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Título: Angélica e a estrela mágica
Autor: Anne e Serge Golon
Título original:
Dados da Edição: Editora Nova Cultural 1989
Publicação original:
Gênero: Romance Histórico
Digitalização e correção: Nina
Estado da Obra: Corrigida
O jogo foi um dos costumes mais arraigados que os europeus trouxeram para as terras do Novo
Mundo. No Canadá, durante os invernos rigorosos que os mantinham ilnados em suas cidades, a
diversão nos salões ajudava a esquecer os perigos, a passar o tempo e a afastar a solidão e o tédio das
longas noites geladas.
A paixão do jogo entre os colonos franceses, em especial o jogo de cartas, foi de tal intensidade que as
autoridades chegaram a proibir a certa altura os jogos de azar de qualquer natureza: "sobretudo a
basseta, o faraó, o trinta-e-um, a roleta, o par ou pernão, o quinze, e muitos outros", como ficou
registrado nas atas oficiais da época.
Mas alguns colonos levaram também outros tipos de baralhos com outras finalidades. Foi num desses
baralhos "diferentes", de 78 cartas e figuras simbólicas, usado tanto para jogar como para ler a sorte, que
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Angélica foi buscar a chave de seu inquietante destino. Ainda que depois se recusasse a acreditar no que
as feiticeiras videntes de Salem lhe -prometiam, nas misteriosas cartas do Taro...
"A Mulher, a Beleza, o Amor!", suspira o Cavaleiro de Malta. "Você é iluminada pelos deuses!"
No alto da falésia de onde se avistava o apanhado de casinhas e fortificações de Gouldsboro diante do
mar aberto, Angélica sentou-se com as feiticeiras de Salem para a leitura das cartas do Taro. Sobre uma
lápide de granito saliente, uma a uma, a vidente dispôs as laminas encantadas que tirara de uma grande
bolsa de veludo: a Carroça, o Louco, a Heroína, o Arlequim, a Estrela-de-Davi... Ali estavam
representadas todas as forças do Universo.
Debruçada sobre seu destino, Angélica divagava, e uma leve vertigem nasceu dessa contemplação.
Finalmente, para onde a levaria aquela vida errante? Alcançaria a vitória e o sucesso?
"Sua estrela é bela", comentou a jovem maga. "Mas você falará com um homem morto."
Únicas a perceber o hermetismo de suas profecias encantadas, as três mulheres se inclinaram sobre a
estrela mágica. Uma onda se quebrou à beira da falésia e o vento espalhou uma garoa salgada em seus
cabelos.
Ao longe, tudo se harmonizava nos contornos da Baía Francesa. As velas brancas dos navios e os barcos
de pesca entre as ilhotas passavam devagar sobre o espelho de água. Como num sonho...
Angélica e a estrela mágica
Anne e Serge Golon
Tendo deixado a filhinha Honorina aos cuidados da Madre Madalena de Bourgeoys, no Convento de
Ville-Marie de Montreal, Angélica retornara para junto do marido, o Conde Joffrey de Peyrac, que a
esperava a bordo da nau-capitânia de sua frota, o navio Arc-en-Ciel, ancorado ao largo do povoado de
Tadoussac, no estuário do rio Saguenay, fronteira da Acádia com o Canadá.
Os iroqueses estavam pacificados, o Grande Chefe Utakê à frente, depois de longas confabulações e
inúmeros cachimbos da paz trocados.
Os dois filhos maiores do casal, Florimond e Cantor de Peyrac, permaneciam na corte de Versalhes,
onde defendiam com louvor os interesses da família junto ao Rei-Sol, Luís XIV.
Uma ameaça, porém, pairava sobre o futuro de felicidade sonhado por Angélica e o amado esposo: seus
dois maiores adversários, o Padre Sebastião d'Orgeval e a Duquesa Ambrosina de Maudribourg, mortos
ou vivos (pois, em se tratando de criaturas tão diabólicas não se podia afirmar nada com segurança), do
meio das trevas continuavam a lhes opor uma resistência encarniçada.
OS ESCRÚPULOS, AS DUVIDAS E OS TORMENTOS DO CAVALEIRO
CAPITULO I
Uma personagem lendária
Ele sabia que ela estava pensando em Honorina. E que apenas seu braço viril nos ombros dela,
apertando-a fortemente contra ele, podia trazer algum alívio a seu desgosto. Calados, os dois andavam
solenemente, ao longo do primeiro convés, vagamente embalados pelo movimento dolente do navio
ancorado. As névoas de verão, tépidas mas tão densas quanto as do inverno, isolavam-nos em seu
passeio, atenuando os ruídos vindos da margem.
Joffrey de Peyrac dizia-se que o humor de Angélica poderia parecer surpreendente a muita gente.
Isso lhe agradava.
Ela era assim.
Um rei a esperava. Em seu palácio de Versalhes, um rei pensava nela.
Em meio às honras e à púrpura de uma multidão' palaciana, a preocupação primeira, oculta mas
lancinante, daquele que era o mais poderoso monarca do universo ainda era — por força de uma
paciência à qual estava resolvido a não renunciar e de uma generosidade que não media sacrifícios —
conseguir que Angélica um dia se dignasse, deixando os sombrios e frios antípodas da América,
reaparecer em sua corte.
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Mesmo ali, do outro lado do Saguenay, próximo aos confins boreais de uma natureza selvagem, um
chefe iroquês, maquilado com suas pinturas bárbaras, com a cimeira formada por seus cabelos
orgulhosamente erguida, Utakewata, o adversário mais encarniçado da Nova França, apresentara-se
diante de Joffrey de Peyrac e preenchera a maior parte do tempo destinado às parla-mentações de guerra
a falar-lhe dela, a quem ele chamava Kawa, a estrela fixa, invocando o testemunho de suas tropas de que
aquela mulher cuidara dele e o curara de seus ferimentos em Katarunk, depois de tê-lo salvado do
escalpo de Piksarett, o abenaki, seu inimigo mortal.
Mais importante que qualquer tratado de paz com a Governador Frontenac, parecia ter sido, envolta
pela fumaça das fogueiras e dos cachimbos passados de boca em boca, a exposição de uma narrativa
épica, composta já de múltiplos episódios e na qual Angélica, essa graciosa e encantadora mulher
entristecida, que naquele momento caminhava a seu lado, se tornava uma perso-nagern lendária.
Entre estes dois exemplos extremos — o rei da França, na longínqua Europa, e o chefe índio, que
jurara exterminar todos os franceses do Canadá —, Joffrey de Peyrac não ignorava que havia no mundo
uma multidão de homens os mais variados, príncipes ou pobres, loucos ou sábios, resignados ou
desesperados, mas que, por terem cruzado seu caminho, conservavam-lhe a lembrança como uma luz
acesa em sua obscura esperança de felicidade. Por terem ficado fascinados por sua beleza, comovidos
por sua voz, alegrados por sua presença, jamais o curso de sua maj
drasta existência seria o mesmo.
Ora, todos esses admiradores incondicionais teriam ficado muito pesarosos e surpresos se
descobrissem o domínio exercido sobre aquele coração, considerado inacessível, insensível, descuidado,
por uma menininha de sete anos, de cabelos cor de cobre sob um gorrinho verde, que ela havia deixado
longe dali, brincando de roda.
Joffrey de Peyrac partilhava sua nostalgia e não a subestimava. Um junto ao outro naquela noite,
combinando os passos, deixavam-se debruçar sobre tormentos de coração para os quais sua vida
venturosa, perpetuamente entrecortada por responsabilidades futuras e por perigos, quase não lhes
deixava tempo.
Sentiam-se bem, juntos, dizia-se ele. E lembrava-se do desagrado que lhe causara aquela separação, a
campanha do Saguenay, em que o tempo todo se sentira irritado com sua ausência. Surpreso,
perguntava-se como pudera, poucos anos antes, quando de sua chegada ao Novo Mundo, resolver-se a
deixá-la um inver-no todo em Gouldsboro, enquanto ele se enfiava, com seus homens, no interior das
terras. Isso lhe parecia uma aberração naquele momento... Perto dela, a vida se iluminava.
Cingiu-a com mais força.
Subiram alguns degraus e chegaram ao segundo convés. Continuaram a subir e alcançaram o balcão
em forma de meia-lua na popa do Arc-en-Ciel.
Uma tonalidade rósea que tingia a névoa anunciava o poente, mas as brumas continuavam opacas,
ocultando até as outras embarcações de sua frota.
Esta permanecia havia três dias diante de Tadoussac, à espera dos últimos contingentes de soldados e
de marujos que regressavam do lago Saint-Jean, escoltando os- mistassins e os nipissings, que não
ousavam aventurar-se a descer o rio para comerciar sem sua proteção.
E no entanto os iroqueses tinham se evaporado. Deixaram para Joffrey um "colar de contas de
porcelana", um wampum em que estava escrito: "Não faremos guerra aos franceses enquanto eles
permanecerem fiéis ao homem branco de Wapassu, Tecon deroga, meu amigo".
Assim que obteve essa promessa, o conde retomara rapidamente a descida para o Saint-Laurent,
impaciente por reencontrar Angélica, que chegava de Montreal, onde deixara Honorina com as madres
seculares da Congregação de Nossa Senhora. Fizera mal talvez, quando a encontrara, ao interrogá-la
muito a respeito da menina, mas era-lhe muito afeiçoado e começava a sentir sua falta.
Angélica caíra numa profunda melancolia. Montreal era muito distante, disse ela, e estava arrependida
por ter cedido às instâncias de Honorina, que queria ser interna "para aprender a ler e a cantar".
Por mais devotadas que fossem as religiosas da Congregação de Nossa Senhora, era um meio muito
diferente daquele que a menina conhecera até então, e ela sofreria.
—Mas que ideia foi essa a dela de querer sair de Wapassu?! — exclamou subitamente Angélica,
saindo de seu mutismo e erguendo para Joffrey seus olhos aflitos. — Tão pequena, por que essa ideia de
querer nos deixar? A mim, sua mãe! A você, o pai que ela finalmente encontrou do outro lado do
mundo! Será que não mais lhe bastávamos? Será que não éramos tudo para ela?
Ele reteve um sorriso.
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Ali, na popa de um navio, nos limbos de uma neblina dourada pela aproximação da noite,
egoisticamente, absurdamente feliz por tê-la toda para si, sentiu-se tocado por sua ingenuidade feminina,
essa candura que a maternidade confere às mulheres e que parece marcá-las com um sinal de eterna
juventude, como se, antes de serem investidas com essa glória misteriosa, não houvessem jamais vivido.
—Meu amor — disse ele, após refletir —, por acaso você esqueceu a lógica da infância? A lógica de
sua infância?... Não me contou que, com dez ou doze anos, quis partir para as Américas e que
empreendeu essa viagem com um bando de pequenos vagabundos, sem se preocupar nem um pouco,
nem você nem eles, com o desgosto e a perturbação que com certeza teriam seus pais, abandonados por
vocês?
—E verdade.
O encontro com seu irmão mais velho, Josselino, reavivara-lhe as lembranças. Ela se reconhecia de
bom grado na Angélica' menina de Monteloup. As raízes profundas não tinham mudado. Mas, ao lançar
um olhar adulto sobre seu comportamento àquela época, compreendia melhor as preocupações que havia
causado a sua família.
—Creio — disse ela — que, impelida pela sede de aventura e liberdade, eu não tinha nenhuma
consciência do que representava aquela viagem, nem que isso implicava uma separação dos meus.
—E você acredita que a pequena Honorina tenha alguma noção desta palavra que nos parte o coração:
separação? Ela quer seguir seu caminho, tal como, num passeio, somos atraídos pelas flores de um
caminho desconhecido e decidimos ir vê-las, sem considerar que toda a nossa vida vai com isso ser
modificada... Penso em mim quando cheguei à adolescência. Eu devia tudo a minha mãe: a salvação, a
saúde e principalmente a capacidade de andar, ainda que mancando. Minha primeira decisão, quando me
vi apto a andar, foi aproveitar minha nova agilidade para mé lançar aos mares em busca de aventura. Eu
fui até a China. Foi lá que conheci o Padre de Maubeuge. Meu périplo durou anos, três pelo menos na
primeira viagem, e não acho que eu tenha me preocupado muito, durante esse tempo, em mandar
notícias minhas ao palácio de Toulouse. Teria ficado muito surpreso se me dissessem que, ao agir dessa
forma com minha mãe, para a qual eu era tudo, eu lhe causara algum sofrimento ou inquietação. Não só
jamais duvidara de sua paixão por mim, de tal forma o vínculo que me prendia a ela me parecia
indiscutível, mas, triunfando sobre perigos e mordendo os melhores frutos da terra, parecia-me que ela
deveria estar ciente de minhas vitórias e minhas felicidades. E agora, quando me debruço sobre aquele
período louco e candente de minha juventude através do mundo, dou-me conta de que, na verdade,
nunca me passou pela cabeça que eu a deixara.
O clarão róseo se apagara. Nuvens passaram, tocando-os com um sopro mais frio. :
A confidência que seu marido acabara de fazer-lhe, ele, que tão raramente falava de si mesmo,
comovera Angélica, mas, por uma associação de ideias, cuja génese escaparia fatalmente a Joffrey de
Peyrac, suscitara-lhe também uma inquietação. Pois ela nunca pudera evitar a certeza de que Sabina de
Castel-Morgeat, pela qual ele tivera certa inclinação durante sua estada em Quebec, se parecia com a
mãe de Joffrey. A mulher do tenente-geral da Nova França, uma bela meridional de temperamento
difícil mas de pupilas de fogo, busto opulento e desejável, usava a cantante língua d'oc do sul da França,
linguagem hermética dos gascões. Angélica ficara morrendo de ciúme, mais pela reminiscência materna
que Sabina podia despertar nele do que pelo que eventualmente teria havido entre eles. Ainda que
houvesse sido ofensivo. Admirava-se por ter esquecido com tanta facilidade... como prometera à própria
Sabina. Mas não gostava que alguma coisa fizesse Joffrey lembrar-se. E provavelmente tinha razão,
pois, em seguida à evocação que acabara de fazer de sua mãe, como se seus pensamentos tivessem
acompanhado os de Angélica, ele pronunciou estas palavras execráveis:
—É mesmo, você conseguiu saudar os Castel-Morgeat quando passou por Quebec?
Angélica sobressaltou-se e respondeu, meio ríspida:
—Como poderia? Você sabe muito bem que eles foram para a França, há dois anos já.
Espantado e conciliador, ele concordou.
— Tinha me esquecido. Teve notícias deles?
Ele estava totalmente indiferente.
— Não... Se nem dos presentes tive notícias, como poderia tê-las dos ausentes? Quebec estava vazia.
Todo mundo estava nos campos, e não tive nenhum prazer nessa viagem. De todo modo, você não
estava lá... e era horrível.
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Ele a envolveu mais uma vez num abraço apaziguador. Seu nervosismo desde sua volta não lhe
passara despercebido. Havia nele alguma coisa além de Honorina. Ela escondia uma decepção... ou uma
inquietação. Sentira-o desde a primeira noite. Sabia que ela falaria quando achasse oportuno. Mais tarde.
Ela deixou cair a cabeça em seu ombro.
— Sem você, nada mais tinha graça. Lembrei-me de nossa chegada a Quebec. Não compreendo por
que, naquela época, eu tinha tanto medo de ser aprisionada pelas exigências de meu título de esposa do
Conde de Peyrac. Tornei a pensar em tudo isso quanj
do fui olhar de longe a pequena casa de Ville-
d'Avray. Por que eu tinha então tanta necessidade de me isolar, de me sentir livre?
— Suponho que estava cansada de ser a rainha de um bando de aventureiros que, no fundo das
florestas ou nas margens selvagens, exigia sua atenção dia e noite, gente à qual você se dedicou de corpo
e alma, um inverno e um verão inteiros, cuidando dos doentes, curando os feridos, reconfortando os
aflitos, suportando seus humores... Isso eu compreendi, e aplaudi, em sua revolta e em sua sabedoria. Ao
chegar a Quebec, você podia conhecer uma existência niais agradável. Estava também diante de uma
outra tarefa importante. Havia tomado uma decisão que se mostrava necessária, e na qual eu não teria
talvez pensado, inconsciente de tudo o que lhe fora pedido, de desafio, a obrigação de conquistá-los, que
essa volta ao seio de seus compatriotas representava para você. Para essa obra, você tinha necessidade
de se recolher, de reunir suas forças. Enfim, você talvez estivesse um pouco, espero, cansada de um
esposo que, por ciúme, fizera pesar sobre você o jugo de sua violência.
—Não, eu queria, ao contrário, que você me pertencesse ainda mais, que nos reencontrássemos a sós e
não sempre num palco de guerra ou de debates políticos, como estava acontecendo.
—Você estava coberta de razão, e foi melhor assim. Muitos imponderáveis ainda nos separavam, e eu
me mostrara por demais insensível a seu direito à liberdade, meu belo pássaro selvagem. E você, em sua
sagacidade, adivinhava que nem você nem eu éramos pessoas que se deixariam impressionar por
compromissos aos olhos de uma sociedade mundana que era preciso seduzir e que ia disputar nossos
favores; não confiando em meu amor, para pôr à prova minha fidelidade talvez, você me devolvia
também minha liberdade.
—E você fez uso dessa liberdade?
—Não mais que você, meu anjo! — replicou ele, com uma breve risada.
Mas ao mesmo tempo que lhe devolvia esse dardo, que lhe arremessava essa flecha-de-parto, destinada
a fazê-la entender que ele não deixara de ouvir certos rumores acerca de seu interlúdio com Bardagne,
ele se inclinava para ela e pousava os lábios em seu pescoço, na altura dos ombros.
O hálito de Joffrey, o poder de sua boca terna, ávida e mágica, varriam os rancores que, havia muito,
se tornavam insensivelmente sem objetivo entre eles. Depois de tantos anos de felicidade, a hora da
verdade não significava mais nada. Ela não sabia resistir-lhe. Tudo se abolia e caía por terra. O milagre
do desejo, que nunca se apagava entre eles, esse dom dos deuses que lhes fora concedido e que tantas
vezes os salvara da ruptura, lembrava-lhes mais uma vez que, apesar das tempestades que, como para
todos os demais, podiam assaltá-los e abalar-lhes a fé, um único sentimento permanecia: não podiam
mais sobreviver um sem o outro. Ele era tudo para ela. Ela, para ele, era o fim de seu horizonte, o
objetivo irrestrito de suas ambições.
Assim, encerrados na obscuridade do rio, da noite e das brumas, unidos como uma só pessoa e
perdidos no encanto desses beijos, cada um dos quais, mais secreto e devorador do que o anterior,
exprimia mil coisas não formuladas, inexprimíveis, como confidências ou gritos, protestos de amor ou
confissões desvairadas, de um modo mais delicioso e verdadeiro que a menor palavra pronunciada, eles
deixavam esta terra e abandonavam as mesquinhas querelas, os tristes combates do orgulho e da vaidade
ferida, que fazem mais vencidos que vencedores, Causam mais feridas incuráveis que benefícios.
Ali onde se encontravam não havia mais explicações a dar, perdões a pronunciar.
Ao pé do navio, um ruído de remos batendo na água e em seguida se erguendo gotejantes veio arrancá-
los de seu deleite.
Enquanto o halo de uma lanterna se aproximava, abrindo a obscuridade, viram embaixo uma chalupa
deslizando com os seis remos levantados como fantasmas na neblina e que se aproximava e depois
desaparecia para abordar o Arc-en-Ciel.
—Parece-me que vi o burel de um monge e as passamanarias de um uniforme. Talvez seja uma
mensagem do Sr. de Frontenac.
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—Oh! Senhor, por que não embarcamos antes? — gemeu ela. — Oxalá ele não venha novamente
pedir-nos socorro. Agora que já fiz meu sacrifício por Honorina, estou com pressa de encontrar nossos
conhecidos e nosso maravilhoso domínio de Wapassu.
Aguçaram os ouvidos e perceberam, por trás da neblina, que a noite que descia tornava azul-ardósia,
opaca e estagnante, vozes e ruídos de cordas e de uma escada sendo manobradas. Os clarões surgiam e
se apagavam logo como se tivessem dificuldade em aflorar, como se tudo quisesse recair imediatamente
no torpor de um fim de dia de verão com tristezas de novembro, como se, ao abrigo nos limbos
cúmplices de Tadoussac, se recusasse a se animar e a se ligar novamente a um mundo cheio de agitação
e sobretudo de inimigos administrativos.
Nos navios ou na margem, todos tiveram a mesma reação:
— O que ele estará nos enviando lá de cima, de Quebec?! Mais complicações?!
Finalmente auréolas de claridade iam se firmando, e vislumbraram-se no portaló silhuetas confusas
que transpunham a balaustrada e se equilibravam no primeiro convés
Bruscamente, Joffrey tomou Angélica novamente nos braços, estreitou-a com todas as suas forças e
beijou-a nos lábios, fazendo-a quase perder o fôlego. Depois largou-a e afastou-a com um riso
silencioso.
Ele se vingava dos importunos que vinham mais uma vez submeter-lhe suas preocupações e disputas.
Ou estaria lhe instilando algum viático?
Joffrey retomou imediatamente sua atitude ao mesmo tempo despreocupada e distante de mestre do
navio. Mas Angélica, reprimindo com dificuldade um acesso de hilaridade, levou mais tempo para
reassumir a compostura. Ela afastava da fronte uma mecha inquieta, que persistia em escapar e se
encrespar sob o perolado úmido da bruma. Depois, tossiu fracamente para disfarçar seu constrangimento
e finalmente decidiu-se a olhar para os recém-chegados.
CAPÍTULO II
Um discurso inflamado
À luz das lanternas que os marujos carregavam, o Conde de Loménie-Chambord estava diante deles.
No primeiro momento Angélica viu apenas a ele. Em Montreal, tentara encontrá-lo, mas soubera por
Margarida Bourgeoys que ele fora ferido na viagem de Frontenac aos iroqueses. Mas, tendo procurado
por ele em vão no Hospital Joana Mance e nos sulpicianos, acabara por supor que o cavaleiro evitava
encontrá-la.
Por esse motivo sentiu-se agradavelmente surpresa por tornar a encontrá-lo entre os visitantes e
adiantou-se para ele sorrindo. Depois, cumprimentou o Sr. d'Avrensson, o rnajor de Quebec, que trazia
uma mensagem do Sr. de Frontenac, o qual, segundo ele dizia, estava prestes a voltar a Quebec. O Sr.
Topin, acompanhado de seus dois filhos, conduzira os dois oficiais em sua grande chalupa de uma só
vela, desde a capital.
O religioso que os acompanhava era um recoleto que voltara para a missão de Restigouche, no golfo
de Saint-Laurent.
O Conde de Peyrac convidou-os a descer à sala de jogos para tomar alguns refrescos antes de cearem
em sua companhia.
Angélica estendera a mão ao Conde de Loménie-Chambord a fim de tomar-lhe o braço para que ele a
conduzisse até o salão de jogos.
Mas, como ele permanecesse hirto e plantado como um pedaço de pau, seu gesto permaneceu
inacabado. Sua primeira impressão penosa, quando o divisara de longe, confirmou-se. Seus passos não
tinham mais a firmeza aliada à leveza própria dos guerreiros de estilo indígena que esse país formava.
Seu andar pareceu-lhe vacilante e mesmo pesado a ponto de hesitar em reconhecê-lo nessa silhueta
emagrecida, arqueada. Em suma, ele envelhecera. "Seu ferimento, provavelmente..."
Ela parou igualmente e ficou junto a ele, deixando os outros se afastarem.
—Fale-me de seu ferimento — disse ela.
Ele estremeceu e levantou a cabeça. Seu rosto, pálido e marcado, que ela podia ver apesar da
penumbra que voltara ao balcão quando as luzes se apagaram, confirmou seus alarmes, mas, vendo que
ela ia insistir em pedir-lhe notícias de sua saúde, ele a interrompeu com um gesto imperativo.
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—Sei que você me procurou quando esteve em Ville-Marie — disse num tom abrupto, que ela jamais
o vira empregar. — Eu lhe agradeço, Angélica, sua cortesia, mas não teria podido vê-la naquela
oportunidade e falar-lhe com sangue-frio. Todavia, mais tarde, soube que não podia deixar que se
afastasse e que fosse embora da Nova França sem lhe dizer todas as palavras que me pesavam no
coração. É preciso que sejam ditas de uma vez por todas. É um dever, uma dívida sagrada. Por isso, sem
estar ainda curado, embarquei para descer o rio antes que sua frota transpusesse os limites da província
do Canadá.
Ele dava a impressão de pronunciar um discurso repetido palavra por palavra, dias e noites, e que ele
sabia de cor.
—Enfrentei uma crise terrível, mas agora tudo me parece claro e vou falar. Sei, ademais, Angélica,
que você é de fato a mulher anunciada que devia pôr-nos todos a perder. Reavivando algumas
lembranças, pude desmontar seu método hábil, de uma engenhosidade perturbadora. Você fez do fato de
ser amoral uma virtude. E, já que não tem nem noção do que seja isso, julgam-na isenta de pecado. Você
é como Eva: inconsciente. Sem remorsos, pois não teve a intenção. Como segue apenas a seus dogmas,
você se absolve de transgredir aqueles que não estejam nas leis. Se não a aprova, desculpa a heresia e se
mostra indulgente com o vício, por espírito de justiça, você diz, caridade e alguns pretextos mais. E
todos, todos, todos nós caímos na armadilha. Somos impotentes diante de você, como diante de crianças
que põem fogo na casa. Ao mesmo tempo que as amaldiçoamos, não podemos querer-lhes" mal por isso:
elas não sabem o que fazem!...
"Deve ter ficado maluco!", reconheceu Angélica para si mesma, pasma, após tentar inutilmente deter o
fluxo de sua diatribe.
Mais um vento de loucura que se levantava!
Ele continuava, com uma voz monocórdia:
—Dir-se-ia que, tão bela, tão vivaz, você nasceu para exaltar a felicidade, para nos devolver o paraíso
terrestre, e e.is que somos atirados a uma praia árida, tendo perdido o caminho da Salvação. Tarde
demais para compreender que ele, que você, reunindo o encanto de sua inteligência ao de sua graça,
levando ambos uma existência contrária à nossa, insistem em quebrar as imagens que regem nossas
sociedades e nos dita nossos deveres.
—Ora, você quer se calar? — ela conseguiu finalmente intimá-lo com cólera.
Enquanto ele atacava somente a ela, não se deixou comover. Não era a primeira vez que um
apaixonado frustrado a injuriava e a acusava de todos os pecados bíblicos. Mas não suportaria que ele
atacasse Joffrey.
Ele não levou em consideração sua injunção e continuou, com uma veemência que se alimentara de
agravos longamente abafados:
—Por sua vida, todos os dois ridicularizam nossos sacrifícios! Escarnecem de nossas renúncias.
—Cale-se!... Que bicho o mordeu, senhor? Se fez a descida do rio para vir me dizer essas patacoadas,
poderia economizar suas fadigas. Nem meu esposo nem eu mesma merecemos que nos trate assim. Está
sendo injusto, Sr. de Loménie, inutilmente ferino, e não perdoaria tais palavras nem tais pensamentos
vindos de um amigo tão querido e que eu julgava tão certo, se não pressentisse que alguma coisa
aconteceu que deve tê-lo transtornado desta forma.
Num súbito gesto de ternura, ela colocou dois dedos sobre sua face.
—Fale, Cláudio — murmurou. — O que está acontecendo, meu pobre amigo? Que foi que houve?
Ele estremeceu.
—O que houve foi que... ele morreu!
Cuspiu essas palavras num estertor, como o sangue de uma chaga interna.
—Ele morreu — repetiu, com desespero. — Morreu mártir dos iroqueses... Eles torturaram seu
corpo!... Comeram seu coração! O Sebastião, meu amigo!... Eles comeram seu coração! E eu, eu o traí!
E, subitamente, ele explodiu em soluços terríveis, soluços de um homem extremamente infeliz e que se
privou das lágrimas durante muito tempo.
Angélica pressentia essa explosão.
Os acontecimentos tinham tomado o rumo que ela receava. A notícia da morte do Padre d'Orgeval,
perpetrada um ano antes nos confins do rio Hudson, só recentemente chegara oficialmente de Paris à
Nova França. A colónia estava sob o impacto da notícia, e Loménie fora atingido.
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Ela se aproximou e abraçou-o compassivamente. Ele então voltou-se para ela e soluçou, com a fronte
apoiada em seu ombro. Ela o abraçou fortemente sem dizer nada, esperando que ele se acalmasse.
Sentia que ele se acalmava. E que fora um gesto de compaixão, de bondade e de ternura o que lhe
faltara para suportar o anúncio da morte de seu amigo. Ele se rendia.
Pouco depois, tornou a erguer a cabeça, confuso.
—Perdoe-me.
—Não foi nada. Você não aguentava mais — disse ela.
—Perdoe sobretudo minhas palavras. Minhas acusações contra vocês parecem-me subitamente fúteis.
—E são de fato.
—...E minhas suspeitas, insensatas.
—Com efeito.
—Sinto-me melhor. Não sei o que foi que me deu. Você é uma amiga, uma amiga de verdade. Isso eu
sei. Sinto-o. Sempre senti isso. Uma amiga encantadora. E nada me deixa mais acabrunhado do que
julgar descobrir subitamente o avesso das aparências e ouvir uma voz que denomina de traição a
amizade que lhe devotei.
Ele tapava os olhos e parecia aturdido como se tivesse recebido uns socos.
—Como não julgá-la temível? — continuou ele, retomando finalmente o tom levemente humorado
que era de praxe anteriormente entre eles. — Vim para cá, carregado de certezas e de rigor, dando razão
a Sebastião pela desconfiança que ele lhe manifestou, decidido firmemente a fustigá-la com mil palavras
que resolveriam para sempre, pela ruptura, a ambiguidade de nossa amizade, da simpatia que censuro a
mim mesmo, tanto a que sinto por você como a que o Conde de Peyrac me inspira. E yejo-me chorando
em seus braços como uma criança.
—Não se envergonhe de seu abandono, cavaleiro. Sem querer pregar num domínio que lhe é mais
familiar que a mim, eu gostaria de lembrar-lhe que o Evangelho nos mostra Cristo buscando junto aos
amigos um conforto para seus conflitos interiores.
—Mas não junto a -uma mulher — protestou Loménie, que parecia um adolescente abatido, vencido
por seus conflitos.
—' Claro que sim, parece-me — disse ela gentilmente. — As mulheres também estavam lá, no
caminho do sofrimento. Não apenas a Mãe, mas também as amigas, as amantes, a prostituta, Maria
Madalena. Como você vê, estou em boa companhia... E, já que estamos falando de mulheres, posso
perguntar-lhe se recebeu notícias de sua mãe e de suas irmãs? Espero que nenhum luto tenha vindo
juntar-se a esse!...
Loménie respondeu que sua mãe e suas irmãs estavam bem de saúde. Não tivera tempo de ler com
atenção suas longas missivas, pois, ao mesmo tempo, por esse correio dos navios da primavera, chegara-
lhe a carta do Padre de Marville, falando-lhe dos últimos momentos de seu amigo de juventude, e ele
não se refizera ainda do choque.
Pôs a mão em seu gibão, como se o envelope que guardava junto ao peito lhe queimasse.
—Luciano de Marville repetiu-me as últimas e terríveis palavras do moribundo... Ai de mim, contra
você, Angélica. "Ela
é a causa de minha morte." E desde então isso me persegue. Talvez você não soubesse dessas
condenações.
—Eu as conhecia — disse ela.
Angélica explicou-lhe que, encontrando-se em Salem, para onde o chefe dos mohawks enviara o Padre
de Marville, estivera entre os primeiros a serem avisados. Apontando para ela, o jesuíta repetira o grito
acusador:
"É ela! É ela! É por causa dela que eu morro!"
Prudentemente, Angélica evitou observar o quanto dejnprbi-do e falso havia em tal acusação. Quando
se começavam a discutir as justificativas da hostilidade do Padre d'Orgeval para com eles, e
principalmente para com ela, os argumentos eram a favor e contra os dois lados. Ela sentiu que o
cavaleiro ainda não estava em condições de reconsiderar os fatos sob uma luz menos feroz, e calou-se.
Depois de alguns instantes de silêncio, Cláudio de Loménie revelou com uma voz cansada que o Padre
de Marville enviara-lhe igualmente cartas e papéis encontrados com o missionário, e seu breviário. Já
em Paris outras relíquias do mártir foram mandadas para a Igreja de Saint-Roch, pela qual o Padre
d'Orgeval tinha devoção. Ainda não se possuía a capela de viagem, mas sabia-se que ela fora salva pelos
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catecúmenos iroqueses, que a haviam escondido numa aldeia à margem do Ontário. Ela seria mandada
ulteriormente a Quebec.
—E o crucifixo do Padre d'Orgeval? Essa cruz que ele usava ao pescoço e que diziam ser incrustada
com um rubi?
—Os bárbaros a guardaram. Depois, acreditando que, através daquele olho vermelho, Hatskon-Ontsi,
como o chamavam, continuava a olhá-los, enterraram o objeto.
Ela o viu estremecer como um doente febril.
Angélica apanhou a capa, que ele deixava com indiferença deslizar pelos ombros, e envolveu-o com
gestos de mãe com o filho negligente.
—Você está transido de frio. E eu também. Venha, mais tarde continuaremos nossa conversa, se fizer
mesmo questão. Agora, porém, vamos pedir que nos sirvam uma boa xícara de café turco. Você, que é
do Mediterrâneo, não pode desdenhar esse néctar. Talvez seja, como eu, sujeito às febres que se
contraem nas viagens por aqueles lados. Isso lhe fará bem.
Quase carregando-o, ela o conduziu.
Subindo ao encontro deles, a silhueta de Joffrey surgiu, destacando-se em sombra negra contra as
luzes de grandes lanternas.
Loménie deteve-se, como que novamente assustado.
— Ele — disse, numa voz cava. — Ele, sempre tão seguro de seu comando, tão triunfante, tão
diferente de todos nós! Ele e você!... Interrogo-me com angústia: vocês dois não teriam vindo para
acabar conosco, com Sebastião e comigo? E o que por vezes me pergunto. Não teriam vindo para
vencer-nos?
— Que tipo de vitória? — perguntou ela. — E o que também me pergunto! Chega de discursos,
cavaleiro. Vamos beber nosso café, e pare de se atormentar.
CAPITULO III
Reflexões apaziguadoras
Apesar das razões que apresentara a si mesma para ser indulgente com o Conde de Loménie-
Chambord, havia ainda assim duas ou três reflexões e admoestações que Angélica tinha de fazer-lhe,
pois seria prestar-lhe um favor colocá-lo diante de seus ilo-gismos e não deixá-lo divagar demais.
Pela manhã, avistando-o de longe, quando ele saía da pequena capela de Tadoussac, cujo sino gelado
anunciara a missa e soara o primeiro ângelus, fez-se conduzir à praia.
Sob o dia ensolarado, ela notou melhor a súbita ação do tempo em sua fisionomia. Os belos cabelos
castanhos não haviam escanecido, mas seu brilho como que se estiolara. Ele pareceu-lhe mais tocante
nessa espécie de lassidão, com a magra silhueta envolta numa capa cinzenta, achatada no ombro por
uma cruz bordada em tecido branco, emblema da Ordem de Malta.
Ele foi a seu encontro com aquele sorriso de acolhida cheio de encanto que ela lhe conhecia tão bem.
Inclinou-se e beijou-lhe a mão, agradecendo-lhe sua bondade para com ele, o que provava que se
lembrava confusamente da cena da véspera, mas que não guardara dela uma ideia suficientemente
precisa para sentir-se constrangido, o que faria com que apresentasse suas desculpas. Mas ela julgou que
não devia fingir-lhe esquecimento.
— Não posso deixar de dizer-lhe, senhor cavaleiro, que o que mais me choca nos discursos que me
dirigiu ontem à noite e o esquecimento que parece demonstrar de certos testemunhos — disse Angélica.
— A primeira vez que fomos a Quebec, suspeitavam que eu fosse a mulher diabólica anunciada por uma
visão da Madre Madalena, do Convento das Ursulinas de Quebec. Ora, dessa suspeita fui inocentada..
Não sou aquela perigosa criatura que devia surgir para a desgraça da Nova França em geral e da Acádia
em particular.
—Isso é mais do que evidente.
—A Madre Madalena afirmou-o, e você foi testemunha de sua declaração inequívoca.
—De fato. Fui um dos primeiros a me regozijar, com sua reabilitação, de que jamais duvidei.
Aparentemente, ele parecia ter esquecido uma parte de suas desagradáveis palavras da noite anterior. £
mais. Ela teria jurado que, no que se referia às acusações que dirigira a ela, não se lembrava de nada.
Desconcertada, sua vindita caiu por terra e ela não insistiu.
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—Fale-me de seu ferimento, meu caro amigo. Ele foi pior, parece-me, do que me foi dado saber, não?
Com um gesto, ele deu de ombros à pergunta.
—Isso não é nada! Uma flecha perdida. Mas tive de voltar para Lachine e Ville-Marie. Lamentei não
ter podido acompanhar o Sr. de Frontenac a Cataracuí. Pois, encontrando-me nas proximidades do
pequeno burgo de Quinté, à margem do lago Ontário, teria podido recolher a capela de viagem desse
soldado de Deus, Sebastião d'Orgeval, morto por sua fé. Em vez disso, só, inútil, imobilizado na ilha de
Montreal, entreguei-me a pensamentos sombrios.
—Que o confundiram. Disso eu creio que você tem consciência e que é a razão, a verdadeira razão, da
perseguição à qual se entregou, em nosso encalço, até aqui, apesar de seu precário estado de saúde. E
não a de vir me dizer coisas penosas. Refugiar-se junto àqueles que lhe são afeiçoados e que o
compreendem não significa trair um amigo desaparecido. Cláudio, somos mais próximos de você do que
muitas pessoas que o conhecem há mais tempo. Lembra-se de nosso primeiro encontro, em Katarunk.
Da simpatia que experimentamos os três uns pelos outros naquele dia. Apesar de você ter vindo com
seus aliados selvagens para nos massacrar e incendiar nossos estabelecimentos.
—Katarunk!... Oh, foi lá que tudo começou!
Ele deu alguns passos, agitado. Contou como ouvira falar deles pela primeira vez e as razões da
campanha de Katarunk. Encontrava-se em Quebec e recebera uma convocação urgente do Padre
d'Orgeval, que se achava então na missão acadiana de Nor-ridgewock, no sul de Kennebec. O jesuíta
pedia a seu amigo, cavaleiro de Malta, e por esse motivo um oficial de alto posto, que tomasse
imediatamente a direção de uma expedição para deter a invasão de um perigoso contingente de
aventureiros ingleses, dizia ele, hereges com toda a certeza, que se instalava nas regiões semidesertas da
imensa Acádia e que logo estaria nas fronteiras da província do Canadá. Era preciso aproveitar a
ausência do pirata que os comandava para desferir um golpe decisivo, apoderando-se de seu mais
importante posto no Kennebec, Katarunk. Sebastião d'Orgeval dirigia-se a seu amigo, o Conde de
Loménie-Chambord, porque o Barão de Saint-Castine, na foz do Penobs-cot, no Atlântico, havia se
furtado a isso, pretextando a distância.
Ele lhe indicava senhores canadenses, oficiais de confiança, que deviam ser convocados com ele:
Ponf-Briand, o Barão de Mau-dreuil, o Sr. de L'Aubignière e, entre os índios batizados, Piksa-rett, o
grande narrangasett, e suas tropas. Loménie organizara rapidamente essa campanha, sem informar nada
a Frontenac. E, desde então, estava meio brigado com o governador.
Ele chegara primeiro a Katarunk e se apoderara do lugar.
Loménie sacudiu a cabeça como se quisesse expulsar uma reminiscência insuportável.
—...Ele queria que, sem preliminares, de chofre, eu os abatesse, eu os apagasse. Suas diretivas, eu
diria quase suas ordens, eram tão instantes e inapelaveis que fiquei perturbado. Eu desejava pelo menos
parlamentar com o Sr. de Peyrac e julgá-lo antes de aniquilá-lo. Foi o que fiz.
—E logo compreendeu que não éramos seus inimigos, que tínhamos sido feitos para nos entendermos
e que sua vinda a essa terra de ninguém seria proveitosa a todos.
—Julguei conveniente seguir uma linha diplomática mais apropriada. Tal como a situação se
apresentava, o massacre teria sido impiedoso e recíproco.-E destruir-nos mutuamente não me pareceu que
beneficiaria quem quer que fosse da Nova França, da própria França ou da Igreja e suas missões, que
vocês tomavam sob sua proteção.
—E isso ele nunca nos perdoou.
—Eu acreditava poder explicar-lhe as razões de minha iniciativa e que ele se deixaria convencer... que
ele compreenderia. Tínhamos sempre agido em conformidade um com a outro, no mais perfeito
entendimento. Ora, dessa vez, subestimando seu julgamento,, eu o atingi mortalmente.
—Por que então, quando nos encontrou em Katarunk, pela primeira vez a pureza de intenções de suas
estratégias lhe pareceu duvidosa, maculada por uma sanha inexplicável,.e-talvez... pela loucura?!... —
acrescentou ela a meia voz, espreitando-lhe a reação.
O cavaleiro protestou com arrebatamento:
—Não! Jamais supus que ele estivesse louco. Deus me livre. Acreditava apenas, asseguro-lhe, que os
dados do acontecimento e as consequências de sua destruição lhe escapavam, e... que ele
compreenderia... que ele aprovaria. Eu era ingénuo...
—Você não conhecia talvez tudo sobre ele. Compreendo que você tenha sofrido uma decepção
amarga. Ele teimou a manter seus projetos belicosos e quase suicidas. E é isso o que o atormenta... que
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lhe causa agora sofrimento? O que chama de sua traição a ele?
Loménie deu alguns passos, imerso em pensamentos.
—Se você soubesse... Se soubesse o que ele era para mim! Éramos tão unidos, e havia tanto tempo!
Quando desejei acompanhá-lo ao seminário dos jesuítas, ele me dissuadiu da ideia. Aconselhava-me a
Ordem de Malta. Assim, durante toda a vida, continuaríamos a nos completar. Ele seria meu guia
espiritual. Eu seria seu braço armado... E, subitamente, pela primeira vez, nesse caso de Katarunk, eu me
esquivava e recusava seu plano.
—Mesmo assim ele foi executado. Pelos cuidados de seus mais zelosos servidores: Maudreuil,
L'Aubignière... Regozije-se. Katarunk desapareceu, incendiada... como ele desejava. E nós mesmos, não
acha que foi um milagre termos conseguido escapar à fúria dos iroqueses, cujos chefes tinham sido
assassinados sob nosso teto?
—Um milagre que vinha corroborar sua lenda de ser possuidora de poderes supraterrestres!...
Mas ele sorria ao pronunciar essas palavras. Ele retomava pé. Ela o apaziguara e o ajudara a ver aquele
doloroso dilema com mais clareza.
CAPÍTULO IV
Os encantos de uma inteligência política — Os mistérios do Saguenay
No dia seguinte, quando a viu novamente, ele conservava o mesmo sorriso e parecia impaciente por
abordá-la. Surpreendeu-a com uma pergunta inesperada.
—Você conheceu o Sr. Vicente de Paulo?
—O Sr. Vicente? — fez ela, embaraçada.
—O santo padre que foi conselheiro e confessor da rainha-mãe durante a menoridade de nosso soberano
e que fundou tantas obras de caridade!
—Nessa época eu era ainda muito jovem e vivia em minha província, tendo pois pouca oportunidade de
encontrar uma personagem tão importante. Mas é verdade que o acaso colocou-me em sua presença...
—Onde foi isso?
—Por ocasião da passagem da corte por Poitiers.
O cavaleiro pareceu encantado.
—Os fatos coincidem. Mas escute-me. E compreenderá por que lhe fiz essa pergunta. Quando eu era
noviço dos cavaleiros da ilha de Malta, na Língua da França, tinha por condiscípulo um postulante como
eu que se chamava Henrique de Rognier.
—Esse nome me lembra alguma coisa. Parece-me que me falaram dele recentemente... ou então... Não,
uma lembrança que me veio num sonho... num pesadelo, parece-me. Mas continue... Você me intriga.
—Ele me contava que sua vocação religiosa fora indiretamente determinada pelo encontro que teve
com o Sr. Vicente, em circunstâncias... Hum!...
Cláudio deLoménie-Chambord alisou o bigode, olhando-a com o canto dos olhos. Parecia que a
história que ia evocar o distraía de seus pensamentos sombrios.
—Ele tinha nessa época dezesseis ou dezessete anos; como servia na corte junto à rainha-mãe, estava
em sua comitiva na cidade de Poitiers... Percorria as ruas a serviço quando o acaso o fez encontrar uma
adolescente de olhos verdes.
—Oh, o pajem!... — sobressaltou-se Angélica. — Aquele que me dirigiu galanteios.
—Então era mesmo você a jovenzinha de Poitiers de que falava tanto aquele cavaleiro? Devo
prosseguir minha narrativa?
—Claro! Mas que coisa excitante! Se bem me lembro, esse pajem não me parecia muito disposto a
entrar para as ordens.
—De fato!... Era um rapaz folgazão, tinha outras ideias na cabeça.
Loménie-Chambord ria.
—Então era você, Angélica, a fascinante menina que ele conduzia ao púlpito de Nossa Senhora, a
Grande, de Poitiers, para lhe roubar alguns beijos e talvez mais.alguma coisa... já que não conseguiu
encontrar outro lugar na cidade, ocupada pela corte e sua comitiva. Brincadeiras que foram
interrompidas pela aparição do Sr. Vicente de Paulo, que, naquele dia, oficiava a missa.
O santo padre passou um sermão nos dois jovens loucos.
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Angélica também ria, embora um pouco corada à lembrança desse episódio de sua adolescência.
Loménie continuou a narrar:
—Henrique de Rognier, consciente de ter vivido um momento fora do tempo, sob o olhar daquele
santo homem, confessou-me que era menos o encontro com o Sr. Vicente que o daquela jovem
desconhecida que presidira a sua metamorfose. Ele lutou durante muito tempo contra o domínio dessa
recordação. Era uma recordação imorredoura, dizia ele. Ficou doente. Julgou-se enfeitiçado. Um dia
compreendeu que na pessoa da adolescente desconhecida, da qual só sabia o primeiro nome, Angélica,
ele encontrara o verdadeiro amor. — O cavaleiro continuou, depois de uma breve pausa: — E,
compreendendo também que jamais tornaria a encontrar esse amor, que nenhuma outra mulher poderia
inspirar-lhe um sentimento semelhante àquele e que, de qualquer maneira, era inútil tentar encontrá-la,
pois nos meios seculares, entre as loucuras da corte, um tal amor não podia nem viver nem se preservar,
decidiu unir-se ao serviço Daquele que é a fonte de todo Amor, e se fez cavaleiro de Malta.
—Muito bem! Eis uma história edificante. Estou feliz em saber que não sou responsável apenas por
desordens, como você pretende. Que fim levou ele?
—Oficial nas galeras de Malta, ele foi capturado durante um combate com os barbarescos e teve a
mesma sorte que nossos irmãos: foi apedrejado nas colinas de Argel.
—Pobre pajem querido! E acrescentou, sonhadora:
—Eu o tinha esquecido.
—Ah! — fez Loménie, com um súbito grito. — E isso o que aumenta sua sedução: sua indiferença
quase cruel. Como se es
quece daqueles nos quais planta sua lembrança como uma adaga que eles não conseguem arrancar do
coração! Você é descuidada, você mesma o confessou. Menos de um!
Ele a considerou com uma interrogação ansiosa no olhar.
—Para os outros, que é você?...
Depois, sem esperar a resposta, murmurou, com exaltação:
—Um sinal de contradição. Um apelo, um grito que nos arranca de nós mesmos, como aconteceu com
esse jovem Rognier.
—Ah! Não comece a se atormentar — protestou Angélica. — Vocês também, meus senhores, se
afogam em contradições; para mim vocês são todos uns egoístas e ingratos, e choram pelo que não
tiveram, sem saber se alegrar com o que lhes foi concedido... Você me fala como se eu tivesse passado a
vida a destruir corações, à vontade, sem ter eu mesma sofrido por amor. Deus seja louvado que, de
todos, somente a um pude amar de maneira inolvidável. Nem sempre estava a meu lado, e eu sofria
esses tormentos da separação que você pensa ser o único a sentir.
—Eu sei. Feliz aquele que você não pôde esquecer. O amor que os une é daqueles que nos fazem crer
no inexprimível. A noite passada, eu os olhava um junto ao outro e sem cessar seus olhos se
certificavam da presença um do outro ou se alegravam por se ver. A noite em que chegamos com o Sr.
d'Avrensson, avistei suas silhuetas unidas num beijo, no balcão do castelo de popa, e uma dor, cujo
sentido me escapou, me apunhalou. Eu me julgava curado, imunizado por minha raiva contra você. E
aqui está! E novamente eu me sinto melhor e feliz de viver. Você triunfa sempre com sua beleza loura.
Triunfa sem sequer dar-se ao trabalho de conquistar. Inconsciente das rupturas que consumou, das
tragédias que fez eclodir, dos destinos cujo curso mudou! Ele tinha razão de achá-la invencível e
destruidora de sua obra. Morreu no barrote de torturas, amaldiçoando-a, e você não dá importância ao
anátema que lançou contra você na hora da morte?
— Teria mesmo pronunciado esse anátema?...
— Você tacharia o Padre de Marville de mentiroso?...
— Não, mas...
Como comunicar-lhe a impressão, que nunca pudera evitar, de que uma mentira roía como um verme o
interior daquele fruto?
Apesar de seu lado trágico, a cena que se desenrolara na antecâmara de Mrs. Cranmer, em Salem,
deixava-lhe uma leve lembrança, a de ter assistido a uma comédia macabra, voluntariamente exagerada,
se não fosse pelo jovem canadense Emanuel Labour, que caíra vencido por um desmaio que não era
fingido. Pouco depois ele morreu em circunstâncias misteriosas. Exceto por isso, ter-se-ia acreditado
estar num espetáculo.
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E no mesmo instante teve de morder os lábios para não sorrir, pois, quanto mais pensava naquele
confronto, tanto mais o lado risível lhe aparecia. Dentre as personagens símbolo do papismo e do
calvinismo puritano, o jesuíta e o doutor em teologia bíblica, Samuel Wexter, era difícil dizer quem
excedia em fanatismo, enquanto um gigante selvagem iroquês, descalço no brilhante la-jeto preto e
branco, tocava com o penacho de sua cabeleira eriçada as traves bem enceradas de um borne da Nova
Inglaterra, ao passo que, nos degraus da escada, como nas arquibancadas de um teatro, se escalonavam,
sentadas, as mulheres da casa, entre as quais duas quacres mágicas, Ruth e Noémia, e ela mesma, em
roupas de parturiente.
As imprecações do jesuíta tocaram-na menos que a surpreenderam. Elas se apagavam a ponto de cair
no esquecimento. Foi a partir desse momento que ela sentira que o movimento da vaga, que não cessara
de subir na direção deles atingindo-os com seus golpes, revertia, que o refluxo começava, pois o que
contava era a mensagem contida no wampum que o chefe das Cinco Nações iroquesas, Utakê, enviara a
Joffrey de Peyrac:
"Seu inimigo não existe mais".
Junto a ela, o cavaleiro de Malta, distraído por um instante pela história de Henrique de Rognier,
recaía em sua obsessão.
—Sebastião dizia: nosso objetivo é fazer reinar em toda a terra uma só fé. Eu deveria tê-lo apoiado até
o fim.
Ela colocou a mão em seu pulso.
—Meu caro Cláudio, nós somos, você e eu, os herdeiros de quase dois séculos de guerras de religião
que afogaram a Europa no sangue e que nada resolveram quanto a fazer reinar uma só fé. Não
poderíamos tentar construir o Novo Mundo em paz?...
—E podemos? É verdade que você é bastante convincente. E não o nego... Se lhe dessem ouvidos...
Era também o que Sebastião temia em você: desviar os espíritos da grande obra de evangelização. Ele
considerava um perigo o fato de sua sedução encobrir uma inteligência política.
—Política?! — exclamou ela.
Ouvindo-a rir, ele voltou-se vivamente para ela, que lhe surpreendeu o verdadeiro olhar, brilhante e
suave, cheio de interesse por tudo o que vinha dela, e essa expressão que ele às vezes tinha ao vê-la, ao
mesmo tempo sonhadora e fascinada, como se, descobrindo um aspecto inusitado da criação, ele se
interrogasse sobre os caminhos desconhecidos, mas cheios de encantos, nos quais seu encontro o levava
a se embrenhar.
—Seu riso! Ele parece lançar todos os nossos tormentos à obscuridade e revelar-nos a vontade de
amor de Deus para conosco.
—Isso é magnífico. Mas, em vez de sempre me cumular, depois de poderes tão negros, de influências
tão santas, você poderia pelo menos ficar num meio-termo, este que vou propor-lhe: considerar que
nossa presença no Novo Mundo e nossa ingerência, se assim a chama, trouxeram até aqui mais bem do
que mal, mais paz e vitória do que perturbações e desastres. O papel de um monge guerreiro não é lutar
pela paz dos povos e dos oprimidos? Assumir a guerra de defesa é uma obra piedosa, e é preciso
considerar-lhe os objetivos e a necessidade com cuidado, e só decidir-se pela espada em última
instância, você vai reconhecê-lo. Inteligência política, você diz. Pois bem, se denomina política o fato de
uma mulher se permitir refletir sobre a sorte do mundo e o futuro que os soberanos da terra preparam
para nossos filhos, tem razão.
Era uma obrigação imperativa para uma mulher encarar em que sociedade iriam viver as crianças que
ela pôs no mundo. Angélica afirmou que a responsabilidade de uma mulher parecia-lhe maior ainda
nesse domínio que a dos homens e, aliás, que entre os iroqueses as mulheres tinham voz ativa.
Mas, se o Padre d'Qrgeval, no que lhe dizia respeito, vira-a como alguém que conduzia as tropas ao
combate, não, esse tempo já pássara para ela.
—Nem por isso você deixou de deter minhas tropas — disse ele —, atirando em meus homens no vau
de Katarunk.
—Era uma questão de habilidade em atirar. A decisão de detê-los vinha de meu esposo. Eu não
conhecia nada sobre a América, que eu julgava deserta, ai de mim, ou pelo menos povoada de
refugiados, como nós, que não teriam gutros inimigos além da natureza selvagem. Ai de mim! Eu estava
completamente enganada. Não bastavam a invernada e as rivalidades já bem estabelecidas entre a França
e a Inglaterra. Era preciso também que medíssemos forças com um santo. Sou apenas uma mulher, estou
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lhe dizendo.
—E uma mulher adorável.
Novamente perturbado diante dela, ele lhe beijou a mão rapidamente.
—Perdoe-me! Eu não passo de um pedante. Minha conduta é imperdoável.
Passaram desse modo uma parte dos dois dias seguintes a discutir, seja em terra, andando ao longo da
praia, seja a bordo do Arc-en-Ciel, passeando pelo convés depois de uma refeição partilhada com o
Conde de Peyrac e os oficiais, ou ao sair de um ofício na pequena capela.
Algumas vezes riam-se, reencontravam a convivência de uma amizade já longa e que se criara
espontaneamente, e por vezes Loménie recaía em suas melancolias e angústias, como se despertasse
subitamente a bordo de um precipício.
Havia um fantasma entre eles, mas, graças a essas conversas, Angélica conseguira fazê-lo encarar a
situação de modo mais lúcido e sem subterfúgios. Conseguiu fazê-lo confessar que reconhecia que
Sebastião d'Orgeval sempre professara em relação às mulheres um sentimento de desconfiança e, sob
uma aparência policiada, e por vezes encantadora para com elas, uma hostilidade fundamental.
—Ele era tão feliz! — suspirou Loménie. — Órfão de mãe, eu soube, segundo confidências suas, que
sua infância foi cercada apenas por horríveis criaturas femininas, grosseiras ou possuídas pelo espírito
do Mal, lúbricas e até feiticeiras. Desconfiando da Mulher, ele desconfiava da Beleza e, mais ainda, do
Amor...
—Uma trilogia à qual ele parecia ter dedicado um ódio impiedoso.
A palavra "ódio" pareceu chocar Loménie, mas ele evitou contradizê-la.
Andavam aquela noite novamente em direção ao Saguenay, depois de um ofício noturno que reunira
para o rosário da Virgem Maria ceifadores cansados e selvagens, novamente desembarcados do alto
Saguenay com suas peles para o comércio.
No dia seguinte, o Conde de Loménie retomaria o caminho para Quebec, enquanto a frota com os
homens de Gouldsboro, depois de reunir seus tripulantes; ergueria velas para continuar a descer o rio-
mar Saint-Laurent até o golfo do mesmo nome.
Eles discutiam, menos para se convencer que para trocar suas impressões, confessar um ao outro a
inquietação e a tristeza partilhadas.
—Você é uma criatura iluminada — repetia o Conde de Loménie —, não pode compreender essa
personagem.
—Mas você também, Cláudio, foi uma criança iluminada. E eu acho que foi por amá-lo que esse
sombrio adolescente do Dau-phiné tinha necessidade de você, que você estivesse a seu lado para
iluminá-lo. Ele o atraiu para o Canadá para isso. Não se deixe arrastar- às trevas de sua tumba.
—Como você sabe que ele era do Dauph;ng? — perguntou Loménie, surpreso.
—Creio que alguém me disse...
Mas ela pensava que sabia muito mais sobre a infância de Sebastião d'Orgeval do que o próprio
Loménie. E ele a considerou com uma mistura de inquietação e de admiração, parecendo novamente
invadido pelo receio de que ela possuísse poderes de adivinhação satânica ou de habilidade
maquiavélica, como quisera convencê-lo D'Orgeval.
—Seja como for — continuou ele —, parece que sua aparição fez morrer entre nós, ele e eu, esse
entendimento, quebrou esse elo que nos unia desde nossa juventude e que nos ajudara até então a viver e
a engrandecer nossa vida pelos caminhos da conquista dos povos e do serviço de Deus. — Depois de
uma pausa, ele continuou: — Retornando a Ville-Marie após o anúncio de sua morte, vi minha desgraça.
Eu perdera tudo. Você me escapava enquanto mulher que inspirava meu coração, pois era a esposa de
outro, ao qual era inútil disputá-la. E ele também me escapava, meu irmão que eu deixara, exilado ao
longe, sem que eu elevasse minha voz para defendê-lo. Proaunciando-me por você, eu o havia ferido.
Não tentei explicar-me com ele. Não podia dizer-lhe o quanto eu lhe devia... E ainda hoje sinto-me
culpado por estar pronto a qualquer coisa para obter de você um simples sorriso, um gesto de amizade
como aquele que deu aquela noite comigo. Somente isso, eu lhe asseguro, e isso é absurdo.
—Absurdo?!... Por quê? O absurdo é se sentir culpado com tão pouca coisa... Os gestos de amizade
reaquecem o coração. E bom sentir-nos cercados por simpatia, assim como é também natural sentir-nos
feridos pela antipatia. Não teríamos direito senão aos desacordos, em nossas relações com nossos
semelhantes?... Em seu receio dos sentimentos afetuosos, seu rigorismo logo se tornará pior do que o
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dos puritanos, calvinistas, ou essa gente da Reforma que você censura tanto. __ A carne... — começou
Loménie. Mas Angélica explodiu numa risada, gritando:
—Basta, basta de sermões!... A carne... É maravilhoso. Felizmente somos carne. — E, puxando-o pela
mão, ela o conduziu até a extremidade do promontório.
—E agora, olhe...
—O quê?
A falésia caía a pique sobre a superfície da água, que se alastrava na foz do Saguenay. Mais acima, as
flotilhas de canoas haviam sido arrastadas para a margem na estreita praia. Mas daquele lado, totalmente
aberto, o céu ainda estava claro, num tom amarelo de erva-cidreira, e a superfície do rio brilhava como
laca chinesa.
—Bastaria que vocês, religiosos, contemplassem a beleza deste horizonte para se comoverem. Mas há
mais. Eu sinto que elas estão aí.
—Elas, quem?...
—Espere...
No mesmo instante, viram uma silhueta obscurecer o estuário, deslizando sob a água e desaparecendo,
depois outras, numa dança harmoniosa semelhante a um sonho, até a eclosão de um gotejante domo
prateado que se arqueou como uma ilha brotando das profundezas do mar, para mergulhar de novo,
dirigindo para o céu uma cauda imperiosa com nadadeiras gémeas em forma de asas.
—As baleias!
O espetáculo era raro. As baleias haviam fugido fazia mais de meio século. Mas acontecia de as mães
retornarem em direção às profundezas geladas do Saguenay para desovar seus filhotes ou para ali
brincar em paz, alegremente, com algumas companheiras.
Angélica prometeu a si mesma que um dia voltaria com os gémeos, quando eles estivessem mais
crescidos.
CAPÍTULO V
No abraço do rio — Uma assembleia de amigos e
outra de inimigos — "O importante é estar vivo"
Na noite em que chegaram, Joffrey de Peyrac pediu a seus visitantes que ficassem para cear com ele
no salão do Arc-en-Ciel, e o próprio recoleto aceitara sem rodeios, assim como o truculento piloto do
Saint-Laurent, o sr. Topin, e um de seus filhos, pois os viajantes estavam cansados de um dia inteiro de
navegação no rio, que não era coisa simples para uma grande barca de uma vela, mesmo descendo a
corrente.
"Essa m... de rio", dizia Topin com "uma mescla de estima e de raiva; "um dia esse monstro vai acabar
nos devorando..."
Tendo mais uma vez escapado aos abismos, esses homens do rio expandiam-se sob o teto da grande
sala de jogos, em torno de uma mesa bem provida, servida circunspectamente pelo despenseiro Tissot e
seus ajudantes. O balanço do navio tinha a medida exata para que se sentisse estar ancorado e não em
terra, cuja estabilidade tem algo de duro e de inquietante; para que se percebesse que o rio continuava a
rodeá-los, aquele monstro frio, aquela serpente, abaixo e em volta deles, mas apenas a embalá-los como
bebes em seus bercinhos, com um leve balanço que fazia estremecer o vinho francês nos grandes cálices
de cristal e reverberar reflexos de rubis ou de ouro quando eles eram erguidos para beber à saúde uns
dos outros e a felizes viagens.
Quebrando as regras da etiqueta, que indicavam seu lugar de anfitriã ou no centro da mesa, diante do
Conde de Peyrac, ou numa das extremidades, com ele sentado na outra ponta, Angélica sentara-se a seu
lado, como teria feito aquela noite, se não tivessem visitas.
Acabara de reencontrá-lo e queria ficar mais próxima a ele, aconchegar-se bem perto de seu calor, no
perfume sutil de sua presença. Gostava de captar o odor de suas roupas em seus gestos, o odor tépido e
refinado de seus cabelos quando ele mexia a cabeça, o odor de seu hálito quando se voltava para ela.
Experimentava então o desejo de beijos secretos e prolongados, longe dos olhares de todos.
Era evidente que ela se comprazia em se colocar no âmbito de sua presença masculina. Mas paciência!
15
Quanto mais aprendia a viver ao lado dele, menos vontade sentia de partilhá-lo com os outros. Ora, a
existência de ambos colocava-os a todo momento num pedestal, à testa de uma vida pública das mais
movimentadas, e Angélica tinha de dar provas de obstinação e de imaginação para não ser requisitada a
todo instante por deveres cerimoniais. Nisso Joffrey a ajudava, pois também ele cuidava de preservar o
máximo possível suas horas de intimidade. A viagem no rio, como um casal, lhes dera grandes espe-
ranças. Mas ele não pudera deixar Tadoussac com rapidez suficiente, e eis que as pessoas o procuravam.
O Sr. de Frontenac enviava mensageiros para transmitir ao Sr. de Peyrac notícias de sua expedição e
seus agradecimentos pela ajuda que lhe dera. Loménie-Chambord vinha confiar-lhe seus tormentos e
dúvidas.
Angélica decidiu beber para esquecer uma decepção que lhe entristecia o coração, não aquela, afinal
mínima e passageira, de não poder estar por mais tempo sozinha com seu marido, mas, somada à
melancolia de ter deixado a filha, a preocupação de ter encontrado o Cavaleiro de Loménie-Chambord
tão mudado e abatido...
Tinha necessidade de algumas libações para dissipar sua terrível impressão.
Seu coração ainda estava confrangido pelos soluços daquele homem, aquele guerreiro de coração puro
e valente que derreara em seu ombro, e as palavras que ele pronunciara em meio às lágrimas eram como
o eco de um lamento que um outro, invisível e perdido, teria deixado escapar.
Ela bem que gostaria de esquecer aquele outro de que tanto se falava, aquele Sebastião d'Orgeval que
sempre ressurgia no momento em que começavam a se reequilibrar e que, morto ou vivo, lhes suscitava
incessantemente os piores aborrecimentos. Ela se sentia menos à vontade ainda pelo fato de as
confidências de Loménie lhe despertarem, a despeito de si mesma, piedade, ainda que soubesse que
havia por trás disso uma armadilha de que precisava desconfiar. "Ele", o jesuíta e Ambrosina sempre ha-
viam tirado partido de sua generosidade, de sua bondade, para prejudicá-la... E ela quase se deixara
apanhar...
Ela bebeu portanto, como teria engolido um remédio, um primeiro copázio de um vinho delicioso e,
pouco depois, sentiu que sua alegria retornava. Poderia desempenhar-se melhor, interessar-se pelas
histórias de D'Avrensson, dar a réplica ao exuberante Topin, que sempre tinha histórias de naufrágio
para contar.
Aquela noite num navio com hóspedes de passagem e oficiais de sua tropa lembrava-lhe outro
banquete naquele mesmo lugar, alguns anos antes, quando subiam o rio, dirigindo-se para a capital da
Nova França: Quebec.
Tinham festejado com fausto e loucura, "à francesa", e cada um se sentira feliz o bastante para
confessar segredos inconfessáveis de sua vida, o que estreitara seu entendimento em meio à neblina de
novembro, espessa e glacial, enquanto continuavam a penetrar em surdina nas possessões do rei da
França no Novo Mundo.
Como outrora, ela elevou seu cálice de cristal da Boémia, inesperado presente do Marquês de Ville-
d'Avray, e, através dos rubis do vinho de Borgonha, viu o rosto de seus hóspedes nessa noite, pessoas de
boa sociedade e que não mais constituíam uma ameaça potencial para eles. Naquela noite todos não
passavam de uma assembleia de franceses, bons amigos, que se regozijavam com seu reencontro nos
confins da fronteira de seus imensos territórios respectivos, com uma porção de novidades para contar
um ao outro e lembranças comuns a evocar. Bastava lembrar a famosa noite do ataque dos iroqueses a
Quebec, durante a qual Angélica ajudara o Major d'Avrensson a salvar a cidade enquanto o Sr. Topin
corria ao longo do rio para apagar os fogos que balizavam o contorno da praia.
Ela via o Cavaleiro de Loménie-Chambord animar-se contando a batalha do riò Saint-Charles, falando
do convento dos reco-letos transformado em fortaleza. O monge, em seu burel, lembrava-se dos
detalhes. Religioso simples, bem-comportado, já no Canadá havia mais de vinte anos, ele pedira uma
zurrapa para beber, o que não o impedia de se elevar ao nível da jovialidade geral.
O Sr. d'Avrensson fora encarregado pelo governador de agradecer ao Sr. de Peyrac por ter-lhe prestado
o insigne serviço de vigiar e prevenir um eventual ataque iroquês a Quebec. Ele fez a seguir a narrativa
da expedição do Sr. de Frontenac.
Em Cataracuí, no lago Ontário, onde mandara construir um forte rebatizado com seu nome, estava em
seu feudo, em suas terras.
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Naquele ano, como nos precedentes, Frontenac recebera sessenta chefes iroqueses para um encontro
amistoso. Era já uma vitória tê-los feito vir e se reunir. O iroquês é generoso, mas obstinado.
Entretanto, gosta de negociar tanto quanto de lutar. Era por isso que o governador da Nova França os
segurava. Tratava com dureza, mas com generosidade, a esses soberbos iroqueses. O Sr. d'Avrensson,
presente a suas manobras, não se cansava de descrever-lhe as sutilezas e as fases.
Acabaram por arrancar-lhes a promessa de permanecer em paz com seus vizinhos, os utauais e os
andastes, e de parar de massacrar sistematicamente os huronianos, ou o que deles restava.
Frontenac tinha a capacidade de admoestar os índios sem enfurecê-los. Sua vivacidade, sua maneira de
brincar alegremente com seus filhos os enterneciam. Eles morriam de rir quando o ouviam executar
perfeitamente seus sassakuas, seus gritos de guerra, que congelavam o sangue nas veias.
Para colocar-se em posição de conferenciar com sabedoria e lucidez, fizeram primeiramente dois
grandes festins, desses festins em que não se comia nada, limitando-se a fumar, e que eles chamavam
"festins" de devaneio". Cabe dizer que saíam deles mais bêbados e trôpegos do que após as mais
desenfreadas libações, pois usavam um tabaco preto e duro que impregnava a garganta durante três dias.
Depois começaram os verdadeiros festins. Aí novamente notava-se a semelhança entre franceses e
índios, e principalmente iro-queses. "O gosto pelos festins", antes ou depois da.batalha.
A cabeça do maior cão cozido foi dada ao Sr. de Frontenac, que a comeu até os olhos, o que não era a
menor de suas ações heróicas.
Peixes diversos... Tomando-se o cuidado de não jogar as espinhas no fogo por causa dos espíritos das
águas, que poderiam ficar aborrecidos.
Depdis de colocar numa grande fogueira o maior caldeirão que possuíam e no qual haviam cozido
pedaços enormes de carne, os três grandes chefes, armados de um porrete, juntaram-se para empurrá-lo e
derrubá-lo. Gesto simbólico, virar o caldeirão de guerra significava: "A guerra acabou. Aceitamos a
paz".
Retirando com uma cabaça o cozido que ficara no fundo, os chefes acentuaram a solenidade de seu
gesto, distribuindo essa bebida, muito encorpada e de gosto excelente, aos "principais" entre os
franceses, de acordo com um costume que pedia aos antigos inimigos que se nutrissem da própria
rendição de seus adversários, pois a chamavam de "caldo dos vencidos", e alguns insinuaram, numa
brincadeira de mau gosto, que talvez estivesse temperada com ossos e carnes humanas dos recentes
massacres, o que fez empalidecer os jovens oficiais recém-chegados ao Canadá.
Em suma, haviam enterrado o machado de guerra.
Sob o teto de madeira de lei do salão do Arc-en-Ciel, os convivas aplaudiram.
Mais uma vez, Frontenac mostrara-se audacioso e hábil a sua moda, que fazia tremer seus fiéis, mas
que visava sempre o interesse fundamental da colónia.
Antes de deixar os iroqueses voltarem a seu vale nos Cinco Lagos, houve troca de wampums e de
presentes.
Eles recusaram o sal, um artigo precioso, no entanto, pois, diziam, ele provocava sede, e a água os
deixava pesados; cuidavam da flexibilidade de seus músculos, a fim de correr e puxar o arco melhor.
Nunca sentiam sede. Seu insosso sagamité de milho cozido, condimentado com pequenos frutos ácidos,
bastava-lhes.
Em compensação, aceitaram o presente, para eles luxuoso, de vários sacos de farinha, pois apreciavam
muito pães de trigo. Um padeiro os acompanharia até seus domínios, para fabricar-lhes, no início do
inverno, belas rodas de pão, que seria conservado durante todo o mau tempo.
Frontenac lhes deixou também um armeiro com dois companheiros, que os seguiriam até seus
povoados de casas compridas para consertar suas armas de fogo e amarrar seus machados.
Como bom gascão que apreciava a vida, o Sr. de Frontenac gostava muito desses selvagens.
A alegria era geral em torno da mesa. A expedição anual fora bem-sucedida.
Para Angélica, a presença de Nicolau Perrot entre eles evocava suas dificuldades iniciais de
relacionamento no Novo Mundo, os perigos que tinham enfrentado. Em comparação, ficou surpresa com
a obra admirável que se realizara desde aquela época. Pois nessa noite eram todos franceses reunidos
para beber a seu soberano e ao êxito das expedições do Governador Frontenac para estabelecer a paz do
continente bárbaro, para felicitar-se dos tratados que aproximavam, sob o manto de suas sombrias flo-
restas já disputadas e divididas, povos desejosos de se compreender, de trabalhar juntos para uma vida
um pouco melhor.
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Todos os seus esforços iriam ser questionados novamente pelo fato de, no fundo dessas mesmas
florestas, ter-se perpetrado o fim funesto de um grande jesuíta? O estandarte dele, sua bandeira de
guerra, era marcado por cinco cruzes, uma em cada canto e a quinta no meio, cruzes cercadas de quatro
arcos e flechas.
Ela o vira flamular à frente dos abenakis, enquanto eles se arremessavam ao assalto da aldeia inglesa.
Que o Padre de Marville a desculpasse, mas isso não tinha nada de imaginário. Ela ouvira igualmente
o jesuíta dar a absolvição, no acampamento, àqueles que iriam matar os "heréticos" de Katarunk, isto é,
eles, os recém-chegados. Ela fora entrevista montada em sua égua, que ela se esforçava por reconduzir
ao campo, e eis que esses espíritos habituados aos milagres-e aos prodígios designavam, a pobre Wallis
como a licorne maléfica que anunciava as desgraças da Acádia. Assim começara a surda e árdua luta.
O Padre d'Orgeval fora um homem muito amado pelas pessoas simples, assim como pelos nobres
penitentes,, e Angélica, lealmente, não procurara arrancá-lo do coração de seus amigos nem macular-lhe
a imagem. E, agora que sua morte era conhecida, seu culto parecia reassumir um novo impulso.
Lembravam-se apenas do anátema pronunciado contra ela, esqueciam a perseguição de que tinha sido
objeto, por desconhecerem seu encarniçamento'.
Essa deserção, que ela sentia latente e sem garantia de poder evitar, aumentava o mal-estar que ela
trazia de sua segunda viagem à Nova França, apesar do inesperado encontro com seu irmão mais velho,
Josselino de Sancé.
Seus pensamentos tornavam-se lúcidos e libertos do que tinham de triste. Dessa luta com o jesuíta ela
revia imagens muito belas, ordenadas e grandiosas como as de uma ópera. Wallis, sua égua,
encabritando-se na floresta de outono, o estandarte de cinco cruzes flutuando ao vento e a horda de
selvagens urrando, expandindo-se na fímbria das florestas, percorrendo o vale em direção à aldeia
inglesa.
Belas imagens para uma bela aventura! A aventura de sua vida comum na América.
Ela se voltava para Joffrey, como se ele pudesse ajudá-la a dispersar o voo de seus pensamentos um
pouco loucos. É verdade que ele podia fazê-lo. E, quando estava perto dele, ela escapava rapidamente a
suas apreensões, que frequentemente eram exageradas ou pelo menos prematuras. Ele permanecia calmo
e filosófico. Pois, dizia, ao mesmo tempo que se mostrava vigilante, não se podia passar o tempo
construindo um futuro de catástrofes e traições.
"Como me sinto bem quando estou ao lado dele!", repetia-se ela, aproximando-se ainda mais, quase
tocando-o, e surpreendeu o olhar do Conde de Loménie, a quem não escapava seu movimento carinhoso
e amoroso de mulher, expandindo-se à sombra do homem amado.
Mas ela não podia deixar de olhar para ele, de voltar a ele, a esse perfil de uma virilidade tão perfeita
que para ela não havia homem que pudesse comunicar-lhe tal impressão de força e também de proteção
sem limites.
Sua confiança nele era o fruto de seu amor total por ela, no qual ela acabara por acreditar e do qual
sentia que ele estava habituado — impregnado, dizia ele por vezes —, que o levava a repetir-lhe com
frequência que ela era tudo para ele, o que era a única coisa que lhe importava.
Joffrey encontrava o jeito de beber, franca e alegremente, sem jamais fazer com que sentissem que o
fazia para afastar uma preocupação ou, como alguns, para se vingar de um mundo que lhes desagradava,
no qual só reconheciam amargura. Ele bebia para saborear a excelência do fruto da vinha, dom de Deus,
e se deixar levar a sua amável vertigem, sem fazê-lo por fraqueza. Bebia para fazer companhia a seus
hóspedes, para honrá-los e torná-los felizes, pois a acolhida aberta e o bem-estar dispensado ao viajante
faziam parte dos prazeres deste mundo, de uma arte de viver, de uma trégua obrigatória, para compensar
a hostilidade e crueza reinantes, por outro lado, pela maldita terra.
Quando ele bebia, dir-se-ia que acolhia o vinho como acolhia todos, isto é, como um amigo com o
qual nos alegramos e aprendemos a nos conhecer melhor.
Apenas seus olhos brilhavam um pouco mais, apenas o calor de seu sorriso tornava-se mais
comunicativo, sua expressão, mais mordaz, e mesmo sardónica, como se tivesse se posto a contemplar
do alto a fraqueza humana, com um leve toque de zombaria, mas sem maldade.
Até onde podia lembrar-se, ele tinha sido sempre assim. Já em Toulouse, vira esse brilhante príncipe
das cortes de amor dedilhando seu violão, com seus olhos sorridentes por trás das fendas da máscara,
presidindo à reunião de homens e mulheres, nem todos heróis de romances e princesas de pensamentos
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nobres, longe disso, mas que subitamente eram glorificados, transfigurados pelas magias conjugadas do
canto, da filosofia cortesã, dos vinhos seletos e do Amor, que, convocado ao banquete, distribuía suas
flechas.
Ela conquistara o mais cobiçado dentre eles, Joffrey de Peyrac. Podia dizer a si mesma: "Daqui a
pouco, ficarei a sós com ele".
Não se cansava de contemplá-lo enquanto ele permanecia atento, acompanhando as peripécias da
conversa, na qualidade de perito nessa justa não menos importante que a das lanças ou das espadas,
conhecendo o valor de cada palavra, cada sombra ou luz, crispação ou sorriso que perpassava pelos
rostos.
Havia nele, nessa espreita, alguma coisa do rei.
Mas ele era mais forte que o rei, e mais livre.
"Como eu o amo! O meu Deus, faça com que ele me ame sempre! Sem ele, eu morreria!"
"Bebi demais! Fruto da vinha, que traição você me fez! Será que se pode ver? Todos nós estamos
rindo. Até Loménie! Abençoado fruto da vinha! O importante é estar vivo. E nós estamos vivos!
Amanhã vou dizer ao pobre conde traído que crie coragem. O jesuíta morreu. E ele jamais soube como é
bom beber entre amigos. Ele viveu tão-somente para as trevas. Eis por que perdeu. Senhor, perdoe-me!
Eu deveria apiedar-me de um mártir."
No momento em que deixavam a reunião, sob a neblina estuante de mil gotículas cintilantes, ao se
despedir, um pouco vacilante ao lado de seu mestre e senhor, Angélica leu ou julgou ter lido nas pupilas
de Loménie-Chambord um pensamento que o trespassou como um dardo ao vê-los: "Esta noite eles vão
se amar..."
Sua fisionomia se alterou novamente. Suas faces se encovaram. Nas mesmas circunstâncias, a Diaba,
vendo-os a sua cabeceira, tão próximos e inseparáveis em sua conivência de amantes, soltara seu grito
terrível de desespero enciumado, seu grito de criatura danada para todo o sempre...
CAPITULO VI
Afetos inconciliáveis
Terminava a parada em Tadoussac. Seus visitantes iam novamente partir rio acima. Em dois ou quatro
meses, o inverno voltaria para encerrá-los com seus gelos.
Angélica conversou ainda um pouco com o Cavaleiro de Loménie-Chambord.
Percebendo-lhe a fragilidade, ela evitava atormentá-lo. Gostaria de sacudi-lo para acordá-lo, como a
uma pessoa afligida por um pesadelo.
Ela procurou contentar-se com algumas palavras que ele deixava escapar: "Seus argumentos são
justificáveis...", "Eu não me enganei..."
Mas essa era uma obra que devia ser recomeçada a cada dia que passava.
Certa vez, tirando do gibão uma carta que desdobrou com precaução, pois fora escrita numa casca de
carvalho, ele quis ler-lhe passagens da última carta que o jesuíta lhe enviara, havia já muito tempo, um
pouco depois da partida de Quebec, pouco antes que suas notícias tivessem cessado completamente.
Uma coisa estranha é que nessa última carta a seu amigo de infância o jesuíta não cessara de se referir
ao perigo que a Dama do Lago de Prata representava. Dir-se-ia que estava possuído por uma obsessão e
ummedo:
— "...Dela, você deve recear tudo, meu amigo! É uma mulher de poder, uma mulher política..."
—Deus, que tolice!
Mas Loménie continuava, numa voz suave e implacável, a desfiar o rosário dessas acusações insanas,
cada uma das quais, porém, carregava, sob a aparência de mansuetude, de sábia advertência, sua gota de
veneno.
—"...Poder dos sentidos, desenvolvido ao máximo, e ao qual, como pude observar, você não era
insensível, por mais piedosa que seja sua vida, mas que não a distinguiria das outras mulheres, não fosse
duplicada por uma inteligência que a leva a ambições de poder sobre o espírito dos homens e, o que é
mais perigoso, a se assenhorear de suas almas, o que é sutil e insidioso, pois os conduz a uma
liberalidade culposa em relação a disciplinas religiosas, a imperativos da lei santa ensinada pelo próprio
Deus, um desconhecimento da natureza do pecado que pode levar gradativamente à mais radical perda
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de sua salvação. Mas deixemos isso..."
—Tanto melhor! — atalhou-o Angélica, que o escutava, taciturna.
—"...Não falemos senão do poder político que se oculta sob aparências encantadoras e como que
ignorantes dos difíceis arcanos com os quais se encontram comprometidos os homens encarregados de
dirigir os povos. Responsabilidades que, colocadas em mãos femininas, jamais deram resultados
satisfatórios..."
—Isso é algo que tem de ser pensado... A Inglaterra não teve motivos de queixa contra sua grande
Rainha Elizabeth I.
—"...Mas das quais algumas se apoderam de modo insidioso" — continuava o cavaleiro. — "Ouvi
dizer que nosso rei, dissuadido de confiar nas mulheres nesse domínio, por horror a essas 'frondosas'
enraivecidas que haviam arrastado os poderosos do reino contra ele durante sua menoridade, não podia
suportar que nenhuma mulher, nem a rainha, nem mesmo a mais influente de suas amantes, lhe dissesse
a mínima palavra sobre os negócios do reino. Ora, eu soube de boa fonte que por causa dessa única
mulher, a Sra. de Peyrac, quando ela se encontrava em Versalhes, esposa de um outro fidalgo, o rei pôs
de lado seu mutismo e pediu-lhe muitas vezes sua opinião sobre questões de diplomacia, chegando até a
confiar-lhe embaixadas junto a soberanos estrangeiros..."
O Conde de Loménie ergueu a cabeça e examinou Angélica com uma mímica em que havia ao mesmo
tempo surpresa e expectativa de um desmentido.
Mas ela contentou-se em suspirar.
—Parece que seu jesuíta sabia de tudo — disse ela, após um momento de silêncio. — Tudo... até isso.
—Sim, ele sabia tudo — repetiu Loménie, dobrando a carta com uma lentidão sonhadora. — Esse
dom de adivinhação, de vidência, não nos indica que estamos diante de um santo, cujas adjurações
pecaríamos por desdenhar?
—Quem lhe falou de vidência? — disse ela, dando de ombros. — Ele tinha opiniões em toda parte...
Poderiam ter discutido dois dias e duas noites sem chegar a um resultado satisfatório, aquele que
Angélica desejava alcançar: devolver ao Cavaleiro de Loménie-Chambord a paz de espírito.
Eles giravam em torno do assunto. Ela esperou contudo que esses diálogos não tivessem sido inúteis.
No que lhe dizia respeito, essas discussões com Loménie lhe haviam permitido delimitar melhor, ver de
perto, essa personagem oculta que, mesmo morta, continuava a presidir seu destino, e concluíra por uma
opinião que a ajudava a manter a cabeça fria, pois, mesmo nesse novo mito criado em torno dele, ela
discernia menos força e mais fraquezas. Com o que ela sabia agora a seu respeito, via essa personagem
como um prisioneiro de sinistros mandatos, como o carneiro-guia, cuja beleza dos cornos retorcidos, sua
glória, é uma armadilha que causa sua perda quando eles se entrelaçam nas moitas e não conseguem
livrar-se delas.
O que complicava tudo é que ele havia pertencido à ordem dos jesuítas, uma ordem cujo poder não
parava de crescer. Formada pela elite de todas as nações, era um partido, pela ação enérgica das ideias,
das mudanças filosóficas. Mas também, por sua defesa das leis estabelecidas, das intervenções divinas, o
exercite de Deus, o exército de Roma, isto é, do papa. Cada ordem reli giosa suscitada a cada século não
havia representado esse "parti do" que traduzia o pensamento de sua época e, podia-se dizer sua cor
ideológica? Para o século em que Angélica nascera, a ordem mestra era a dos jesuítas.
Neles se reuniam as evoluções modernas e as recusas essenciais.
Mas no final das contas, pensando nisso, não tinha certeza de que esse ' 'bastião d'Orgeval fosse um
"verdadeiro" jesuíta, como seu irmão Raimundo, por exemplo. Eles eram muito fortes e matreiros, mas.
não tão hipócritas e intolerantes.
Ela antes o teria acusado de ter usado sua posição de jesuíta como um disfarce.
Via-o como que tecido por velhas raízes. Estendia a sombra de antigas maldições sobre uma terra
virgem, recusando por suas atitudes as correntes do futuro que podiam nascer desse Novo Mundo, e todo
aquele que se deixasse absorver por essa sombra, que se queria ao mesmo tempo insinuante e tutelar,
perdia sua oportunidade de alcançar a nova luz.
Tinha sido uma luta entre o que eles traziam, Joffrey e ela, e o que ele defendia, num sobressalto de
feroz autoridade pessoal.
Dessas decisões, o resto do mundo estava excluído. O que ele queria era a única coisa que tinha o
direito de ser preservada, sua vindita, a única coisa a ser aprovada, e sua vingança, a única a ser
executada.
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Vingança contra quem?
"Contra você!... Contra você!...", gritou-lhe uma voz interior. "Mas por quê? O que foi que eu fiz?..."
Sob a enganosa roupagem de santidade, Sebastião d'Orgeval travava um estéril combate que só lhe
dizia respeito e a seus próprios delírios, atrás do qual ela talvez fosse a única a adivinhar seu orgulho
incomentável e a silhueta perniciosa da Diaba. "Ele julga tê-la enviado a nós para seu serviço... Mas foi
o contrário. Era ela que o dominava, que sempre o dominara desde a mais tenra infância..."
Ela pensou nesta expressão: "tenra infância".
E imaginava, com um arrepio, as três crianças malditas nos va-lezinhos florestais do obscuro
Dauphiné. Tudo era escuro naquela história.
Aqueles que D'Orgeval e Ambrõsina atraíam para suas sendas retrocediam, perdiam-se...
Será que Loménie não via isso? Pensou numa frase que ó cavaleiro de Malta pronunciara um dia a
respeito de Honorina, a quem acabara de oferecer um pequeno arco e flechas.
"Apreciamos mimar a inocência. Só ela o merece..."
Tanta delicadeza, tanta finura num homem a enternecera. Hoje isso se estiolara, se evaporara. O jesuíta
estendia sua sombra como a de uma árvore venenosa sobre aqueles que ele queria reconquistar e atrair
para seu túmulo.
A época de inverno de Quebec surgia-lhe como um período abençoado por amizade e liberdades
sorridentes. Apesar de algumas provações, erros e loucuras deste ou daquele, muita coisa boa adviera
daquele tempo.
Ela não estava certa de poder agir sem inabilidade. Ele era um esfolado vivo.
As mínimas palavras ou alusões impensadas podiam fazê-lo oscilar no sentido contrário ao que se
pretendia.
Ela suspeitava que as palavras "amor" e "prazer" eram insuportáveis a ele, excluído do amor, ele que
no entanto se afastara voluntariamente do amor por sentimento mais elevado, que soubera fugir e
distanciar-se dela com uma sabedoria tão serena e digna.
Havia instantes, o que era desolador, em que ele se parecia com Bardagne.
Ela não se conformava em vê-lo decair e perder sua aura.
Mas era obrigada a constatar que não se podia mais discutir com ele todas as questões delicadas ou
deliciosas, como o faziam outrora, quando eram próximos como irmão e irmã, como amigos afetuosos,
de maneira liberal e encantadora.
Parecia que ele não tinha mais vontade própria. Ele, que ela conhecera tão enérgico, tão lúcido e tão
firme diante da tentação do amor, tão seguro de estar agindo corretamente, quando em Katarunk se
aliara a eles, ou quando, mais tarde, os procurara em Quebec, desafiando as correntes de opinião
contrárias, a fim de oferecer-lhes a caução de sua reputação na Nova França, era hoje semelhante a um
navio sem mastro e sem bússola.
Algumas horas antes da partida, ela olhou de frente, quase com lágrimas nos olhos, e disse-lhe:
—Será que o perdi?
Mais uma vez sua expressão se alterou, e dir-se-ia que uma brisa que se elevava arrastava ao mesmo
tempo as fumaças deletérias que asfixiavam sua alma.
—Oh, minha amiga, não! Não pense uma coisa dessas! Como eu poderia viver sem você? Ou ao
menos sem o pensamento de que você tem por mim alguma amizade, que existe e que por vezes pensa
em mim'; ó minha cara e doce amiga! Mas você tem de compreender que sofro com os golpes injustos
infligidos a um amigo que me era muito caro!...
"E aqueles que ele me infligiu, injustos e mortais, rião o fazem sofrer?...", esteve a ponto de retorquir-
lhe.
Mas conteve-se, persuadida da inanidade de sua reflexão, no momento. Além disso, não era de seu
feitio espalhar aos quatro ventos os prejuízos e injustiças que julgava ter sofrido. Existe um pudor e um
orgulho essencialmente femininos no silêncio de certos seres acerca dos ferimentos que recebem. Ela era
como os cavaleiros das lendas que se compadecem das desgraças dos outros, voam em seu auxílio,
ficam indignados com as injustiças que sofrem e, munidos de uma tão santa e generosa vocação de
destroçar os inimigos dos outros, não pensam naqueles que os espreitam, esquecendo-se de sua própria
sorte.
"Fora das lendas", disse a si mesma, "seria bom perceber que nossa armadura se encontra às vezes bem
amassada e que nosso sangue escorre. Eu me deixo emocionar estupidamente pela sorte de meus amigos
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e eles se iludem, sem se preocupar com os golpes que nos são desfechados, com os desgostos que nos
entristecem. Julgam-nos suficientemente fortes e privilegiados para nos consolarmos e nos defendermos
sozinhos."
—Você nem sequer me pediu notícias de Honorina — lançou-lhe de supetão, revoltada. — Senhor
cavaleiro, você me causa pena. E sua mudança de atitude só pode causar prejuízo à causa que defende,
pois não poderei deixar de, mais uma vez, acusar seu jesuíta de ser o causador disso. Acabo de deixar
Honorina, minha filhinha, aos cuidados da Madre Bourgeoys, e ficarei um ano inteiro sem vê-la;
durante-
esta viagem, por uma razão que ainda não compreendi inteiramente mas que nada tem de
imaginária a Nova França me fez cara feia. Eu o procurava em Montreal para encontrar uma palavra de
conforto, e você me fugiu. Entristecida, desço o rio e me afasto por muito tempo. — Depois de uma
pausa, ela continuou: — Julga que era hora de vir me fazer compreender que perdi sua amizade? Como
se isso me fosse indiferente?! Seria desconhecer o apego que tenho por meus amigos e que, ai de mim,
constitui minha fraqueza. Você me trata como mulher política ou mulher calculista, leviana, que sei eu!
Não. Sou apenas uma mulher, e você deveria ficar indignado por ver uma amiga como eu, que cuidou de
você, o salvou, e que teve uma tolice de ter por você uma preferência, algumas fraquezas, pois eu o
achava encantador, por me ver, como dizia, tratada com tanta sanha, tanto ódio, sim...
Ele a interrompeu, segurando-lhe a mão e beijando-a com paixão:
—Ê verdade, tem razão, perdoe-me!
Era essa versatilidade, tão pouco própria do caráter de seu amigo de Katarunk, que a atormentava.
—Perdoe-me! Perdoe-me mil vezes! Eu lhe suplico. Minha conduta é imperdoável. Eu sei, jamais
duvidei. Sei que você está do lado da bondade...
—O que quer dizer que, apesar de suas virtudes, seu santo mártir, nosso adversário, não se privou de
faltar à caridade em suas empresas contra nós, não é? Você o reconhece?
Teria desejado que ele se pronunciasse, que se decidisse a olhar a situação de frente, que fizesse uma
escolha. O que o destruía era sempre oscilar, duvidar.
—E verdade — disse ele. — E, no entanto, havia nele bondade.
—Basta — atalhou-o. — Você me decepciona porque não quer livrar-se de seus tormentos.
E, vendo que ele levava a mão ao gibão, ela julgou que ele quisesse ler-lhe mais uma vez uma carta do
Padre d'Orgeval.
—Basta, estou lhe dizendo. Não quero mais ouvir falar desse homem.
—Não é isso!
Ele a seguiu enquanto ela retomava o caminho para a praia, para voltar a bordo do Arc-en-Ciel, e
tomou-lhe o braço, quase rindo.
—Você está enganada a meu respeito, você também. Saiba que em Montreal fui visitar sua pequena
Honorina na Congregação de Nossa Senhora e que lhe trago uma carta de Margarida Bourgeoys dando-
lhe detalhes sobre a jovenzinha!
Angélica sobressaltou-se, quase o beijou e reprovou-o vivamente por ter esperado até aquele momento
para lhe transmitir essa boa
notícia.
Ele bateu no peito e reconheceu que a fadiga e a precipitação da viagem lhe haviam provocado uma
espécie de entorpecimento da memória, a tal ponto que se esquecera da mensagem de que era portador.
De todo modo, ter-se-ia lembrado. Não teria partido sem entregar-lhe aquele envelope, ter-lhe falado da
menina. Ela não acreditou inteiramente nele. Suspeitou que quisera experimentá-la, fazê-la sofrer,
recusando-lhe uma alegria para se vingar dela, vingar "o outro"... Isso lhe parecia tão pouco... Seu estado
hipocondríaco era muito mais grave do que pensara. Não se surpreendeu ao saber que fora Margarida
Bourgeoys quem mandara procurar o cavaleiro nos sulpicianos, sob o pretexto de entregar-lhe uma carta
com notícias de Honorina de Peyrac a seus pais, antes que eles tivessem deixado a Nova França. Sem
consultar ninguém, ela decidira ir a sua procura.
Ela agira bem, pois, não sem dificuldades, yiu-se reaparecer na última hora o antigo Loménie, de
expressão amável e decidida, e que lhe falou, como só ele sabia fazê-lo, de suas conversas com a jovem
Honorina e entregou-lhe, além do envelope da diretora, uma página de caligrafia da pequena aluna,
coberta por grandes A aplicados, mas bem desenhados e alinhados, que Angélica dobrou e guardou no
corpete como uma carta de amor.
22
Quando a hora da separação se aproximou, o Conde de Peyrac, que havia se eclipsado, trouxe por sua
vez uma missiva que acabara de redigir para Honorina, um grande envelope lacrado com um grande
sinete vermelho, pedindo ao cavaleiro a gentileza de ler pessoalmente o conteúdo a sua filha quando
chegasse a Montreal. Juntou-lhe um anel que retirou do dedo, enviando-o à menina para que ela o usasse
como "sinal de reconhecimento".
—Que ela saiba que permanecemos junto a ela.
Angélica, tomada de surpresa, acrescentou algumas palavras e confiou igualmente uma longa
mensagem verbal para Margarida Bourgeoys e uns brinquedinhos para Honorina.
Loménie pediu-lhes que lhe perdoassem também por ter sido um comensal tão desinteressante. O
ferimento que recebera no início da campanha de Cataracuí enfraquecera-o, pois havia perdido muito
sangue. Sentia frequentemente um^aziq no cérebro. E talvez isso fosse verdade.
No último momento, pareceu dar-se conta de mais um esquecimento, mas foi por brincadeira, a fim de
preparar-lhes uma surpresa.
Mandou trazer e colocar diante deles, na mesa, uma grande caixa quadrada, feita de cascas de árvore
emendadas à maneira indígena.
Retirada a tampa, viu-se uma coleção de figurinhas de madeira, muito coloridas, que o cavaleiro
começou a arrumar uma ao lado da outra; cada figurinha mantinha-se em equilíbrio num pequeno
pedestal, também de casca de árvore.
Ele contou que soubera que o Frei Lucas, do convento dos re-coletos, no rio Saint-Charles, antes de
entrar para o serviço religioso, dedicava-se à escultura e pintura de regimentos em miniatura para
brinquedos de crianças. Decidira-se a encomendar-Ihe alguns soldadinhos de madeira para oferecer
como sinal de acontecimento feliz ao jovem Raimundo Rogério de Peyrac.
— Para seu novo filho —- disse, voltando-se para Angélica e Joffrey.
O franciscano e ele tinham escolhido ilustrar alguns dos corpos da Casa do Rei, cujos uniformes
haviam suscitado a admiração da gente de Quebec quando uma vintena de guardas das companhias
francesas ali aparceram para escoltar o Sr. de La Van-drie, conselheiro de Estado no Conselho dos
Negócios e Despachos, que fora enviado como mensageiro especial do rei. No ano seguinte, o
conselheiro de Estado refez sua viagem — pois os negócios de peles que ele começara a tratar no
Canadá compensavam o desconforto de algumas semanas de navegação; Loménie não hesitara em se
informar junto a ele, assim como junto a um dos anspeçadas ou brigadeiros, comandante dos membros
da escolta, acerca dos detalhes dos uniformes e da variedade das diferentes companhias que
representavam a Casa do Rei, a prestigiosa instituição militar de homens de elite constituída durante
séculos pelos reis da França, cujo renome fazia o inimigo tremer nos campos de batalha.
A variedade e a minúcia de execução das estatuetas suscitou a admiração geral. Passaram-nas de mão
em mão.
Prova tocante, se isso fosse necessário, da afeição que o Conde de Loménie-Chambord tinha por seus
amigos de Wapassu, apesar de sua posição independente, um pouco ligado demais aos heréticos
franceses ou ingleses.
Durante o inverno, o Conde de Loménie não deixara de ir levar sua ajuda à iluminura das pequenas
personagens que Frei Lucas talhava e pintava com o auxílio de um dos filhos do escultor-escrivão Le
Basseur.
— Nosso filho mais novo ainda não deu os primeiros passos — disse Peyrac —, mas posso lhe
assegurar que já está em idade de apreciar um presente tão belo e que ele, como sua irmãzinha, vai se
divertir em contemplá-las e em dispô-las, se não para a batalha, pelo menos para o prazer da revista.
O Sr. de Loménie reconhecia ter passado momentos maravilhosos no calmo convento dos recoletos,
com o Irmão Lucas e seu ajudante, ocupado em compor o pequeno exército, cada um deles utilizando
alternadamente a goiva e o pincel e rejubilando-se antecipadamente com o prazer que haveria de ter um
garotinho em alinhá-los e manobrá-los.
Pelo menos Utakê, o chefe iroquês, que expedira inicialmente o Padre de Marville e sua triste
mensagem para o sul, à Nova Inglaterra, dera um ano de descanso ao pobre cavaleiro.
A estação dos gelos, que privava por cerca de sete a nove meses a província do Canadá de qualquer
correio, fora clemente mantendo-o na ignorância de um luto que o chocara mais do que o previsto.
Ainda que devesse estar preparado para isso, havia muito.
23
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Angélica, a marquesa dos anjos 25 - angélica e a estrela mágica

  • 1. Título: Angélica e a estrela mágica Autor: Anne e Serge Golon Título original: Dados da Edição: Editora Nova Cultural 1989 Publicação original: Gênero: Romance Histórico Digitalização e correção: Nina Estado da Obra: Corrigida O jogo foi um dos costumes mais arraigados que os europeus trouxeram para as terras do Novo Mundo. No Canadá, durante os invernos rigorosos que os mantinham ilnados em suas cidades, a diversão nos salões ajudava a esquecer os perigos, a passar o tempo e a afastar a solidão e o tédio das longas noites geladas. A paixão do jogo entre os colonos franceses, em especial o jogo de cartas, foi de tal intensidade que as autoridades chegaram a proibir a certa altura os jogos de azar de qualquer natureza: "sobretudo a basseta, o faraó, o trinta-e-um, a roleta, o par ou pernão, o quinze, e muitos outros", como ficou registrado nas atas oficiais da época. Mas alguns colonos levaram também outros tipos de baralhos com outras finalidades. Foi num desses baralhos "diferentes", de 78 cartas e figuras simbólicas, usado tanto para jogar como para ler a sorte, que 1
  • 2. Angélica foi buscar a chave de seu inquietante destino. Ainda que depois se recusasse a acreditar no que as feiticeiras videntes de Salem lhe -prometiam, nas misteriosas cartas do Taro... "A Mulher, a Beleza, o Amor!", suspira o Cavaleiro de Malta. "Você é iluminada pelos deuses!" No alto da falésia de onde se avistava o apanhado de casinhas e fortificações de Gouldsboro diante do mar aberto, Angélica sentou-se com as feiticeiras de Salem para a leitura das cartas do Taro. Sobre uma lápide de granito saliente, uma a uma, a vidente dispôs as laminas encantadas que tirara de uma grande bolsa de veludo: a Carroça, o Louco, a Heroína, o Arlequim, a Estrela-de-Davi... Ali estavam representadas todas as forças do Universo. Debruçada sobre seu destino, Angélica divagava, e uma leve vertigem nasceu dessa contemplação. Finalmente, para onde a levaria aquela vida errante? Alcançaria a vitória e o sucesso? "Sua estrela é bela", comentou a jovem maga. "Mas você falará com um homem morto." Únicas a perceber o hermetismo de suas profecias encantadas, as três mulheres se inclinaram sobre a estrela mágica. Uma onda se quebrou à beira da falésia e o vento espalhou uma garoa salgada em seus cabelos. Ao longe, tudo se harmonizava nos contornos da Baía Francesa. As velas brancas dos navios e os barcos de pesca entre as ilhotas passavam devagar sobre o espelho de água. Como num sonho... Angélica e a estrela mágica Anne e Serge Golon Tendo deixado a filhinha Honorina aos cuidados da Madre Madalena de Bourgeoys, no Convento de Ville-Marie de Montreal, Angélica retornara para junto do marido, o Conde Joffrey de Peyrac, que a esperava a bordo da nau-capitânia de sua frota, o navio Arc-en-Ciel, ancorado ao largo do povoado de Tadoussac, no estuário do rio Saguenay, fronteira da Acádia com o Canadá. Os iroqueses estavam pacificados, o Grande Chefe Utakê à frente, depois de longas confabulações e inúmeros cachimbos da paz trocados. Os dois filhos maiores do casal, Florimond e Cantor de Peyrac, permaneciam na corte de Versalhes, onde defendiam com louvor os interesses da família junto ao Rei-Sol, Luís XIV. Uma ameaça, porém, pairava sobre o futuro de felicidade sonhado por Angélica e o amado esposo: seus dois maiores adversários, o Padre Sebastião d'Orgeval e a Duquesa Ambrosina de Maudribourg, mortos ou vivos (pois, em se tratando de criaturas tão diabólicas não se podia afirmar nada com segurança), do meio das trevas continuavam a lhes opor uma resistência encarniçada. OS ESCRÚPULOS, AS DUVIDAS E OS TORMENTOS DO CAVALEIRO CAPITULO I Uma personagem lendária Ele sabia que ela estava pensando em Honorina. E que apenas seu braço viril nos ombros dela, apertando-a fortemente contra ele, podia trazer algum alívio a seu desgosto. Calados, os dois andavam solenemente, ao longo do primeiro convés, vagamente embalados pelo movimento dolente do navio ancorado. As névoas de verão, tépidas mas tão densas quanto as do inverno, isolavam-nos em seu passeio, atenuando os ruídos vindos da margem. Joffrey de Peyrac dizia-se que o humor de Angélica poderia parecer surpreendente a muita gente. Isso lhe agradava. Ela era assim. Um rei a esperava. Em seu palácio de Versalhes, um rei pensava nela. Em meio às honras e à púrpura de uma multidão' palaciana, a preocupação primeira, oculta mas lancinante, daquele que era o mais poderoso monarca do universo ainda era — por força de uma paciência à qual estava resolvido a não renunciar e de uma generosidade que não media sacrifícios — conseguir que Angélica um dia se dignasse, deixando os sombrios e frios antípodas da América, reaparecer em sua corte. 2
  • 3. Mesmo ali, do outro lado do Saguenay, próximo aos confins boreais de uma natureza selvagem, um chefe iroquês, maquilado com suas pinturas bárbaras, com a cimeira formada por seus cabelos orgulhosamente erguida, Utakewata, o adversário mais encarniçado da Nova França, apresentara-se diante de Joffrey de Peyrac e preenchera a maior parte do tempo destinado às parla-mentações de guerra a falar-lhe dela, a quem ele chamava Kawa, a estrela fixa, invocando o testemunho de suas tropas de que aquela mulher cuidara dele e o curara de seus ferimentos em Katarunk, depois de tê-lo salvado do escalpo de Piksarett, o abenaki, seu inimigo mortal. Mais importante que qualquer tratado de paz com a Governador Frontenac, parecia ter sido, envolta pela fumaça das fogueiras e dos cachimbos passados de boca em boca, a exposição de uma narrativa épica, composta já de múltiplos episódios e na qual Angélica, essa graciosa e encantadora mulher entristecida, que naquele momento caminhava a seu lado, se tornava uma perso-nagern lendária. Entre estes dois exemplos extremos — o rei da França, na longínqua Europa, e o chefe índio, que jurara exterminar todos os franceses do Canadá —, Joffrey de Peyrac não ignorava que havia no mundo uma multidão de homens os mais variados, príncipes ou pobres, loucos ou sábios, resignados ou desesperados, mas que, por terem cruzado seu caminho, conservavam-lhe a lembrança como uma luz acesa em sua obscura esperança de felicidade. Por terem ficado fascinados por sua beleza, comovidos por sua voz, alegrados por sua presença, jamais o curso de sua maj drasta existência seria o mesmo. Ora, todos esses admiradores incondicionais teriam ficado muito pesarosos e surpresos se descobrissem o domínio exercido sobre aquele coração, considerado inacessível, insensível, descuidado, por uma menininha de sete anos, de cabelos cor de cobre sob um gorrinho verde, que ela havia deixado longe dali, brincando de roda. Joffrey de Peyrac partilhava sua nostalgia e não a subestimava. Um junto ao outro naquela noite, combinando os passos, deixavam-se debruçar sobre tormentos de coração para os quais sua vida venturosa, perpetuamente entrecortada por responsabilidades futuras e por perigos, quase não lhes deixava tempo. Sentiam-se bem, juntos, dizia-se ele. E lembrava-se do desagrado que lhe causara aquela separação, a campanha do Saguenay, em que o tempo todo se sentira irritado com sua ausência. Surpreso, perguntava-se como pudera, poucos anos antes, quando de sua chegada ao Novo Mundo, resolver-se a deixá-la um inver-no todo em Gouldsboro, enquanto ele se enfiava, com seus homens, no interior das terras. Isso lhe parecia uma aberração naquele momento... Perto dela, a vida se iluminava. Cingiu-a com mais força. Subiram alguns degraus e chegaram ao segundo convés. Continuaram a subir e alcançaram o balcão em forma de meia-lua na popa do Arc-en-Ciel. Uma tonalidade rósea que tingia a névoa anunciava o poente, mas as brumas continuavam opacas, ocultando até as outras embarcações de sua frota. Esta permanecia havia três dias diante de Tadoussac, à espera dos últimos contingentes de soldados e de marujos que regressavam do lago Saint-Jean, escoltando os- mistassins e os nipissings, que não ousavam aventurar-se a descer o rio para comerciar sem sua proteção. E no entanto os iroqueses tinham se evaporado. Deixaram para Joffrey um "colar de contas de porcelana", um wampum em que estava escrito: "Não faremos guerra aos franceses enquanto eles permanecerem fiéis ao homem branco de Wapassu, Tecon deroga, meu amigo". Assim que obteve essa promessa, o conde retomara rapidamente a descida para o Saint-Laurent, impaciente por reencontrar Angélica, que chegava de Montreal, onde deixara Honorina com as madres seculares da Congregação de Nossa Senhora. Fizera mal talvez, quando a encontrara, ao interrogá-la muito a respeito da menina, mas era-lhe muito afeiçoado e começava a sentir sua falta. Angélica caíra numa profunda melancolia. Montreal era muito distante, disse ela, e estava arrependida por ter cedido às instâncias de Honorina, que queria ser interna "para aprender a ler e a cantar". Por mais devotadas que fossem as religiosas da Congregação de Nossa Senhora, era um meio muito diferente daquele que a menina conhecera até então, e ela sofreria. —Mas que ideia foi essa a dela de querer sair de Wapassu?! — exclamou subitamente Angélica, saindo de seu mutismo e erguendo para Joffrey seus olhos aflitos. — Tão pequena, por que essa ideia de querer nos deixar? A mim, sua mãe! A você, o pai que ela finalmente encontrou do outro lado do mundo! Será que não mais lhe bastávamos? Será que não éramos tudo para ela? Ele reteve um sorriso. 3
  • 4. Ali, na popa de um navio, nos limbos de uma neblina dourada pela aproximação da noite, egoisticamente, absurdamente feliz por tê-la toda para si, sentiu-se tocado por sua ingenuidade feminina, essa candura que a maternidade confere às mulheres e que parece marcá-las com um sinal de eterna juventude, como se, antes de serem investidas com essa glória misteriosa, não houvessem jamais vivido. —Meu amor — disse ele, após refletir —, por acaso você esqueceu a lógica da infância? A lógica de sua infância?... Não me contou que, com dez ou doze anos, quis partir para as Américas e que empreendeu essa viagem com um bando de pequenos vagabundos, sem se preocupar nem um pouco, nem você nem eles, com o desgosto e a perturbação que com certeza teriam seus pais, abandonados por vocês? —E verdade. O encontro com seu irmão mais velho, Josselino, reavivara-lhe as lembranças. Ela se reconhecia de bom grado na Angélica' menina de Monteloup. As raízes profundas não tinham mudado. Mas, ao lançar um olhar adulto sobre seu comportamento àquela época, compreendia melhor as preocupações que havia causado a sua família. —Creio — disse ela — que, impelida pela sede de aventura e liberdade, eu não tinha nenhuma consciência do que representava aquela viagem, nem que isso implicava uma separação dos meus. —E você acredita que a pequena Honorina tenha alguma noção desta palavra que nos parte o coração: separação? Ela quer seguir seu caminho, tal como, num passeio, somos atraídos pelas flores de um caminho desconhecido e decidimos ir vê-las, sem considerar que toda a nossa vida vai com isso ser modificada... Penso em mim quando cheguei à adolescência. Eu devia tudo a minha mãe: a salvação, a saúde e principalmente a capacidade de andar, ainda que mancando. Minha primeira decisão, quando me vi apto a andar, foi aproveitar minha nova agilidade para mé lançar aos mares em busca de aventura. Eu fui até a China. Foi lá que conheci o Padre de Maubeuge. Meu périplo durou anos, três pelo menos na primeira viagem, e não acho que eu tenha me preocupado muito, durante esse tempo, em mandar notícias minhas ao palácio de Toulouse. Teria ficado muito surpreso se me dissessem que, ao agir dessa forma com minha mãe, para a qual eu era tudo, eu lhe causara algum sofrimento ou inquietação. Não só jamais duvidara de sua paixão por mim, de tal forma o vínculo que me prendia a ela me parecia indiscutível, mas, triunfando sobre perigos e mordendo os melhores frutos da terra, parecia-me que ela deveria estar ciente de minhas vitórias e minhas felicidades. E agora, quando me debruço sobre aquele período louco e candente de minha juventude através do mundo, dou-me conta de que, na verdade, nunca me passou pela cabeça que eu a deixara. O clarão róseo se apagara. Nuvens passaram, tocando-os com um sopro mais frio. : A confidência que seu marido acabara de fazer-lhe, ele, que tão raramente falava de si mesmo, comovera Angélica, mas, por uma associação de ideias, cuja génese escaparia fatalmente a Joffrey de Peyrac, suscitara-lhe também uma inquietação. Pois ela nunca pudera evitar a certeza de que Sabina de Castel-Morgeat, pela qual ele tivera certa inclinação durante sua estada em Quebec, se parecia com a mãe de Joffrey. A mulher do tenente-geral da Nova França, uma bela meridional de temperamento difícil mas de pupilas de fogo, busto opulento e desejável, usava a cantante língua d'oc do sul da França, linguagem hermética dos gascões. Angélica ficara morrendo de ciúme, mais pela reminiscência materna que Sabina podia despertar nele do que pelo que eventualmente teria havido entre eles. Ainda que houvesse sido ofensivo. Admirava-se por ter esquecido com tanta facilidade... como prometera à própria Sabina. Mas não gostava que alguma coisa fizesse Joffrey lembrar-se. E provavelmente tinha razão, pois, em seguida à evocação que acabara de fazer de sua mãe, como se seus pensamentos tivessem acompanhado os de Angélica, ele pronunciou estas palavras execráveis: —É mesmo, você conseguiu saudar os Castel-Morgeat quando passou por Quebec? Angélica sobressaltou-se e respondeu, meio ríspida: —Como poderia? Você sabe muito bem que eles foram para a França, há dois anos já. Espantado e conciliador, ele concordou. — Tinha me esquecido. Teve notícias deles? Ele estava totalmente indiferente. — Não... Se nem dos presentes tive notícias, como poderia tê-las dos ausentes? Quebec estava vazia. Todo mundo estava nos campos, e não tive nenhum prazer nessa viagem. De todo modo, você não estava lá... e era horrível. 4
  • 5. Ele a envolveu mais uma vez num abraço apaziguador. Seu nervosismo desde sua volta não lhe passara despercebido. Havia nele alguma coisa além de Honorina. Ela escondia uma decepção... ou uma inquietação. Sentira-o desde a primeira noite. Sabia que ela falaria quando achasse oportuno. Mais tarde. Ela deixou cair a cabeça em seu ombro. — Sem você, nada mais tinha graça. Lembrei-me de nossa chegada a Quebec. Não compreendo por que, naquela época, eu tinha tanto medo de ser aprisionada pelas exigências de meu título de esposa do Conde de Peyrac. Tornei a pensar em tudo isso quanj do fui olhar de longe a pequena casa de Ville- d'Avray. Por que eu tinha então tanta necessidade de me isolar, de me sentir livre? — Suponho que estava cansada de ser a rainha de um bando de aventureiros que, no fundo das florestas ou nas margens selvagens, exigia sua atenção dia e noite, gente à qual você se dedicou de corpo e alma, um inverno e um verão inteiros, cuidando dos doentes, curando os feridos, reconfortando os aflitos, suportando seus humores... Isso eu compreendi, e aplaudi, em sua revolta e em sua sabedoria. Ao chegar a Quebec, você podia conhecer uma existência niais agradável. Estava também diante de uma outra tarefa importante. Havia tomado uma decisão que se mostrava necessária, e na qual eu não teria talvez pensado, inconsciente de tudo o que lhe fora pedido, de desafio, a obrigação de conquistá-los, que essa volta ao seio de seus compatriotas representava para você. Para essa obra, você tinha necessidade de se recolher, de reunir suas forças. Enfim, você talvez estivesse um pouco, espero, cansada de um esposo que, por ciúme, fizera pesar sobre você o jugo de sua violência. —Não, eu queria, ao contrário, que você me pertencesse ainda mais, que nos reencontrássemos a sós e não sempre num palco de guerra ou de debates políticos, como estava acontecendo. —Você estava coberta de razão, e foi melhor assim. Muitos imponderáveis ainda nos separavam, e eu me mostrara por demais insensível a seu direito à liberdade, meu belo pássaro selvagem. E você, em sua sagacidade, adivinhava que nem você nem eu éramos pessoas que se deixariam impressionar por compromissos aos olhos de uma sociedade mundana que era preciso seduzir e que ia disputar nossos favores; não confiando em meu amor, para pôr à prova minha fidelidade talvez, você me devolvia também minha liberdade. —E você fez uso dessa liberdade? —Não mais que você, meu anjo! — replicou ele, com uma breve risada. Mas ao mesmo tempo que lhe devolvia esse dardo, que lhe arremessava essa flecha-de-parto, destinada a fazê-la entender que ele não deixara de ouvir certos rumores acerca de seu interlúdio com Bardagne, ele se inclinava para ela e pousava os lábios em seu pescoço, na altura dos ombros. O hálito de Joffrey, o poder de sua boca terna, ávida e mágica, varriam os rancores que, havia muito, se tornavam insensivelmente sem objetivo entre eles. Depois de tantos anos de felicidade, a hora da verdade não significava mais nada. Ela não sabia resistir-lhe. Tudo se abolia e caía por terra. O milagre do desejo, que nunca se apagava entre eles, esse dom dos deuses que lhes fora concedido e que tantas vezes os salvara da ruptura, lembrava-lhes mais uma vez que, apesar das tempestades que, como para todos os demais, podiam assaltá-los e abalar-lhes a fé, um único sentimento permanecia: não podiam mais sobreviver um sem o outro. Ele era tudo para ela. Ela, para ele, era o fim de seu horizonte, o objetivo irrestrito de suas ambições. Assim, encerrados na obscuridade do rio, da noite e das brumas, unidos como uma só pessoa e perdidos no encanto desses beijos, cada um dos quais, mais secreto e devorador do que o anterior, exprimia mil coisas não formuladas, inexprimíveis, como confidências ou gritos, protestos de amor ou confissões desvairadas, de um modo mais delicioso e verdadeiro que a menor palavra pronunciada, eles deixavam esta terra e abandonavam as mesquinhas querelas, os tristes combates do orgulho e da vaidade ferida, que fazem mais vencidos que vencedores, Causam mais feridas incuráveis que benefícios. Ali onde se encontravam não havia mais explicações a dar, perdões a pronunciar. Ao pé do navio, um ruído de remos batendo na água e em seguida se erguendo gotejantes veio arrancá- los de seu deleite. Enquanto o halo de uma lanterna se aproximava, abrindo a obscuridade, viram embaixo uma chalupa deslizando com os seis remos levantados como fantasmas na neblina e que se aproximava e depois desaparecia para abordar o Arc-en-Ciel. —Parece-me que vi o burel de um monge e as passamanarias de um uniforme. Talvez seja uma mensagem do Sr. de Frontenac. 5
  • 6. —Oh! Senhor, por que não embarcamos antes? — gemeu ela. — Oxalá ele não venha novamente pedir-nos socorro. Agora que já fiz meu sacrifício por Honorina, estou com pressa de encontrar nossos conhecidos e nosso maravilhoso domínio de Wapassu. Aguçaram os ouvidos e perceberam, por trás da neblina, que a noite que descia tornava azul-ardósia, opaca e estagnante, vozes e ruídos de cordas e de uma escada sendo manobradas. Os clarões surgiam e se apagavam logo como se tivessem dificuldade em aflorar, como se tudo quisesse recair imediatamente no torpor de um fim de dia de verão com tristezas de novembro, como se, ao abrigo nos limbos cúmplices de Tadoussac, se recusasse a se animar e a se ligar novamente a um mundo cheio de agitação e sobretudo de inimigos administrativos. Nos navios ou na margem, todos tiveram a mesma reação: — O que ele estará nos enviando lá de cima, de Quebec?! Mais complicações?! Finalmente auréolas de claridade iam se firmando, e vislumbraram-se no portaló silhuetas confusas que transpunham a balaustrada e se equilibravam no primeiro convés Bruscamente, Joffrey tomou Angélica novamente nos braços, estreitou-a com todas as suas forças e beijou-a nos lábios, fazendo-a quase perder o fôlego. Depois largou-a e afastou-a com um riso silencioso. Ele se vingava dos importunos que vinham mais uma vez submeter-lhe suas preocupações e disputas. Ou estaria lhe instilando algum viático? Joffrey retomou imediatamente sua atitude ao mesmo tempo despreocupada e distante de mestre do navio. Mas Angélica, reprimindo com dificuldade um acesso de hilaridade, levou mais tempo para reassumir a compostura. Ela afastava da fronte uma mecha inquieta, que persistia em escapar e se encrespar sob o perolado úmido da bruma. Depois, tossiu fracamente para disfarçar seu constrangimento e finalmente decidiu-se a olhar para os recém-chegados. CAPÍTULO II Um discurso inflamado À luz das lanternas que os marujos carregavam, o Conde de Loménie-Chambord estava diante deles. No primeiro momento Angélica viu apenas a ele. Em Montreal, tentara encontrá-lo, mas soubera por Margarida Bourgeoys que ele fora ferido na viagem de Frontenac aos iroqueses. Mas, tendo procurado por ele em vão no Hospital Joana Mance e nos sulpicianos, acabara por supor que o cavaleiro evitava encontrá-la. Por esse motivo sentiu-se agradavelmente surpresa por tornar a encontrá-lo entre os visitantes e adiantou-se para ele sorrindo. Depois, cumprimentou o Sr. d'Avrensson, o rnajor de Quebec, que trazia uma mensagem do Sr. de Frontenac, o qual, segundo ele dizia, estava prestes a voltar a Quebec. O Sr. Topin, acompanhado de seus dois filhos, conduzira os dois oficiais em sua grande chalupa de uma só vela, desde a capital. O religioso que os acompanhava era um recoleto que voltara para a missão de Restigouche, no golfo de Saint-Laurent. O Conde de Peyrac convidou-os a descer à sala de jogos para tomar alguns refrescos antes de cearem em sua companhia. Angélica estendera a mão ao Conde de Loménie-Chambord a fim de tomar-lhe o braço para que ele a conduzisse até o salão de jogos. Mas, como ele permanecesse hirto e plantado como um pedaço de pau, seu gesto permaneceu inacabado. Sua primeira impressão penosa, quando o divisara de longe, confirmou-se. Seus passos não tinham mais a firmeza aliada à leveza própria dos guerreiros de estilo indígena que esse país formava. Seu andar pareceu-lhe vacilante e mesmo pesado a ponto de hesitar em reconhecê-lo nessa silhueta emagrecida, arqueada. Em suma, ele envelhecera. "Seu ferimento, provavelmente..." Ela parou igualmente e ficou junto a ele, deixando os outros se afastarem. —Fale-me de seu ferimento — disse ela. Ele estremeceu e levantou a cabeça. Seu rosto, pálido e marcado, que ela podia ver apesar da penumbra que voltara ao balcão quando as luzes se apagaram, confirmou seus alarmes, mas, vendo que ela ia insistir em pedir-lhe notícias de sua saúde, ele a interrompeu com um gesto imperativo. 6
  • 7. —Sei que você me procurou quando esteve em Ville-Marie — disse num tom abrupto, que ela jamais o vira empregar. — Eu lhe agradeço, Angélica, sua cortesia, mas não teria podido vê-la naquela oportunidade e falar-lhe com sangue-frio. Todavia, mais tarde, soube que não podia deixar que se afastasse e que fosse embora da Nova França sem lhe dizer todas as palavras que me pesavam no coração. É preciso que sejam ditas de uma vez por todas. É um dever, uma dívida sagrada. Por isso, sem estar ainda curado, embarquei para descer o rio antes que sua frota transpusesse os limites da província do Canadá. Ele dava a impressão de pronunciar um discurso repetido palavra por palavra, dias e noites, e que ele sabia de cor. —Enfrentei uma crise terrível, mas agora tudo me parece claro e vou falar. Sei, ademais, Angélica, que você é de fato a mulher anunciada que devia pôr-nos todos a perder. Reavivando algumas lembranças, pude desmontar seu método hábil, de uma engenhosidade perturbadora. Você fez do fato de ser amoral uma virtude. E, já que não tem nem noção do que seja isso, julgam-na isenta de pecado. Você é como Eva: inconsciente. Sem remorsos, pois não teve a intenção. Como segue apenas a seus dogmas, você se absolve de transgredir aqueles que não estejam nas leis. Se não a aprova, desculpa a heresia e se mostra indulgente com o vício, por espírito de justiça, você diz, caridade e alguns pretextos mais. E todos, todos, todos nós caímos na armadilha. Somos impotentes diante de você, como diante de crianças que põem fogo na casa. Ao mesmo tempo que as amaldiçoamos, não podemos querer-lhes" mal por isso: elas não sabem o que fazem!... "Deve ter ficado maluco!", reconheceu Angélica para si mesma, pasma, após tentar inutilmente deter o fluxo de sua diatribe. Mais um vento de loucura que se levantava! Ele continuava, com uma voz monocórdia: —Dir-se-ia que, tão bela, tão vivaz, você nasceu para exaltar a felicidade, para nos devolver o paraíso terrestre, e e.is que somos atirados a uma praia árida, tendo perdido o caminho da Salvação. Tarde demais para compreender que ele, que você, reunindo o encanto de sua inteligência ao de sua graça, levando ambos uma existência contrária à nossa, insistem em quebrar as imagens que regem nossas sociedades e nos dita nossos deveres. —Ora, você quer se calar? — ela conseguiu finalmente intimá-lo com cólera. Enquanto ele atacava somente a ela, não se deixou comover. Não era a primeira vez que um apaixonado frustrado a injuriava e a acusava de todos os pecados bíblicos. Mas não suportaria que ele atacasse Joffrey. Ele não levou em consideração sua injunção e continuou, com uma veemência que se alimentara de agravos longamente abafados: —Por sua vida, todos os dois ridicularizam nossos sacrifícios! Escarnecem de nossas renúncias. —Cale-se!... Que bicho o mordeu, senhor? Se fez a descida do rio para vir me dizer essas patacoadas, poderia economizar suas fadigas. Nem meu esposo nem eu mesma merecemos que nos trate assim. Está sendo injusto, Sr. de Loménie, inutilmente ferino, e não perdoaria tais palavras nem tais pensamentos vindos de um amigo tão querido e que eu julgava tão certo, se não pressentisse que alguma coisa aconteceu que deve tê-lo transtornado desta forma. Num súbito gesto de ternura, ela colocou dois dedos sobre sua face. —Fale, Cláudio — murmurou. — O que está acontecendo, meu pobre amigo? Que foi que houve? Ele estremeceu. —O que houve foi que... ele morreu! Cuspiu essas palavras num estertor, como o sangue de uma chaga interna. —Ele morreu — repetiu, com desespero. — Morreu mártir dos iroqueses... Eles torturaram seu corpo!... Comeram seu coração! O Sebastião, meu amigo!... Eles comeram seu coração! E eu, eu o traí! E, subitamente, ele explodiu em soluços terríveis, soluços de um homem extremamente infeliz e que se privou das lágrimas durante muito tempo. Angélica pressentia essa explosão. Os acontecimentos tinham tomado o rumo que ela receava. A notícia da morte do Padre d'Orgeval, perpetrada um ano antes nos confins do rio Hudson, só recentemente chegara oficialmente de Paris à Nova França. A colónia estava sob o impacto da notícia, e Loménie fora atingido. 7
  • 8. Ela se aproximou e abraçou-o compassivamente. Ele então voltou-se para ela e soluçou, com a fronte apoiada em seu ombro. Ela o abraçou fortemente sem dizer nada, esperando que ele se acalmasse. Sentia que ele se acalmava. E que fora um gesto de compaixão, de bondade e de ternura o que lhe faltara para suportar o anúncio da morte de seu amigo. Ele se rendia. Pouco depois, tornou a erguer a cabeça, confuso. —Perdoe-me. —Não foi nada. Você não aguentava mais — disse ela. —Perdoe sobretudo minhas palavras. Minhas acusações contra vocês parecem-me subitamente fúteis. —E são de fato. —...E minhas suspeitas, insensatas. —Com efeito. —Sinto-me melhor. Não sei o que foi que me deu. Você é uma amiga, uma amiga de verdade. Isso eu sei. Sinto-o. Sempre senti isso. Uma amiga encantadora. E nada me deixa mais acabrunhado do que julgar descobrir subitamente o avesso das aparências e ouvir uma voz que denomina de traição a amizade que lhe devotei. Ele tapava os olhos e parecia aturdido como se tivesse recebido uns socos. —Como não julgá-la temível? — continuou ele, retomando finalmente o tom levemente humorado que era de praxe anteriormente entre eles. — Vim para cá, carregado de certezas e de rigor, dando razão a Sebastião pela desconfiança que ele lhe manifestou, decidido firmemente a fustigá-la com mil palavras que resolveriam para sempre, pela ruptura, a ambiguidade de nossa amizade, da simpatia que censuro a mim mesmo, tanto a que sinto por você como a que o Conde de Peyrac me inspira. E yejo-me chorando em seus braços como uma criança. —Não se envergonhe de seu abandono, cavaleiro. Sem querer pregar num domínio que lhe é mais familiar que a mim, eu gostaria de lembrar-lhe que o Evangelho nos mostra Cristo buscando junto aos amigos um conforto para seus conflitos interiores. —Mas não junto a -uma mulher — protestou Loménie, que parecia um adolescente abatido, vencido por seus conflitos. —' Claro que sim, parece-me — disse ela gentilmente. — As mulheres também estavam lá, no caminho do sofrimento. Não apenas a Mãe, mas também as amigas, as amantes, a prostituta, Maria Madalena. Como você vê, estou em boa companhia... E, já que estamos falando de mulheres, posso perguntar-lhe se recebeu notícias de sua mãe e de suas irmãs? Espero que nenhum luto tenha vindo juntar-se a esse!... Loménie respondeu que sua mãe e suas irmãs estavam bem de saúde. Não tivera tempo de ler com atenção suas longas missivas, pois, ao mesmo tempo, por esse correio dos navios da primavera, chegara- lhe a carta do Padre de Marville, falando-lhe dos últimos momentos de seu amigo de juventude, e ele não se refizera ainda do choque. Pôs a mão em seu gibão, como se o envelope que guardava junto ao peito lhe queimasse. —Luciano de Marville repetiu-me as últimas e terríveis palavras do moribundo... Ai de mim, contra você, Angélica. "Ela é a causa de minha morte." E desde então isso me persegue. Talvez você não soubesse dessas condenações. —Eu as conhecia — disse ela. Angélica explicou-lhe que, encontrando-se em Salem, para onde o chefe dos mohawks enviara o Padre de Marville, estivera entre os primeiros a serem avisados. Apontando para ela, o jesuíta repetira o grito acusador: "É ela! É ela! É por causa dela que eu morro!" Prudentemente, Angélica evitou observar o quanto dejnprbi-do e falso havia em tal acusação. Quando se começavam a discutir as justificativas da hostilidade do Padre d'Orgeval para com eles, e principalmente para com ela, os argumentos eram a favor e contra os dois lados. Ela sentiu que o cavaleiro ainda não estava em condições de reconsiderar os fatos sob uma luz menos feroz, e calou-se. Depois de alguns instantes de silêncio, Cláudio de Loménie revelou com uma voz cansada que o Padre de Marville enviara-lhe igualmente cartas e papéis encontrados com o missionário, e seu breviário. Já em Paris outras relíquias do mártir foram mandadas para a Igreja de Saint-Roch, pela qual o Padre d'Orgeval tinha devoção. Ainda não se possuía a capela de viagem, mas sabia-se que ela fora salva pelos 8
  • 9. catecúmenos iroqueses, que a haviam escondido numa aldeia à margem do Ontário. Ela seria mandada ulteriormente a Quebec. —E o crucifixo do Padre d'Orgeval? Essa cruz que ele usava ao pescoço e que diziam ser incrustada com um rubi? —Os bárbaros a guardaram. Depois, acreditando que, através daquele olho vermelho, Hatskon-Ontsi, como o chamavam, continuava a olhá-los, enterraram o objeto. Ela o viu estremecer como um doente febril. Angélica apanhou a capa, que ele deixava com indiferença deslizar pelos ombros, e envolveu-o com gestos de mãe com o filho negligente. —Você está transido de frio. E eu também. Venha, mais tarde continuaremos nossa conversa, se fizer mesmo questão. Agora, porém, vamos pedir que nos sirvam uma boa xícara de café turco. Você, que é do Mediterrâneo, não pode desdenhar esse néctar. Talvez seja, como eu, sujeito às febres que se contraem nas viagens por aqueles lados. Isso lhe fará bem. Quase carregando-o, ela o conduziu. Subindo ao encontro deles, a silhueta de Joffrey surgiu, destacando-se em sombra negra contra as luzes de grandes lanternas. Loménie deteve-se, como que novamente assustado. — Ele — disse, numa voz cava. — Ele, sempre tão seguro de seu comando, tão triunfante, tão diferente de todos nós! Ele e você!... Interrogo-me com angústia: vocês dois não teriam vindo para acabar conosco, com Sebastião e comigo? E o que por vezes me pergunto. Não teriam vindo para vencer-nos? — Que tipo de vitória? — perguntou ela. — E o que também me pergunto! Chega de discursos, cavaleiro. Vamos beber nosso café, e pare de se atormentar. CAPITULO III Reflexões apaziguadoras Apesar das razões que apresentara a si mesma para ser indulgente com o Conde de Loménie- Chambord, havia ainda assim duas ou três reflexões e admoestações que Angélica tinha de fazer-lhe, pois seria prestar-lhe um favor colocá-lo diante de seus ilo-gismos e não deixá-lo divagar demais. Pela manhã, avistando-o de longe, quando ele saía da pequena capela de Tadoussac, cujo sino gelado anunciara a missa e soara o primeiro ângelus, fez-se conduzir à praia. Sob o dia ensolarado, ela notou melhor a súbita ação do tempo em sua fisionomia. Os belos cabelos castanhos não haviam escanecido, mas seu brilho como que se estiolara. Ele pareceu-lhe mais tocante nessa espécie de lassidão, com a magra silhueta envolta numa capa cinzenta, achatada no ombro por uma cruz bordada em tecido branco, emblema da Ordem de Malta. Ele foi a seu encontro com aquele sorriso de acolhida cheio de encanto que ela lhe conhecia tão bem. Inclinou-se e beijou-lhe a mão, agradecendo-lhe sua bondade para com ele, o que provava que se lembrava confusamente da cena da véspera, mas que não guardara dela uma ideia suficientemente precisa para sentir-se constrangido, o que faria com que apresentasse suas desculpas. Mas ela julgou que não devia fingir-lhe esquecimento. — Não posso deixar de dizer-lhe, senhor cavaleiro, que o que mais me choca nos discursos que me dirigiu ontem à noite e o esquecimento que parece demonstrar de certos testemunhos — disse Angélica. — A primeira vez que fomos a Quebec, suspeitavam que eu fosse a mulher diabólica anunciada por uma visão da Madre Madalena, do Convento das Ursulinas de Quebec. Ora, dessa suspeita fui inocentada.. Não sou aquela perigosa criatura que devia surgir para a desgraça da Nova França em geral e da Acádia em particular. —Isso é mais do que evidente. —A Madre Madalena afirmou-o, e você foi testemunha de sua declaração inequívoca. —De fato. Fui um dos primeiros a me regozijar, com sua reabilitação, de que jamais duvidei. Aparentemente, ele parecia ter esquecido uma parte de suas desagradáveis palavras da noite anterior. £ mais. Ela teria jurado que, no que se referia às acusações que dirigira a ela, não se lembrava de nada. Desconcertada, sua vindita caiu por terra e ela não insistiu. 9
  • 10. —Fale-me de seu ferimento, meu caro amigo. Ele foi pior, parece-me, do que me foi dado saber, não? Com um gesto, ele deu de ombros à pergunta. —Isso não é nada! Uma flecha perdida. Mas tive de voltar para Lachine e Ville-Marie. Lamentei não ter podido acompanhar o Sr. de Frontenac a Cataracuí. Pois, encontrando-me nas proximidades do pequeno burgo de Quinté, à margem do lago Ontário, teria podido recolher a capela de viagem desse soldado de Deus, Sebastião d'Orgeval, morto por sua fé. Em vez disso, só, inútil, imobilizado na ilha de Montreal, entreguei-me a pensamentos sombrios. —Que o confundiram. Disso eu creio que você tem consciência e que é a razão, a verdadeira razão, da perseguição à qual se entregou, em nosso encalço, até aqui, apesar de seu precário estado de saúde. E não a de vir me dizer coisas penosas. Refugiar-se junto àqueles que lhe são afeiçoados e que o compreendem não significa trair um amigo desaparecido. Cláudio, somos mais próximos de você do que muitas pessoas que o conhecem há mais tempo. Lembra-se de nosso primeiro encontro, em Katarunk. Da simpatia que experimentamos os três uns pelos outros naquele dia. Apesar de você ter vindo com seus aliados selvagens para nos massacrar e incendiar nossos estabelecimentos. —Katarunk!... Oh, foi lá que tudo começou! Ele deu alguns passos, agitado. Contou como ouvira falar deles pela primeira vez e as razões da campanha de Katarunk. Encontrava-se em Quebec e recebera uma convocação urgente do Padre d'Orgeval, que se achava então na missão acadiana de Nor-ridgewock, no sul de Kennebec. O jesuíta pedia a seu amigo, cavaleiro de Malta, e por esse motivo um oficial de alto posto, que tomasse imediatamente a direção de uma expedição para deter a invasão de um perigoso contingente de aventureiros ingleses, dizia ele, hereges com toda a certeza, que se instalava nas regiões semidesertas da imensa Acádia e que logo estaria nas fronteiras da província do Canadá. Era preciso aproveitar a ausência do pirata que os comandava para desferir um golpe decisivo, apoderando-se de seu mais importante posto no Kennebec, Katarunk. Sebastião d'Orgeval dirigia-se a seu amigo, o Conde de Loménie-Chambord, porque o Barão de Saint-Castine, na foz do Penobs-cot, no Atlântico, havia se furtado a isso, pretextando a distância. Ele lhe indicava senhores canadenses, oficiais de confiança, que deviam ser convocados com ele: Ponf-Briand, o Barão de Mau-dreuil, o Sr. de L'Aubignière e, entre os índios batizados, Piksa-rett, o grande narrangasett, e suas tropas. Loménie organizara rapidamente essa campanha, sem informar nada a Frontenac. E, desde então, estava meio brigado com o governador. Ele chegara primeiro a Katarunk e se apoderara do lugar. Loménie sacudiu a cabeça como se quisesse expulsar uma reminiscência insuportável. —...Ele queria que, sem preliminares, de chofre, eu os abatesse, eu os apagasse. Suas diretivas, eu diria quase suas ordens, eram tão instantes e inapelaveis que fiquei perturbado. Eu desejava pelo menos parlamentar com o Sr. de Peyrac e julgá-lo antes de aniquilá-lo. Foi o que fiz. —E logo compreendeu que não éramos seus inimigos, que tínhamos sido feitos para nos entendermos e que sua vinda a essa terra de ninguém seria proveitosa a todos. —Julguei conveniente seguir uma linha diplomática mais apropriada. Tal como a situação se apresentava, o massacre teria sido impiedoso e recíproco.-E destruir-nos mutuamente não me pareceu que beneficiaria quem quer que fosse da Nova França, da própria França ou da Igreja e suas missões, que vocês tomavam sob sua proteção. —E isso ele nunca nos perdoou. —Eu acreditava poder explicar-lhe as razões de minha iniciativa e que ele se deixaria convencer... que ele compreenderia. Tínhamos sempre agido em conformidade um com a outro, no mais perfeito entendimento. Ora, dessa vez, subestimando seu julgamento,, eu o atingi mortalmente. —Por que então, quando nos encontrou em Katarunk, pela primeira vez a pureza de intenções de suas estratégias lhe pareceu duvidosa, maculada por uma sanha inexplicável,.e-talvez... pela loucura?!... — acrescentou ela a meia voz, espreitando-lhe a reação. O cavaleiro protestou com arrebatamento: —Não! Jamais supus que ele estivesse louco. Deus me livre. Acreditava apenas, asseguro-lhe, que os dados do acontecimento e as consequências de sua destruição lhe escapavam, e... que ele compreenderia... que ele aprovaria. Eu era ingénuo... —Você não conhecia talvez tudo sobre ele. Compreendo que você tenha sofrido uma decepção amarga. Ele teimou a manter seus projetos belicosos e quase suicidas. E é isso o que o atormenta... que 10
  • 11. lhe causa agora sofrimento? O que chama de sua traição a ele? Loménie deu alguns passos, imerso em pensamentos. —Se você soubesse... Se soubesse o que ele era para mim! Éramos tão unidos, e havia tanto tempo! Quando desejei acompanhá-lo ao seminário dos jesuítas, ele me dissuadiu da ideia. Aconselhava-me a Ordem de Malta. Assim, durante toda a vida, continuaríamos a nos completar. Ele seria meu guia espiritual. Eu seria seu braço armado... E, subitamente, pela primeira vez, nesse caso de Katarunk, eu me esquivava e recusava seu plano. —Mesmo assim ele foi executado. Pelos cuidados de seus mais zelosos servidores: Maudreuil, L'Aubignière... Regozije-se. Katarunk desapareceu, incendiada... como ele desejava. E nós mesmos, não acha que foi um milagre termos conseguido escapar à fúria dos iroqueses, cujos chefes tinham sido assassinados sob nosso teto? —Um milagre que vinha corroborar sua lenda de ser possuidora de poderes supraterrestres!... Mas ele sorria ao pronunciar essas palavras. Ele retomava pé. Ela o apaziguara e o ajudara a ver aquele doloroso dilema com mais clareza. CAPÍTULO IV Os encantos de uma inteligência política — Os mistérios do Saguenay No dia seguinte, quando a viu novamente, ele conservava o mesmo sorriso e parecia impaciente por abordá-la. Surpreendeu-a com uma pergunta inesperada. —Você conheceu o Sr. Vicente de Paulo? —O Sr. Vicente? — fez ela, embaraçada. —O santo padre que foi conselheiro e confessor da rainha-mãe durante a menoridade de nosso soberano e que fundou tantas obras de caridade! —Nessa época eu era ainda muito jovem e vivia em minha província, tendo pois pouca oportunidade de encontrar uma personagem tão importante. Mas é verdade que o acaso colocou-me em sua presença... —Onde foi isso? —Por ocasião da passagem da corte por Poitiers. O cavaleiro pareceu encantado. —Os fatos coincidem. Mas escute-me. E compreenderá por que lhe fiz essa pergunta. Quando eu era noviço dos cavaleiros da ilha de Malta, na Língua da França, tinha por condiscípulo um postulante como eu que se chamava Henrique de Rognier. —Esse nome me lembra alguma coisa. Parece-me que me falaram dele recentemente... ou então... Não, uma lembrança que me veio num sonho... num pesadelo, parece-me. Mas continue... Você me intriga. —Ele me contava que sua vocação religiosa fora indiretamente determinada pelo encontro que teve com o Sr. Vicente, em circunstâncias... Hum!... Cláudio deLoménie-Chambord alisou o bigode, olhando-a com o canto dos olhos. Parecia que a história que ia evocar o distraía de seus pensamentos sombrios. —Ele tinha nessa época dezesseis ou dezessete anos; como servia na corte junto à rainha-mãe, estava em sua comitiva na cidade de Poitiers... Percorria as ruas a serviço quando o acaso o fez encontrar uma adolescente de olhos verdes. —Oh, o pajem!... — sobressaltou-se Angélica. — Aquele que me dirigiu galanteios. —Então era mesmo você a jovenzinha de Poitiers de que falava tanto aquele cavaleiro? Devo prosseguir minha narrativa? —Claro! Mas que coisa excitante! Se bem me lembro, esse pajem não me parecia muito disposto a entrar para as ordens. —De fato!... Era um rapaz folgazão, tinha outras ideias na cabeça. Loménie-Chambord ria. —Então era você, Angélica, a fascinante menina que ele conduzia ao púlpito de Nossa Senhora, a Grande, de Poitiers, para lhe roubar alguns beijos e talvez mais.alguma coisa... já que não conseguiu encontrar outro lugar na cidade, ocupada pela corte e sua comitiva. Brincadeiras que foram interrompidas pela aparição do Sr. Vicente de Paulo, que, naquele dia, oficiava a missa. O santo padre passou um sermão nos dois jovens loucos. 11
  • 12. Angélica também ria, embora um pouco corada à lembrança desse episódio de sua adolescência. Loménie continuou a narrar: —Henrique de Rognier, consciente de ter vivido um momento fora do tempo, sob o olhar daquele santo homem, confessou-me que era menos o encontro com o Sr. Vicente que o daquela jovem desconhecida que presidira a sua metamorfose. Ele lutou durante muito tempo contra o domínio dessa recordação. Era uma recordação imorredoura, dizia ele. Ficou doente. Julgou-se enfeitiçado. Um dia compreendeu que na pessoa da adolescente desconhecida, da qual só sabia o primeiro nome, Angélica, ele encontrara o verdadeiro amor. — O cavaleiro continuou, depois de uma breve pausa: — E, compreendendo também que jamais tornaria a encontrar esse amor, que nenhuma outra mulher poderia inspirar-lhe um sentimento semelhante àquele e que, de qualquer maneira, era inútil tentar encontrá-la, pois nos meios seculares, entre as loucuras da corte, um tal amor não podia nem viver nem se preservar, decidiu unir-se ao serviço Daquele que é a fonte de todo Amor, e se fez cavaleiro de Malta. —Muito bem! Eis uma história edificante. Estou feliz em saber que não sou responsável apenas por desordens, como você pretende. Que fim levou ele? —Oficial nas galeras de Malta, ele foi capturado durante um combate com os barbarescos e teve a mesma sorte que nossos irmãos: foi apedrejado nas colinas de Argel. —Pobre pajem querido! E acrescentou, sonhadora: —Eu o tinha esquecido. —Ah! — fez Loménie, com um súbito grito. — E isso o que aumenta sua sedução: sua indiferença quase cruel. Como se es quece daqueles nos quais planta sua lembrança como uma adaga que eles não conseguem arrancar do coração! Você é descuidada, você mesma o confessou. Menos de um! Ele a considerou com uma interrogação ansiosa no olhar. —Para os outros, que é você?... Depois, sem esperar a resposta, murmurou, com exaltação: —Um sinal de contradição. Um apelo, um grito que nos arranca de nós mesmos, como aconteceu com esse jovem Rognier. —Ah! Não comece a se atormentar — protestou Angélica. — Vocês também, meus senhores, se afogam em contradições; para mim vocês são todos uns egoístas e ingratos, e choram pelo que não tiveram, sem saber se alegrar com o que lhes foi concedido... Você me fala como se eu tivesse passado a vida a destruir corações, à vontade, sem ter eu mesma sofrido por amor. Deus seja louvado que, de todos, somente a um pude amar de maneira inolvidável. Nem sempre estava a meu lado, e eu sofria esses tormentos da separação que você pensa ser o único a sentir. —Eu sei. Feliz aquele que você não pôde esquecer. O amor que os une é daqueles que nos fazem crer no inexprimível. A noite passada, eu os olhava um junto ao outro e sem cessar seus olhos se certificavam da presença um do outro ou se alegravam por se ver. A noite em que chegamos com o Sr. d'Avrensson, avistei suas silhuetas unidas num beijo, no balcão do castelo de popa, e uma dor, cujo sentido me escapou, me apunhalou. Eu me julgava curado, imunizado por minha raiva contra você. E aqui está! E novamente eu me sinto melhor e feliz de viver. Você triunfa sempre com sua beleza loura. Triunfa sem sequer dar-se ao trabalho de conquistar. Inconsciente das rupturas que consumou, das tragédias que fez eclodir, dos destinos cujo curso mudou! Ele tinha razão de achá-la invencível e destruidora de sua obra. Morreu no barrote de torturas, amaldiçoando-a, e você não dá importância ao anátema que lançou contra você na hora da morte? — Teria mesmo pronunciado esse anátema?... — Você tacharia o Padre de Marville de mentiroso?... — Não, mas... Como comunicar-lhe a impressão, que nunca pudera evitar, de que uma mentira roía como um verme o interior daquele fruto? Apesar de seu lado trágico, a cena que se desenrolara na antecâmara de Mrs. Cranmer, em Salem, deixava-lhe uma leve lembrança, a de ter assistido a uma comédia macabra, voluntariamente exagerada, se não fosse pelo jovem canadense Emanuel Labour, que caíra vencido por um desmaio que não era fingido. Pouco depois ele morreu em circunstâncias misteriosas. Exceto por isso, ter-se-ia acreditado estar num espetáculo. 12
  • 13. E no mesmo instante teve de morder os lábios para não sorrir, pois, quanto mais pensava naquele confronto, tanto mais o lado risível lhe aparecia. Dentre as personagens símbolo do papismo e do calvinismo puritano, o jesuíta e o doutor em teologia bíblica, Samuel Wexter, era difícil dizer quem excedia em fanatismo, enquanto um gigante selvagem iroquês, descalço no brilhante la-jeto preto e branco, tocava com o penacho de sua cabeleira eriçada as traves bem enceradas de um borne da Nova Inglaterra, ao passo que, nos degraus da escada, como nas arquibancadas de um teatro, se escalonavam, sentadas, as mulheres da casa, entre as quais duas quacres mágicas, Ruth e Noémia, e ela mesma, em roupas de parturiente. As imprecações do jesuíta tocaram-na menos que a surpreenderam. Elas se apagavam a ponto de cair no esquecimento. Foi a partir desse momento que ela sentira que o movimento da vaga, que não cessara de subir na direção deles atingindo-os com seus golpes, revertia, que o refluxo começava, pois o que contava era a mensagem contida no wampum que o chefe das Cinco Nações iroquesas, Utakê, enviara a Joffrey de Peyrac: "Seu inimigo não existe mais". Junto a ela, o cavaleiro de Malta, distraído por um instante pela história de Henrique de Rognier, recaía em sua obsessão. —Sebastião dizia: nosso objetivo é fazer reinar em toda a terra uma só fé. Eu deveria tê-lo apoiado até o fim. Ela colocou a mão em seu pulso. —Meu caro Cláudio, nós somos, você e eu, os herdeiros de quase dois séculos de guerras de religião que afogaram a Europa no sangue e que nada resolveram quanto a fazer reinar uma só fé. Não poderíamos tentar construir o Novo Mundo em paz?... —E podemos? É verdade que você é bastante convincente. E não o nego... Se lhe dessem ouvidos... Era também o que Sebastião temia em você: desviar os espíritos da grande obra de evangelização. Ele considerava um perigo o fato de sua sedução encobrir uma inteligência política. —Política?! — exclamou ela. Ouvindo-a rir, ele voltou-se vivamente para ela, que lhe surpreendeu o verdadeiro olhar, brilhante e suave, cheio de interesse por tudo o que vinha dela, e essa expressão que ele às vezes tinha ao vê-la, ao mesmo tempo sonhadora e fascinada, como se, descobrindo um aspecto inusitado da criação, ele se interrogasse sobre os caminhos desconhecidos, mas cheios de encantos, nos quais seu encontro o levava a se embrenhar. —Seu riso! Ele parece lançar todos os nossos tormentos à obscuridade e revelar-nos a vontade de amor de Deus para conosco. —Isso é magnífico. Mas, em vez de sempre me cumular, depois de poderes tão negros, de influências tão santas, você poderia pelo menos ficar num meio-termo, este que vou propor-lhe: considerar que nossa presença no Novo Mundo e nossa ingerência, se assim a chama, trouxeram até aqui mais bem do que mal, mais paz e vitória do que perturbações e desastres. O papel de um monge guerreiro não é lutar pela paz dos povos e dos oprimidos? Assumir a guerra de defesa é uma obra piedosa, e é preciso considerar-lhe os objetivos e a necessidade com cuidado, e só decidir-se pela espada em última instância, você vai reconhecê-lo. Inteligência política, você diz. Pois bem, se denomina política o fato de uma mulher se permitir refletir sobre a sorte do mundo e o futuro que os soberanos da terra preparam para nossos filhos, tem razão. Era uma obrigação imperativa para uma mulher encarar em que sociedade iriam viver as crianças que ela pôs no mundo. Angélica afirmou que a responsabilidade de uma mulher parecia-lhe maior ainda nesse domínio que a dos homens e, aliás, que entre os iroqueses as mulheres tinham voz ativa. Mas, se o Padre d'Qrgeval, no que lhe dizia respeito, vira-a como alguém que conduzia as tropas ao combate, não, esse tempo já pássara para ela. —Nem por isso você deixou de deter minhas tropas — disse ele —, atirando em meus homens no vau de Katarunk. —Era uma questão de habilidade em atirar. A decisão de detê-los vinha de meu esposo. Eu não conhecia nada sobre a América, que eu julgava deserta, ai de mim, ou pelo menos povoada de refugiados, como nós, que não teriam gutros inimigos além da natureza selvagem. Ai de mim! Eu estava completamente enganada. Não bastavam a invernada e as rivalidades já bem estabelecidas entre a França e a Inglaterra. Era preciso também que medíssemos forças com um santo. Sou apenas uma mulher, estou 13
  • 14. lhe dizendo. —E uma mulher adorável. Novamente perturbado diante dela, ele lhe beijou a mão rapidamente. —Perdoe-me! Eu não passo de um pedante. Minha conduta é imperdoável. Passaram desse modo uma parte dos dois dias seguintes a discutir, seja em terra, andando ao longo da praia, seja a bordo do Arc-en-Ciel, passeando pelo convés depois de uma refeição partilhada com o Conde de Peyrac e os oficiais, ou ao sair de um ofício na pequena capela. Algumas vezes riam-se, reencontravam a convivência de uma amizade já longa e que se criara espontaneamente, e por vezes Loménie recaía em suas melancolias e angústias, como se despertasse subitamente a bordo de um precipício. Havia um fantasma entre eles, mas, graças a essas conversas, Angélica conseguira fazê-lo encarar a situação de modo mais lúcido e sem subterfúgios. Conseguiu fazê-lo confessar que reconhecia que Sebastião d'Orgeval sempre professara em relação às mulheres um sentimento de desconfiança e, sob uma aparência policiada, e por vezes encantadora para com elas, uma hostilidade fundamental. —Ele era tão feliz! — suspirou Loménie. — Órfão de mãe, eu soube, segundo confidências suas, que sua infância foi cercada apenas por horríveis criaturas femininas, grosseiras ou possuídas pelo espírito do Mal, lúbricas e até feiticeiras. Desconfiando da Mulher, ele desconfiava da Beleza e, mais ainda, do Amor... —Uma trilogia à qual ele parecia ter dedicado um ódio impiedoso. A palavra "ódio" pareceu chocar Loménie, mas ele evitou contradizê-la. Andavam aquela noite novamente em direção ao Saguenay, depois de um ofício noturno que reunira para o rosário da Virgem Maria ceifadores cansados e selvagens, novamente desembarcados do alto Saguenay com suas peles para o comércio. No dia seguinte, o Conde de Loménie retomaria o caminho para Quebec, enquanto a frota com os homens de Gouldsboro, depois de reunir seus tripulantes; ergueria velas para continuar a descer o rio- mar Saint-Laurent até o golfo do mesmo nome. Eles discutiam, menos para se convencer que para trocar suas impressões, confessar um ao outro a inquietação e a tristeza partilhadas. —Você é uma criatura iluminada — repetia o Conde de Loménie —, não pode compreender essa personagem. —Mas você também, Cláudio, foi uma criança iluminada. E eu acho que foi por amá-lo que esse sombrio adolescente do Dau-phiné tinha necessidade de você, que você estivesse a seu lado para iluminá-lo. Ele o atraiu para o Canadá para isso. Não se deixe arrastar- às trevas de sua tumba. —Como você sabe que ele era do Dauph;ng? — perguntou Loménie, surpreso. —Creio que alguém me disse... Mas ela pensava que sabia muito mais sobre a infância de Sebastião d'Orgeval do que o próprio Loménie. E ele a considerou com uma mistura de inquietação e de admiração, parecendo novamente invadido pelo receio de que ela possuísse poderes de adivinhação satânica ou de habilidade maquiavélica, como quisera convencê-lo D'Orgeval. —Seja como for — continuou ele —, parece que sua aparição fez morrer entre nós, ele e eu, esse entendimento, quebrou esse elo que nos unia desde nossa juventude e que nos ajudara até então a viver e a engrandecer nossa vida pelos caminhos da conquista dos povos e do serviço de Deus. — Depois de uma pausa, ele continuou: — Retornando a Ville-Marie após o anúncio de sua morte, vi minha desgraça. Eu perdera tudo. Você me escapava enquanto mulher que inspirava meu coração, pois era a esposa de outro, ao qual era inútil disputá-la. E ele também me escapava, meu irmão que eu deixara, exilado ao longe, sem que eu elevasse minha voz para defendê-lo. Proaunciando-me por você, eu o havia ferido. Não tentei explicar-me com ele. Não podia dizer-lhe o quanto eu lhe devia... E ainda hoje sinto-me culpado por estar pronto a qualquer coisa para obter de você um simples sorriso, um gesto de amizade como aquele que deu aquela noite comigo. Somente isso, eu lhe asseguro, e isso é absurdo. —Absurdo?!... Por quê? O absurdo é se sentir culpado com tão pouca coisa... Os gestos de amizade reaquecem o coração. E bom sentir-nos cercados por simpatia, assim como é também natural sentir-nos feridos pela antipatia. Não teríamos direito senão aos desacordos, em nossas relações com nossos semelhantes?... Em seu receio dos sentimentos afetuosos, seu rigorismo logo se tornará pior do que o 14
  • 15. dos puritanos, calvinistas, ou essa gente da Reforma que você censura tanto. __ A carne... — começou Loménie. Mas Angélica explodiu numa risada, gritando: —Basta, basta de sermões!... A carne... É maravilhoso. Felizmente somos carne. — E, puxando-o pela mão, ela o conduziu até a extremidade do promontório. —E agora, olhe... —O quê? A falésia caía a pique sobre a superfície da água, que se alastrava na foz do Saguenay. Mais acima, as flotilhas de canoas haviam sido arrastadas para a margem na estreita praia. Mas daquele lado, totalmente aberto, o céu ainda estava claro, num tom amarelo de erva-cidreira, e a superfície do rio brilhava como laca chinesa. —Bastaria que vocês, religiosos, contemplassem a beleza deste horizonte para se comoverem. Mas há mais. Eu sinto que elas estão aí. —Elas, quem?... —Espere... No mesmo instante, viram uma silhueta obscurecer o estuário, deslizando sob a água e desaparecendo, depois outras, numa dança harmoniosa semelhante a um sonho, até a eclosão de um gotejante domo prateado que se arqueou como uma ilha brotando das profundezas do mar, para mergulhar de novo, dirigindo para o céu uma cauda imperiosa com nadadeiras gémeas em forma de asas. —As baleias! O espetáculo era raro. As baleias haviam fugido fazia mais de meio século. Mas acontecia de as mães retornarem em direção às profundezas geladas do Saguenay para desovar seus filhotes ou para ali brincar em paz, alegremente, com algumas companheiras. Angélica prometeu a si mesma que um dia voltaria com os gémeos, quando eles estivessem mais crescidos. CAPÍTULO V No abraço do rio — Uma assembleia de amigos e outra de inimigos — "O importante é estar vivo" Na noite em que chegaram, Joffrey de Peyrac pediu a seus visitantes que ficassem para cear com ele no salão do Arc-en-Ciel, e o próprio recoleto aceitara sem rodeios, assim como o truculento piloto do Saint-Laurent, o sr. Topin, e um de seus filhos, pois os viajantes estavam cansados de um dia inteiro de navegação no rio, que não era coisa simples para uma grande barca de uma vela, mesmo descendo a corrente. "Essa m... de rio", dizia Topin com "uma mescla de estima e de raiva; "um dia esse monstro vai acabar nos devorando..." Tendo mais uma vez escapado aos abismos, esses homens do rio expandiam-se sob o teto da grande sala de jogos, em torno de uma mesa bem provida, servida circunspectamente pelo despenseiro Tissot e seus ajudantes. O balanço do navio tinha a medida exata para que se sentisse estar ancorado e não em terra, cuja estabilidade tem algo de duro e de inquietante; para que se percebesse que o rio continuava a rodeá-los, aquele monstro frio, aquela serpente, abaixo e em volta deles, mas apenas a embalá-los como bebes em seus bercinhos, com um leve balanço que fazia estremecer o vinho francês nos grandes cálices de cristal e reverberar reflexos de rubis ou de ouro quando eles eram erguidos para beber à saúde uns dos outros e a felizes viagens. Quebrando as regras da etiqueta, que indicavam seu lugar de anfitriã ou no centro da mesa, diante do Conde de Peyrac, ou numa das extremidades, com ele sentado na outra ponta, Angélica sentara-se a seu lado, como teria feito aquela noite, se não tivessem visitas. Acabara de reencontrá-lo e queria ficar mais próxima a ele, aconchegar-se bem perto de seu calor, no perfume sutil de sua presença. Gostava de captar o odor de suas roupas em seus gestos, o odor tépido e refinado de seus cabelos quando ele mexia a cabeça, o odor de seu hálito quando se voltava para ela. Experimentava então o desejo de beijos secretos e prolongados, longe dos olhares de todos. Era evidente que ela se comprazia em se colocar no âmbito de sua presença masculina. Mas paciência! 15
  • 16. Quanto mais aprendia a viver ao lado dele, menos vontade sentia de partilhá-lo com os outros. Ora, a existência de ambos colocava-os a todo momento num pedestal, à testa de uma vida pública das mais movimentadas, e Angélica tinha de dar provas de obstinação e de imaginação para não ser requisitada a todo instante por deveres cerimoniais. Nisso Joffrey a ajudava, pois também ele cuidava de preservar o máximo possível suas horas de intimidade. A viagem no rio, como um casal, lhes dera grandes espe- ranças. Mas ele não pudera deixar Tadoussac com rapidez suficiente, e eis que as pessoas o procuravam. O Sr. de Frontenac enviava mensageiros para transmitir ao Sr. de Peyrac notícias de sua expedição e seus agradecimentos pela ajuda que lhe dera. Loménie-Chambord vinha confiar-lhe seus tormentos e dúvidas. Angélica decidiu beber para esquecer uma decepção que lhe entristecia o coração, não aquela, afinal mínima e passageira, de não poder estar por mais tempo sozinha com seu marido, mas, somada à melancolia de ter deixado a filha, a preocupação de ter encontrado o Cavaleiro de Loménie-Chambord tão mudado e abatido... Tinha necessidade de algumas libações para dissipar sua terrível impressão. Seu coração ainda estava confrangido pelos soluços daquele homem, aquele guerreiro de coração puro e valente que derreara em seu ombro, e as palavras que ele pronunciara em meio às lágrimas eram como o eco de um lamento que um outro, invisível e perdido, teria deixado escapar. Ela bem que gostaria de esquecer aquele outro de que tanto se falava, aquele Sebastião d'Orgeval que sempre ressurgia no momento em que começavam a se reequilibrar e que, morto ou vivo, lhes suscitava incessantemente os piores aborrecimentos. Ela se sentia menos à vontade ainda pelo fato de as confidências de Loménie lhe despertarem, a despeito de si mesma, piedade, ainda que soubesse que havia por trás disso uma armadilha de que precisava desconfiar. "Ele", o jesuíta e Ambrosina sempre ha- viam tirado partido de sua generosidade, de sua bondade, para prejudicá-la... E ela quase se deixara apanhar... Ela bebeu portanto, como teria engolido um remédio, um primeiro copázio de um vinho delicioso e, pouco depois, sentiu que sua alegria retornava. Poderia desempenhar-se melhor, interessar-se pelas histórias de D'Avrensson, dar a réplica ao exuberante Topin, que sempre tinha histórias de naufrágio para contar. Aquela noite num navio com hóspedes de passagem e oficiais de sua tropa lembrava-lhe outro banquete naquele mesmo lugar, alguns anos antes, quando subiam o rio, dirigindo-se para a capital da Nova França: Quebec. Tinham festejado com fausto e loucura, "à francesa", e cada um se sentira feliz o bastante para confessar segredos inconfessáveis de sua vida, o que estreitara seu entendimento em meio à neblina de novembro, espessa e glacial, enquanto continuavam a penetrar em surdina nas possessões do rei da França no Novo Mundo. Como outrora, ela elevou seu cálice de cristal da Boémia, inesperado presente do Marquês de Ville- d'Avray, e, através dos rubis do vinho de Borgonha, viu o rosto de seus hóspedes nessa noite, pessoas de boa sociedade e que não mais constituíam uma ameaça potencial para eles. Naquela noite todos não passavam de uma assembleia de franceses, bons amigos, que se regozijavam com seu reencontro nos confins da fronteira de seus imensos territórios respectivos, com uma porção de novidades para contar um ao outro e lembranças comuns a evocar. Bastava lembrar a famosa noite do ataque dos iroqueses a Quebec, durante a qual Angélica ajudara o Major d'Avrensson a salvar a cidade enquanto o Sr. Topin corria ao longo do rio para apagar os fogos que balizavam o contorno da praia. Ela via o Cavaleiro de Loménie-Chambord animar-se contando a batalha do riò Saint-Charles, falando do convento dos reco-letos transformado em fortaleza. O monge, em seu burel, lembrava-se dos detalhes. Religioso simples, bem-comportado, já no Canadá havia mais de vinte anos, ele pedira uma zurrapa para beber, o que não o impedia de se elevar ao nível da jovialidade geral. O Sr. d'Avrensson fora encarregado pelo governador de agradecer ao Sr. de Peyrac por ter-lhe prestado o insigne serviço de vigiar e prevenir um eventual ataque iroquês a Quebec. Ele fez a seguir a narrativa da expedição do Sr. de Frontenac. Em Cataracuí, no lago Ontário, onde mandara construir um forte rebatizado com seu nome, estava em seu feudo, em suas terras. 16
  • 17. Naquele ano, como nos precedentes, Frontenac recebera sessenta chefes iroqueses para um encontro amistoso. Era já uma vitória tê-los feito vir e se reunir. O iroquês é generoso, mas obstinado. Entretanto, gosta de negociar tanto quanto de lutar. Era por isso que o governador da Nova França os segurava. Tratava com dureza, mas com generosidade, a esses soberbos iroqueses. O Sr. d'Avrensson, presente a suas manobras, não se cansava de descrever-lhe as sutilezas e as fases. Acabaram por arrancar-lhes a promessa de permanecer em paz com seus vizinhos, os utauais e os andastes, e de parar de massacrar sistematicamente os huronianos, ou o que deles restava. Frontenac tinha a capacidade de admoestar os índios sem enfurecê-los. Sua vivacidade, sua maneira de brincar alegremente com seus filhos os enterneciam. Eles morriam de rir quando o ouviam executar perfeitamente seus sassakuas, seus gritos de guerra, que congelavam o sangue nas veias. Para colocar-se em posição de conferenciar com sabedoria e lucidez, fizeram primeiramente dois grandes festins, desses festins em que não se comia nada, limitando-se a fumar, e que eles chamavam "festins" de devaneio". Cabe dizer que saíam deles mais bêbados e trôpegos do que após as mais desenfreadas libações, pois usavam um tabaco preto e duro que impregnava a garganta durante três dias. Depois começaram os verdadeiros festins. Aí novamente notava-se a semelhança entre franceses e índios, e principalmente iro-queses. "O gosto pelos festins", antes ou depois da.batalha. A cabeça do maior cão cozido foi dada ao Sr. de Frontenac, que a comeu até os olhos, o que não era a menor de suas ações heróicas. Peixes diversos... Tomando-se o cuidado de não jogar as espinhas no fogo por causa dos espíritos das águas, que poderiam ficar aborrecidos. Depdis de colocar numa grande fogueira o maior caldeirão que possuíam e no qual haviam cozido pedaços enormes de carne, os três grandes chefes, armados de um porrete, juntaram-se para empurrá-lo e derrubá-lo. Gesto simbólico, virar o caldeirão de guerra significava: "A guerra acabou. Aceitamos a paz". Retirando com uma cabaça o cozido que ficara no fundo, os chefes acentuaram a solenidade de seu gesto, distribuindo essa bebida, muito encorpada e de gosto excelente, aos "principais" entre os franceses, de acordo com um costume que pedia aos antigos inimigos que se nutrissem da própria rendição de seus adversários, pois a chamavam de "caldo dos vencidos", e alguns insinuaram, numa brincadeira de mau gosto, que talvez estivesse temperada com ossos e carnes humanas dos recentes massacres, o que fez empalidecer os jovens oficiais recém-chegados ao Canadá. Em suma, haviam enterrado o machado de guerra. Sob o teto de madeira de lei do salão do Arc-en-Ciel, os convivas aplaudiram. Mais uma vez, Frontenac mostrara-se audacioso e hábil a sua moda, que fazia tremer seus fiéis, mas que visava sempre o interesse fundamental da colónia. Antes de deixar os iroqueses voltarem a seu vale nos Cinco Lagos, houve troca de wampums e de presentes. Eles recusaram o sal, um artigo precioso, no entanto, pois, diziam, ele provocava sede, e a água os deixava pesados; cuidavam da flexibilidade de seus músculos, a fim de correr e puxar o arco melhor. Nunca sentiam sede. Seu insosso sagamité de milho cozido, condimentado com pequenos frutos ácidos, bastava-lhes. Em compensação, aceitaram o presente, para eles luxuoso, de vários sacos de farinha, pois apreciavam muito pães de trigo. Um padeiro os acompanharia até seus domínios, para fabricar-lhes, no início do inverno, belas rodas de pão, que seria conservado durante todo o mau tempo. Frontenac lhes deixou também um armeiro com dois companheiros, que os seguiriam até seus povoados de casas compridas para consertar suas armas de fogo e amarrar seus machados. Como bom gascão que apreciava a vida, o Sr. de Frontenac gostava muito desses selvagens. A alegria era geral em torno da mesa. A expedição anual fora bem-sucedida. Para Angélica, a presença de Nicolau Perrot entre eles evocava suas dificuldades iniciais de relacionamento no Novo Mundo, os perigos que tinham enfrentado. Em comparação, ficou surpresa com a obra admirável que se realizara desde aquela época. Pois nessa noite eram todos franceses reunidos para beber a seu soberano e ao êxito das expedições do Governador Frontenac para estabelecer a paz do continente bárbaro, para felicitar-se dos tratados que aproximavam, sob o manto de suas sombrias flo- restas já disputadas e divididas, povos desejosos de se compreender, de trabalhar juntos para uma vida um pouco melhor. 17
  • 18. Todos os seus esforços iriam ser questionados novamente pelo fato de, no fundo dessas mesmas florestas, ter-se perpetrado o fim funesto de um grande jesuíta? O estandarte dele, sua bandeira de guerra, era marcado por cinco cruzes, uma em cada canto e a quinta no meio, cruzes cercadas de quatro arcos e flechas. Ela o vira flamular à frente dos abenakis, enquanto eles se arremessavam ao assalto da aldeia inglesa. Que o Padre de Marville a desculpasse, mas isso não tinha nada de imaginário. Ela ouvira igualmente o jesuíta dar a absolvição, no acampamento, àqueles que iriam matar os "heréticos" de Katarunk, isto é, eles, os recém-chegados. Ela fora entrevista montada em sua égua, que ela se esforçava por reconduzir ao campo, e eis que esses espíritos habituados aos milagres-e aos prodígios designavam, a pobre Wallis como a licorne maléfica que anunciava as desgraças da Acádia. Assim começara a surda e árdua luta. O Padre d'Orgeval fora um homem muito amado pelas pessoas simples, assim como pelos nobres penitentes,, e Angélica, lealmente, não procurara arrancá-lo do coração de seus amigos nem macular-lhe a imagem. E, agora que sua morte era conhecida, seu culto parecia reassumir um novo impulso. Lembravam-se apenas do anátema pronunciado contra ela, esqueciam a perseguição de que tinha sido objeto, por desconhecerem seu encarniçamento'. Essa deserção, que ela sentia latente e sem garantia de poder evitar, aumentava o mal-estar que ela trazia de sua segunda viagem à Nova França, apesar do inesperado encontro com seu irmão mais velho, Josselino de Sancé. Seus pensamentos tornavam-se lúcidos e libertos do que tinham de triste. Dessa luta com o jesuíta ela revia imagens muito belas, ordenadas e grandiosas como as de uma ópera. Wallis, sua égua, encabritando-se na floresta de outono, o estandarte de cinco cruzes flutuando ao vento e a horda de selvagens urrando, expandindo-se na fímbria das florestas, percorrendo o vale em direção à aldeia inglesa. Belas imagens para uma bela aventura! A aventura de sua vida comum na América. Ela se voltava para Joffrey, como se ele pudesse ajudá-la a dispersar o voo de seus pensamentos um pouco loucos. É verdade que ele podia fazê-lo. E, quando estava perto dele, ela escapava rapidamente a suas apreensões, que frequentemente eram exageradas ou pelo menos prematuras. Ele permanecia calmo e filosófico. Pois, dizia, ao mesmo tempo que se mostrava vigilante, não se podia passar o tempo construindo um futuro de catástrofes e traições. "Como me sinto bem quando estou ao lado dele!", repetia-se ela, aproximando-se ainda mais, quase tocando-o, e surpreendeu o olhar do Conde de Loménie, a quem não escapava seu movimento carinhoso e amoroso de mulher, expandindo-se à sombra do homem amado. Mas ela não podia deixar de olhar para ele, de voltar a ele, a esse perfil de uma virilidade tão perfeita que para ela não havia homem que pudesse comunicar-lhe tal impressão de força e também de proteção sem limites. Sua confiança nele era o fruto de seu amor total por ela, no qual ela acabara por acreditar e do qual sentia que ele estava habituado — impregnado, dizia ele por vezes —, que o levava a repetir-lhe com frequência que ela era tudo para ele, o que era a única coisa que lhe importava. Joffrey encontrava o jeito de beber, franca e alegremente, sem jamais fazer com que sentissem que o fazia para afastar uma preocupação ou, como alguns, para se vingar de um mundo que lhes desagradava, no qual só reconheciam amargura. Ele bebia para saborear a excelência do fruto da vinha, dom de Deus, e se deixar levar a sua amável vertigem, sem fazê-lo por fraqueza. Bebia para fazer companhia a seus hóspedes, para honrá-los e torná-los felizes, pois a acolhida aberta e o bem-estar dispensado ao viajante faziam parte dos prazeres deste mundo, de uma arte de viver, de uma trégua obrigatória, para compensar a hostilidade e crueza reinantes, por outro lado, pela maldita terra. Quando ele bebia, dir-se-ia que acolhia o vinho como acolhia todos, isto é, como um amigo com o qual nos alegramos e aprendemos a nos conhecer melhor. Apenas seus olhos brilhavam um pouco mais, apenas o calor de seu sorriso tornava-se mais comunicativo, sua expressão, mais mordaz, e mesmo sardónica, como se tivesse se posto a contemplar do alto a fraqueza humana, com um leve toque de zombaria, mas sem maldade. Até onde podia lembrar-se, ele tinha sido sempre assim. Já em Toulouse, vira esse brilhante príncipe das cortes de amor dedilhando seu violão, com seus olhos sorridentes por trás das fendas da máscara, presidindo à reunião de homens e mulheres, nem todos heróis de romances e princesas de pensamentos 18
  • 19. nobres, longe disso, mas que subitamente eram glorificados, transfigurados pelas magias conjugadas do canto, da filosofia cortesã, dos vinhos seletos e do Amor, que, convocado ao banquete, distribuía suas flechas. Ela conquistara o mais cobiçado dentre eles, Joffrey de Peyrac. Podia dizer a si mesma: "Daqui a pouco, ficarei a sós com ele". Não se cansava de contemplá-lo enquanto ele permanecia atento, acompanhando as peripécias da conversa, na qualidade de perito nessa justa não menos importante que a das lanças ou das espadas, conhecendo o valor de cada palavra, cada sombra ou luz, crispação ou sorriso que perpassava pelos rostos. Havia nele, nessa espreita, alguma coisa do rei. Mas ele era mais forte que o rei, e mais livre. "Como eu o amo! O meu Deus, faça com que ele me ame sempre! Sem ele, eu morreria!" "Bebi demais! Fruto da vinha, que traição você me fez! Será que se pode ver? Todos nós estamos rindo. Até Loménie! Abençoado fruto da vinha! O importante é estar vivo. E nós estamos vivos! Amanhã vou dizer ao pobre conde traído que crie coragem. O jesuíta morreu. E ele jamais soube como é bom beber entre amigos. Ele viveu tão-somente para as trevas. Eis por que perdeu. Senhor, perdoe-me! Eu deveria apiedar-me de um mártir." No momento em que deixavam a reunião, sob a neblina estuante de mil gotículas cintilantes, ao se despedir, um pouco vacilante ao lado de seu mestre e senhor, Angélica leu ou julgou ter lido nas pupilas de Loménie-Chambord um pensamento que o trespassou como um dardo ao vê-los: "Esta noite eles vão se amar..." Sua fisionomia se alterou novamente. Suas faces se encovaram. Nas mesmas circunstâncias, a Diaba, vendo-os a sua cabeceira, tão próximos e inseparáveis em sua conivência de amantes, soltara seu grito terrível de desespero enciumado, seu grito de criatura danada para todo o sempre... CAPITULO VI Afetos inconciliáveis Terminava a parada em Tadoussac. Seus visitantes iam novamente partir rio acima. Em dois ou quatro meses, o inverno voltaria para encerrá-los com seus gelos. Angélica conversou ainda um pouco com o Cavaleiro de Loménie-Chambord. Percebendo-lhe a fragilidade, ela evitava atormentá-lo. Gostaria de sacudi-lo para acordá-lo, como a uma pessoa afligida por um pesadelo. Ela procurou contentar-se com algumas palavras que ele deixava escapar: "Seus argumentos são justificáveis...", "Eu não me enganei..." Mas essa era uma obra que devia ser recomeçada a cada dia que passava. Certa vez, tirando do gibão uma carta que desdobrou com precaução, pois fora escrita numa casca de carvalho, ele quis ler-lhe passagens da última carta que o jesuíta lhe enviara, havia já muito tempo, um pouco depois da partida de Quebec, pouco antes que suas notícias tivessem cessado completamente. Uma coisa estranha é que nessa última carta a seu amigo de infância o jesuíta não cessara de se referir ao perigo que a Dama do Lago de Prata representava. Dir-se-ia que estava possuído por uma obsessão e ummedo: — "...Dela, você deve recear tudo, meu amigo! É uma mulher de poder, uma mulher política..." —Deus, que tolice! Mas Loménie continuava, numa voz suave e implacável, a desfiar o rosário dessas acusações insanas, cada uma das quais, porém, carregava, sob a aparência de mansuetude, de sábia advertência, sua gota de veneno. —"...Poder dos sentidos, desenvolvido ao máximo, e ao qual, como pude observar, você não era insensível, por mais piedosa que seja sua vida, mas que não a distinguiria das outras mulheres, não fosse duplicada por uma inteligência que a leva a ambições de poder sobre o espírito dos homens e, o que é mais perigoso, a se assenhorear de suas almas, o que é sutil e insidioso, pois os conduz a uma liberalidade culposa em relação a disciplinas religiosas, a imperativos da lei santa ensinada pelo próprio Deus, um desconhecimento da natureza do pecado que pode levar gradativamente à mais radical perda 19
  • 20. de sua salvação. Mas deixemos isso..." —Tanto melhor! — atalhou-o Angélica, que o escutava, taciturna. —"...Não falemos senão do poder político que se oculta sob aparências encantadoras e como que ignorantes dos difíceis arcanos com os quais se encontram comprometidos os homens encarregados de dirigir os povos. Responsabilidades que, colocadas em mãos femininas, jamais deram resultados satisfatórios..." —Isso é algo que tem de ser pensado... A Inglaterra não teve motivos de queixa contra sua grande Rainha Elizabeth I. —"...Mas das quais algumas se apoderam de modo insidioso" — continuava o cavaleiro. — "Ouvi dizer que nosso rei, dissuadido de confiar nas mulheres nesse domínio, por horror a essas 'frondosas' enraivecidas que haviam arrastado os poderosos do reino contra ele durante sua menoridade, não podia suportar que nenhuma mulher, nem a rainha, nem mesmo a mais influente de suas amantes, lhe dissesse a mínima palavra sobre os negócios do reino. Ora, eu soube de boa fonte que por causa dessa única mulher, a Sra. de Peyrac, quando ela se encontrava em Versalhes, esposa de um outro fidalgo, o rei pôs de lado seu mutismo e pediu-lhe muitas vezes sua opinião sobre questões de diplomacia, chegando até a confiar-lhe embaixadas junto a soberanos estrangeiros..." O Conde de Loménie ergueu a cabeça e examinou Angélica com uma mímica em que havia ao mesmo tempo surpresa e expectativa de um desmentido. Mas ela contentou-se em suspirar. —Parece que seu jesuíta sabia de tudo — disse ela, após um momento de silêncio. — Tudo... até isso. —Sim, ele sabia tudo — repetiu Loménie, dobrando a carta com uma lentidão sonhadora. — Esse dom de adivinhação, de vidência, não nos indica que estamos diante de um santo, cujas adjurações pecaríamos por desdenhar? —Quem lhe falou de vidência? — disse ela, dando de ombros. — Ele tinha opiniões em toda parte... Poderiam ter discutido dois dias e duas noites sem chegar a um resultado satisfatório, aquele que Angélica desejava alcançar: devolver ao Cavaleiro de Loménie-Chambord a paz de espírito. Eles giravam em torno do assunto. Ela esperou contudo que esses diálogos não tivessem sido inúteis. No que lhe dizia respeito, essas discussões com Loménie lhe haviam permitido delimitar melhor, ver de perto, essa personagem oculta que, mesmo morta, continuava a presidir seu destino, e concluíra por uma opinião que a ajudava a manter a cabeça fria, pois, mesmo nesse novo mito criado em torno dele, ela discernia menos força e mais fraquezas. Com o que ela sabia agora a seu respeito, via essa personagem como um prisioneiro de sinistros mandatos, como o carneiro-guia, cuja beleza dos cornos retorcidos, sua glória, é uma armadilha que causa sua perda quando eles se entrelaçam nas moitas e não conseguem livrar-se delas. O que complicava tudo é que ele havia pertencido à ordem dos jesuítas, uma ordem cujo poder não parava de crescer. Formada pela elite de todas as nações, era um partido, pela ação enérgica das ideias, das mudanças filosóficas. Mas também, por sua defesa das leis estabelecidas, das intervenções divinas, o exercite de Deus, o exército de Roma, isto é, do papa. Cada ordem reli giosa suscitada a cada século não havia representado esse "parti do" que traduzia o pensamento de sua época e, podia-se dizer sua cor ideológica? Para o século em que Angélica nascera, a ordem mestra era a dos jesuítas. Neles se reuniam as evoluções modernas e as recusas essenciais. Mas no final das contas, pensando nisso, não tinha certeza de que esse ' 'bastião d'Orgeval fosse um "verdadeiro" jesuíta, como seu irmão Raimundo, por exemplo. Eles eram muito fortes e matreiros, mas. não tão hipócritas e intolerantes. Ela antes o teria acusado de ter usado sua posição de jesuíta como um disfarce. Via-o como que tecido por velhas raízes. Estendia a sombra de antigas maldições sobre uma terra virgem, recusando por suas atitudes as correntes do futuro que podiam nascer desse Novo Mundo, e todo aquele que se deixasse absorver por essa sombra, que se queria ao mesmo tempo insinuante e tutelar, perdia sua oportunidade de alcançar a nova luz. Tinha sido uma luta entre o que eles traziam, Joffrey e ela, e o que ele defendia, num sobressalto de feroz autoridade pessoal. Dessas decisões, o resto do mundo estava excluído. O que ele queria era a única coisa que tinha o direito de ser preservada, sua vindita, a única coisa a ser aprovada, e sua vingança, a única a ser executada. 20
  • 21. Vingança contra quem? "Contra você!... Contra você!...", gritou-lhe uma voz interior. "Mas por quê? O que foi que eu fiz?..." Sob a enganosa roupagem de santidade, Sebastião d'Orgeval travava um estéril combate que só lhe dizia respeito e a seus próprios delírios, atrás do qual ela talvez fosse a única a adivinhar seu orgulho incomentável e a silhueta perniciosa da Diaba. "Ele julga tê-la enviado a nós para seu serviço... Mas foi o contrário. Era ela que o dominava, que sempre o dominara desde a mais tenra infância..." Ela pensou nesta expressão: "tenra infância". E imaginava, com um arrepio, as três crianças malditas nos va-lezinhos florestais do obscuro Dauphiné. Tudo era escuro naquela história. Aqueles que D'Orgeval e Ambrõsina atraíam para suas sendas retrocediam, perdiam-se... Será que Loménie não via isso? Pensou numa frase que ó cavaleiro de Malta pronunciara um dia a respeito de Honorina, a quem acabara de oferecer um pequeno arco e flechas. "Apreciamos mimar a inocência. Só ela o merece..." Tanta delicadeza, tanta finura num homem a enternecera. Hoje isso se estiolara, se evaporara. O jesuíta estendia sua sombra como a de uma árvore venenosa sobre aqueles que ele queria reconquistar e atrair para seu túmulo. A época de inverno de Quebec surgia-lhe como um período abençoado por amizade e liberdades sorridentes. Apesar de algumas provações, erros e loucuras deste ou daquele, muita coisa boa adviera daquele tempo. Ela não estava certa de poder agir sem inabilidade. Ele era um esfolado vivo. As mínimas palavras ou alusões impensadas podiam fazê-lo oscilar no sentido contrário ao que se pretendia. Ela suspeitava que as palavras "amor" e "prazer" eram insuportáveis a ele, excluído do amor, ele que no entanto se afastara voluntariamente do amor por sentimento mais elevado, que soubera fugir e distanciar-se dela com uma sabedoria tão serena e digna. Havia instantes, o que era desolador, em que ele se parecia com Bardagne. Ela não se conformava em vê-lo decair e perder sua aura. Mas era obrigada a constatar que não se podia mais discutir com ele todas as questões delicadas ou deliciosas, como o faziam outrora, quando eram próximos como irmão e irmã, como amigos afetuosos, de maneira liberal e encantadora. Parecia que ele não tinha mais vontade própria. Ele, que ela conhecera tão enérgico, tão lúcido e tão firme diante da tentação do amor, tão seguro de estar agindo corretamente, quando em Katarunk se aliara a eles, ou quando, mais tarde, os procurara em Quebec, desafiando as correntes de opinião contrárias, a fim de oferecer-lhes a caução de sua reputação na Nova França, era hoje semelhante a um navio sem mastro e sem bússola. Algumas horas antes da partida, ela olhou de frente, quase com lágrimas nos olhos, e disse-lhe: —Será que o perdi? Mais uma vez sua expressão se alterou, e dir-se-ia que uma brisa que se elevava arrastava ao mesmo tempo as fumaças deletérias que asfixiavam sua alma. —Oh, minha amiga, não! Não pense uma coisa dessas! Como eu poderia viver sem você? Ou ao menos sem o pensamento de que você tem por mim alguma amizade, que existe e que por vezes pensa em mim'; ó minha cara e doce amiga! Mas você tem de compreender que sofro com os golpes injustos infligidos a um amigo que me era muito caro!... "E aqueles que ele me infligiu, injustos e mortais, rião o fazem sofrer?...", esteve a ponto de retorquir- lhe. Mas conteve-se, persuadida da inanidade de sua reflexão, no momento. Além disso, não era de seu feitio espalhar aos quatro ventos os prejuízos e injustiças que julgava ter sofrido. Existe um pudor e um orgulho essencialmente femininos no silêncio de certos seres acerca dos ferimentos que recebem. Ela era como os cavaleiros das lendas que se compadecem das desgraças dos outros, voam em seu auxílio, ficam indignados com as injustiças que sofrem e, munidos de uma tão santa e generosa vocação de destroçar os inimigos dos outros, não pensam naqueles que os espreitam, esquecendo-se de sua própria sorte. "Fora das lendas", disse a si mesma, "seria bom perceber que nossa armadura se encontra às vezes bem amassada e que nosso sangue escorre. Eu me deixo emocionar estupidamente pela sorte de meus amigos 21
  • 22. e eles se iludem, sem se preocupar com os golpes que nos são desfechados, com os desgostos que nos entristecem. Julgam-nos suficientemente fortes e privilegiados para nos consolarmos e nos defendermos sozinhos." —Você nem sequer me pediu notícias de Honorina — lançou-lhe de supetão, revoltada. — Senhor cavaleiro, você me causa pena. E sua mudança de atitude só pode causar prejuízo à causa que defende, pois não poderei deixar de, mais uma vez, acusar seu jesuíta de ser o causador disso. Acabo de deixar Honorina, minha filhinha, aos cuidados da Madre Bourgeoys, e ficarei um ano inteiro sem vê-la; durante- esta viagem, por uma razão que ainda não compreendi inteiramente mas que nada tem de imaginária a Nova França me fez cara feia. Eu o procurava em Montreal para encontrar uma palavra de conforto, e você me fugiu. Entristecida, desço o rio e me afasto por muito tempo. — Depois de uma pausa, ela continuou: — Julga que era hora de vir me fazer compreender que perdi sua amizade? Como se isso me fosse indiferente?! Seria desconhecer o apego que tenho por meus amigos e que, ai de mim, constitui minha fraqueza. Você me trata como mulher política ou mulher calculista, leviana, que sei eu! Não. Sou apenas uma mulher, e você deveria ficar indignado por ver uma amiga como eu, que cuidou de você, o salvou, e que teve uma tolice de ter por você uma preferência, algumas fraquezas, pois eu o achava encantador, por me ver, como dizia, tratada com tanta sanha, tanto ódio, sim... Ele a interrompeu, segurando-lhe a mão e beijando-a com paixão: —Ê verdade, tem razão, perdoe-me! Era essa versatilidade, tão pouco própria do caráter de seu amigo de Katarunk, que a atormentava. —Perdoe-me! Perdoe-me mil vezes! Eu lhe suplico. Minha conduta é imperdoável. Eu sei, jamais duvidei. Sei que você está do lado da bondade... —O que quer dizer que, apesar de suas virtudes, seu santo mártir, nosso adversário, não se privou de faltar à caridade em suas empresas contra nós, não é? Você o reconhece? Teria desejado que ele se pronunciasse, que se decidisse a olhar a situação de frente, que fizesse uma escolha. O que o destruía era sempre oscilar, duvidar. —E verdade — disse ele. — E, no entanto, havia nele bondade. —Basta — atalhou-o. — Você me decepciona porque não quer livrar-se de seus tormentos. E, vendo que ele levava a mão ao gibão, ela julgou que ele quisesse ler-lhe mais uma vez uma carta do Padre d'Orgeval. —Basta, estou lhe dizendo. Não quero mais ouvir falar desse homem. —Não é isso! Ele a seguiu enquanto ela retomava o caminho para a praia, para voltar a bordo do Arc-en-Ciel, e tomou-lhe o braço, quase rindo. —Você está enganada a meu respeito, você também. Saiba que em Montreal fui visitar sua pequena Honorina na Congregação de Nossa Senhora e que lhe trago uma carta de Margarida Bourgeoys dando- lhe detalhes sobre a jovenzinha! Angélica sobressaltou-se, quase o beijou e reprovou-o vivamente por ter esperado até aquele momento para lhe transmitir essa boa notícia. Ele bateu no peito e reconheceu que a fadiga e a precipitação da viagem lhe haviam provocado uma espécie de entorpecimento da memória, a tal ponto que se esquecera da mensagem de que era portador. De todo modo, ter-se-ia lembrado. Não teria partido sem entregar-lhe aquele envelope, ter-lhe falado da menina. Ela não acreditou inteiramente nele. Suspeitou que quisera experimentá-la, fazê-la sofrer, recusando-lhe uma alegria para se vingar dela, vingar "o outro"... Isso lhe parecia tão pouco... Seu estado hipocondríaco era muito mais grave do que pensara. Não se surpreendeu ao saber que fora Margarida Bourgeoys quem mandara procurar o cavaleiro nos sulpicianos, sob o pretexto de entregar-lhe uma carta com notícias de Honorina de Peyrac a seus pais, antes que eles tivessem deixado a Nova França. Sem consultar ninguém, ela decidira ir a sua procura. Ela agira bem, pois, não sem dificuldades, yiu-se reaparecer na última hora o antigo Loménie, de expressão amável e decidida, e que lhe falou, como só ele sabia fazê-lo, de suas conversas com a jovem Honorina e entregou-lhe, além do envelope da diretora, uma página de caligrafia da pequena aluna, coberta por grandes A aplicados, mas bem desenhados e alinhados, que Angélica dobrou e guardou no corpete como uma carta de amor. 22
  • 23. Quando a hora da separação se aproximou, o Conde de Peyrac, que havia se eclipsado, trouxe por sua vez uma missiva que acabara de redigir para Honorina, um grande envelope lacrado com um grande sinete vermelho, pedindo ao cavaleiro a gentileza de ler pessoalmente o conteúdo a sua filha quando chegasse a Montreal. Juntou-lhe um anel que retirou do dedo, enviando-o à menina para que ela o usasse como "sinal de reconhecimento". —Que ela saiba que permanecemos junto a ela. Angélica, tomada de surpresa, acrescentou algumas palavras e confiou igualmente uma longa mensagem verbal para Margarida Bourgeoys e uns brinquedinhos para Honorina. Loménie pediu-lhes que lhe perdoassem também por ter sido um comensal tão desinteressante. O ferimento que recebera no início da campanha de Cataracuí enfraquecera-o, pois havia perdido muito sangue. Sentia frequentemente um^aziq no cérebro. E talvez isso fosse verdade. No último momento, pareceu dar-se conta de mais um esquecimento, mas foi por brincadeira, a fim de preparar-lhes uma surpresa. Mandou trazer e colocar diante deles, na mesa, uma grande caixa quadrada, feita de cascas de árvore emendadas à maneira indígena. Retirada a tampa, viu-se uma coleção de figurinhas de madeira, muito coloridas, que o cavaleiro começou a arrumar uma ao lado da outra; cada figurinha mantinha-se em equilíbrio num pequeno pedestal, também de casca de árvore. Ele contou que soubera que o Frei Lucas, do convento dos re-coletos, no rio Saint-Charles, antes de entrar para o serviço religioso, dedicava-se à escultura e pintura de regimentos em miniatura para brinquedos de crianças. Decidira-se a encomendar-Ihe alguns soldadinhos de madeira para oferecer como sinal de acontecimento feliz ao jovem Raimundo Rogério de Peyrac. — Para seu novo filho —- disse, voltando-se para Angélica e Joffrey. O franciscano e ele tinham escolhido ilustrar alguns dos corpos da Casa do Rei, cujos uniformes haviam suscitado a admiração da gente de Quebec quando uma vintena de guardas das companhias francesas ali aparceram para escoltar o Sr. de La Van-drie, conselheiro de Estado no Conselho dos Negócios e Despachos, que fora enviado como mensageiro especial do rei. No ano seguinte, o conselheiro de Estado refez sua viagem — pois os negócios de peles que ele começara a tratar no Canadá compensavam o desconforto de algumas semanas de navegação; Loménie não hesitara em se informar junto a ele, assim como junto a um dos anspeçadas ou brigadeiros, comandante dos membros da escolta, acerca dos detalhes dos uniformes e da variedade das diferentes companhias que representavam a Casa do Rei, a prestigiosa instituição militar de homens de elite constituída durante séculos pelos reis da França, cujo renome fazia o inimigo tremer nos campos de batalha. A variedade e a minúcia de execução das estatuetas suscitou a admiração geral. Passaram-nas de mão em mão. Prova tocante, se isso fosse necessário, da afeição que o Conde de Loménie-Chambord tinha por seus amigos de Wapassu, apesar de sua posição independente, um pouco ligado demais aos heréticos franceses ou ingleses. Durante o inverno, o Conde de Loménie não deixara de ir levar sua ajuda à iluminura das pequenas personagens que Frei Lucas talhava e pintava com o auxílio de um dos filhos do escultor-escrivão Le Basseur. — Nosso filho mais novo ainda não deu os primeiros passos — disse Peyrac —, mas posso lhe assegurar que já está em idade de apreciar um presente tão belo e que ele, como sua irmãzinha, vai se divertir em contemplá-las e em dispô-las, se não para a batalha, pelo menos para o prazer da revista. O Sr. de Loménie reconhecia ter passado momentos maravilhosos no calmo convento dos recoletos, com o Irmão Lucas e seu ajudante, ocupado em compor o pequeno exército, cada um deles utilizando alternadamente a goiva e o pincel e rejubilando-se antecipadamente com o prazer que haveria de ter um garotinho em alinhá-los e manobrá-los. Pelo menos Utakê, o chefe iroquês, que expedira inicialmente o Padre de Marville e sua triste mensagem para o sul, à Nova Inglaterra, dera um ano de descanso ao pobre cavaleiro. A estação dos gelos, que privava por cerca de sete a nove meses a província do Canadá de qualquer correio, fora clemente mantendo-o na ignorância de um luto que o chocara mais do que o previsto. Ainda que devesse estar preparado para isso, havia muito. 23