O documento discute tratados de música da Antiguidade e resumi os pontos principais de Aristides Quintiliano e sua obra De Musica. Primeiramente, apresenta a concepção de alma como central para entendimento da música e seu efeito. Segundo, discute as críticas de autores como o Papiro de Hibeh, Filodemo e Sexto Empírico à teoria da relação entre música e características morais ou afetivas. Terceiramente, destaca a distinção entre música e poesia defendida por Filodemo.
1. Aula 2 – Aristides Quintiliano, Papiro de Hibeh, Filodemo
e Sexto Empírico
Tratados de Música na Antigüidade
1. Aristoxeno de Taranto,
Elementa Harmonica, Elementa Rhythmica (fragmentario IV a.C.)
2. Teofrasto, De Musica (1 longo fragmento, IV a.C.)
3. Filodemo de Gadara (fragmentário, I a.C.)
4. Plutarco, De Musica, II d.C.
5. Claudio Ptolomeo, Harmonica, II d.C.
6. Porfírio, in Ptolemaei Harmonica Commentarium, III d.C.
7. Aristides Quintiliano, De Musica, II–IV d.C.
Manuais sobre Música na Antigüidade
1. Euclides, Sectio Canonis IV–IIIa.C. (?)
2. Cleonides, Isagoge, II – III d.C.
3. Nicomaco de Gerasa, Harmonicum Enchiridion, II d.C.
4. Bacchio, Isagoge Dataz. Incerta
5. Gaudencio, Isagoge, II–IV d.C. (?)
6. Alipio, Isagoge, IV d.C. (?)
7. Anonyma de musica scripta Bellermanniana II – V d.C.
Aristides Quintiliano (séc. II d. C. – data provável)
Tratado De Musica
Objetivos:
- oferecer uma visão totalizadora da música grega e transmitir notícias
concretas sobre a prática musical.
- não pretende ser original e com freqüência se ampara nos Antigos.
- tenta organizar em uma unidade, toda a pluralidade de significados
que a música tinha entre os gregos.
- busca nexo comum nas diversas manifestações que ele considera
musical.
2. - a interpretação que sustenta é platônica: a música reflete as leis musicais
que constituem o universo inteiro, por isso o estudo das relações intrínsecas
que regem a arte musical permitirá extrair essas leis universais. A unidade
estrutural do musical está fundamentada na unidade do cosmos: a música é
o que reúne os opostos e os harmoniza mediante instâncias intermediárias.
- recuperação do prestígio que a música possuía entre os filósofos
antigos.
- vantagem da música sobre as outras artes e também sobre os entes
desse mundo, está na “incorporeidade” de sua matéria: a música é
feita com sons que são apenas movimentos ordenados, ou melhor,
números.
- se esse movimento (o som), ao se aplicar leis racionais, produz o
fenômeno musical (paradigma da beleza artística nesse mundo), não
será difícil inferir essas mesmas leis na ordem/beleza do universo, na
própria beleza.
- música: modelo para construir o mundo, ficará impresso em todos os
âmbitos do ser. Ela oferece a imagem do todo, se converte em uma
arte educativa, ou seja, guia a ação para a vida e é uma arte prática
que produz prazer.
Importância do Conceito de Mélos
Johannes Lohmann (Mousiké et Lógos: contributions à la philosophie et à
la théorie musicale grecque, Editions T.E.R., 1989) procura demonstrar
que mélos[1] - o singular do plural homérico “melea”, “os membros do
corpo”, da qual provém “melodia” -, é uma palavra na qual são pensadas,
ao mesmo tempo, a constituição do corpo e uma determinada estrutura de
articulação melódica. Neste sentido, mélos está sendo empregado como um
tipo de “coletivo” (assim como épos, “palavra”, para toda a poesia lírica),
para indicar “o mundo articulado dos sons”.
[1] Cf. BAILLY(ibid:1247): “1)membro, articulação, tanto para homens
como animais (primeiramente só no plural Ilíada) - os membros e as partes
- membros ou partes; 2) os membros, os corpos inteiros - 3) membro de
uma frase musical, de onde canto ritmado com arte (por oposição à metron,
palavra versificada, métrica); 3)canto com acompanhamento de música,
definido como uma junção, de onde melodia - com medida, cadência,
ajustamento; 4) por extensão, palavra que repetimos sem cessar; 5) poesia
lírica, por oposição à poesia épica ou dramática”;
“o conceito de mélos significa a abstração que é a estrutura ‘melódica’ da
palavra humana (...) uma coloração involuntária do que é dito
espontaneamente, que está no reino da percepção dos sons pelos ouvidos,
como a cor está para o mundo visual”
Este conceito exprime também o fato de que a teoria musical grega sempre
postulou que cada “modo” tem por sua natureza, ou deveria ter, um certo
éthos. Esta identidade entre uma forma musical e um certo estado anímico,
3. encontra sua expressão na etimologia de mélos, pois nesta palavra são
pensados simultaneamente uma constituição corporal e uma determinada
estrutura da articulação melódica.
“a estrutura melódica é perfeitamente idêntica a uma determinada maneira
de pensar e sentir, cujos sons manifestam ao exterior por sua acústica; da
mesma forma, a palavra (em sua acústica) apresenta, consoante a
concepção grega, um sentido pensado, de modo que funcione como o nome
deste”
De Musica (A. Quintiliano) – Guia para a leitura do capítulo II.
Livro II – A educação mediante a música.
Discussão geral: 1-6
1 – Questões sobre o tema. O objeto da música, a alma
2 – Doutrina sobre a dualidade da alma atribuída aos antigos. Partes da
alma.
3 – Tipos de aprendizagem em relação com as duas partes da alma:
filosofia e música. A música como meio natural de educar na infância
4 – Caráter universal da ação da música. Causas de sua eficácia educativa.
Causas de sua eficácia educativa e superioridade com respeito às outras
artes: autenticidades de suas imitações. Uso da música para correção ética
entre os antigos. Utilização da música nas diversas atividades humanas. As
paixões que conduzem o canto segundo os antigos.
5 – A música como terapia das paixões para os antigos. Paixões, partes da
alma e estilos de terapia musical. Predisposição segundo o sexo e idade de
acordo com diferentes tipos de melodias
6 – Regulamentação da música para os antigos: os nómoi; perigos da falta
de educação musical e má educação musical; uso dos méle educativos e os
relaxado....A música e o estado: capacidade destrutiva e constitutiva.
- Análise dos elementos da ação musical (7 a 16)
- A música instrumental e a alma: 17-19
17 – Argumentos sobre a ação da música instrumental na alma: a alma
como harmonia de números, e afinidade entre a constituição física da alma
e dos instrumentos.
18 – Atuação do instrumento musical na alma por meio da ressonância
simpática. Relação dos instrumentos de cordas e sopros com as regiões
etéreas e aéreas do cosmos e a natureza anímica: mito de Apolo e Marsias.
19 – Atribuição de cada tipo de música instrumental a um deus mitológico.
Superioridade da música de corda sobre a de sopro.
1 – Questões sobre o tema. O objeto da música, a alma
Examinar se é ou não possível educar por meio da música, se isso é de
alguma utilidade ou não, se se pode educar a todos ou somente a alguns,
se se deve fazer com apenas um tipo de composição melódica ou com mais
de uma, e junto com isso, se as música rechaçadas para a educação
também podem ser usadas ou se é possível haver algum benefício derivado
delas.
Primeiro lugar: ALMA (concepção chave)
(música – número – alma – cosmos)
4. Críticas – Papiro de Hibeh (século IV a. C.)
- Autor anônimo e circunstâncias da redação desconhecidas
- Três frentes de ataque:
1) direciona-se a certos tipos de músicos práticos que se proclamavam
experts, mas cujas observações teóricas denunciam sua ignorância;
2) questiona determinadas teorias que atribuem um éthos aos modos
musicais, associando caracteres particulares às melodias e seus efeitos no
caráter humano;
3) orienta-se aos especialistas na ciência harmônica, apontando a falácia
existente entre suas bases teóricas, carentes de uma sistematização
precisa, e a performance musical.
Texto do Papiro de Hibeh
“Muitas vezes fiquei surpreso, ó cidadãos, com as construções de certas
pessoas que não pertencem às atividades de [vossa área de competência],
sem que vocês percebam. Em suas próprias palavras, elas se definem como
‘harmonistas’[1]; e julgam [várias canções] e confrontam umas às outras,
condenam algumas, aleatoriamente, e sem razão, elogiam outras. (...). Elas
também dizem que algumas melodias fazem as pessoas disciplinadas,
outras prudentes, outras justas, outras valorosas ou covardes, não
compreendendo que o gênero cromático não pode tornar covarde, nem o
enarmônico valoroso a quem o emprega em sua música. (...) Com relação a
chamada ‘harmônica’, a qual dizem ter bom conhecimento, elas não têm
nada a dizer, mas deixam-se embargar pelo entusiasmo: e acompanham
erroneamente o ritmo, batendo no banco no qual se sentam,
simultaneamente ao som do psalterion[2]. Elas não hesitam em declarar
abertamente que certas melodias possuem uma função [peculiarmente
característica] de louro, outras de hera[3]...”
[1] Harmonikoi, estudantes da harmoniké, ou seja, de análise teórica das
estruturas musicais.
[2] Instrumento de corda tocado com os dedos.
[3] BARKER (1984, p. 185, nota 13):”O louro é associado a Apolo e a hera a
Dionísios. A classificação reflete a diferença entre o estilo mais sóbrio e
circunspecto e a música que é emocional e extásica”.
Críticas - Filodemo de Gadara (século I a. C.)
- Epicurista
Epicurismo: sistema filosófico ensinado por Epicuro de Samos, filósofo
ateniense (séc. IV a.C.). Propunha uma vida de contínuo prazer como chave
para a felicidade, esse era o objetivo de seus ensinamentos morais. A
finalidade dessa filosofia não era teórica, mas sim bastante prática. Para
5. isso fundamentava-se em uma teoria do conhecimento empirista, em uma
física atomista e em uma ética hedonista.
- Visão mais pragmática da música
- Enfatiza aspectos técnicos–musicais e mecânico-sensíveis da escuta
- Música pertence ao domínio da prática e é separada do campo racional e
reflexivo
Frentes de ataque de Filodemo (W. Tatarkiewicz (I, 1979: 259):
I) contra a asserção segundo a qual existiria uma relação específica
entre música e alma, sustentando que o efeito da música sobre a
alma não é diferente daquele da arte culinária;
II) contra a pressuposta relação da música com a divindade, porque os
estados de êxtase conseguidos através da escuta musical são
facilmente explicáveis;
III) contra os seus pressupostos efeitos morais e sua capacidade de
reforçar ou enfraquecer a virtude;
IV) contra o seu poder de exprimir ou representar alguma coisa, em
particular, os caracteres”.
Demarcação entre a música e a poesia
“Pois eu escutei pessoas (...) surpresas com o fato de que seja o compositor
de música instrumental aquele que nós consideramos como músicos[1]
(...), ou que refutemos o qualificativo de músico a Píndaro, a Simônides e a
todos os poetas líricos” (...) “Acrescento ainda que, se Píndaro e Simônides
foram músicos, eles foram também poetas, e que se como músicos
compuseram [obras] desprovidas de significado, foi como poetas que, em
compensação, compuseram seus textos e que (...).”
[1] D. DELATTRE (op. cit.: 373, nota 4) assinala que nesta passagem o termo
‘músico’ é tomado na acepção proposta por A. Bélis, ou seja, o termo designa
literalmente “compositor de árias instrumentais”. E continua (idem, ibidem): “De
todo modo, Filodemo reserva o nome (menos nobre) de músico para aqueles que
só se ocupam dos materiais (infra-racionais), áloga, sem tocar no domínio do lógos
(identificado na ocorrência com o texto poético); quanto a apelação de poeta, este
pode designar para ele seja o autor do texto poético, seja o autor do texto poético
que igualmente tenha composto a melodia desde que, como Píndaro ou Simônides,
um mesmo artista tem uma dupla competência”.
Comentário de D. Delattre
“em outros termos, a linha demarcatória que Filodemo traça entre poesia e
música[1] é justamente aquela que separa a ordem do lógos – da razão, do
discurso, do racional – da ordem do álogon – daquilo que é desprovido de
razão, do irracional”.
[1] Aristoxeno já havia esboçado esta distinção em seu tratado: “para o músico, a
exatidão da percepção tem quase valor de princípio: é impossível àquele cuja
percepção é deficiente se explicar corretamente sobre fatos que ele jamais
6. percebeu” (BÉLIS, 1986, p. 194); ou ainda: “a compreensão da música depende de
duas faculdades, da sensação e da memória; é necessário perceber o [som]
presente e se lembrar do [som] passado; não há nenhum outro meio de
compreender os fenômenos musicais”(BÉLIS, idem, p. 204).
Críticas - Sexto Empírico (última metade do séc. II d. C.)
Médico e cético grego
Ceticismo: doutrina segundo a qual o espírito humano não pode atingir
nenhuma certeza a respeito da verdade, o que resulta em um procedimento
intelectual de dúvida permanente e na abdicação, por inata incapacidade,
de uma compreensão metafísica, religiosa ou absoluta do real.
Obra: Adversus Mathematicus – contra os mathematikoi (os que eram
encarregados de ensinar as disciplinas derivadas da chamada enkyklios
paideia) – artes liberais.
Sexto Empírico (Adversus mathematicus)
Objetivo:
1. Obra ataca as disciplinas liberais e não os dogmas e opiniões das
distintas escolas filosóficas
2. Procura atestar que toda afirmação pode ser contraposta com
argumentos de igual peso, o que leva à suspensão do juízo.
3. Procura demonstrar a inapreensibilidade dos princípios que
conformam as disciplinas liberais
4. Provar a completa inutilidade prática de tais estudos.
Três formas de se compreender o termo música:
1. Ciência que se ocupa da melodia, notas, criação dos ritmos, etc
2. Prática instrumental
3. Sentido mais amplo – termo harmonioso – usa-se mesmo que a
referência seja a um pintor (inspirado nas Musas)
Objetivo: refutação do primeiro sentido
Dois caminhos de demonstração:
1. música não é necessária para a felicidade, demonstração de que suas
afirmações são duvidosas e seus argumentos podem ser rebatidos
2. pressupostos questionáveis naufragariam a música como um todo
Argumentos em defesa da música:
7. • música é igual à filosofia – pois pode influenciar e alterar os
comportamentos (sedução persuasiva)
• música incita ao combate e à tranqüilidade (teoria do éthos)
• músicos sãos fiéis guardiões e conselheiros das mulheres
• músico tem a alma em harmonia (Platão)
• música antiga era necessária na disciplina
• poesia é útil para a vida e a música adorna pelas melodias e a torna
cantável, música também será útil
Refutações dos argumentos apresentados:
• música não podem influenciar pessoas (teoria do éthos) o som
perturba mais do que incita a qualquer coisa
• o éthos não existe também porque o que ele faz de fato é distrair a
pessoa daquilo que o incomoda
• os músicos parecem ter mais ação sobre as pessoas do que os
filósofos
• não parece ser útil para a vida, visto que poesia também não é útil
• não é corretivo das paixões
Principal argumento contra a música é que, se ela é de utilidade, é porque:
• o que entende música desfruta mais do que o leigo
• a virtude só pode ser obtida por uma pessoa que passou pelo ensino
musical
• os elementos da música são os mesmos da ciência ou dos
assuntos filosóficos
• o universo é governado pela harmonia e assim, precisamos dos
teoremas da música para a compreensão do todo
• certas melodias imprimem um caráter na alma
Segundo tipo de refutação: sobre os princípios da música
(argumentos de natureza técnica)
“Dado que a música é a ciência do afinado e desafinado, do que é ritmico e
do que não é, se demonstramos que nem as melodias e nem os ritmos são
coisas existentes, evidentemente teremos estabelecido que tampouco a
música tem alguma realidade”
Som – assim como as cores, o doce e o amargo, são objetos da percepção
Este pode ser grave ou agudo; quando emitido pela voz, sem que haja
desvio da percepção para o grave ou agudo, chama-se nota.
Nota (definição dos músicos): nota é a queda de um som musical em uma
única tensão
Tipos de notas: homófonas e não homófonas; dissonantes e consonantes;
intervalos consonantes e dissonantes.
8. Todo intervalo tem seus fundamentos nas notas, assim como o seu caráter
(éthos) (certo tipo de melodia)
Melodias: gênero cromático, enarmônico e diatônico
Conclusão: toda a teoria da melodia se baseia apenas nas notas;
se estas forem abolidas da música, não restará nada.
Podemos dizer que existem notas?
Notas são sons – segundo os dogmáticos, os sons são inexistentes;
para os cirenaicos, só existem afecções; Demócrito e Platão suprimiram
ram todo objeto sensível (assim, o som também está suprimido)
Se existe som, ele é corpóreo ou incorpóreo; para os peripatéticos
não é corpóreo, para os estoicos não é incorpóreo
Conclusão– o som não existe
Outros argumentos: se não existe alma, tampouco existem os sentidos,
visto que esses são parte dela; se não existem os sentidos, tampouco
existem os objetos sensíveis, pois sua realidade se concebe em relação
àqueles. E se não existem objetos sensíveis, tampouco existe o som, visto
que pertence à classe de objetos sensíveis. Assim, o som não existe.
Outro ponto: provar a inexistência da música em virtude da produção do
ritmo.
Ritmo: sistema formado por pés (ársis e thésis)
Pés: formado de tempos
“Se o tempo é algo, é algo limitado ou ilimitado. Porém limitado não é, pois
neste caso estaremos dizendo que houve uma vez um tempo em que o
tempo não existia e haverá algum momento em que o tempo não existirá;
tampouco é ilimitado, pois há um tempo passado e um futuro, e sem
nenhum desses dois tempos existe, então o tempo é limitado, e se ambos
existem então, tanto o passado como o futuro existirão no presente, o que
é absurdo. E está claro que o composto de coisas inexistentes é inexistente;
mas o tempo, ao estar composto do passado, que já não é, e do futuro, que
todavia não é, será inexistente”
Conclusão: o tempo não é nada, tampouco os pés, os ritmos e a ciência dos
ritmos.