Lirismo e surrealismo em joão ternura, de aníbal machado
1. 1
LIRISMO
E
SURREALISMO
EM
“JOÃO
TERNURA”
por
Manoel
Neves
A
OBRA
João
Ternura
é
um
livro
póstumo.
Foi
publicado
pela
primeira
vez
em
1965,
um
ano
depois
da
morte
de
Aníbal
Machado,
que
–
malgrado
o
livro
estar
pronto
–
relutou
em
lançá-‐lo
ainda
em
vida,
apesar
de
ter
começado
a
escrevê-‐lo
desde
a
década
de
1920
–
primeiro
momento
do
modernismo
no
Brasil.
A
obra
é
estruturada
em
seis
“livros”,
aos
quais
se
segue
um
conto,
“O
homem
e
seu
capote”,
no
qual
aparece
o
protagonista
do
romance
em
mais
uma
aventura
absurda,
mas
que
não
foi
aproveitado
na
estrutura
definitiva
do
romance.
Apesar
de
se
intitular
romance
e
da
prevalência
do
caráter
épico
(pois,
vemos
claramente
os
acontecimentos
se
desenrolarem
em
torno
de
um
protagonista),
a
obra
apresenta
um
caráter
híbrido,
em
que
ressoam
um
intenso
lirismo
e
até
mesmo
um
caráter
dramático.
Analisando
o
foco
narrativo,
cumpre
dizer
que
cada
livro
é
composto
por
uma
narrativa
que
oscila
entre
a
terceira
pessoa
(narrador
onisciente
neutro)
e
a
primeira
pessoa
do
singular
(Ternura:
narrador
protagonista
–
isso
acontece
apenas
nos
dois
primeiros
livros).
Encontramos,
também,
blocos
que
recebem
títulos
e
que
funcionam
como
contos
ou
poemas
em
prosa
e,
ainda,
poemas
com
versos
livres;
há
até
um
Manifesto
dos
não
nascidos,
transcrito
como
rodapé,
nas
páginas
172
a
174
e
ainda
um
trecho
em
que
aparece
claramente
uma
peça
teatral,
caracterizando
o
gênero
dramático.
Há
inúmeros
monólogos
interiores,
cartas,
telegramas.
Apesar
de
a
narrativa
ser
composta
por
fragmentos,
é-‐nos
apresentada
linearmente
(tempo
cronológico).
Cada
mudança
de
foco/assunto/fragmento
é
indicada
por
um
espaço
em
branco
entre
os
parágrafos.
Cada
bloco
se
refere
a
um
assunto
específico.
Às
vezes,
o
bloco
–
à
maneira
de
um
conto
ou
poema
em
prosa
–
vem
antecedido
de
um
título.
A
linguagem
é
próxima
da
poesia,
não
apenas
pela
presença
de
poemas,
mas
também
pelo
intenso
lirismo
de
alguns
trechos
e
pelo
intenso
uso
da
linguagem
figurada:
metonímia,
assíndeto,
metáforas
densas
(que
lembram
o
surrealismo
em
alguns
trechos).
Em
alguns
momentos
o
lirismo
aparece
associado
à
desautomatização
da
percepção:
uma
visão
inaugural
da
realidade,
como
se
vê
em
“Escolinha
da
professora”:
Mamãe,
a
magra,
não.
Eu
quero
ficar
é
com
a
gorda.
A
gorda
é
quente,
quente.1
A
visão
lírica
do
mundo,
predominante
na
obra,
consiste
em
nos
apresentar
a
realidade
por
intermédio
de
ângulos
espetacularmente
inéditos,
inaugurais.
O
poeta
–
diferentemente
do
homem
comum
–
tem
uma
percepção
especial
da
realidade,
ele
a
enxerga
em
seus
mínimos
detalhes,
mesmo
que
a
veja
pela
milésima
vez.
O
olhar
do
poeta
(do
narrador
e
de
Ternura)
é
inaugural.
Ele
vê
tudo
de
forma
original.
Esse
lirismo
o
aproxima
dos
bêbados
e
das
crianças.
Veja
alguns
trechos
abaixo
Que
estará
fazendo
a
criadinha
no
fundo
da
lagoa?
As
águas
são
tão
claras,
e
não
se
vê
o
corpo
dela.
Como
a
estarão
tratando?
Entre
as
pedras
do
fundo,
que
andará
fazendo?...
Servindo?2
1
MACHADO, Aníbal. João Ternura, 16.
2. 2
O
trecho
acima
tece
comentários
líricos
sobre
a
morte
da
criadinha
Maria,
que
fôra
à
lagoa,
com
Isaac
e
Ternura
e
acabara
morrendo
ao
bater
com
a
cabeça
numa
pedra.
Veja
agora
como
a
descrição
do
amanhecer
transforma-‐se
num
raro
exemplar
de
prosa
poética:
Mais
cedo
que
de
costume
o
menino
abriu
a
porta.
E
se
defrontou
com
a
noite
não
terminada.
O
rio
ainda
se
escondia
na
neblina.3
A
linguagem
de
Machado
é
quase
sempre
elíptica
(metonímica).
Isso
dá
dinamismo
ao
texto
e,
ao
mesmo
tempo,
um
caráter
mais
poético.
Veja,
a
propósito,
a
“Embolada
do
crescimento”:
Enquanto
a
criança
crescia
a
mãe
arrumava
a
casa
esperava
o
marido
dormia
ia
à
igreja
conversava
dormia
outra
vez
regava
as
plantas
arrumava
a
casa
fazia
compras
acabava
as
costuras
enquanto
a
criança
crescia
as
tias
chegavam
à
janela
olhavam
o
tempo
estendiam
os
tapetes
imaginavam
o
casamento
ralavam
o
coco
liam
os
crimes
e
os
dias
iam
passando
enquanto
a
criança
dormia
crescia
pois
o
tempo
parou
para
esperar
que
a
criança
crescesse.4
O
ritmo
é
vertiginoso.
A
ausência
de
pontuação
e
de
conectivos
ligando
as
orações,
uma
das
características
do
futurismo,
dá
velocidade
ao
texto
que
faz
uma
colagem
de
cenas
referentes
à
infância
de
Ternura.
Trata-‐se
de
um
dos
momentos
de
maior
elaboração
da
obra,
pois
consegue
conjugar
a
elipse,
a
metonímia
(cubismo:
fragmentação
da
cena;
flash
cinematográfico)
com
um
deslizar
vertiginoso
de
acontecimentos
(assíndeto)
que
deixa
o
texto
em
altíssima
rotação.
Além
das
elipses
constantes,
encontramos
ainda
inúmeros
recursos
poéticos
que
aparecem
devidamente
analisados
a
seguir:
ALITERAÇÕES:
“e
o
rosto
de
Rita
que
emerge
das
vagas
de
frutas
e
raízes,
rindo
entre
verduras”,5
“Rita
rindo
e
correndo”;6
ASSONÂNCIA:
“Rita
infinita,
interminável...
As
duas
colinas
dos
seios
empinados
para
o
céu”;7
ANÁFORA:
“Vais
ver
como
a
cidade
treme
fora
dos
gonzos.
Vais
ver
como
a
lava
arrebenta
a
calota
das
aparências.
Vais
ouvir
o
canto
do
povo.
Vais
entrar
na
dimensão
do
delírio”;8
NEOLOGISMOS:
esculhambatrizes,
fundamentalando,
Beatrização
do
prostituário,
todaviísmos;
PARONOMÁSIAS:
“passam
trens
brutais/
carregando
trigo/
carregando
tropas”.9
Note
outro
momento
de
intenso
lirismo
quando
Ternura
está
se
lembrando
de
sua
amada
burguesa
Malene/Marilene:
Marilene
é
bom
para
designar
o
conjunto
de
meu
bem...
voz,
pele,
cabelos,
vestido
e
andar
–
tudo
de
meu
bem...
até
o
cheiro
da
carne
e
a
música
que
sai
da
garganta
de
meu
bem...
o
corpo
dela
se
balançando
no
macio
do
nome
Marilene.10
A
personagem
João
Ternura
apresenta
uma
visão
desautomatizada
do
real.
Ele
vê
o
mundo
por
uma
ótica
diferente
da
dos
adultos
comuns.
É
como
se
visse
algo
mais,
ou
mais
além,
tal
qual
as
crianças,
os
bêbados
e
os
loucos.
Sua
visão
pode
ser
chamada
de
lírica,
pois,
é
deslocada,
subjetiva,
parcial,
sensitiva,
e,
mais
ainda,
é
primitiva,
pura,
não
é
regida
pelo
princípio
da
realidade
consensual,
mas
por
uma
interior,
um
exemplo
disso
é
o
primeiro
contato
de
Ternura
com
a
cidade
grande:
no
hotel
do
Rio
de
Janeiro,
2
Idem, 22.
3
Idem, 50.
4
Idem, 15.
5
Idem, 128.
6
Idem, 129.
7
Idem, 155. Além da aliteração, percebe-se a metáfora que aproxima os seios de Rita das montanhas pontiagudas.
8
Idem, 156.
9
Idem, 219.
10
Idem, 131.
3. 3
Ternura,
em
sua
santa
inocência,
acaba
defecando
no
meio
do
“mato”
(nos
jardins
do
hotel),
assim
como
fazia
em
sua
cidade
natal.
A
cena
é
hilária
(e,
até
mesmo,
revoltante)
para
os
hóspedes
do
hotel
–
que
chamam
Ternura
de
bugre
–,
mas
é
encarada
com
naturalidade
pelo
protagonista,
pois
era
assim
que
sempre
fizera.
A
pureza
ou
o
primitivismo
da
personagem
reside
nesse
seu
deslocamento
do
senso
comum.
Essa
chamada
visão
primitiva
da
realidade,
não
aparece
só
na
personagem
Ternura,
mas
também
por
intermédio
de
Macunaíma,
no
romance
homônimo
de
Mário
de
Andrade.
Outro
momento
em
que
Ternura
se
aproxima
de
Macunaíma
é
no
belíssimo
episódio
em
que
vê
uma
locomotiva
durante
o
dia
e,
à
noite,
sonha:
O
pesadelo
da
noite
revelou
a
verdadeira
intenção
da
locomotiva,
quando
Ternura
recebeu
a
esguichada
do
vapor
e
caiu
entre
latas
de
óleo.
No
sonho,
um
animal
fabuloso,
tendo
uma
chaminé
no
lugar
do
nariz,
abrira
bem
as
pernas
e
agachando-‐se
sobre
ele,
soltou-‐lhe
na
cara
uma
mijada
longa
e
humilhante.11
O
trecho
acima,
intitulado
“Vida
noturna”
nos
apresenta
dois
elementos
interessantes,
a
saber:
a
oposição
entre
o
mundo
moderno
(representado
pela
locomotiva,
que
traz
o
progresso
à
cidadezinha
onde
morava
Ternura
em
Minas
Gerais)
e
o
mundo
interior
do
protagonista;
e
a
criação
de
imagens
oníricas,
como
vimos
acima,
em
que
uma
locomotiva
urina
no
rosto
de
João,
evidenciando
nitidamente
a
presença
do
surrealismo
na
obra.
Aníbal
Machado,
conforme
vimos
acima,
foi
um
grande
agitador
cultural
e
um
dos
introdutores
do
Surrealismo
no
Brasil.
Vejamos
mais
detalhadamente
em
que
consistia
esse
movimento
da
vanguarda
européia.
O
Manifesto
do
Surrealismo
preconiza
a
“crítica
à
realidade
e
à
razão,
opostas
irremediavelmente
às
certezas
da
infância,
da
loucura
e
da
imaginação”.12
A
definição
do
movimento
é
lançada
no
Manifesto,
baseada
no
modelo
dos
verbetes
de
dicionários
e
enciclopédias:
Surrealismo.
S.
m.
Automatismo
psíquico
puro
através
do
qual
se
propõe
exprimir,
verbalmente
ou
por
escrito,
ou
de
qualquer
outra
maneira,
o
funcionamento
real
do
pensamento.
Ditado
do
pensamento,
na
ausência
de
qualquer
controle
exercido
pela
razão,
fora
de
toda
preocupação
estética
ou
moral.
Encicl.
Filos.
O
Surrealismo
repousa
sobre
a
crença
na
realidade
superior
de
certas
formas
de
associações
negligenciadas
até
ele,
no
sonho
todo-‐
poderoso,
no
jogo
desinteressado
do
pensamento.
Ele
tende
a
arruinar
definitivamente
todos
os
outros
mecanismos
psíquicos,
substituindo-‐os
para
resolução
dos
principais
problemas
da
vida.13
A
escrita
automática,
um
dos
principais
procedimentos
surrealistas
utilizados
na
obra
é,
nas
palavras
de
Antelo,
“expressão
do
mais
puro
espontaneísmo”.14
Vendo
no
Surrealismo
não
apenas
mais
uma
tendência
da
vanguarda
literária,
mas
uma
doutrina
que
busca
a
libertação
do
homem,
Aníbal
defende-‐lhe
a
adoção,
como
um
meio
de
liberar
“as
forças
vivas
retidas
no
subconsciente”,
de
atingir
as
“fontes
puras
da
poesia”.
Ele
acredita
que,
por
esse
canal,
o
sonho
e
a
imaginação
podem
emergir
na
realidade,
a
qual
–
com
a
abertura
para
o
lirismo,
a
intuição,
o
ludismo,
o
mistério,
o
absurdo,
o
humor,
a
fantasia,
o
feérico,
os
ideais
–
seria
libertada
da
tirania
da
razão
e
da
mediocridade.
Nas
palavras
do
escritor,
o
sonho
que
vinha
há
muito
invadindo
a
11
Idem, 32.
12
REBOUÇAS, Marilda de Vasconcelos. Surrealismo, 15.
13
Idem, 15-16.
14
ANTELO, Raul, 22.
4. 4
realidade,
precisava
de
uma
expressão
estética
que
lhe
desse
uma
efetiva
vazão.
E
esse
foi,
para
ele,
o
grande
papel
exercido
pelo
Surrealismo.
Utilizando
a
imagem,
a
metáfora,
a
analogia
e
o
automatismo
como
instrumentos
principais
do
conhecimento
poético,
leva-‐nos
o
Surrealismo
ao
contato
das
correntes
profundas
do
inconsciente.
A
crosta
de
hábitos
sociais
com
que
a
máquina
social
pesa
sobre
nós,
paralisa
os
movimentos
do
ser
profundo.
Sem
rompê-‐la,
é
impossível
alcançar
a
zona
iluminada
onde
tudo
é
facilidade
e
êxtase.
A
criação
poética
atua
nesse
processo
de
libertação
como
um
verdadeiro
explosivo
mental.
A
quebra
dos
hábitos
normais
de
pensar
e
sentir
e
a
desintegração
das
palavras
assumem
o
caráter
de
um
humor
absurdo
e
saboroso
que
alivia
o
espírito
das
tiranias
da
razão.15
Em
Aníbal,
o
crítico,
Oswaldino
Marques
reconhece
“um
dos
maiores
surrealistas
do
nosso
tempo”,
para
o
qual
interessa
“a
herança
matinal
que
todos
transportamos,
nossos
mitos
solares,
quer
seja
sob
a
feição
mágica
da
infância,
ou
da
inocência
inaugural
da
espécie”.
O
crítico
aponta,
no
surrealismo
de
Machado,
o
procedimento
que
permite
dar
a
ver
a
sujeição
da
existência
a
certos
fatores
pouco
conhecidos,
a
certas
metamorfoses
e
influências
inesperadas.
No
cotidiano
de
Aníbal,
insinuam-‐se
o
equívoco,
o
ambíguo,
o
irracional,
tonalizando,
de
um
matiz
estranho,
a
realidade,
que
logo
adiante,
ainda
que
não
mais
a
mesma,
aparece,
recomposta.
Veja,
no
trecho
abaixo,
como
uma
simples
mamadeira
é
apresenta
de
forma
totalmente
original,
desautomatizada,
surreal:
Na
penumbra
do
corredor
uma
coisa
branca
e
móvel
foi
se
aproximando
e
crescendo,
e
de
repente,
virando
para
a
esquerda,
mergulhou
no
quarto
aos
gritos.
A
criança
viu-‐se
formando
de
longe
e
no
alto
uma
nebulosa.16
Outro
exemplo
bastante
interessante
encontra-‐se
no
fato
de,
durante
a
Revolução
de
1930,
Ternura
laçar
uma
metralhadora
e
a
puxar
como
a
um
cão.
Falando
ainda
da
linguagem,
cumpre
ressaltar
a
presença
da
oralidade,
o
que
se
pode
notar
neste
diálogo
entre
Ternura
e
Manuel:
-‐
Ô
siô...
com
esse
calor
dá
vontade
da
gente
fazer
nem
sei
o
quê!
-‐
É
mesmo.
Calor
danado,
Manuel!
Estou
fincando
zonzo.
-‐
Eu
gosto
é
dos
redondos.
-‐
Eu,
não...
eu
gosto
é
dos
que
estão
nascendo.
-‐
Mas
que
calor,
hein?
Safa!
Eu
gosto
deles
é
na
chuva,
quando
elas
saem
apressadas.
Ficam
bulindo
que
é
uma
delícia.
-‐
Bons
eu
vi
no
mercado,
ontem.
Pareciam
misturados
com
hortaliça
e
água
do
mar.
-‐
Seios
fresquinhos
que
eu
gosto
mesmo
são
de
empregadas
de
fábrica
quando
elas
vão
para
o
serviço.
-‐
Esses
que
eu
estou
te
falando
que
vi
ontem
às
cinco
da
manhã,
na
hora
que
o
sol
nascia.17
No
trecho
acima,
há
inúmeros
deslizes
gramaticais:
sujeito
regido
de
preposição
(“dá
vontade
da
gente
fazer
nem
sei
o
quê!”),
gíria
(“ficam
bulindo
que
é
uma
delícia”),
regência
incorreta
(“seios
fresquinhos
que
eu
gosto
mesmo
são
de
empregadas
de
fábrica”,
“esses
que
eu
estou
te
falando”).
Outro
elemento
bastante
forte
no
trecho
acima
é
a
forte
conotação
erótica.
15
Idem, 61.
16
MACHADO, Aníbal. João Ternura, 14.
17
MACHADO, Aníbal. João Ternura, 74.
5. 5
Vários
críticos,
ao
se
referirem
ao
personagem-‐síntese
da
obra,
chamam-‐no
de
“lírico
e
vulgar”.
O
lirismo
foi
bastante
analisado
acima.
Passo,
então,
a
tratar
da
sexualidade.
A
sexualidade
aparece
muito
em
evidência.
Talvez,
o
vulgar
se
refira
a
isso.
Isaac
e
Ternura,
com
suas
sexualidades
exuberantes,
lembram
Macunaíma
até
no
uso
do
verbo
“brincar”.
Não
só
Ternura,
como
os
pais
(o
barulho
das
relações
sexuais
do
casal
é
ouvido
por
todos
na
casa)
e
Tia
Marina
que
queria
sentir
“aquelas
dores
da
irmã”
deixam
bastante
claro
a
exuberância
e
a
vitalidade
sexual
do
brasileiro.
Durante
o
período
da
infância,
Ternura
sobe
as
saias
das
Tias,
abraça
a
prima,
toma
banho
de
rio
com
as
negrinhas
e
sonha
acordado
com
a
mulher
da
vida.
Lirismo,
sexualidade
e
surrealismo,
aliás,
caminham
juntos
nestes
trechos:
Um
seio
de
mulher
periodicamente
intumesce
e
irradia
no
meio
da
folhagem,
como
luz
de
farol
na
noite.
O
lenço
e
o
seio
da
mulher
ficam
sobrevivendo
como
duas
estrelas.18
Já
no
Rio
de
Janeiro,
Ternura
se
envolve
amorosamente
com
inúmeras
mulheres.
Mas
se
encontra
periodicamente
com
Rita
e
com
Luisinha.
Esquizossemia19
é
o
termo
utilizado
pelo
crítico
argentino
para
se
referir
à
escrita
de
Aníbal
Machado:
uma
escritura
metamorfoseante
que
se
revolta
contra
o
tédio
e
a
imobilidade,
que
prefere
ser
o
lavrador
à
espreita
da
semente
a
ser
a
guardiã
de
um
túmulo.
Uma
linguagem
sóbria,
depurada,
paciente,
perfeccionista,
artesanal,
mas
capaz
de
dinamitar
a
previsibilidade,
por
intermédio
do
surrealismo.
Ternura
nasce
no
dia
de
Natal.
Seus
parentes
querem
que
ele
siga
um
padrão;
primeiro
sugerem
poetas;
o
avô
diz
que
o
neto
será
uma
espécie
de
Napoleão,
o
que
se
confirma
em
parte,
pois,
quando
criança,
Ternura
possuía
canhões,
com
que
aterrorizava
pessoas
e
animais
e,
já
adulto,
participa
de
uma
revolução.
Entretanto,
trata-‐se
de
um
Napoleão
às
avessas,
uma
espécie
de
anti-‐herói
brasileiro,
um
andarilho,
um
Quixote,
um
parente
de
Carlitos,
como
já
vimos.
A
imagem
de
Napoleão
quase
sempre
volta,
ainda
que
de
forma
caricatural:
“Deram-‐lhe
um
quepe
que
não
lhe
entrava
bem
na
cabeça,
vestiu
uma
blusa
que
lhe
sobrava
no
corpo.
Esboço
grotesco
do
Napoleão
sonhado
pelo
avô.”20
Ternura
sempre
se
identifica
com
os
oprimidos,
marginalizados:
Aproximou-‐se
um
grupo
de
entusiastas:
funcionários
demitidos
a
bem
do
serviço
público,
homens
de
negócio
com
concessões
cassadas,
políticos
afastados
da
situação,
estudantes
que
pleiteavam
exames
por
decreto,
farristas
de
pijama
e
amadores
de
mazorca
–
todos
em
excitação
patriótica.21
Trata-‐se
um
herói
caricato:
depois
de
conseguir
triunfar
em
território
inimigo,
ser
conduzido
em
triunfo,
escorrega
numa
casca
de
banana
e
quebra
a
cabeça.
Em
seguida
ao
ato
de
heroísmo,
Ternura
é
preso
num
bordel
porque
se
encontrava
com
uma
garota
menor
de
idade.
Ninguém
mais
reconhece
nele
o
herói.
Aliás,
a
cidade
está
sempre
a
oprimi-‐lo.
Sua
identificação
com
ela
se
dá
de
forma
negativa.
Veja:
“Acabara
de
conhecer
um
dos
mecanismos
mais
cruéis
da
vida
urbana.
Magoado,
embora
e
cheio
de
espanto,
sentiu-‐se
mais
integrado
na
cidade”.22
18
Idem, 49.
19
Esquizossemia seria, por assim dizer uma escrita esquizofrênica, com múltiplas feições, formas e manifestações.
20
Idem, 83.
21
Idem, op.cit.
22
Idem, 93.
6. 6
Nosso
protagonista
nunca
se
dá
bem
com
o
mundo
moderno,
um
dos
exemplos
é
quando
vai
ao
banco
descontar
um
cheque.
Esse
episódio
é
um
pouco
semelhante
ao
primeiro
contato
de
Ternura
com
a
locomotiva,
na
infância.
Ternura
vive
entre
marginais
no
Rio,
não
trabalha,
recebe
uma
mesada
da
família
e
se
encontra
com
seus
amigos
e
com
meretrizes.
Assim
como
Macunaíma,
que
tentara
conseguir
uma
bolsa
para
estudar
pintura
na
Europa,
João
tenta
conseguir
uma
indenização
do
governo
por
haver
participado
da
revolução
de
1930,
mas
não
consegue,
pois
a
foto
que
registrara
o
momento
de
seu
heroísmo
aparece
na
mesma
em
que
é
preso
por
estar
num
bordel
com
uma
menor
de
idade,
só
que
com
as
legendas
trocadas.
Uma
das
análises
mais
interessantes
feitas
sobre
Ternura
aparece
na
boca
da
personagem
Arosca:
Parece
que
vive
no
fantástico,
(...)
vê
as
coisas
como
imagina
que
devem
ser
(...),
acha
tudo
possível
(...).
E
você
pensa
que
vai
se
corrigir?
Duvido.
É
possível
que
um
dia
ainda
abra
os
olhos.
Isso
a
poder
de
muita
cabeçada.
Precisa
primeiro
sofrer
na
pele,
levar
trancos.
Mas
esse
diabinho
parece
que
não
sofre,
nem
toma
conhecimento
da
realidade.
Não
analisa
os
fatos,
não
raciocina.
Falta-‐lhe
espírito
objetivo,
(...)
é
de
uma
inocência
que
desarma
(...)
um
tipo
ao
mesmo
tempo
frágil
e
forte,
(...)
conversar
com
ele
é
fugir
da
realidade.23
Em
seu
último
diálogo
com
Ternura,
Manuel
diz
que
Arosca
chamara
seu
amigo
de
“anarco-‐individualista”,
ao
que
Ternura
responde:
Anarco...
marco...
parco...
arco...
o
que
é
que
eu
sou
mesmo?24
A
citação
faz-‐se
necessária
porque
consegue
uma
definição
de
nosso
herói.
A
vida
e
o
pensamento
de
Ternura
são
totalmente
anarquistas.
Tanto
que
o
momento
em
que
se
sente
pleno
é
durante
o
Carnaval,
cujos
acontecimentos
aparecem
descritos
em
cerca
de
40
páginas,
cerca
de
um
quinto
da
obra.
Na
verdade,
Ternura
acha
a
festa
uma
“farra
ecumênica”,
que
inverte
as
relações
reais
e
as
substitui,
temporariamente,
pelas
imaginárias.
Por
isso
é
que,
depois
da
festa
que,
por
cinco
dias
fizera
com
que
o
maravilhoso,
que
na
infância
quase
chegara
a
tocar
com
as
mãos,
de
tão
perto,
tivesse
ressurgido
agora
de
maneira
tão
profusa
e
estridente,
para
logo
depois
desaparecer,
e
tudo
voltar
às
regras
antigas.25
Nesse
folião
permanente,
podemos
enxergar
um
caráter
anarquista.
Por
outro
lado,
pode-‐se
afirmar
que
Ternura,
por
ser
uma
espécie
de
anti-‐herói
brasileiro,
funciona
como
um
marco
de
nossa
identidade
mestiça.
O
adjetivo
parco
se
refere
aos
49
quilos
de
nossa
personagem.
Por
último,
o
arco
se
refere
ao
arco
(do
Rio)
das
Velhas
que
encontra
no
passado
provinciano
de
vida.
Como
já
nos
referimos
a
Ternura,
passamos
a
falar
agora
das
personagens
com
que
se
relaciona
nosso
protagonista.
Para
efeitos
didáticos,
dividirei
as
personagens
em
dois
grandes
blocos,
a
saber,
aquelas
com
as
quais
se
relaciona
durante
a
infância,
na
vida
no
interior
de
Minas;
e
aquelas
com
as
quais
se
relaciona
no
Rio
de
Janeiro.
Na
chácara,
no
interior
de
Minas
Gerais,
Ternura
vive
com
a
mãe,
Liberata,
que
se
caracteriza
pela
sensibilidade
e
lirismo
que
transmite
ao
filho.
O
pai,
Antônio,
bom
atirador,
relaciona-‐se
menos
com
o
filho.
Seus
negócios
vão
à
falência
quando
a
cidade
23
Idem, 128.
24
Idem, 203.
25
Idem. 196.
7. 7
se
moderniza.
Nesse
ambiente,
viviam
ainda
as
tias
Marina
e
Natália,
à
espera
de
um
marido
que
não
aparecia.
Há
inúmeras
notações
sexuais
quando
o
narrador
se
refere
à
Tia
Marina,
que
chega
a
namorar,
à
distância,
um
telegrafista.
O
avô,
não-‐nomeado,
é
referido
inúmeras
vezes:
mora
com
a
família
e
acompanha
os
passos
de
seu
pequeno
Napoleão.
Além
dos
trabalhadores
do
eito,
não
nomeados,
vivem
com
a
família
D.
Maria,
mãe
de
Isaac
(negrinho,
amigo
de
Ternura
nas
brincadeiras;
é
safado,
apanha
todos
os
dias
e
vive
sorrindo),
Josefina
e
a
prima.
Certa
feita,
aparece
na
casa
dos
Silva,
uma
figura
que
se
parece
com
uma
bruxa.
Trata-‐se
de
D.
Iaiá.
Ela
representa
a
mulher
vivida,
viajada,
experimentada
(na
vida
e
nos
amores)
e
que,
por
isso,
tem
muito
para
contar,
espécie
de
feiticeira
(deixa
atrás
de
si
um
cheiro
de
enxofre).
No
Rio
de
Janeiro,
faz
algumas
amizades.
Dentre
os
amigos,
destaca-‐se
Manuel,
espécie
de
Sancho
Pança
do
nosso
Quixote
brasileiro.
Manuel
possui
uma
gráfica
e
é
o
principal
interlocutor
de
Ternura
no
Rio
de
Janeiro.
Fazem
parte
da
turma,
ainda,
Matias
(descrito
como
meio
“escroque”,
meio
sonhador),
Silepse
(cético,
não
acredita
na
felicidade;
“não
falava
nada,
ninguém
lhe
sabia
ao
certo
o
passado.
Sabia-‐se
apenas
que
era
um
sujeito
alto
e
triste”),26
Pepão
(Pedro
Pereira),
ex-‐
boxeur
e
vagabundo
sentimental,
expulso
so
Lóide
por
aversão
ao
trabalho,
membro
da
diretoria
da
escola
de
samba;
Arosca:
ar
meio
distante,
mas
sempre
explicava
o
mundo
para
Ternura
(fatos
do
dia,
opiniões
de
certos
jornais,
posição
de
certas
personagens
do
dia).
Merece
destaque,
ainda,
o
estudante
Josias,
que
também
se
identifica
com
Ternura.
Dentre
as
mulheres
com
que
Ternura
se
relaciona,
se
destacam
Luísa,
irmã
de
Manuel,
que
ganha
de
presente
a
pedra
que
o
protagonista
recolhera
quando
criança,
Marilene
(na
verdade,
Malena)
burguesa
pela
qual
Ternura
fôra
apaixonado,
que
aparece
no
Livro
4
e
Rita,
com
a
qual
Ternura
queria
se
encontrar
quando
se
deita
nos
trilhos
do
trem
na
última
vez
e
com
a
qual
vivencia
uma
das
experiências
sexuais
mais
intensas
da
obra.
METÁFORAS
Duas
metáforas
muito
importantes
atravessam
a
obra
de
Aníbal
Machado
e
aparecem
trabalhadas
em
João
Ternura.
Trata-‐se
da
pedra
e
do
vento.
A
reincidência
de
temas
se
deve
ao
fato
de
Machado
acreditar
que
todo
escritor
“tem
um
só
obra,
que
pode
ser
distribuída
em
vários
livros”.
Por
isso
é
que
o
protagonista
João
Ternura
dá
título
a
outro
livro,
Cadernos
de
João,
e
o
conto
“O
homem
e
seu
capote”
reaparecer
na
coletânea
de
contos
A
morte
da
porta-‐estandarte
e
Tati,
a
garota
e
outras
histórias,
com
o
título
“O
piano”.
Como
acreditava
que
escrevia
uma
única
obra,
esses
dois
símbolos
(alegorias)
já
haviam
aparecido
anteriormente.
A
pedra,
símbolo
da
estagnação,
da
concentração
máxima,
beirando
à
inércia,
a
qual
proporcionaria
um
reagrupamento
da
essência
impenetrável
do
ser,
propiciando
a
ascese,
tanto
desejada
por
ternura,
aparece
em
“A
pedra
e
o
vento”
e
em
“O
piano”
(na
verdade
este
conto
meio
surrealista
é
uma
reescritura
do
texto
“O
homem
e
seu
capote”,
que
fecha
a
obra
que
lemos).
O
vento
que
reincide
na
obra
põe
em
circulação
o
que
está
internamente
parado.
Trata-‐
se
de
uma
força
propulsora,
algo
que
nega
o
que
está
estagnado.
Presença
onipotente
e
polimorfa
–
agente
de
mudanças
–
que
tende
naturalmente
à
anarquia
e
ameaça
com
a
destruição.
26
Idem, 93-94.
8. 8
O
vento
aparece
no
conto
“A
pedra
e
o
vento”
e
também
no
belíssimo
texto
“O
iniciado
do
vento”.27
Interessante
observar
que
os
dois
símbolos
representam
estados
contraditórios,
antitéticos.
Ternura
é
o
agente
que
os
une
–
num
paradoxo
–,
deixando
claro
o
triunfo
da
leveza,
da
mudança
contínua
capaz
de
levar
o
ser
ao
verdadeiro
conhecimento
de
quem
ele
é.
No
“Livro
1”,
num
momento
de
intenso
lirismo,
João
Ternura
encontra
a
pedra
e
a
guarda
consigo:
Desceu
à
praia,
viu
ao
longe
uma
pedra.
“Desconfio
que
ela
está
me
chamando.”
Correu
até
lá.
Apanhou-‐a.
Fresquinha,
quase
carnal.
Parecia
que
acabara
de
nascer
Apertou-‐a
contra
o
peito,
sentiu-‐lhe
a
consistência
úmida.
Úmida
do
sereno
da
madrugada
ou
das
próprias
águas
do
rio.
Teria
vindo
de
longe,
no
tempo
e
no
espaço.
E
era
diferente
dos
outros
seixos
rolados.
Negra,
macia,
quase
retangular.
Ternura
a
recebera
como
mensagem
de
antigas
eras
geológicas.
Segurou-‐a
com
fervor
e
a
pôs
no
bolso.
Subiu
correndo.
Sentiu
que
ela
lhe
transmitia
ao
corpo
os
estremecimentos
de
sua
matéria.
Entrou
ofegante
no
quarto.
E
deixou-‐a
escondida
debaixo
do
colchão.
Era
uma
pedra
de
uma
presença
que
transcendia
sua
aparência
de
pedra.28
Como
ainda
estava
em
busca
do
conhecimento
sobre
quem
era,
Ternura
recolhe
a
pedra.
Entretanto,
doa
a
pedra
a
um
dos
seus
amores,
Luisinha,
quando
sua
essência
já
estava
condensada,
seu
sujeito
já
estava
centrado:
Uma
vez,
Luisinha,
eu
era
menino,
acordei
de
madrugada,
corri
à
praia,
e
vi
uma
pedra.
Ela
parecia
me
chamar
de
longe.
Eu
me
aproximei
pra
apanhá-‐la.
Devia
estar
rolando
há
séculos
no
leito
do
rio.
Eu
acho
que
ela
se
escondia
dos
outros,
e
se
enterrava
na
areia
toda
vez
que
alguém
a
via
ou
que
a
correnteza
ameaçava
levá-‐la.
Era
uma
coisa
viva,
diferente.
Só
faltava
falar.
Eu
tinha
certeza
de
que
essa
pedra
me
esperava.
Toda
a
vida
me
fez
companhia.
E
está
aqui
comigo.
Eu
a
trouxe
para
você,
Luisinha.
Fique
com
ela
pra
sempre.
É
como
se
fosse
meu
coração.29
A
última
cena
da
obra
nos
apresenta
a
neta
de
Lusinha
deitando
fora
a
referida
pedra.
O
narrador
chega
a
dizer
que
“nesse
instante,
Ternura
desaparecera
definitivamente”.
Se
a
pedra
–
símbolo
da
concentração
e
da
concretude
–
desaparece,
o
vento
evanescente
é
que
indica
a
permanência
do
sonho,
do
lirismo,
da
beleza
e
da
ternura.
Aliás,
o
vento
aparece
como
índice
de
mudança.
Isso
pode
ser
visto
na
cena
em
que
o
pai
de
Ternura
tem
um
caso
com
a
professora
particular
de
Ternura
e,
ainda,
durante
o
período
em
que
o
protagonista,
quase
morrendo,
paira
sobre
os
acontecimentos
e
é
“vaiado
na
eternidade”.
A
prevalência
do
vento
sobre
a
pedra
aparece
no
fato
de
Ternura
deslocar-‐se
constantemente,
nunca
ficar
estagnado,
a
não
ser
quando
estava
a
fim
de
se
exilar
em
si
mesmo,
e
se
transformava
numa
pedra
ou
numa
árvore:
Muitos
então
pensavam
que
estava
aborrecido
ou
triste.
Não:
estava
numa
pedra.
Admitia
que
isso
se
dava
com
muita
gente.
Com
ele,
porém,
vinha
se
27
Trata-se, conforme vimos, de intratextualidades, pois o diálogo intertextual se dá dentro da própria obra de Aníbal Machado.
Outras intertextualidades importantes são com o romance Tristão e Isolda, quando Ternura encontra o mendigo Jeremias, que está à
procura da sua amada (Isolda), e, ainda, com o Super-homem, herói dos quadrinhos e das telas de cinema.
28
Idem, 51.
29
Idem, 200.
9. 9
repetindo
muito
ultimamente
e
de
maneira
tão
forte
que
chegava
a
alterar
o
seu
comportamento
social
e
ele
se
tornava
meio
vago,
alheio
ao
mundo
ambiente.30
Importante
ainda
é
salientar
que
a
pedra
funciona
ainda
como
um
diálogo
intertextual
com
Macunaíma,
de
Mário
de
Andrade.
Só
que
se
o
herói
de
Mário
de
Andrade
procurava
sua
essência,
Ternura
procurava
exatamente
o
contrário,
ou
seja,
o
descentramento.
Pode-‐se,
apontar
outro
ponto
de
contato
do
livro
de
Aníbal
Machado
com
Macunaíma,
o
fato
de
as
duas
narrativas
se
estruturarem
em
torno
de
uma
busca.
Através
da
repetição
do
tema,
o
escritor
mineiro
deixa
patente
a
diferença,
porque,
se
Macunaíma
estava
em
busca
da
muiraquitã
perdida,
Ternura
não
sabe
o
que
procura.
Nessa
busca
de
um
objeto
perdido,
lemos
a
busca
de
um
ser
perdido
em
um
mundo
sem
objeto.
A
pedra
lisa
e
marrom
de
Ternura,
embora
complexa,
é
um
claro
enigma:
sem
a
aura
da
muiraquitã,
de
Macunaíma,
ela
se
dissolve
entre
tantas
outras
pedras
e
da
mesma
forma
que
o
protagonista:
aventureiro
sem
aventura.
Deste
modo,
podemos
dizer
que
Ternura
é
uma
falta
que
ama,
saudosa
de
uma
ordem
ainda
não
degradada.
O
ENREDO
LIVRO
I
Ternura
nasce
num
dia
de
Natal.
Filho
de
Antônio
e
Liberta.
Narram-‐se
as
aventuras
da
primeira
infância:
vida
na
fazenda,
no
interior
de
Minas
Gerais
entre
pais,
avós,
Isaac,
a
prima,
as
meninas
com
que
aprende
o
sexo.
Numa
típica
infância
de
menino
do
interior,
há
muitas
aventuras,
como
o
contato
com
a
locomotiva,
amores,
banhos
de
rio,
tiros
com
seu
canhãozinho,
as
histórias
de
D.
Iaiá,
a
viagem
até
a
fazenda
próxima,
a
procissão,
a
viagem
de
trem
e
a
entrada
para
a
escola
(na
cidade
grande,
de
onde
sai
devido
a
um
problema
com
o
professor
de
aritmética).
LIVRO
II
O
pai
de
Ternura
ganhava
a
vida
com
o
transporte
de
pessoas,
cargas
e
mercadorias
feito
por
intermédio
de
barcas.
Com
a
construção
da
estrada,
o
negócio
de
Antônio
começa
a
apresentar
sinais
de
decadência.
Por
fim,
vem
a
falência.
Ironicamente,
os
pais
de
Ternura
acabam
se
tornando
mais
afetivos.
Levado
para
uma
nova
escola,
nova
fuga,
desta
vez,
a
nado.
Essa
nova
fuga
de
Ternura
desperta
em
Liberata
preocupações
com
respeito
ao
futuro
do
filho.
LIVRO
III
Já
adulto,
João
Ternura
chega
ao
Rio
de
Janeiro,
cheio
de
cartas
de
recomendação
da
família
e
com
vontade
de
levar
uma
nova
vida.
Vai
tomar
um
chopp
num
bar,
leva
um
soco
e
é
roubado:
esse
primeiro
contato
com
a
cidade
prenuncia
o
que
está
por
vir:
nosso
protagonista
não
conseguirá
se
adaptar
à
realidade,
vivendo
sempre
às
suas
margens,
sem
conseguir
entender
os
mecanismos
do
mundo
burguês.
Quando
tenta
fazer
isso,
ao
procurar
a
ajuda
do
primo
Bernardo,
o
efeito
é
caricatural,
pois
o
primo
diz
que
a
cidade
não
é
para
tipos
como
Ternura.
João
precisaria
melhorar
a
aparência,
ganhar
peso
e
freqüentar
a
“alta
roda”.
Depois
de
tentar
obter
a
ajuda
do
primo
e
não
conseguir,
João
Ternura
arranja
lugar
numa
pensão,
e
passa
a
perambular
pelas
ruas
do
Rio
de
Janeiro
à
toa
na
companhia
de
párias
sociais,
como
Pepão,
Manuel,
Matias,
Silepse,
Luísa,
Rita.
Estoura
a
Revolução
de
1930.
Ternura
é
convocado
a
participar.
Não
tendo
o
que
fazer,
aceita
participar.
Contrariando
as
expectativas,
nosso
protagonista
se
torna
um
herói.
30
Idem, 134.
10. 10
Mas,
caricatamente,
depois
de
ser
conduzido
nos
braços
do
povo,
escorrega
numa
casca
de
banana
e
quebra
a
cabeça.
Primeira
prisão:
depois
de
participar
da
Revolução
de
1930,
vai
a
um
bordel,
onde
é
preso
por
estar
na
companhia
de
uma
menor
de
idade.
Repare
que
de
herói,
Ternura
passa,
no
momento
seguinte,
a
vilão.
Ternura
recebe
cartas
de
seus
familiares
que
dizem
que
ele
poderia
–
se
quisesse
–
voltar
para
casa,
já
que
não
estava
se
dando
bem
no
Rio.
Para
saber
se
vai
ou
fica,
Ternura
decide
consultar
uma
cartomante.
Num
bairro
da
periferia,
acaba
na
casa
de
um
moribundo,
Saint-‐
Hilaire
(chamado
pelos
vizinhos
de
Sentalher),
que,
antes
de
morrer,
o
confunde
com
o
filho
Ernesto,
daí
o
fato
de
o
capítulo
se
intitular
“Eu
sou
o
Ernesto”,
frase
repetida
por
Ternura
depois
de
assistir
ao
passamento
de
Sentalher.
O
tempo
de
nosso
protagonista
é
gasto
na
perambulação
pela
cidade
e
nos
encontros
com
os
amigos
e
as
mulheres.
Matias
e
Pepão,
ao
saberem
que
Ternura
participara
da
Revolução
de
1930,
inventam
uma
história
sobre
o
heroísmo
do
protagonista
e
o
enviam
para
falar
com
um
Ministro,
para
tentar
conseguir
algum
pecúlio.
Ternura
leva
o
jornal
em
que
aparece
a
foto
que
havia
sido
tirada
depois
do
triunfo
do
movimento
armado.
Ironicamente,
as
legendas
embaixo
das
fotos
estavam
trocadas,
e
o
Ministro
vê
a
foto
em
que
um
homem
acusado
de
assédio
sexual,
identifica
ali
a
figura
de
João
e
o
expulsa
da
sala
do
Ministério.
Ternura,
depois
de
se
livrar
da
história
dos
amigos
e
do
Ministro
dá
uma
cambalhota
para
aliviar
a
tensão.
LIVRO
IV
Passam-‐se
os
anos
e
nada
de
Ternura
arranjar
emprego.
Os
amores,
entretanto,
continuam
pródigos:
conhece
Marilene
(na
verdade,
Malena),
garota
burguesa
com
quem
ensaia
um
relacionamento
e
se
relaciona
esporadicamente
com
Rita
e
com
Luísa,
irmã
de
seu
amigo
Manuel.
Os
amigos
tornam
a
vida
de
Ternura
interessante:
bebem,
filosofam
e...
saem
com
mulheres,
muitas
mulheres.
Depois
de
pedir
uma
carona,
Ternura
acaba
indo
parar
numa
festa
de
grã-‐finos,
onde
é
exibido
como
se
fosse
um
alienígena.
Depois
de
beber,
abandona
a
festa
de
ano
novo,
vai
para
a
rua,
onde
é
abordado
por
uma
garota
com
a
qual
desaparece
por
onze
meses.
LIVRO
V
Manuel
interpela
Ternura
e
pergunta
quando
começaria
a
levar
a
vida
a
sério
e
a
trabalhar,
Ternura
lhe
diz
que
ainda
não
era
hora:
“Já
te
disse
que
estou
sempre
em
preparativos”.31
Ternura
está
sempre
a
esperar,
mas
não
sabe
o
quê:
“e
tanto
tempo
a
esperar
a
coisa,
o
grande
segredo,
a
razão
de
ser!”
Nova
constatação
do
passar
do
tempo.
Encontro
com
Rita.
Através
de
capítulos
elípticos,
fala-‐se
do
Carnaval
(“A
contribuição
dos
gatos”
–
gatos
viram
tamborins;
“A
morte
do
pistonista”;
“Ortodoxia”).
LIVRO
VI
Este
livro
trata
de
três
assuntos
especificamente:
a)
o
carnaval;
b)
a
existência;
c)
a
morte
de
Ternura,
exatamente
nesta
ordem.
Durante
o
Carnaval,
oradores
fazem
discursos
e
são
atirados
ao
mar.
O
primeiro
discurso
apresenta-‐se
como
uma
oração
dirigida
ao
Cristo
Redentor,
pedindo
perdão
pela
farra
do
31
Idem, 150.
11. 11
Carnaval;
o
segundo
discurso
apresenta
inúmeros
neologismos.
A
linguagem
empolada
e
o
gosto
pelos
discursos
nos
remetem
ao
“lado
doutor”,
parnasiano
da
cultura
brasileira
que
aparece
devidamente
satirizado:
“brasileiro
se
emprenha
pelos
ouvidos”,
“neste
país
quem
escreve
e
fala
bonito
tem
a
porta
aberta
para
o
Congresso
e
para
as
Academias
de
Letras;
e
só
de
falar
bonito
pode
chegar
à
Presidência”;32
o
terceiro
orador
incita
o
povo
a
pescar,
defendendo
os
benefícios
desta
atividade.
O
Carnaval
é
visto
de
forma
surrealista,
pois
na
página
169,
aparece
um
fantasma
para
protestar
contra
o
barulho.
Esse
fantasma
usa
um
binóculo
e
vê
Napoleão,
escravos,
uma
condessa,
D.
João
VI,
entre
outras
figuras
históricas
egressas
do
século
XIX.
Por
fim,
“girando
nos
calcanhares,
seguiu
até
os
fundos
da
Biblioteca
Nacional,
onde
desapareceu
em
estado
de
fumaça
e
naftalina”.33
Há,
ainda,
mais
adiante,
um
morto
(homem-‐féretro)
que
faz
um
elogio
fúnebre
ao
seu
corpo
que
morrera
no
dia
anterior
ao
qual
faz
o
discurso
fúnebre.
Aparece
um
folião
que
diz
ser
Deus
e
arranja
vários
seguidores.
Chovem
pastéis
e
empadas.
Veja
como
é
descrita
essa
cena
surrealista:
Cavalheiros
bem
vestidos,
com
aparência
de
fino
trato,
perdiam
a
compostura
e,
em
saltos
de
goleiro,
abocanhavam
as
empadas
ainda
no
ar,
a
fim
de
evitar
que
elas
se
esborrachassem
no
chão.34
Há
um
tom
reflexivo
que
perpassa
a
obra.
Depois
de
receber
o
Manifesto
dos
não-‐
nascidos,
Ternura
e
alguns
foliões
passam
a
discutir
o
aborto
e
o
fato
de
todos
terem
o
direito
a
vir
à
luz.
Este
sexto
livro,
que
mostra
a
festa
do
Carnaval
carioca,
é
o
mais
“surrealista”
da
obra,
pois
os
fatos
equívocos
desfilam
um
após
o
outro.
O
único
mote
a
uni-‐los
é
a
ausência
de
lógica,
o
absurdo.
Durante
o
Carnaval,
exibem-‐se
as
riquezas
do
Brasil
(três
mocinhas
ou
riquezas
minerais
e
vegetais?).
Há,
ainda,
uma
paródia
ao
discurso
nacionalista
ingênuo
na
cena
em
que
um
bloco
carnavalesco
desfila
levando
uma
Caixa
de
possibilidades
que
traz
depois
de
si
carnavalescos
fazendo
homenagens
aos
símbolos
da
brasilidade:
índios,
extensão
territorial,
riquezas
vegetais
e
minerais,
etc.
Depois
da
confusão
do
Carnaval,
da
possível
morte
do
sujeito
que
se
dizia
Deus,
a
cidade
volta
ao
normal,
na
quinta-‐feira,
o
que
deixa
Ternura
transtornado,
pois
a
catarse
provocada
pelo
Carnaval
fez
aflorar
nas
pessoas
o
sonho,
o
lirismo,
a
poesia.
Para
Ternura,
“a
vida
devia
ser
de
tal
jeito
que
não
seria
necessário
o
carnaval”.35
Após
o
Carnaval,
Ternura
reencontra
Manuel.
Conversam.
Dias
depois,
Ternura
entra
em
convalescença
e
todos
pensam
que
isso
será
o
seu
final.
Depois
de
cinco
dias
de
morre-‐não-‐
morre,
Ternura
–
já
bastante
debilitado
–
consegue
escapar,
para
continuar
sua
busca.
Atravessa
a
cidade,
refletindo
sobre
a
beleza
das
coisas
mais
simples
e,
depois
de
vivenciar
esse
novo
“aflorar
dos
sentidos”,
encontra-‐se
com
Luísa,
para
quem
diz
a
frase
mágica:
“abraçado
com
você,
Luisinha,
parece
que
estou
chegando”. 36
O
que
Luisinha
não
compreende
é
que
Ternura
finalmente
entendera
o
significado
de
sua
existência,37
por
isso
já
estava
preparado
para
fazer
a
passagem.
A
morte
de
Ternura
é
sugerida
por
intermédio
do
capítulo
“Impossibilidade
de
Rita”
–
espécie
de
amante
de
João,
que
já
se
encontrava
morta
–
no
qual
nosso
protagonista
evoca
a
32
Idem, 184.
33
Idem, 170.
34
Idem, 191.
35
Idem, 197.
36
Idem, 212.
37
Idem, 211-212.
12. 12
amada
morta
e,
através
de
um
poema
que
explora
a
espacialização
da
página,
alude
à
morte
do
protagonista.
Depois
desse
episódio,
ninguém
mais
tem
notícias
de
João.
A
última
cena
do
livro
nos
mostra
uma
neta
de
Luísa
–
irmã
de
Manuel
e
amante
de
Ternura
–
mexendo
em
um
baú
da
avó.
Joanita
encontra
a
pedra
que
havia
sido
dada
por
João
à
sua
avó
(“Uma
pedra.
Lisa,
negra,
um
risco
marrom
atravessando-‐a
de
lado
a
lado”)38
e,
sem
compreender
o
motivo
por
que
tal
quinquilharia
estava
envolta
em
papel
de
seda
e
guardada
a
tanto
tempo,
atira
fora
a
pedra.
Então,
segundo
o
narrador,
temos
o
definitivo
desaparecimento
de
Ternura:
Nesse
instante,
Ternura
desapareceu
definitivamente.
Sem
nada,
sem
ninguém
que
o
lembrasse,
era
como
se
nunca
tivesse
existido.
39
O
HOMEM
E
SEU
CAPOTE
O
apêndice
“O
homem
e
seu
capote”
apresenta
a
estrutura
de
um
conto.
Nele,
Ternura,
protagonista,
caminha
vestindo
um
sobretudo
pelas
ruas
do
Rio
de
Janeiro.
Sentindo
muito
calor,
decide
doar
a
peça.
Ninguém
aceita.
Depois
de
tentar
abandonar
o
casaco
duas
vezes,
é
conduzido
a
um
distrito
policial,
e
só
consegue
ser
liberado
no
dia
seguinte.
Chegando
à
pensão
onde
mora,
abandona
o
fardo
e
sai
para
deambular.
Pega
uma
uva
à
porta
de
uma
casa
de
frutas
e
sai
caminhando
calmamente,
quando
passa
a
ser
perseguido
por
uma
multidão
que
o
acusa
de
roubo,
inclusive
do
“capote”/sobretudo
que
lhe
houvera
sido
doado
pelo
primo
Bernardo.
Apesar
de
se
tratar
de
uma
história
curta
(conto)
centrada
em
um
só
acontecimento,
o
texto
se
aproxima
da
estrutura
dominante
na
obra
João
Ternura
na
medida
em
que
apresenta
não
só
o
mesmo
protagonista
(além
de
elementos
que
já
haviam
aparecido
no
romance
–
o
primo
Bernardo,
a
pensão,
dentre
outros),
mas
o
absurdo
em
que
se
estrutura
os
dois
episódios
mais
importantes
da
narrativa
(portar
um
pesado
sobretudo
sob
o
inclemente
calor
carioca
e
ser
acusado
de
roubar
algo
que
lhe
havia
sido
doado
pelo
primo
Bernardo).
BIBLIOGRAFIA
ANTELO,
Raúl
(org.).
Parque
de
diversões
Aníbal
Machado.
Belo
Horizonte:
UFMG;
Florianópolis:
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BUENO,
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Em
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do
tempo
perdido:
“O
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do
vento”
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“Viagem
aos
seios
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comentários
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4.ed.
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1978.
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A
morte
da
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13.
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de
Janeiro:
José
Olympio,
1989.
MARQUES,
Oswaldino.
Aníbal
Machado
–
o
iniciado
do
vento.
Ensaios
escolhidos.
Rio
de
Janeiro:
Civilização
Brasileira,
1968.
REBOUÇAS,
Marilda
de
Vasconcelos.
Surrealismo.
São
Paulo:
Ática,
1986.
(Série
Princípios,
77).
38
Idem, 224.
39
Idem, op.cit.