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O CRIME DO VELHO PATRIARCA
Agora que me perguntas, rapaz, vou te contar.
Foi seu tio avô, o cego, quem me falou sobre o crime, quando completei quinze anos. Já tinha ouvido um rumor, pela boca de outros, mas nunca assuntei.
Ele morava longe, a pelo menos três dias de viagem da cidade  e poucos falavam dele.
A bem dizer já o tinham enterrado, pois  todo o clã disputava suas glebas e a posse dos lotes. Por estas terras se atracaram alguns, outros foram escorraçados e  houve até quem matasse – ofendendo assim, seu próprio sangue.
Se queres saber, eu me lembro que o vi de  perto, uma vez. Distante de tudo seguia ele, nômade errante.  Sempre levantando suas tendas, nunca ajuntando nada, nunca amealhando.
Roça boa ou ruim lhe eram iguais. Raramente ficava para a terceira safra.
A mulher resignada sofria o desterro involuntário. Assim, ela acabou por adorar três deuses,  para nas festas, justificar viagens solitárias e  ver velhas irmãs e primas enviuvadas.
Após meu casamento me determinei decifrá-lo. Arrumei um álibi - uma paga: lhe devolver uma foice sua. Mera desculpa a fim de ouvir sua versão do crime e vê-lo face-a-face.
Consegui o intento e hoje me arrependo.
Encontrei longe da tenda grande, sob um pálio pobre:  seu pequeno e particular matadouro.
Acocorado abria, à faca, uma novilha, lentamente.  Sangue jorrando livre. O animal ainda se contorcia e suspeitei maltrato.
Toquei-lhe o ombro, ele se voltou.
Chocou-me a marca (não me lembrava dela!) de cor viva,  indo da testa ao queixo e olhos que me invadiram fundo.
Me ver chocado o fez curvar-se de novo e prosseguir com a lâmina.  Num gesto quis limpar o suor do rosto, mas o braço sujo ensangüentou a face, sem que ele notasse.
A voz bem rouca,  como dos loucos, que alucinados, gritam há tempos pelas ruas e estradas.
Tentou ser gentil, mas já então, tudo nele me apavorava.
Ouvi-lhe um tanto e perguntei tolices. Logo me fui, muito mais velho e lento.
Hoje, eu te digo, talvez eu entenda a dor do velho.  A dimensão da dor!
Não só por ter matado o irmão.
O justo.
A dor maior de nunca, no mais que andasse, ter encontrado um abrigo.
A dor de buscar, em vão, a Terra da Fuga onde pudesse,  por fim, descansar.
O livro de Bere’shít, ou Gênesis, “No Princípio”, capítulo IV.
O CRIME DO VELHO PATRIARCA

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  • 1. O CRIME DO VELHO PATRIARCA
  • 2. Agora que me perguntas, rapaz, vou te contar.
  • 3. Foi seu tio avô, o cego, quem me falou sobre o crime, quando completei quinze anos. Já tinha ouvido um rumor, pela boca de outros, mas nunca assuntei.
  • 4. Ele morava longe, a pelo menos três dias de viagem da cidade e poucos falavam dele.
  • 5. A bem dizer já o tinham enterrado, pois todo o clã disputava suas glebas e a posse dos lotes. Por estas terras se atracaram alguns, outros foram escorraçados e houve até quem matasse – ofendendo assim, seu próprio sangue.
  • 6. Se queres saber, eu me lembro que o vi de perto, uma vez. Distante de tudo seguia ele, nômade errante. Sempre levantando suas tendas, nunca ajuntando nada, nunca amealhando.
  • 7. Roça boa ou ruim lhe eram iguais. Raramente ficava para a terceira safra.
  • 8. A mulher resignada sofria o desterro involuntário. Assim, ela acabou por adorar três deuses, para nas festas, justificar viagens solitárias e ver velhas irmãs e primas enviuvadas.
  • 9. Após meu casamento me determinei decifrá-lo. Arrumei um álibi - uma paga: lhe devolver uma foice sua. Mera desculpa a fim de ouvir sua versão do crime e vê-lo face-a-face.
  • 10. Consegui o intento e hoje me arrependo.
  • 11. Encontrei longe da tenda grande, sob um pálio pobre: seu pequeno e particular matadouro.
  • 12. Acocorado abria, à faca, uma novilha, lentamente. Sangue jorrando livre. O animal ainda se contorcia e suspeitei maltrato.
  • 13. Toquei-lhe o ombro, ele se voltou.
  • 14. Chocou-me a marca (não me lembrava dela!) de cor viva, indo da testa ao queixo e olhos que me invadiram fundo.
  • 15. Me ver chocado o fez curvar-se de novo e prosseguir com a lâmina. Num gesto quis limpar o suor do rosto, mas o braço sujo ensangüentou a face, sem que ele notasse.
  • 16. A voz bem rouca, como dos loucos, que alucinados, gritam há tempos pelas ruas e estradas.
  • 17. Tentou ser gentil, mas já então, tudo nele me apavorava.
  • 18. Ouvi-lhe um tanto e perguntei tolices. Logo me fui, muito mais velho e lento.
  • 19. Hoje, eu te digo, talvez eu entenda a dor do velho. A dimensão da dor!
  • 20. Não só por ter matado o irmão.
  • 22. A dor maior de nunca, no mais que andasse, ter encontrado um abrigo.
  • 23. A dor de buscar, em vão, a Terra da Fuga onde pudesse, por fim, descansar.
  • 24. O livro de Bere’shít, ou Gênesis, “No Princípio”, capítulo IV.
  • 25. O CRIME DO VELHO PATRIARCA