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O Ser e o Nada1
(Sartre)
Liberdade e facticidade: a situação
O argumento decisivo empregado pelo senso comum contra a liberdade consiste em lembrar-nos de
nossa impotência. Longe de podermos modificar nossa situação ao nosso bel-prazer, parece que não
podemos modificar-nos a nós mesmos. Não sou "livre" nem para escapar ao destino de minha classe,
minha nação, minha família, nem sequer para construir meu poderio ou minha riqueza, nem para dominar
meus apetites mais insignificantes ou meus hábitos. Nasço operário, francês, sifilítico hereditário ou
tuberculoso. A história de uma vida, qualquer que seja, é a história de um fracasso. O coeficiente de
adversidade das coisas é de tal ordem que anos de paciência são necessários para obter o mais ínfimo
resultado. E ainda é preciso "obedecer à natureza para comandá-la", ou seja, inserir minha ação nas
malhas do determinismo. Bem mais do que parece "fazer-se", o homem parece "ser feito" pelo clima e a
terra, a raça e a classe, a língua, a história da coletividade da qual participa, a hereditariedade, as
circunstâncias individuais de sua infância, os hábitos adquiridos, os grandes e pequenos acontecimentos
de sua vida.
Este argumento nunca perturbou profundamente os adeptos da liberdade humana: Descartes, o primeiro
deles, reconhecia ao mesmo tempo que a vontade é infinita e que é preciso "dominar mais a nós
mesmos do que a sorte". Pois convém fazer aqui certas distinções: muitos dos fatos enunciados pelos
deterministas não podem ser levados em consideração. O coeficiente de adversidade das coisas, em
particular, não pode constituir um argumento contra nossa liberdade, porque é por nós, ou seja, pelo
posicionamento prévio de um fim, que surge o coeficiente de adversidade. Determinado rochedo, que
demonstra profunda resistência se pretendo removê-lo, será, ao contrário, preciosa ajuda se quero
escalá-lo para contemplar a paisagem. Em si mesmo - se for sequer possível imaginar o que ele é em si
mesmo -, o rochedo é neutro, ou seja, espera ser iluminado por um fim de modo a se manifestar como
adversário ou auxiliar. Também só pode manifestar-se dessa ou daquela maneira no interior de um complexo-
utensílio já estabelecido. Sem picaretas e ganchos, veredas já traçadas, técnica de escalagem, o rochedo não
seria nem fácil nem difícil de escalar; a questão não seria colocada, e o rochedo não manteria relação de
espécie alguma com a técnica do alpinismo. Assim, ainda que as coisas em bruto (que Heidegger denomina
"existentes em bruto") possam desde a origem limitar nossa liberdade de ação, é nossa liberdade mesmo que
deve constituir previamente a moldura, a técnica e os fins em relação aos quais as coisas irão manifestar-se
como limites. Mesmo se o rochedo revela-se como "muito difícil de escalar" e temos de desistir da escalada,
observemos que ele só se revela desse modo por ter sido originariamente captado como "escalável"; portanto,
é nossa liberdade que constitui os limites que irá encontrar depois.
1
Adaptado de: SARTRE, J. P. O ser e o nada: ensaio de ontologia fenomenológica. Tradução de Paulo Perdigão. 5ª edição. Rio de
Janeiro: Ed. Vozes, 1997. Págs. 593-595.

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  • 1. 1 O Ser e o Nada1 (Sartre) Liberdade e facticidade: a situação O argumento decisivo empregado pelo senso comum contra a liberdade consiste em lembrar-nos de nossa impotência. Longe de podermos modificar nossa situação ao nosso bel-prazer, parece que não podemos modificar-nos a nós mesmos. Não sou "livre" nem para escapar ao destino de minha classe, minha nação, minha família, nem sequer para construir meu poderio ou minha riqueza, nem para dominar meus apetites mais insignificantes ou meus hábitos. Nasço operário, francês, sifilítico hereditário ou tuberculoso. A história de uma vida, qualquer que seja, é a história de um fracasso. O coeficiente de adversidade das coisas é de tal ordem que anos de paciência são necessários para obter o mais ínfimo resultado. E ainda é preciso "obedecer à natureza para comandá-la", ou seja, inserir minha ação nas malhas do determinismo. Bem mais do que parece "fazer-se", o homem parece "ser feito" pelo clima e a terra, a raça e a classe, a língua, a história da coletividade da qual participa, a hereditariedade, as circunstâncias individuais de sua infância, os hábitos adquiridos, os grandes e pequenos acontecimentos de sua vida. Este argumento nunca perturbou profundamente os adeptos da liberdade humana: Descartes, o primeiro deles, reconhecia ao mesmo tempo que a vontade é infinita e que é preciso "dominar mais a nós mesmos do que a sorte". Pois convém fazer aqui certas distinções: muitos dos fatos enunciados pelos deterministas não podem ser levados em consideração. O coeficiente de adversidade das coisas, em particular, não pode constituir um argumento contra nossa liberdade, porque é por nós, ou seja, pelo posicionamento prévio de um fim, que surge o coeficiente de adversidade. Determinado rochedo, que demonstra profunda resistência se pretendo removê-lo, será, ao contrário, preciosa ajuda se quero escalá-lo para contemplar a paisagem. Em si mesmo - se for sequer possível imaginar o que ele é em si mesmo -, o rochedo é neutro, ou seja, espera ser iluminado por um fim de modo a se manifestar como adversário ou auxiliar. Também só pode manifestar-se dessa ou daquela maneira no interior de um complexo- utensílio já estabelecido. Sem picaretas e ganchos, veredas já traçadas, técnica de escalagem, o rochedo não seria nem fácil nem difícil de escalar; a questão não seria colocada, e o rochedo não manteria relação de espécie alguma com a técnica do alpinismo. Assim, ainda que as coisas em bruto (que Heidegger denomina "existentes em bruto") possam desde a origem limitar nossa liberdade de ação, é nossa liberdade mesmo que deve constituir previamente a moldura, a técnica e os fins em relação aos quais as coisas irão manifestar-se como limites. Mesmo se o rochedo revela-se como "muito difícil de escalar" e temos de desistir da escalada, observemos que ele só se revela desse modo por ter sido originariamente captado como "escalável"; portanto, é nossa liberdade que constitui os limites que irá encontrar depois. 1 Adaptado de: SARTRE, J. P. O ser e o nada: ensaio de ontologia fenomenológica. Tradução de Paulo Perdigão. 5ª edição. Rio de Janeiro: Ed. Vozes, 1997. Págs. 593-595.