2. 2
Noções Introdutórias
disso, não existe, também, um acordo sobre a extensão deste primeiro Corpus da
Bíblia.
Em segundo lugar, porque o Pentateuco apresenta-se como um conjunto
literário extremamente complexo e possuidor de uma riqueza literária
extraordinária. Complexidade e riqueza literária são dois traços típicos do
Pentateuco, visto que possui textos com formas literárias diversas: relatos, leis,
hinos, exortações etc.
Todavia, tal complexidade existe devido aos problemas históricos presentes no
texto, gerando as questões literárias que se tornam importantes para todos os que se
aproximam do Pentateuco não só com a fé, mas também de forma crítica1:
1) Os relatos representam uma fonte confiável para o historiador moderno?
2) Em que contextos históricos (Sitz im Leben = contexto vital) os diferentes
autores redigiram as diferentes tradições e/ou as reuniram num corpus literário?
2. Nome
O termo Pentateuco é de origem grega – penta,teucoj – e significa “cinco
invólucros” ou “cinco estojos”. Uma antiga tradição, que já se encontra na versão
grega dos LXX, apresenta a t como um conjunto de cinco rolos: Gênesis
(Gn), Êxodo (Ex), Levítico (Lv), Números (Nm) e Deuteronômio (Dt).
O termo Pentateuco foi empregado pela primeira vez por Tolomeu, um
gnóstico do séc. II d.C. em sua carta a Flora2. Tertuliano (Adv. Marc., 1,10)
latinizou o termo no início do séc. III d.C. em “pentateuchus (liber)” e Santo
Isidoro (Etym., 6,22,1.2) converteu-o em um vocábulo neutro “Pentateuchum”.
O Pentateuco é o livro que os judeus designavam com o nome de t (deriva
da raiz hebraica hrt) e significa instrução e lei. Sabe-se que se escrevia,
antigamente, em rolos de pele que eram guardados em vasilhas, estojos ou ânforas
(em grego teu,coj = Pentateuco).
Um único rolo é manuseado com facilidade se não for muito volumoso. Uma
obra extensa, em função da praticidade, era divida em várias partes. Por isso, o rolo
do Pentateuco foi dividido em cinco quintos (pe,nta) para facilitar a sua
conservação, o seu transporte para o lugar da leitura, o seu manuseio e a sua
reprodução, quando se fazia necessária, visto que o material tinha um curto tempo
de vida útil.
Cada uma destas cinco partes, ou “rolos”, é designada em hebraico pela
primeira palavra importante do seu texto, assim temos:
Cf. Leonardo A. FERNANDES, “Leituras inaceitáveis (espúrias) da Palavra de Deus”, Coletânea 15
(Jan-Jun 2009) pp. 11-31.
2
Consevada em S. Epifânio, Adv. Haer., 33,4.1 (PG 41,560).
1
4. 4
Noções Introdutórias
Senhor a favor de Israel, e as leis, manifestam o compromisso de Israel para com
seu Deus.
A t, então, é vista e apresentada como a história de salvação e libertação.
Nesta, a iniciativa pertence sempre ao Senhor, que dá as leis e as prescrições para
Israel, que se compromete em respeitá-las como resposta à oferta salvífica, que é
dom de Deus. Desta forma, o Pentateuco aparece como relato e texto normativo
indissociáveis. O relato fundamenta a fé que se torna conduta de vida9.
3. Divisão e Conteúdo
A divisão do Pentateuco em cinco livros foi realizada levando-se em conta
pontos de ruptura importantes:
O livro do Gênesis inicia com os relatos da criação e termina com o relato
dos Patriarcas, falando da morte de José;
a)
O livro Êxodo começa a história do povo de Israel no Egito, lembrando
José, e termina com YHWH tomando posse da tenda-santuário;
b)
O livro do Levítico abre-se com YHWH falando a Moisés, e por ele a todo
o povo, não mais do Sinai, mas da tenda-santuário, fazendo a regulamentação
do culto. O livro termina falando das ordens de YHWH a Moisés no monte
Sinai.
c)
O livro dos Números liga o Sinai à tenda-santuário, local onde YHWH fala
a Moisés; retoma-se a marcha do Sinai em direção à terra prometida e termina
aludindo aos mandamentos e às normas dadas por YHWH a Moisés nas estepes
de Moab, isto é, às portas da terra prometida.
d)
O Deuteronômio inicia-se com um discurso de Moisés nas estepes de
Moab no dia da sua morte (Dt 1-30). Dt 31–34 se liga claramente com o que se
diz em Nm 27,12-22. Neste sentido, Dt 1–30 é o discurso de despedida de
Moisés. O livro termina falando da morte de Moisés e de Josué seu sucessor na
condução do povo.
e)
O Pentateuco, portanto, é uma obra literária que relata, num estilo histórico,
uma sucessão de eventos encadeados entre si, começa com a criação do mundo e
o aparecimento dos povos, segue com a história dos Patriarcas para acabar
concentrando-se na origem de Israel: permanência no Egito e subida pelo
deserto até chegar às portas de Canaã. É uma “história” continuada, a história
que transformou um povo escravo no povo de Israel.
4. Delimitação
Dado que a história iniciada em Gênesis parece continuar, sem rupturas após o
Deuteronômio, em Josué, Juízes, Samuel e Reis, houve quem defendesse que a
historiográfica original compreendia não somente os cinco primeiros livros, mas
seis (Hexateuco), sete (Heptateuco), oito (Octateuco) ou nove livros (Eneateuco).
9
Cf. Oliver ARTUS, “Aproximación actual al Pentateuco”, (Cuadernos Bíblicos 106), ed. Verbo
Divino, Estela 2001, 7.
6. 6
Noções Introdutórias
O AT possui duas historiografias que correm paralelamente: o Eneateuco e a
Obra do Cronista (1-2Cro + Esd e Ne), que se inicia com Adão e vai até a
reconstrução do templo.
As hipóteses não apresentaram uma solução convincente e satisfatória. As mais
comuns são as que defendem a existência de um Tetrateuco, um Pentateuco, um
Hexateuco. Destas três a mais defendida e utilizada é a do Tetrateuco.
Todavia, recentemente avança a convicção de que, prescindindo do complexo
fenômeno da formação do Pentateuco, o estado atual do texto não forma uma
unidade autônoma, mas seria o começo de uma obra mais ampla. A trama narrativa
iniciada em Gn 1 chega evidentemente até 2Rs. Todo este conjunto forma uma
unidade literária bem articulada, fazendo com que o estudo de qualquer perícope
do Pentateuco deva ser situada num contexto mais amplo: o Eneateuco.
O Pentateuco, sem dúvida alguma, possui uma importância capital tanto para o
judaísmo como para o cristianismo, uma vez que nesta obra está contida a T
(Lei-Instrução) de Deus para o seu povo. Na T se expressa o modo como
Deus quer que o homem se comporte diante d’Ele, diante do seu próximo e no
mundo. A T para o povo de Israel está na base da sua identidade religiosa e
social, pois nela estão os traços peculiares que o diferenciava dos demais povos.
5. Breve “ex-curso” para se perceber o que aconteceu no estudo do
Pentateuco
O Método Histórico Crítico (MHC) possui muitas operações e algumas delas
são etapas imprescindíveis, fundamentais e decisivas para uma correta
interpretação dos textos: a) Crítica Textual; b) Análise filológica10; c) Análise
semântica11.
Existem, também, modalidades específicas como a Crítica Literária (usada no
Pentateuco para se falar da crítica das fontes).
No século XIX, o MHC era o modo como se estudavam as obras antigas, como
a Ilíada e a Odisséia de Homero, os Diálogos de Platão etc.
O objetivo do MHC era o de estabelecer a paternidade literária do texto e
produzir ou reproduzir um texto que fosse o mais fiel possível ao texto autógrafo,
isto é, ao texto antigo que saiu das mãos do seu autor ou à cópia mais próxima do
original. Para isso, era necessário eliminar os acréscimos, expurgando aquilo que
se considerava glosa posterior e que pertencia à épocas e “mãos diferentes”.
Disciplina histórico-lingüística que possui por objeto o conhecimento das civilizações do passado
através dos documentos escritos que foram preservados ou encontrados pela arqueologia. Compreende a
lingüística, a ciência literária, a história, a filosofia, a etnologia, a arqueologia e a crítica textual.
11
Disciplina científica que estuda o significado dos sinais lingüísticos, de palavras e frases. Na filosofia
da linguagem é a doutrina das relações entre língua, experiência, realidade e pensamento. A semântica é
importante na exegese bíblica, sobretudo em relação à lexicografia e à análise do hebraico-aramaicogrego sobre o plano da comparação cultural do Oriente com o ambiente posterior de compreensão bíblica
(Ocidente).
10
8. 8
Noções Introdutórias
Por exemplo: Gn 1,1–2,4a e Gn 2,4b-25 são melhor entendidos quando se
postula e se reconhece a existência de dois autores e de duas épocas diferentes,
com objetivos teológicos também diferentes.
É preciso, contudo, fazer uma avaliação geral dos limites internos e dos limites
da natureza hermenêutica.
1) O que é convincente na metodologia aplicada à uma grande literatura bíblica,
como no caso do Dtr e da suposta fonte “Q” no estudo dos Evangelhos Sinóticos,
aparece problemático quando usada a um pequeno material literário, pois o aspecto
conjetural prevalece sobre o que é objetivo. Não há resultados, na maioria das
vezes, porque não há consenso entre os estudiosos. Exagera-se na avaliação,
outorga-se patente às incoerências. A criteriologia literária vária tanto porque vária
também a interpretação de um autor a outro autor, inclusive nas incongruências das
gramáticas.
Deve-se ponderar e dizer que um trabalho é realmente considerado científico,
quando usa e apresenta argumentos bem fundamentados e plausíveis.
2) Estabelecer um texto como autêntico ou não autêntico é um caso ideal que até
pode ser convincente, mas para um estudioso que respeita a Divina Revelação,
prevalece o texto como ele é, com tudo o que ele comporta de problemático e na
ordem em que ele aparece no cânon.
Quando um texto não é homogêneo, não quer dizer que não se deva assumir a
sua totalidade textual e considerar tudo nele como inspirado.
Assim, tirar o espúrio, cancelar para purificar o texto não é uma melhor postura
hermenêutica. A modalidade separatista é muito problemática, pois as “fontes” são
complementares e não possuem a pretensão de cancelar um texto anterior.
Não se pode interpretar o Deutero-Isaías (Is 40–55) fora da sua relação com o
Proto-Isaías (Is 1–39*) e o Trito-Isaías (Is 56–66), pois as fontes são integrantes.
Não é lícito pensar que o redator final de um texto bíblico não sabia o que estava
fazendo. A harmonia textual que eu busco e quero encontrar é fruto da minha
lógica aplicada ao texto, mas não é fruto da lógica pensada pelo autor, que possui a
sua base retórica própria e com uma coerência que o estudioso é chamado a
encontrar.
Se um texto coloca o gênero lamentações e louvor lado a lado, é preciso aceitar
o critério da diferença usado pelo redator final, pois tudo está interligado para
formar um complexo e porque a verdade não é tão elementar quanto eu penso que
ela seja.
O procedimento que não valoriza o texto integral assemelha-se ao trabalho num
campo arqueológico no qual se quer revelar os seus vários extratos. O texto é
tratado como uma grande confusão e o estudioso busca “organizá-lo” por camadas
literárias.