Sistema de Bibliotecas UCS - Cantos do fim do século
Será mesmo indispensável a guerra
1. Será mesmo indispensável a guerra?
Bem, já que o mundo (mais uma vez) não acabou, retornemos então à liça. O filosofista
Friedrich Nietzsche, no aforismo 477 de Humano, demasiado humano, na tradução de
Paulo César de Souza publicada pela editora Companhia de Bolso, escreveu o seguinte:
477. É indispensável a guerra. - É um sonho vão de belas almas ainda esperar muito
(ou só então realmente muito) da humanidade, uma vez que ela tenha desaprendido
de fazer guerra. Por enquanto não conhecemos outro meio que pudesse transmitir
a povos extenuados a rude energia do acampamento militar, o ódio profundo e
impessoal, o sangue-frio de quem mata com boa consciência, o ardor comum em
organizar a destruição do inimigo, a orgulhosa indiferença ante as grandes perdas,
ante a própria existência e a dos amigos, o surdo abalo sísmico das almas, de
maneira tão forte e segura como faz toda grande guerra: os regatos e torrentes que
nela irrompem, embora arrastem pedras e imundícies de toda espécie e arrasem campos
de tenras culturas, em circunstâncias favoráveis farão depois girar, com nova energia, as
engrenagens das oficinas do espírito. A cultura não pode absolutamente dispensar as
paixões, os vícios e as maldades. - Quando os romanos imperiais se cansaram um tanto
de guerra, procuraram obter nova energia da caça aos animais, dos combates de
gladiadores e da perseguição aos cristãos. Os ingleses de hoje, que no conjunto também
parece ter renunciado à guerra, adotam um outro meio para regenerar essas forças que
desaparecem: as perigosas viagens de descobrimentos, circunavegações e escaladas de
montanhas, realizadas com objetivos científicos, segundo dizem, mas na verdade a fim
de levar para casa energias extras, oriundas de perigos e aventuras de toda espécie.
Ainda se descobrirão muitos desses substitutos da guerra, mas talvez se compreenda
cada vez mais, graças a eles, que uma humanidade altamente cultivada e por isso
necessariamente exausta, como a dos europeus atuais, não apenas precisa de
guerras, mas das maiores e terríveis guerras - ou seja, de temporárias recaídas na
barbárie -, para não perder, devido aos meios da cultura, sua própria cultura e
existência. (grifos em negrito e sublinhado meus)
O sofista Hegel também escreveu algo similar em sua Fenomenologia do Espírito, §455
(grifos em negrito e sublinhado e inserções entre colchetes meus):
Para não deixar que se enraízem e endureçam nesse isolar-se, e que por isso o todo se
desagregue e o espírito se evapore, o Governo deve, de tempos em tempos, sacudi-los
[a comunidade] em seu íntimo pelas guerras, e com isso lhes ferir e perturbar a
ordem rotineira e o direito à independência. Quanto aos indivíduos, que afundados
nessa rotina e direito se desprendem do todo e aspiram ao ser-para-si inviolável, e à
segurança da pessoa, o Governo, no trabalho que lhes impõe, deve dar-lhes a sentir
seu senhor: a morte. Por essa dissolução da forma da subsistência, o espírito impede o
soçobrar do ser-aí ético no natural; preserva o Si de sua consciência e o eleva à
liberdade e à sua força.
De fato não se pode negar os diversos benefícios que traz a guerra para as gerações que
as sucedem (porque as que lhe são contemporâneas só colhem desgraças e sofrimentos
sem fim). Quantos avanços tecnológicos e reformas institucionais úteis e progressistas
são obtidos após uma longa e sangrenta guerra. E realmente parece que quanto mais
terríveis são as guerras, maiores são os avanços que dela decorrem. Se um alienígena
visitasse a Terra e lhe contássemos que o mundo sofreu uma grande e devastadora
guerra mundial há não mais que 70 anos, e não lhe contássemos quem ganhou e quem
perdeu, é bem possível que ele situasse a Alemanha, a Itália e o Japão entre as nações
vencedoras, dada a transformação que ocorreu em suas culturas, em suas tecnologias,
2. em suas instituições e nas formas de organização do Estado depois da hecatombe que
provocaram e que recaiu sobre eles mesmos.
Mas será verdade que não podemos prescindir da guerra, e que a única forma de a
humanidade avançar é com essas "temporárias recaídas na barbárie"? Para quem
prescindiu da ideia de liberdade inteligível e, consequentemente, adquiriu mentalidade
meramente utilitária, em contraposição a uma mentalidade ética, como é o caso de
Nietzsche, não há mesmo outra forma de ver o mundo (sem contradizer-se a si mesmo)
que não sob essa perspectiva pessimista, baseada na análise empírica do passado da
humanidade. Como para Nietzsche nós não somos melhores do que os animais (visto
que estes não são dotados de liberdade inteligível), que estamos sujeitos à simples "lei
de evolução", onde o forte deve sobreviver e o fraco perecer, pelo bem da espécie em
desprezo pelo indivíduo, a necessidade da guerra, da luta constante, das "recaídas na
barbárie", seria inerente à nossa natureza, sob pena de a humanidade "amolecer",
degenerar e vir a desaparecer no futuro. Em O Anticristo, item II, na tradução de Pietro
Nassetti publicada pela editora Martin Claret, Nietzsche escreveu:
"Quanto aos fracos, aos incapazes, esses que pereçam: primeiro princípio de nossa
caridade. E há mesmo que os ajudar a desaparecer! O que é mais nocivo do que todos os
vícios? - A compaixão que suporta a ação em benefício de todos os fracos, de todos os
incapazes: o cristianismo..."
Tudo isso é muito lógico e coerente sob a perspectiva utilitarista, que suprime a ideia de
liberdade inteligível, pois como é que vamos mudar a nossa natureza se não somos
donos do nosso destino, se o que fazemos já está predeterminado pela natureza da nossa
constituição, se os que são "fracos" nada poderão fazer para mudar essa sua situação e
estão irremediavelmente perdidos? Nietzsche escreveu, no aforismo 39 de Humano,
demasiado humano supracitado:
"39. A fábula da liberdade inteligível - A história dos sentimentos em virtude dos quais
tornamos alguém responsável por seus atos.... (...) De maneira que sucessivamente
tornamos o homem responsável por seus efeitos, depois por suas ações, depois por seus
motivos e finalmente por seu próprio ser. E afinal descobrimos que tampouco este pode
ser responsável, na medida em que é inteiramente uma consequência necessária e se
forma a partir dos elementos e influxos de coisas passadas e presentes: portanto, que
não se pode tornar o homem responsável por nada, seja por seu ser, por seus motivos,
por suas ações ou por seus efeitos. Com isso chegamos ao conhecimento de que a
história dos sentimentos morais é a história de um erro, o erro da responsabilidade, que
se baseia no erro do livre-arbítrio." (grifos em negrito e sublinhado meus)
E conclui (dogmaticamente):
"Ninguém é responsável por suas ações, ninguém é responsável por seu ser; julgar
significa ser injusto. Isso também vale para quando o indivíduo julga a si mesmo. Essa
tese é clara como a luz do sol: no entanto, todos preferem retornar à sombra e à
inverdade: por medo das consequências." (grifos em negrito e sublinhado meus)
É de se questionar como é que ele transformou essa especulação ou convicção subjetiva
(opinião ou crença) em certeza objetiva (conhecimento ou saber) (para a diferenciação
entre opinião, crença e saber, favor referir-se a outro artigo publicado neste blog sob o
título Sobre a crença e a fé...)
Foi a partir de alguma experiência que Nietzsche provou a fábula da liberdade
inteligível? Mas a liberdade inteligível é uma faculdade suprassensível, ou seja,
inacessível a qualquer experiência, dado que não podemos representá-la no tempo ou no
espaço. Foi então a priori (pela razão pura, sem qualquer recurso empírico) que
3. Nietzsche demonstrou que a liberdade inteligível é uma fábula? Mas a Crítica da Razão
Pura já nos ensinou que nenhum contingente pode ser conhecido a priori, e a existência
de objetos dotados de liberdade inteligível é contingente (ou seja, se existe, poderia não
existir sem que a ordem natural do universo fosse perturbada).
Toda afirmação objetiva sobre objetos contingentes suprassensíveis é dogmática, de
modo que Nietzsche, quando "descobriu" a "fábula da liberdade inteligível", só o pode
ter feito dogmaticamente. Vê-se, por aí, que Nietzsche tornou-se culpado do mesmo
vício que acusou as igrejas cristãs: o dogmatismo. A existência de seres dotados de
liberdade inteligível só pode ser objeto de crença (certeza subjetiva), mas nunca de um
saber (certeza objetiva), e Nietzsche elevou o que era apenas sua crença legítima
(mesmo que falsa) ao status de um saber ilegítimo, ou seja, ao status de um dogma.
Seja como for, ao partir dessa conclusão dogmática, tudo para Nietzsche se torna
permitido, tudo é inocência, tudo é arte e poesia. Na primeira dissertação de Genealogia
da Moral, intitulada "Bom e mau", "bom e ruim", item 11, na tradução de Paulo César
de Souza publicada pela editora Companhia de Bolso, Nietzsche escreveu:
"...Ali desfrutam a liberdade de toda coerção social, na selva se recobram da tensão
trazida por um longo cerceamento e confinamento na paz da comunidade, retornam à
inocente consciência dos animais de rapina, como jubilosos monstros que deixam atrás
de si, com ânimo elevado e equilíbrio interior, uma sucessão horrenda de assassínios,
incêndios, violações e torturas, como se tudo não passasse de brincadeira de
estudantes, convencidos de que mais uma vez os poetas muito terão para cantar e
louvar. Na raiz de todas as raças nobres é difícil não reconhecer o animal de rapina, a
magnífica besta loura que vagueia ávida de espólios e vitórias; de quando em quando
este cerne oculto necessita desafogo, o animal tem que sair fora, tem que voltar à selva -
nobreza romana, árabe, germânica, japonesa, heróis homéricos, vikings escandinavos:
nesta necessidade todos se assemelham." (grifos em negrito e sublinhado meus)
E em Além do bem e do mal, no capítulo 2 intitulado O espírito livre, item 44, na
tradução de Paulo César de Souza publicada pela editora Companhia de Bolso,
Nietzsche escreveu:
"...Mas ao dizer isto sinto - para com eles, não menos do que para conosco, seus arautos
e precursores, nós, espíritos livres! - a obrigação de varrer para longe de nós,
conjuntamente, um velho, tolo equívoco e preconceito, que por muito tempo
obscureceu, como uma névoa, o conceito de "espírito livre"... Em suma, e
lamentavelmente, eles são niveladores, esses falsamente chamados "espíritos livres" -
escravos eloquentes e folhetinescos do gosto democrático e suas "ideias modernas";
todos eles sem solidão, sem solidão própria, rapazes bonzinhos e desajeitados... O que
eles gostariam de perseguir com todas as forças é a universal felicidade do rebanho em
pasto verde, com segurança, ausência de perigo, bem-estar e facilidade para todos; suas
duas doutrinas e cantigas mais lembradas são "igualdade de direitos" e "compaixão
pelos que sofrem" - e o sofrimento mesmo é visto por eles como algo que se deve
abolir... Nós, os avessos, que abrimos os olhos e a consciência de onde e de que modo,
até hoje, a planta "homem" cresceu mais vigorosamente às alturas, acreditamos que isso
sempre ocorreu em condições opostas... - acreditamos que dureza, violência,
escravidão, perigo nas ruas e no coração, ocultamento, estoicismo, arte da tentação
e do diabolismo de toda espécie, tudo o que há de mau, terrível, tirânico, tudo o
que há de animal de rapina e de serpente no homem serve tão bem à elevação da
espécie "homem" quanto o seu contrário." (grifos em negrito e sublinhado meus)
4. De fato, são todas essas consequências muito lógicas para aquele que aboliu o conceito
de liberdade inteligível, ou seja, para aquele que aderiu explicitamente o materialismo
(pois é o materialismo que nega a liberdade inteligível). Quando esse conceito
desaparece, desaparece também o valor do indivíduo. No gênero de materialismo
adotado por Nietzsche, que as guerras tragam sofrimento e destruição, pouco importa,
porque são apenas indivíduos (agora considerados simples coisas) que perecem,
enquanto que a espécie humana se erguerá das cinzas mais "forte" do que antes. O bem
físico da espécie é também a razão pelo qual a guerra e tudo o que há de "mau, terrível e
tirânico" na espécie humana não deve ser erradicado, mas pelo contrário, estimulado.
Não se pode, portanto, condenar a apropriação que os nazistas fizeram da filosofia
nietzscheniana. Compare-se com o que disse Adolf Hitler, em Mein Kampf (Minha
luta), citado por William Shirer em Ascenção e Queda do Terceiro Reich, Parte I (A
ascensão de Adolf Hitler), capítulo 4 (As teorias de Hitler e as raízes do Terceiro
Reich):
"Em oposição à burguesia e aos mundos marxista e judaico, a filosofia "tribal" vê a
importância da espécie humana nos seus elementos raciais básicos. Vê, no Estado,
apenas um meio para a consecução de um fim, e considera este fim a preservação da
raça, não acreditando, portanto, de modo algum, numa igualdade racial; e reconhece,
concomitantemente, suas diferenças e seu maior ou menor valor, sentindo-se obrigado a
promover a vitória do melhor e do mais forte e exigir a submissão do inferior e do
mais fraco, de acordo com o eterno propósito do universo. É útil, assim, em
princípio, a concepção aristocrática básica da natureza e acredita na validade dessa lei
até o último dos mortais. Vê não apenas os diferentes valores das raças, mas
também os diferentes valores das pessoas. Extrai das massas a importância da
personalidade individual e assim (...) tem um sentido organizador. (...)"
"Assim, a filosofia de vida "tribal" corresponde aos mais profundos anseios da
natureza, já que restaura aquela ação livre das forças que necessariamente levará a
gerações cada vez melhores, até que afinal o melhor da humanidade, tendo
alcançado a posse deste mundo, disporá de caminho livre para agir em superiores
domínios."
"O Estado tribal (...) deve fazer com que tudo gire em torno da raça. Deve cuidar de sua
pureza (...), deve providenciar para que apenas às pessoas sadias seja conferido o direito
de procriar; pois seria uma desgraça alguém, apesar da própria doença e deficiência,
trazer crianças ao mundo, do mesmo modo que renunciar a isto constituiria elevada
honra. Inversamente, deve considerar condenável a recusa de crianças sadias à nação.
Aqui o Estado (tribal) age como guardião de um futuro milenário, em face do qual os
desejos e o egoísmo do indivíduo nada devem significar. (...) Um Estado tribal deve,
portanto, começar por arrancar o casamento da situação de contínuo poluidor da raça,
guindando-o a outra de mais alto nível, cujo objetivo será produzir criaturas à imagem
de Deus e não monstruosidades a meio caminho entre o homem e o macaco." (grifos em
negrito e sublinhado meus)
Vê-se bem aqui um profundo amor pela humanidade enquanto espécie (que se quer ver
aprimorada e purificada) e o mais profundo desprezo pelo indivíduo, que então passa a
ser visto como simples coisa desprovida de direitos, que se não for útil para a espécie
humana em seu conjunto pode ser descartado como um artefato que não possui mais
valor em si mesmo. Daí a fundamentação dos genocídios. E tudo isso é logicamente
possível desde que se tenha abolido a crença na existência de seres dotados de liberdade
inteligível, pois seres sem essa liberdade se assemelham a simples máquinas mais ou
5. menos perfeitas que só são úteis quando atendem a determinados fins colocados acima
delas em grau de importância. Um ser dotado de liberdade inteligível, pelo contrário,
jamais poderia ser disposto como simples objeto, ainda que fosse em benefício da
humanidade inteira, porque é um fim em si mesmo, um fim terminal da Criação dotado
de dignidade intrínseca. O bem-estar de todos não vale a supressão do direito de uma
pessoa apenas, considerando-a dotada de liberdade inteligível.
No comunismo marxista, que também aboliu a liberdade inteligível em favor de um
determinismo histórico que submeteria inapelavelmente a todos, as coisas não se
passam de maneira diversa, embora seja diferente quanto à forma. O direito do
indivíduo foi também desprezado em favor da felicidade das massas. As pessoas objetos
que não tinham mais utilidade para a humanidade e para a sociedade, os "parasitas" (que
no comunismo eram denominados de burgueses), foram sistematicamente expurgados
como coisas em gigantescos genocídios em qualquer país onde a ideologia marxista
tenha prosperado e adquirido o controle da nação. O nazismo morreu em 1945, mas é
preciso ficar atento porque o "espectro do comunismo" ainda ronda, mesmo nos dias de
hoje, neste início do século 21. É uma das últimas pragas que não foram ainda
totalmente erradicadas do planeta.
Mas temos o direito de suprimir a ideia da liberdade inteligível? Não sendo possível
prová-la real ou ilusória, como é que devemos nos orientar no julgamento? Em havendo
dúvida objetiva a respeito da existência de seres dotados de liberdade inteligível, tenho
eu, subjetivamente, o direito de agir no mundo como se eu fosse um "inocente animal de
rapina", cometendo toda espécie de violações e torturas, como se eu não fosse
responsável por nada? Em havendo dúvida objetiva a respeito da existência de seres
dotados de liberdade inteligível, tenho eu, subjetivamente, o direito de tratar o outro
como simples coisa, que pode ser usada conforme for para mim mais útil e disposta
quando não tiver mais valor? Por isso é que Kant disse, e com muita razão (e desafio
alguém a tentar refutar), que a liberdade inteligível não pode ser objetivamente provada
(como um saber), mas ela deve ser subjetivamente postulada (como uma crença
necessária), a menos que queiramos ver os povos agindo reciprocamente como se
fossem simples artefatos. Na Crítica da Razão Pura, parte II (Doutrina Transcendental
do Método), capítulo II (O cânone da razão pura), primeira seção (Do fim último do uso
puro da nossa razão), na tradução de Manuela Pinto dos Santos e Alexandre Fradique
Morujão, e publicado pela Fundação Calouste Gulbenkian, de Lisboa, Kant escreveu:
"Prático é tudo aquilo que é possível pela liberdade [inteligível, a fim de manter a
terminologia utilizada por Nietzsche]. Mas, se as condições de exercício do nosso livre
arbítrio são empíricas, a razão só pode ter, nesse caso, um uso regulador e apenas pode
servir para efetuar a unidade de leis empíricas; assim, na doutrina da prudência [ou
doutrina de felicidade], a unificação de todos os fins, dados pelas nossas inclinações
num fim único, a felicidade, e a concordância dos meios para a alcançar constituem toda
a obra da razão que, para esse efeito, não pode fornecer outra coisa senão leis
pragmáticas [ou seja, baseadas no sucesso ou insucesso de experiências passadas] da
nossa livre conduta, próprias para nos alcançarem os fins recomendados pelos sentidos,
mas de modo nenhum leis puras completamente determinadas a priori. Em
contrapartida, as leis práticas puras, cujo fim é dado completamente a priori pela razão
e que comandam, não de modo empiricamente condicionado, mas absoluto, seriam
produtos da razão pura. Ora tais são as leis morais; por conseguinte, pertencem somente
ao uso prático da razão pura e admitem um cânone."
6. "Por conseguinte, o equipamento da razão, no trabalho que se pode chamar filosofia
pura, está de fato orientado apenas para os três problemas enunciados. Mas estes
mesmos têm, por sua vez, um fim mais remoto, a saber, o que se deve fazer se a
vontade é livre, se há um Deus e uma vida futura. Ora, como isto diz respeito à nossa
conduta relativamente ao fim supremo, o fim último da natureza sábia e providente na
constituição da nossa razão, consiste somente no que é moral." (grifos em negrito e
sublinhado meus; inserções em colchetes minhas)
Mesmo que, por um meio miraculoso qualquer fosse possível a prova de que a liberdade
inteligível fosse uma ilusão, ainda assim deveríamos continuar a postular a sua
existência, por causa das consequências (expostas acima) de sua inexistência.
Infelizmente os sofistas pós-modernos que foram intitulados (por eles mesmos ou por
outros) filósofos não viram as coisas desse modo, por razões tais que talvez em outra
ocasião eu venha a tratar neste Blog.
Mas restabelecendo-se então a filosofia para a sua verdadeira finalidade e admitindo
como existente a liberdade inteligível (mesmo sem a menor possibilidade ou pretensão
de conseguir provar isso), como fica então a questão da guerra, tratada no início deste
texto. A guerra é também necessária? Se for, é sempre necessária? Poderá um dia a
humanidade prescindir da guerra? Tem a humanidade a obrigação de erradicá-la? Em
Ideia de uma História Universal de um Ponto de Vista Cosmopolita, na sétima
proposição, na tradução de Rodrigo Naves e Ricardo R. Terra, e publicado pela editora
Martins Fontes, Kant escreveu:
"A natureza se serviu novamente da incompatibilidade entre os homens, mesmo entre
as grandes sociedades e corpos políticos desta espécie de criatura, como um meio para
encontrar, no seu inevitável antagonismo, um estado de tranquilidade e segurança; ou
seja, por meio de guerras, por meio de seus excessivos e incessantes preparativos, por
meio da miséria, advinda deles, que todo Estado finalmente deve padecer em seu
interior, mesmo em tempo de paz, a natureza impele a tentativas inicialmente
imperfeitas, mas finalmente, após tanta devastação e transtornos, e mesmo depois do
esgotamento total de suas forças internas, conduz os Estados àquilo que a razão
poderia ter-lhes dito sem tão tristes experiências, a saber: sair do Estado sem leis dos
selvagens para entrar numa federação de nações em que todo Estado, mesmo o
menor deles, pudesse esperar sua segurança e direito não da própria força ou juízo
legal, mas somente desta grande confederação de nações de um poder unificado e
da decisão segundo leis de uma vontade unificada. Tão fantástica quanto esta ideia
possa parecer, e embora, enquanto tal, se preste ao riso no Abbé de Saint-Pierre ou em
Rosseau (talvez porque eles acreditassem na realização demasiado próxima dela), é a
saída inevitável da miséria em que os homens se colocam mutuamente e que deve
obrigar os Estados à mesma decisão (ainda que só a admitam com dificuldade) que
coagiu tão a contra-gosto o homem selvagem, a saber: abdicar de sua liberdade brutal e
buscar tranquilidade e segurança numa constituição conforme leis. Todas as guerras
são, assim, tentativas (não segundo os propósitos dos homens, mas segundo os da
natureza) de estabelecer novas relações entre os Estados e, por meio da destruição
ou ao menos pelo desmembramento dos velhos, formar novos corpos que, porém,
novamente, ou em si mesmos ou na relação com os outros, não podem manter-se, e por
isso precisam enfrentar novas revoluções semelhantes; até que finalmente, em parte por
meio da melhor ordenação possível da constituição civil, internamente, em parte por
meio de um acordo e uma legislação comuns, exteriormente, seja alcançado um Estado
que, semelhante a uma República civil, possa manter-se a si mesmo como um
autômato." (grifos em negrito e sublinhado meus)
7. Com Kant, a guerra adquire um novo contexto. Ela é necessária não como um fim em si
mesma, como queria Nietzsche (quando disse que devíamos amar a paz como um meio
para novas guerras, que a boa guerra é a que santifica todas as coisas, que a guerra e
o valor têm feito mais coisas grandes do que o amor do próximo - em Assim falava
Zaratustra, Da guerra e dos guerreiros), mas como um meio de a humanidade adquirir
experiência que lhe possibilitará, no futuro, sair com sagacidade desse estado miserável
de natureza (selvagem), elaborar uma constituição civil que administre universalmente o
direito e aí sim estabelecer a paz entre as nações. Sob o conceito de liberdade
inteligível, é o próprio homem, por meio do uso do seu livre-arbítrio, que joga o jogo da
vida, de acordo com suas disposições originárias susceptíveis de serem aprimoradas;
porém é a natureza quem posiciona os jogadores, não da forma que quer o homem, mas
no propósito da natureza que tem em vista a melhor utilização da incompatibilidade
natural entre os homens para que ele, por si só, por meio da experiência, descubra,
elabore e estabeleça a melhor forma de constituição civil no futuro. A guerra é,
portanto, necessária apenas enquanto o homem, tanto individualmente como
coletivamente (em forma de nações), não se dispôs a renunciar à sua liberdade empírica
selvagem, sem leis, pela liberdade inteligível dos seres racionais, sob leis, em uma
constituição civil que torne possível a liberdade de um coexistir com a liberdade de
todos. Mas a guerra não é necessária sempre, visto que uma vez estabelecida a
constituição civil perfeita (a República, internamente; e as federações dos Estados
livres, externamente), a guerra deixa de ser necessária.
É à natureza (entenda-se aqui como sinônimo de Providência) que cabe então produzir a
guerra, por meio da disposição dos homens na Terra, o que se dá por meio dos
nascimentos (nunca sob o controle dos homens, mas apenas da natureza), de modo a
tirar proveito, em favor dos próprios homens (embora eles não se deem conta disso), da
incompatibilidade natural que existe entre eles. Mas ao homem cabe, por sua vez, como
dever, a obrigação de buscar a constituição jurídica perfeita, mesmo que ela não possa
ser alcançada. Kant, em Em Ideia de uma História Universal de um Ponto de Vista
Cosmopolita, na quarta proposição, mesma tradução e edição supracitada, escreveu:
"Agradeçamos, pois, à natureza a intratabilidade, a vaidade que produz a inveja
competitiva, pelo sempre insatisfeito desejo de ter e também de dominar! Sem eles
todas as excelentes disposições naturais da humanidade permaneceriam sem
desenvolvimento num sono eterno. O homem quer a concórdia, mas a natureza sabe
mais o que é melhor para a espécie: ela quer a discórdia. Ele quer viver cômoda e
prazerosamente, mas a natureza quer que ele abandone a indolência e o contentamento
ocioso e lance-se ao trabalho e à fadiga, de modo a conseguir os meios que ao fim o
livrem inteligentemente dos últimos. Os impulsos naturais que conduzem a isto, as
fontes da insociabilidade e da oposição geral, de que advêm tantos males, mas que
também impelem a uma tensão renovada das forças e a um maior desenvolvimento das
disposições naturais, revelam também a disposição de um criador sábio, e não a mão de
um espírito maligno que tenha se intrometido na magnífica obra do Criador ou a
estragado por inveja." (grifos em negrito e sublinhado meus)
Na terceira proposição Kant ainda diz:
"A natureza parece ter-se satisfeito aqui com o máximo de economia e ter medido os
dotes animais dos homens de maneira estrita e exata em função das maiores
necessidades da existência em seus primórdios, como se ela quisesse dizer que o
homem devia, se ele se elevasse um dia por meio de seu trabalho da máxima rudeza à
máxima destreza e à perfeição interna do modo de pensar e (tanto quanto é possível na
Terra), mediante isso, à felicidade, ter o mérito exclusivo disso e fosse grato somente
8. a si mesmo - como se ela apontasse mais para a auto-estima racional do que para o
bem-estar." (grifos em negrito e sublinhado meus)
Em Antropologia de um ponto de vista pragmático, Livro Terceiro (Da faculdade de
desejar), Divisão das Paixões, item C (Da inclinação à ilusão como paixão), na
tradução de Clélia Aparecida Martins e publicado pela editora Iluminuras, Kant também
escreveu:
"Os jogos de bola dos meninos, as lutas, as corridas, as brincadeiras de soldado, além
disso, os dos homens no jogo de xadrez e de cartas (onde, nos primeiros, o propósito é a
mera superioridade no entendimento e, nos segundos, o puro ganho); finalmente, os
jogos do cidadão que tenta sua sorte nas sociedades públicas com o faro (jogos de azar)
ou com dados -, todos eles são inconscientemente estimulados pela sábia natureza à
empreitada de testar suas forças em disputa com outros, a fim propriamente de que a
força vital em geral se preserve da extenuação e se mantenha ativa. Dois desses
antagonistas creem jogar um contra o outro, porém de fato a natureza joga com
ambos, do que a razão pode claramente convencê-los se refletem como os meios
escolhidos por eles se ajustam mal a seus fins." (grifos em negrito e sublinhado meus)
Dessa forma, a guerra e a barbárie não são, de forma alguma, os únicos meios de manter
a nossa força vital ativa e livre da extenuação pela paz prolongada. Há as competições
no esporte, as competições da inteligência, os nossos próprios problemas e desafios
diários contra a natureza inóspita, no trabalho, na escola, nas nossas relações sociais, no
lar com nossos cônjuges, filhos, pais, parentes, amigos, inimigos e até contra nós
mesmos, no sentido de nos coagirmos a utilizar todas essas paixões e inclinações em
concordância simultânea com a ética, para os quais se requer conhecimentos, força de
vontade e sagacidade para nos sairmos bem. Tudo isso é capaz desenvolver as nossas
faculdades uma vez que tenhamos desaprendido de fazer guerra. Por outro lado, é
também perfeitamente possível reconhecer os benefícios decorrentes das guerras sem
por isso fazer apologia a elas, mas muito pelo contrário, trabalhar para erradicá-la
definitivamente do planeta, visto que isso é apresentado para nós, pela nossa própria
razão, como uma obrigação. É sofístico, portanto, o argumento de que é o próprio
homem quem deve procurar manter a discórdia e a guerra; é à natureza que cabe isso,
onde os homens maus são seus simples instrumentos (para sua própria humilhação e
desgraça). Ao homem resta a obrigação de buscar a concórdia e à paz, mesmo que ela
por vezes pareça impossível.
Dizer, portanto, que não há liberdade inteligível e que, por isso, não somos responsáveis
por nossas ações, não é um produto da filosofia, mas do filosofisma. Digo isso não
porque eu possa provar que há liberdade inteligível, mas porque a crítica da razão já me
ensinou que é impossível provar que ela não existe e que, por outro lado, de um ponto
de vista prático, devo considerar a mim mesmo e aos outros como sendo portadores
dessa liberdade inteligível, como fins em si mesmos e portadores da dignidade
intrínseca decorrente, mesmo sem a menor possibilidade ou pretensão de provar isso.
De igual modo, dizer que a guerra e a barbárie são as únicas formas de manter em
movimento as forças vitais de uma humanidade extenuada pela paz prolongada, que não
pode haver substituto para a guerra, é um sofisma tão grosseiro que chega a ser um
absurdo que o filosofista que escreveu isso ainda seja, nos dias de hoje, estudado nas
faculdades de filosofia, quando deveria antes ser estudado nos cursos de patologia. Ao
que parece, a loucura de Nietzsche se manifestara bem antes da doença se explicitar, e a
tendência dele aos sofismas simplóreos, ao exagero e ao ridículo pode ser constatado em
vários de seus textos. Mas infelizmente o homem ainda tem uma inclinação muito forte
para considerar como genialidade o que não é nada mais do que eloquência e
9. extravagância, enquanto que tudo quanto disso se afasta é tomado por algo sem
importância e indigno de exame.
Muitas pessoas têm me acusado de ser excessivamente crítico com relação a alguns
filósofos (que tenho chamado aqui de filosofistas), notadamente os filósofos pós-modernos
em quase sua totalidade. Mas é impossível a quem lê e que possua uma gota
de discernimento são não se escandalizar com as aberrações que foram por eles
externadas, o que só se pode explicar pela loucura propriamente dita, ou por vícios
morais íntimos que se queria ocultar ou justificar por meio de sofismas engenhosamente
inventados a fim de encobri-los com a máscara da virtude. As biografias de vários
desses filosofistas são capazes de dizer muito sobre suas obras. Mas isso é assunto para
outro ensaio, em outra ocasião.
Rafael Gasparini Moreira [rafael.gasparini@gmail.com]
Petrópolis/RJ
Revisado em 13/5/2013.