolha dos termos do contrato, a cooperação ge- neralizada entre cidadãos e a solidariedade, fruto dessa cons- trução coletiva; à potência pública cabem a garantia da igual- dade de condições, a defesa dessa comunidade politica e de seu território, a coerção social em nome da justiça e a organização e desenvolvimento das instituições que promovem os valores fundadores do contrato.67 Sem dúvida, o Estado moderno cor- responde à territorialização desta nova sociedade, ou melhor, para não deixar hesitações quanto ao papel ativo do espaço, é por meio dessa nova organização espacial que uma nova or- dem social se constrói, a sociedade contratual moderna.68 66 Kant, Immanuel, Oeuvres philosophiques, Gallimard, Paris, 1985,p. 279. 67 De fato, o modelo hobbesiano não se enquadra exatamente nesse caso, uma vez que em sua proposta há uma alienação do poder por parte dos sujeitos em benefício da afir- mação da soberania do monarca. ó8 Ao utilizarmos a expressão "contratualista" estamos englobando todos os movimen- tos que tendem a estabelecer as bases de um poder a partir de regras racionais c lógi- cas. Assim, esta expressão recobre tanto os pensadores associados ao modelo conheci- do como teoria do contrato social quanto aqueles identificados com o utilitarismo. A idéia de contrato responde aqui por uma suposição de udesão lógica e voluntária a um conjunto de regras.
  • 30. Os espaços dos Estados modernos são construídos e uni- dos por linhas intersecionadas por numerosas redes que ligam os diversos elementos espaciais. Há uma idéia de composição dos mesmos elementos segundo maneiras diferentes, dando assim forma a configurações territoriais que são, simultanea- mente, semelhantes, pois comportam um certo número de ele- mentos comuns e diferentes, pois a soma destes elementos gera em cada espaço unidades distintas. Departamentos, regiões, estados, províncias etc., estão, no entanto, sempre unidos pelas redes de colaboração e de solidariedade, mas também estão unidos pela estrutura de poder que os conforma e os hierarqui- za. De forma esquemática, diríamos que a geometria variável dos espaços é compensada por um sentido geral de proporcio- nalidade. O Estado é assim um lugar, no sentido material e abs- trato, onde se reafirma a luta contra as desigualdades e a injus- tiça, criadas pela ordem natural ou social. Nossa pretensão não é a de produzir uma longa descrição dos processos socioespaciais que deram origem às chamadas sociedades modernas. Queremos apenas chamar a atenção para o fato de que a cada momento de uma relação contratualista a forma de organização do espaço foi uma das condições de base para que essa ordem social se realizasse. Os princípios do con- trato são os que regem a organização espacial e por meio dela constroem-se os lugares para determinadas práticas e comporta- mentos que põem em cena essa ordem social. Assim, o espaço delimita os comp01tamentos, classifica as ações sociais, ordena a dinâmica social e hierarquiza práticas e instituições. Com o intuito de ser mais claros, tomemos um exemplo simples. A historiografia francesa vem ultimamente reavalian- do o papel do rei Henrique IV (1553-1610) como um dos gran- des artífices do Estado moderno francês. Para tal demonstra- ção, os historiadores têm aventado argumentos relativos à posição desse monarca em relação à religião (o Edito de Nan- tes), à união dos reinos da França e Navarra, à centralização do poder em Paris, à política em face da Espanha, à importância 54 ,JIIlJ1.., de sua popularidade, à afirmação de seu poder diante do parla- mento e diante da nobreza, ao desenvolvimento da agricullura, da indústria etc. Poderíamos afirmar a mesma coisa sob um ân- gulo bastante diverso, ou melhor, utilizando um outro prisma, por meio dos trabalhos urbanos realizados por Henrique IV em Paris, particularmente dois, a Pont Neuf (a ponte nova) e a Praça dos Vosges. A Pont Neuf foi a primeira ponte construída sobre o rio Sena sem ser financiada pela venda de lotes para construção de casas, corno era o hábito generalizado à época. Primeira ponte construída inteiramente em pedra, ela era parte de um conjunto que previa o local de uma estátua eqüestre (inspirada na estátua romana de Marco Aurélio, em Roma) e de uma praça triangular, a Place Dauphine, onde seriam vendidos lotes para a construção de casas bancárias e de comércio. O partido arquitetônico das construções da praça, ainda que financiadas por particulares, deveria seguir um plano preestabelecido, regular, uniforme e si- métrico. Ao longo das edificações, um passeio funcionava como espaço de circulação. Podemos, pois, constatar que esse peque- no conjunto foi concebido corno urna nova forma de composi- ção espacial, um espaço público que ultrapassava a dimensão simplesmente utilitária da ponte, um verdadeiro espaço público moderno, onde era previsto que as pessoas iriam transitar, pas- sear e admirar a unidade física e institucional, simbolicamente representada pelo espaço. Este simbolismo pode também ser observado no fato de que a ponte unia as duas margens da cida- de, passando pela ponta da ilha da Cité, tradicionalmente vista como o coração da cidade, além de oferecer da amurada uma vista perspectivada do palácio do Louvre, sede do poder real. A mesma idéia de um espaço público foi desenvolvida na concepção da Place des Vosges, larga, regular, geométrica, si- métrica, um espaço aberto em meio ao casaria denso e de ruas tortuosas do bairro do Marais. O projeto da praça previa um certo número de exigências a ser cumpridas pelos compradores dos lotes, tais como o de não parcelar as unidades, obedecer a