1. Saúde do trabalhador no SUS: desafios e perspecti-
Edvânia Ângela de Souza Lourenço1 vas frente à precarização do trabalho
Íris Fenner Bertani2
Workers’ health at the Public Unified Health System – challenges
and perspectives facing precarious work
1 Doutoranda em Serviço Social Resumo
da Universidade Estadual Paulista
(Unesp). Assistente Social do Refletir sobre o campo saúde do(a) trabalhador(a) é o objetivo deste estudo.
Centro de Referência em Saúde do
Busca-se sublinhar o significado das condições de trabalho para o ser huma-
Trabalhador (CRST) de Franca-
SP. Docente do curso de Serviço no do ponto de vista da saúde. A premissa não é quantificar, mas inferir que
Social do Instituto Municipal de as condições de trabalho podem gerar danos à saúde, mas nem sempre apre-
Ensino Superior-SP. Membro do sentam de imediato a sua relação com o trabalho. São discutidas, a partir da
QUAVISSS. Franca-SP. abordagem qualitativa, três situações, as quais contemplam os trabalhos rural,
2 Professora Adjunta da Graduação informal e infantil e, como resultado, verifica-se a contradição da categoria
e da Pós-Graduação em Serviço trabalho, que, se por um lado é sinônimo de sociabilidade, por outro, contradi-
Social da Universidade Estadual toriamente, constitui-se em mecanismo de exclusão social na medida em que é
Paulista (Unesp) e Coordenadora realizado sem o reconhecimento dos direitos sociais e trabalhistas. Verifica-se
do QUAVISSS. Franca-SP. a expansão de formas de trabalho sem regulamentação, tais como o domiciliar
e o familiar e os realizados em locais como a rua e o lixo. Encerra-se a reflexão
com destaque ao papel do Sistema Único de Saúde (SUS) na “assistência inte-
gral” à saúde dos(as) trabalhadores(as) e ao desafio de atuar na perspectiva de
prevenção e promoção da saúde do trabalhador de modo integrado e articula-
do aos demais órgãos públicos que atuam nesta área.
Palavras-chave: saúde do trabalhador, acidentes de trabalho, doenças do tra-
balho, saúde pública e políticas públicas.
Abstract
The objective of this study is to ponder on occupational health, searching for
the meaning of work to workers’ health. The premise is not to quantify, but
to infer that the work conditions can generate damages to health, although
this relationship is not always immediately apparent. Three situations that
contemplate rural and informal work, as well as child labor are discussed, using
a qualitative approach. As a result, the contradiction of work is verified. It could
be a synonym for sociability, but on the other hand, it is a mechanism for social
exclusion, when conducted without the recognition of the workers’ social and
labor rights. The expansion of jobs without regulation have been observed such
as the ones conducted at home or within families, or on the streets and at the
waste landfills. The article ends by discussing the role of the Public Unified
Health System (SUS) in the “integral assistance” to workers’ health and the
challenge of acting with a preventive perspective and towards occupational
health promotion, in a joint effort with other public organization in this field.
Keywords: occupational health, work accidents, occupational diseases,
public health and public policy.
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2. Introdução
O SUS e o campo saúde do trabalhador proteção do meio ambiente, nele compre-
endido o trabalho”.
As ações de saúde do trabalhador têm
as suas raízes no processo histórico das lu- Na década de 1990, diversas portarias
tas sociais deflagradas no Brasil a partir da e leis foram criadas com o objetivo de ga-
década de 1970, mas ações inusitadas co- rantir os princípios básicos e a efetivação
meçaram a ganhar corpo apenas na década do SUS. No decorrer dos últimos 15 anos,
de 1980 nos governos municipais de ênfase apesar dos limites marcados pelo cliente-
política democrática. lismo, populismo e paternalismo presen-
tes na administração pública, o SUS tem
Pode-se perceber uma relação entre a
conseguido solidificar as bases para o di-
redemocratização do Estado brasileiro no
reito à saúde com ênfase na gestão demo-
decorrer dos anos de 1980 e a mudança
crática e participativa.
de postura política no enfrentamento dos
eventos agressivos à saúde no trabalho. Os protagonistas sociais e políticos
Segundo Vilela (2003), nessa época foram envolvidos na II Conferência Nacional de
constituídas as primeiras ações de saúde Saúde do Trabalhador (II CNST) debateram
do trabalhador no âmbito do SUS por meio e reafirmaram a responsabilidade do SUS
dos Programas de Saúde do Trabalhador frente aos acidentes de trabalho. O relató-
(PST) em vários municípios. rio final do II CNST garantiu “[...] à unifica-
ção no SUS de todas as ações de saúde do
Segundo Lacaz (1996), a década de
trabalhador” (LACAZ, 1997). É reconheci-
1980 representa um marco histórico para
da também pela continuidade das discus-
a saúde do trabalhador, pois este passa a
sões técnicas e políticas na constituição do
ser reconhecido como sujeito possuidor de
campo saúde do trabalhador e, portanto,
saber e não mero consumidor de serviços
para a observância da responsabilidade da
de saúde. O campo Saúde do Trabalhador,
política de saúde pública nos processos
segundo o autor, tem como pressuposto
de produção. Dias e Hoefel (2005, p. 820),
a participação dos(as) trabalhadores(as)
apontam que esta conferência também foi
no processo de avaliação e controle dos
marcada pela “[...] acirrada disputa quanto
acidentes de trabalho e não se restringe à
aos espaços de atuação entre os Ministérios
concepção de riscos profissionais e agentes
do Trabalho e da Saúde”.
causadores (físicos, biológicos, químicos,
mecânicos e ergonômicos), mas reconhece No final de 1990, em cumprimento a
outras determinações para os sofrimentos Lei Orgânica da Saúde (BRASIL, 1990b),
físico e mental, relacionando-as com o que delega ao SUS a revisão periódica da
processo produtivo. listagem oficial de doenças originadas no
processo de trabalho, foi editada a nova
Em seu estudo, Lacaz (1996) enfatiza
Lista de Doenças Relacionadas ao Traba-
ainda o papel substancial da Constituição
lho (BRASIL, 1999). Ressalta-se que, ao
Federal de 1988, precedida pela VIII Con-
estabelecer a relação entre doenças e tra-
ferência Nacional de Saúde, em 1986, e na
balho num conceito mais amplo e prever
continuidade pela 1ª Conferência Nacional
a sua revisão anualmente com vistas à
de Saúde do Trabalhador (I CNST), na as-
inclusão de novas doenças, propiciou um
sistência universal ao trabalhador acompa-
avanço para novas práticas e políticas no
nhada da prevenção e da intervenção nos
campo saúde do trabalhador.
ambientes de trabalho.
Outro aspecto positivo possibilitado
A Carta Constituinte (BRASIL, 1988)
pela edição da Lista de Doenças Relacio-
estabelece parâmetros legais para a cons-
nadas ao Trabalho é o fato de ter sido ado-
tituição do campo saúde do trabalhador no
tada também
Sistema Único de Saúde (SUS). Seu artigo
200 estabelece a ampliação do atendimento pelo Ministério da Previdência e Assistên-
do SUS para além da intervenção no corpo cia Social, regulamentando o conceito de
ou suas partes; evolui para a intervenção Doença Profissional e de Doença Adqui-
rida pelas condições em que o trabalho é
nas causas e, inclusive, nos ambientes
realizado [...]. (DIAS, 2001, p. 20)
de trabalho, como verificado no inciso II
“executar as ações de vigilância sanitária e Desse modo, a doença relacionada ao
epidemiológica, bem como as de saúde do trabalho para fins de benefícios pode ser
trabalhador” e no inciso VIII “colaborar na equiparada ao acidente de trabalho (BRA-
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3. SIL, 1991). Assim, a legislação utiliza a uma questão de saúde coletiva, fruto das
expressão acidentes de trabalho para se condições e da organização do trabalho.
referir também às doenças relacionadas ao
Lacaz (1996, p. 54) indica que no cam-
trabalho. Contudo, optou-se por utilizar
o termo agravos à saúde por considerá-lo po saúde do trabalhador:
mais abrangente. [...] o coletivo de trabalhadores é percebi-
do como produtor e não mais consumidor
A participação política de trabalha- de condutas, prescrições/orientações, me-
dores e demais atores sociais é responsável dicamentos etc.
pelas definições dos elementos de incen-
tivo, tanto econômicos como ideológicos, Portanto as ações devem ser sociali-
do Ministério da Saúde (MS) para implan- zadas e integradas a quem mais interessa
tação concreta dessa área do conhecimento melhorar as condições de saúde: os pró-
e de intervenção, a qual passa a ter condi- prios trabalhadores.
ções concretas de ser efetivada a partir da
Neste aspecto, os CRST têm envolvido
publicação da Portaria 1679/2002 (BRASIL,
a sociedade com a discussão da questão
2002), que normatiza a “habilitação” e o
convênio entre os municípios, o Estado e o saúde/trabalho. A habilitação do CRST
MS para a implantação dos Centros de Re- exige a formação de um Conselho Gestor
ferência em Saúde do Trabalhador (CRST) e, neste, as entidades representativas da
em âmbito regional. classe trabalhadora e patronal, dentre ou-
tras, são convidadas a pensar-agir sobre
A incorporação da saúde do traba- as questões locais referentes à saúde do(a)
lhador pelo SUS reconhece, nos ambientes trabalhador(a).
e processos de trabalho, as condições para
os eventos agressivos à saúde “de quem Além da participação dos(as) traba-
trabalha” na perspectiva epidemiológi- lhadores(as), Lacaz (1996) aponta a abor-
ca. Não se restringe a atender o lesionado dagem multi e interdisiciplinar presente
individualmente, mas busca quantificar no campo saúde do trabalhador. A análise
o número de pessoas expostas à insegu- e o enfrentamento cotidianos da complexi-
rança e qualificar essas condições para dade dos processos de trabalho para a saú-
posteriores mudanças. de passam a contar com novas categorias
profissionais, o que representa um avanço,
Saúde do trabalhador: por quê?
à medida que se distancia do diagnóstico/
Não há uma resposta única para de- ação restrito à engenharia e à medicina.
fender a emergência e a solidificação do
campo saúde do trabalhador no SUS, mas Assim, a Rede Nacional de Atenção In-
a legitimidade desta proposta se constitui tegral à Saúde do Trabalhador (RENAST),
por meio de vários pressupostos, como, por meio dos CRST, tem implantado uma
por exemplo, que os serviços de saúde já nova lógica de trabalho nos vários muni-
prestam atendimentos aos agravos, sen- cípios brasileiros baseada na construção
do necessário buscar as suas causas e ne- de ações intersetoriais entre os serviços de
las intervir, ou seja, transcender as ações saúde, como a rede básica e as vigilâncias
curativas para as de prevenção, promoção epidemiológica, ambiental e sanitária, e
e vigilância em saúde do trabalhador. Ou- prevê ações coordenadas com os órgãos de
tros fatores relacionam-se à abrangência atuação nos ambientes de trabalho (Posto
territorial do SUS e ao número de equipes de Atendimento ao Trabalhador (PAT), De-
profissionais capazes de desenvolver ações legacia Regional do Trabalho (DRT), Fun-
voltadas à saúde do trabalhador. Inúmeras dação Jorge Duprat Figueiredo de Seguran-
outras questões poderiam ser elencadas, ça e Medicina do Trabalho (Fundacentro),
mas frisa-se, além dessas, a questão da Ministério Público (MP), Instituto Nacional
democracia e da epidemiologia, as quais de Previdência Social (INSS) e outros).
têm materializado avanços para as ações
de saúde. Então, defende-se a inclusão, no A atualização permanente de conheci-
contexto do SUS, das ações relativas aos mentos da equipe técnica dos CRST tam-
agravos à saúde de quem trabalha por acre- bém faz parte da diretriz da política na-
ditar-se que favorece a redução do vácuo cional de saúde do trabalhador, bem como
entre o indivíduo que sofre o acidente de a participação dos(as) trabalhadores(as),
trabalho e as condições em que é realiza- considerada essencial para o diagnóstico
do, ou seja, deixa de ser uma “suscetibili- dos riscos e, concomitantemente, para in-
dade” individual para ser situado como tervenção e mudança.
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4. Dias e Hoefel (2005) expõem que é saúde dos(as) trabalhadores(as). Os autores
também proposta da RENAST coletivizar reforçam o avanço que representa a insti-
a questão dos acidentes e adoecimentos tucionalização das ações de saúde do tra-
relacionados ao trabalho por meio do re- balhador no âmbito do SUS, mas criticam
gistro desses eventos no sistema de infor- a falta de êxito relativa à proposta inicial
mação, o que possibilita a identificação quanto à articulação com a rede básica e
dos fatores de risco e a orientação das o suporte técnico e especializado oferecido
ações de vigilância. pelos CRST no projeto original do Progra-
ma de Saúde do Trabalhador (PST).
Contudo, na prática, há uma enorme
contradição entre ações assistenciais aos(às) Às dificuldades culturais, ideológicas e
trabalhadores(as) que sofreram acidentes políticas no estabelecimento de ações efi-
de trabalho e a nova proposta da RENAST. cazes no campo da saúde do trabalhador
Isto é, a discussão sobre a responsabilidade somam-se as mudanças do mundo do tra-
do SUS na intervenção sobre os processos balho e a opção do Estado pelo projeto neo-
de trabalho, debatida na II CNST (1994) e liberal de governo.
ampliada na III CNST (2005), ainda não
A precariedade das condições de tra-
foi esgotada, especialmente no que tange à
balho manifestada na violação dos di-
inspeção, o que não pode ser tratado como
reitos trabalhistas, na insegurança do
algo desprezível na efetivação do campo
posto e do ambiente de trabalho, no au-
saúde do trabalhador.
mento do ritmo da produção e das exigên-
O que se verifica nos dois anos de fun- cias (pressão) interfere na saúde dos(as)
cionamento do CRST de Franca-SP, ao se trabalhadores(as) e também no modo de
considerar a realidade regional, é o início agir, pensar, sentir e fazer ou, nas pala-
da práxis no campo saúde do traba lhador. vras de Antunes (1999, p. 15), na “subjeti-
Há um esforço para construir dados fide- vidade da classe trabalhadora”.
dignos sobre os acidentes e as doenças re-
Antunes (1999) mostra que houve uma
lacionadas ao trabalho e, a partir destes,
processualidade contraditória, ou seja, a
estabelecer as ações. Porém, ainda ocorre
mudança radical na organização do sistema
uma dificuldade de entendimento sobre
de produção, marcada pela reestruturação
“de quem é a responsabilidade de fisca-
produtiva, pela terceirização e pela flexibi-
lizar, inspecionar, conter e prevenir os
lização, resultou, por um lado, na redução
acidentes de trabalho, o que resulta em
do operariado industrial e fabril e, por ou-
visível omissão de ação” (LOURENÇO &
tro lado, na subproletarização do trabalho
BERTANI, 2006, p. 50).
expressado nas formas de trabalho parcial,
Apesar do campo saúde do trabalhador precário, temporário, informal, entre tantas
ter sido construído com a participação de modalidades existentes.
vários atores sociais e políticos e de ter
Tudo isso corrobora a inflexão do movi-
sido reconhecido no plano legal, não foram
mento sindical e a pulverização da classe
efetivadas novas práticas para além da as-
trabalhadora que, no início do século XXI,
sistência médica, salvo algumas ações inu-
trava esforços para manter o emprego e gera
sitadas, mas ainda focais.
um retrocesso histórico ao se distanciar da
Refletir sobre a saúde do trabalhador melhoria das condições de trabalho.
no SUS significa sublinhar uma área de
Desse modo, o fenômeno dos acidentes
conhecimento em construção e que se pro-
de trabalho passa a representar uma nova
põe a compreender as manifestações das
demanda à medida que não se restringe
condições de trabalho para a saúde não
ao setor formal de caráter industrial, mas
apenas na esfera dos acidentes de trabalho
atinge o informal, com forte predomi-
no âmbito industrial, mas também a sua re-
nância do setor de serviços. Os desempre-
percussão, do ponto de vista da saúde, no
gados, os aposentados e, ainda, crianças
campo da agricultura e dos serviços (MI-
e adolescentes trabalhadores constituem
NAYO-GOMES & LACAZ, 2005).
“novos” problemas de saúde. Este fenôme-
Trata-se de um modelo, como aborda no está imbricado com uma contraditória e
Lacaz (1996), em construção, mas que, se- complexa estrutura presente nas diferentes
gundo Minayo-Gomes e Lacaz (2005), ao formas de produção e perpassa a economia
longo de vinte anos, desde as primeiras familiar, a formal, as empresas arcaicas e
experiências, apresentou um impacto de até as mais modernas. Portanto, é neces-
pouca visibilidade frente à complexidade sária uma ação coordenada que busque as
do modo de produção e seus efeitos para a causas e que nelas interfiram.
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5. A forma fenomênica de apresenta- efetivar o campo saúde do trabalhador com
ção dos agravos relacionados ao trabalho atendimentos centrados apenas no caráter
não trazem à tona, de imediato, as con- das esferas biológica e individual. Há de se
dições concretas a que a maioria dos(as) considerar o processo de trabalho e as re-
trabalhadores(as) está inserida. Assim, a lações por ele estabelecidas no tocante às
terminologia “saúde do trabalhador” está incapacidades permanentes e temporárias.
envolta pela compreensão mais ampla da
realidade, considerada aqui como um todo O olhar epidemiológico deve ser co-
que tem uma estrutura construída com locado em prática e o SUS, pela sua ca-
partes que se relacionam entre si, dinâmi- pilaridade, pode avançar na questão da
ca e mutável. O olhar para a realidade está saúde/trabalho. O sistema de informação
sujeito a várias interferências. Assim, a ne- pode dar visibilidade teórica e empírica às
gação da aparência inicial e as mediações reais condições de trabalho e, assim, re-
tornam-se importantes no processo de in- verter a cultura de que o trabalho é bom
vestigação e ação. independentemente das condições em
que é realizado.
Apreender as condições de trabalho
de modo interdisciplinar e coletivo para Ao indagar sobre o campo saúde do
reconstruí-las racionalmente é um desa- trabalhador como área de intervenção do
fio dialético, materialmente necessário SUS, pretendeu-se evidenciar o papel dos
para qualificar a questão dos acidentes serviços de saúde não apenas na assis-
de trabalho, caracterizando-os como ele- tência ao problema de saúde apresentado
mentos constitutivos da lógica reproduti- pelo(a) trabalhador(a), mas, sobretudo, na
va do sistema capitalista e jamais como intervenção das causas a partir dos princí-
uma questão individual ou como “fatali- pios do SUS: universalidade, integralida-
dade do destino”. de, descentralização e participação.
Para Minayo-Gomez e Lacaz (2005), o Acidentes de trabalho: uma forma de ex-
uso da expressão “saúde do trabalhador” clusão social
está norteado pela compreensão mais am-
pla da realidade que – na acepção marxista Consideram-se os acidentes de trabalho
– tem como núcleo básico o “processo de como um modo de exclusão social. Salien-
trabalho”. Explicitam o alto poder explica- ta-se que o uso do termo “exclusão social”
tivo do processo de trabalho na gênese dos não é usado para designar a pobreza e a de-
agravos à saúde: sigualdade, mas cunha-se à linha adotada
por Ammann (2003), a qual não se preocu-
[...] A análise dos processos de trabalho pa em estabelecer uma conceituação fecha-
é uma ação teórico-prática potente, pois
da da exclusão social e faz uso de estudos
permite identificar as transformações ne-
cessárias a serem introduzidas nos locais atuais acerca da temática para justificar
e ambientes para a melhoria das condi- que tal expressão sugere um estado de pri-
ções de trabalho e saúde. (Minayo-Gomes vação, mas não recupera, historicamente,
& Lacaz, 2005, p. 799) os processos que a engendram. Assim, Am-
Minayo-Gomez e Lacaz (2005) acrescen- mann (2003) discute algumas linhas que
tam que a análise da saúde do trabalhador demarcam o tema e adota a postura mar-
nas dimensões do “processo de trabalho” xista de centralidade ontológica do traba-
requer um tratamento interdisciplinar que lho, na qual sublinha o papel fundante do
dê conta de abranger as relações de produ- trabalho na afirmação do ser social e sua
ção e a subjetividade dos vários atores so- determinação nos processos históricos que
ciais nelas envolvidos. Isso ajuda a romper geram ou não a exclusão social.
as análises positivistas e simplificadas de A aproximação dos acidentes de tra-
causa e efeito hegemônicas na medicina do balho como uma forma de exclusão social
trabalho e na saúde ocupacional. se dá à medida que estes favorecem a rup-
Os avanços, contidos na Constituição tura e a desagregação social, como apon-
Federal de 1988 e nas legislações subse- tam Cohn, Karsch e Sato (1985) no estudo
qüentes, que garantem a saúde e a segu- sobre os acidentes de trabalho como uma
rança no trabalho, chocaram-se com as forma de violência. Os autores expõem que
mudanças do mundo do trabalho, amplia- as incapacidades permanentes direcionam
das a partir da década de 1990, que reper- o trabalhador rumo à miséria, “ao estatu-
cutiram, entre outras coisas, em agravos to de inválido e, portanto, de força de tra-
à saúde humana. Portanto, não é possível balho sucateada no mercado” (p. 12).
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6. Exclusão social se dá não apenas pelo tes de trabalho. As precárias condições
desemprego ou pelos baixos salários, mas de trabalho acompanhadas de perto pela
no sentido da inacessibilidade aos direitos ameaça do desemprego geram instabili-
sociais. Um tipo de exclusão foi denunciado dade, insegurança e risco social e de aci-
por Engels (1985) como “exército indus- dentes que, imbricadas com o aumento da
trial de reserva”, referente ao desemprego pobreza e da desigualdade social, agravam
provocado sobretudo pela substituição do a exclusão social.
homem pelas máquinas no final do sécu-
lo XIX. O autor mostra que o desemprego Assim, a saúde do trabalhador deve se
no início da Revolução Industrial tornou-se aproximar das condições de trabalho não
funcional ao sistema capitalista e nocivo apenas do mercado formal, mas, sobretudo,
para aqueles que estavam inseridos no dos autônomos, das produções indepen-
mercado de trabalho, pois as pessoas de- dentes, familiares ou de cooperativas. Nas
sempregadas se viam obrigadas a aceitarem palavras de Minayo-Gomes e Lacaz (2005,
qualquer trabalho por um valor ínfimo. p. 806): “faz-se urgente conhecer, diferen-
ciar e atender o setor informal e o mundo
A exclusão social da atualidade expõe difuso e desprotegido dos desempregados”.
pessoas como “desprezíveis” do ponto de
vista da concorrência do mercado de tra- Dejours (2005), no estudo sobre a ba-
balho, vive-se a “era tecnológica” e suas nalização da injustiça social, aponta que
mudanças são tantas que se torna difícil pode haver uma dualidade do sofrimento
acompanhá-las. Assim, aqueles que não pelo trabalho. Por um lado, há os que so-
têm acesso, mesmo que minimamente, à frem os efeitos da exclusão do mercado de
educação e à cultura, também não encon- trabalho, que refletem na degradação das
tram chances para concorrer no competi- condições de vida, expressa, entre outros,
tivo mercado, em que trabalho (formal) é no aumento de moradores de rua, de peri-
uma raridade. ferias, e nos holofotes da violência, da mar-
ginalidade, da desnutrição, da subnutrição
Pochmann (2006) mostra o aumento do e dos mais diversos conflitos e doenças so-
desemprego: “[...] Em 2002, por exemplo, o ciais. Por outro lado, estão aqueles inseri-
país registrou a quarta posição no ranking dos precariamente no mercado de trabalho
mundial do desemprego” (p. 60). Aponta e expostos às condições insalubres, insegu-
também que o número de ocupações cria- ras e de risco para as saúdes física e mental.
das, inferiores às extintas e ainda mar- São estes últimos os enfoques deste estudo,
cadas pelo processo de reestruturação e
uma vez que, a rigor, as condições de traba-
flexibilização do setor produtivo, não ga-
lho podem ser retratadas na história das in-
rantem os direitos trabalhistas previstos,
capacidades permanentes ou temporárias e
pois “[...] nos anos 1990, a cada dez empre-
pela miséria social provocada e reafirma-
gos criados, somente quatro foram assala-
da por este processo. Assim, lança-se mão
riados” (p. 61).
da descrição e da análise de três situações
O desemprego, a reestruturação e a fle- que, além do acidente de trabalho em si,
xibilização da produção são particularida- representam a relação das condições do
des em constante relação com os aciden- trabalho com a saúde.
Metodologia
Busca-se, com o relato das situações a seus reflexos para a saúde, materializa-
seguir, identificar a origem da manifesta- das, neste estudo, por meio de entrevistas
ção dos agravos à saúde humana relacio- abertas sem roteiro prévio, mas com refe-
nados ao trabalho. Distancia-se da causa rencial temático definido. A escolha das
natural da doença ou dos agentes causado- situações privilegiou os possíveis efeitos
res. Da mesma forma, não se trata de apre- das condições adversas de trabalho, nem
sentar dados estatísticos, mas discutir as sempre transparentes, como uma questão
condições de trabalho que interferem na de saúde pública.
saúde dos(as) trabalhadores(as) e o papel
Desse modo, uma das situações apre-
do SUS neste processo.
sentadas refere-se à questão do acidente
O método utilizado foi a observação da de trabalho propriamente dito, ocorrido
realidade empírica de três situações que em 26/06/1996, explicitado pela história do
versam sobre as condições de trabalho e trabalhador rural, Aparício da Silva (nome
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7. fictício), em acompanhamento social no deficiência física provocada pelo trabalho e
CRST de Franca-SP, que se prontificou a também pela conseqüente exclusão deste.
ser sujeito desta reflexão a partir do Con-
Aparício refere que no dia do aciden-
sentimento Livre e Esclarecido.
te trabalhou durante o período noturno
Na continuidade da reflexão, enfoca- “arando” terra e parou por volta das 4 ho-
se o trabalho informal realizado em um ras da manhã. Ao guardar o maquinário
depósito de catadores de lixo, situado em (trator), foi abordado pelo empregador que
Brasília-DF, em condições de possíveis lhe pediu para moer o “trato” do gado, uma
agravos à saúde. Este foi escolhido, exa- vez que o funcionário responsável por essa
tamente, por representar a flexibilidade função havia faltado. Segundo ele, tentou
do mercado de trabalho acompanhada da argumentar que estava cansado, mas dian-
precarização das condições em que é rea- te da insistência, assumiu a função. Lem-
lizado e seus possíveis reflexos, ainda no bra que o tempo estava chuvoso e o chão
anonimato, para a saúde. escorregadio, estava sozinho manuseando
a máquina de moer “trato” para o gado
Assim, a escolha da segunda situação se quando escorregou e teve a sua perna pu-
deu, justamente, por representar a comple- xada pela máquina:
xidade das mudanças no mundo do traba-
lho em um momento de avançada discus- Não sei direito o que aconteceu, mas gra-
ças a Deus que a máquina travou. Eu ten-
são sobre a relação entre trabalho e saúde
tei não dormir, porque estava sozinho,
ocorrida na III CNST, em novembro de fui socorrido por um colega por volta das
2005. Nesse período, realizou-se visita ao 8 horas e isso aconteceu a pouco mais das
local, depósito de lixo coletado por catado- 4 horas, então não sei como não morri.
res, e entrevistou-se uma das famílias que (Aparício)
concordou em fazer parte desta reflexão.
O trabalhador foi socorrido e levado
Reforça-se que a preocupação com o pelo Serviço de Resgate à Santa Casa de
aumento da informalidade, do trabalho Franca. Lá recebeu todos os cuidados e
autônomo, “por conta”, e as possíveis re- orientação quanto à Comunicação de Aci-
percussões para a saúde presente e fu- dente de Trabalho (CAT). Mas, ao solicitar
tura dos(as) trabalhadores(as) norteou a a CAT ao empregador, foi convencido de
escolha da situação do trabalhador que, que não era necessário, pois eles (empre-
junto com a sua família, residia no local gadores) lhe dariam tudo o que precisasse.
em que se depositava lixo recolhido para Na época residia com a sua mulher e os três
posterior seleção do que poderia ser co- filhos em casa de propriedade da fazenda
mercializado por eles. onde era funcionário: “Achei por bem se-
guir a orientação do patrão e não mexi mais
Na seqüência, aborda-se outro aspecto com isso, com a CAT” (Aparício).
degradante, que é o trabalho infantil como
uma forma de violência social. A escolha Aparício foi periciado inúmeras vezes
desta questão se deu por observar que, ape- no Instituto Nacional de Seguro Social
sar da avançada legislação brasileira, o tra- (INSS) e, segundo ele, sempre relatou o
balho infantil ainda faz parte das particu- motivo da perda da perna. Após ter conse-
laridades do mercado de trabalho nacional, guido, em 1998, a perna mecânica via SUS
controlado no setor industrial, mas real no (Programa de Órtese e Prótese do Núcleo
mercado informal, conforme observado em de Gestão Assistencial - NGA), deixou de
festividades em locais públicos no muni- receber do INSS um salário mínimo inte-
cípio de Franca e também em praias da re- gral e passou a receber apenas uma parte,
gião norte do Estado de São Paulo durante equivalente, atualmente, a R$119,00 (cen-
o segundo semestre de 2006. to e dezenove reais) por mês, uma vez que,
na visão do seguro social, ele teria con-
Apresentação dos casos dição de trabalhar.
Situação 1: A invisibilidade social dos Contudo, para o empregador, ele não
acidentes de trabalho servia mais para trabalhar em nenhuma
função. Após um tempo do ocorrido, foi
Aparício trabalhava numa importante
dispensado. Os empregadores venderam
fazenda de criação de gado em um muni-
a fazenda e se mudaram para a região de
cípio próximo a Franca-SP. O mesmo per-
Mato Grosso do Sul.
deu a perna esquerda durante o exercício
do seu trabalho, aos 25 anos de idade. O O fato é que, mesmo sendo jovem, a
trabalhador enfrenta a situação dolorosa da deficiência física associada à falta de edu-
Revista Brasileira de Saúde Ocupacional, São Paulo, 32 (115): 121-134, 2007 127
8. cação formal limitou as possibilidades de ou outros materiais recicláveis, enquanto
inserção no mercado de trabalho: seus pais permanecem no local – um ter-
Ficou muito difícil porque fui criado na
reno baldio – onde depositam o material
roça e é só isso que sei fazer. Eu andei arrecadado para posterior seleção.
arranjando alguns serviços, mas logo não
Trata-se de um trabalho degradante
me pegavam mais, alegavam que era pe-
rigoso e que eu poderia me machucar de realizado no meio do lixo. O que foi des-
novo. (Aparício) cartado por outrem é aproveitado por eles
por uma questão de sobrevivência. Obser-
O desemprego, a falta de moradia, a va-se que Dona Cleuza, enquanto sepa rava
deficiência física (desencadeada pelo aci- o lixo, amamentava a filha mais nova, de
dente de trabalho) levaram Aparício a en- 2 anos, que estava completamente nua. A
frentar sérias dificuldades econômicas e outra filha, de 5 anos, tentava saborear
sociais que, dentre outros, favoreceram a os farelos de resto de um pacote de salga-
dissolução familiar. Sua esposa mudou-se dinhos encontrado no lixo. Outros dois
para Franca, com seus três filhos, em busca filhos com idades ente 6 e 7 anos perma-
de emprego e melhores condições de vida. neciam ao lado do pai observando a lida.
Aparício passou a residir de favor com o
pai, que é idoso. Não há uma separação entre a casa e o
ambiente de trabalho. Ergueram barracos
Situação 2: A informalidade e a invisibi-
de plástico para permanecerem junto ao
lidade social dos possíveis acidentes de
“lixo” e evitarem roubos ou destruição do
trabalho
material arrecadado:
A informalidade entrelaça as pessoas
Às vezes, alguém pode destruir por ba-
no mundo do trabalho sem muitas condi-
gunça mesmo ou roubo, mas os homens
ções de questionamentos e mudanças do
(do governo) destroem para a gente ir em-
que está posto e pode conferir aos seus
bora daqui, mas não podemos ir porque
trabalhadores extrema vulnerabilidade de
não teria como sobreviver. (Manoel)
saúde e de vida.
Ao se considerar que há uma relação
A análise da situação da família de Dona
intrínseca entre trabalho, meio ambiente
Cleuza e Seu Manoel (nomes fictícios) traz
à tona a precariedade das condições de tra- e saúde, talvez este seja o retrato da degra-
balho e também de vida das várias famílias dação socioecológica. O ambiente estava
brasileiras que sobrevivem do lixo. carregado pelo mau cheiro dos restos de
comida e sujeiras próprias do lixo que
Um breve sumário da sua história atraía uma nuvem de mosquitos, infes-
mostra um lado do trabalho totalmente tando o local. A casa improvisada (barra-
inseguro do ponto de vista de possíveis co de plástico) não oferecia proteção nem
contaminação, ferimentos, adoecimentos, conforto aos seus habitantes. Do lado de
da saúde mental no trabalho e, ainda, do fora, um pequeno fogão, também impro-
trabalho infantil. visado, feito com tijolos, trazia as panelas
O casal está em Brasília há 15 anos. postas com restos de alimentos sujeitos à
Oriundos da Bahia, vieram em busca de deterioração devido ao armazenamento e
melhores condições de vida, mas, devido à à conservação inadequados, misturando-
ausência de documentos, de escolaridade, se ao lixo. O ser humano encontra-se aí,
de profissão e de condições financeiras, no seu ambiente de trabalho, vulnerável
não conseguiram emprego ou outro modo a possibilidades de contaminação e aqui-
de sobrevivência. A família não conta sição de doenças e acidentes. Contudo, a
com nenhuma documentação, inclusive relação com o trabalho permanece na in-
dos filhos; por esse motivo, segundo eles, visibilidade social.
não estão cadastrados em nenhum pro- Outra questão observada nessa situa-
grama social federal, como bolsas escola, ção é o trabalho infantil e a falta de pro-
família ou alimentação. Sobrevivem com teção do trabalho do adolescente. Há um
os filhos juntando e separando lixo (or-
processo cultural instalado pela própria
gânico, contaminado etc.) para a seleção
convivência diária das crianças com esse
de materiais (papel, plástico etc.) a serem
modo de trabalho que representa, entre
comercializados.
outros, elementos configuradores para o
O filho mais velho, 15 anos, percorre trabalho infantil e para a naturalização
as ruas de Brasília empurrando um “carri- da cultura do trabalho independente-
nho de mão” da família, em busca de papel mente das condições em que é exercido.
128 Revista Brasileira de Saúde Ocupacional, São Paulo, 32 (115): 121-134, 2007
9. Situação 3: Trabalho infantil ampliada pelo fato de serem realizadas, ge-
ralmente, no período noturno.
Apesar de contar com uma legislação
que proíbe o trabalho infantil e que protege A violência a que crianças e adoles-
o trabalho do adolescente, é comum en- centes inseridos precocemente no merca-
contrar crianças “ajudando” no orçamento do de trabalho estão sujeitos raramente é
familiar, como o caso do filho de 15 anos revelada nas estatísticas oficiais, pois di-
de Dona Cleuza e Seu Manoel. A questão ficilmente essas atividades se configuram
do trabalho infantil deve ser analisada a como trabalho. Estão forjadas na “ajuda”.
partir de um contexto mais amplo que in- A sociedade “ajuda” a criança e o adoles-
clua a questão da cultura, da política e das cente pobres oferecendo-lhes um trabalho
condições socioeconômicas. e esses, por sua vez, “ajudam” no orçamen-
to familiar, trabalham oito horas diárias,
Evidencia-se, neste estudo, o trabalho às vezes mais, e recebem um salário de
de crianças que exercem funções como a “ajuda”, inferior ao do adulto que exerça a
de “guardador de carros” (para designar a mesma função. Outra questão é que, dian-
função de olhar, “vigiar” enquanto o dono te da situação de base socioeconômica e
se ausenta, situação comum nos estacio- de insuficiência das políticas públicas, o
namentos públicos), “vendedor ambulan- trabalho adquire um caráter disciplinador
te” (designação para a venda de produtos para crianças e adolescentes pobres (BRA-
como água, latinhas de cerveja, balas, cho- SIL, 2005). E, ainda, há de considerar que
colates etc., situação comum no trânsito e muitas doenças relacionadas ao trabalho
em festividades) e catador de produtos re- só irão se manifestar na vida adulta, dis-
cicláveis (papel, latinhas de alumínio e ou- tanciando-se da relação com o trabalho,
tros). As crianças nas condições de traba- além de se configurar como forma de in-
lho referidas, quando questionadas sobre a justiça social banalizada cotidianamente.
atividade, mudaram de assunto e de lugar, As diferenças entre a infância no co-
despistando o nosso olhar, com exceção do letivo e as infâncias podem ser particula-
menino de 6 anos “guardador de carros”. rizadas em situações que envolvam o tra-
balho infantil, como abordado por Moreira
A fala do menino de 6 anos de idade,
e Vasconcelos (2003), que desconstroem a
“guardador de carro”, quando pergunta-
imagem idílica da criança – inocência, vi-
do sobre a atividade, respondeu: “Estou vida em um mundo onírico, quimérico. A
trabalhando para ajudar minha avó”. De- infância, no sentido coletivo, é um direito
monstra uma imagem de preocupações de todos, independentemente das circuns-
travestidas na responsabilidade de manu- tâncias socioeconômico-culturais; con-
tenção da vida, ocorrendo a “adultotização tudo, as espacialidades e os cotidianos em
da infância”, como abordado por Silva que as crianças estão submersas definem o
(2002, p. 151). tipo de infância que estas podem ter, indi-
Trata-se de funções marcadas pela vidualizando-as.
absoluta falta de proteção, segurança ou Verifica-se que essas crianças estão
fiscalização, que expõem essas crianças a imersas em condições inseguras para o seu
todo tipo de adversidades e de violência desenvolvimento biopsicossociocultural.
Discussão
Ao analisar as situações, evidencia- Apenas a partir da Constituição de 1988,
se o sofrimento de trabalhadores que, art. 7º, é equiparado ao trabalho urbano.
em decorrência do trabalho realizado em
Mas, apesar da Carta Constituinte, as
condição precária e sem qualquer tipo de
diferenças de tratamento entre os trabalhos
proteção social ou legal, submetem-se a
urbano e rural, nos planos teórico e prá-
condições insalubres e perigosas por uma
tico, ainda persistem, como é o caso da edi-
questão de subsistência.
ção das Normas Regulamentadoras Rurais
Quanto à primeira situação, importa (NRR), específicas para a área rural. Mas
enfatizar que, historicamente, o trabalho salienta-se que as Normas Regulamentado-
rural foi garantido no patamar dos direitos ras (NR) e as legislações complementares
sociais, trabalhistas e previdenciários de contemplam esta categoria profissional,
modo retardatário em relação ao urbano. como defende Araújo (2005).
Revista Brasileira de Saúde Ocupacional, São Paulo, 32 (115): 121-134, 2007 129
10. Muitas das exigências contidas nas NR do trabalhador, contava com dispositivo
também estão presentes nas NRR, como de fácil acesso para a interrupção do seu
é o caso dos Serviços Especializados em funcionamento e também apresentava pro-
Prevenção de Acidentes do Trabalho Ru- teção mecânica no ponto de operação, per-
ral – SEPATR. Conforme o artigo 2º da mitindo apenas a introdução do produto
NRR-2, toda propriedade com 100 (cem) ou a ser moído; estava dentro dos prazos de
mais trabalhadores é obrigada a organizar manutenção preventiva?
e manter em funcionamento o SEPATR,
As questões sobre a disposição da má-
que, diferentemente da NR-4, não tem uma
quina no espaço físico, a proteção das in-
classificação de grau de risco.
tempéries, a organização do posto de traba-
A explicação é que esta é uma norma es- lho e a área de estocagem da cana ou outro
pecífica para a atividade rural; logo, todos produto usado no feitio do alimento “trato”
os graus de riscos são estimados como para o gado também devem ser ressaltadas,
iguais. (ARAUJO, 2005, p. 1352)
bem como as condições de instalação e do
Outra exigência da NRR a ser explici- ambiente (“chão escorregadio”).
tada é a necessidade de formação e manu-
Questões relacionadas à organização do
tenção da Comissão Interna de Prevenção
trabalho, como a devida capacitação do tra-
de Acidentes do Trabalho Rural (CIPATR)
balhador para desempenho da função, tam-
pelo empregador que mantenha a média de
bém devem ser consideradas. Além disso,
20 ou mais funcionários, conforme previs-
o fato de ter saído de um posto de traba-
to na NRR-3, artigo 3º (ARAUJO, 2005).
lho diferente do assumido sem o uso de
Contudo, tanto a CIPATR quanto a SE- Equipamento de Proteção Individual (EPI),
PATR não são comuns no plano prático e como botas de PVC de solado antiderra-
um dos fatores que pode estar associado pante e protetores auditivos para operar o
é a falta de fiscalização na área rural, bem trator (usado para arar terra) e a máquina
como a ausência de dados estatísticos fi- (para moer o “trato” do gado), também é
dedignos quanto aos acidentes de trabalho um fator contribuinte.
dessa área.
A discussão do acidente de trabalho
Apesar de existirem instrumentos le- no âmbito rural precisa ser alvo de estu-
gais referentes à proteção da saúde dos(as) dos e ações sistemáticas devido ao grande
trabalhadores(as) rurais, muitos fatores in- número de acontecimentos, conforme le-
terferem na falta de aplicação, como, por vantamento feito na região de Franca por
exemplo, a distância geográfica e/ou física meio do Relatório de Atendimento aos Aci-
dos órgãos públicos responsáveis pela sua dentes de Trabalho – RAAT (LOURENÇO &
efetivação. O elevado número de trabalha- BERTANI, 2006). Ressalta-se que, em julho
dores safristas e temporários, por sua vez, de 2006, acidente semelhante ocorreu no
diminui a capacidade de organização do(a) município de Buritizal, circunvizinho a
trabalhador(a) rural agravada pela baixa Franca-SP, deixando deficiente um jovem
escolaridade e também pela falta de infor- de 21 anos.
mação dos seus direitos.
Verifica-se que a falta de articulação
Verifica-se que Aparício realizava tra- dos serviços públicos, especialmente aque-
balho noturno, no âmbito agrícola, e, ao les relacionados aos Ministérios do Traba-
término da sua jornada, recebeu uma nova lho, da Saúde e da Previdência, contribui
tarefa e não usufruiu o direito ao descanso para que essas condições se mantenham
preconizado na Legislação como garante o na invisibilidade social. As precárias con-
artigo 66 da Consolidação das Leis do Tra- dições de trabalho ficam mascaradas e
balho (BRASIL, 1943), o que pode ter se forjadas na insuficiência institucional do
constituído em um dos fatores preponde- Estado frente à questão, especialmente na
rantes para a ocorrência. fragmentação das ações que, na situação
analisada, consistem apenas na concessão
Trata-se de uma situação muito com-
de benefícios compensatórios insuficien-
plexa, inclusive porque as condições de
tes, como o previdenciário, uma vez que
trabalho atualmente são outras, o que im-
o trabalhador era contribuinte, e de saúde,
pede uma análise mais aprofundada. Mas
por meio de tratamento e reconstituição
questionam-se fatores que poderiam ter
do membro, no caso, a perna.
evitado o acidente ou não, por exemplo,
a máquina dispunha de sistema de segu- O tipo de acidente de trabalho sofrido
rança adequado para o desligamento au- por Aparício é um tipo “clássico” e que
tomático; no caso de mudança de posição traz à mostra a perda do membro inferior
130 Revista Brasileira de Saúde Ocupacional, São Paulo, 32 (115): 121-134, 2007
11. (perna) e, em decorrência desta, a ruptura Verificou-se nas situações que a infân-
familiar, a exclusão do mercado de traba- cia e a adolescência, tão importantes para
lho e a supressão de perspectivas de vida. a formação social e emocional da vida hu-
Mas, além desse tipo de acidente de traba- mana, são vividas por muitos sem usufru-
lho, há também a violência presente nos to dos direitos e privilégios próprios dessa
impactos das mudanças do mundo do tra- faixa etária. A obrigação de “ajudar” no
balho, sobretudo na precarização das con- orçamento familiar deixa a escola para um
dições de trabalho, que a nosso ver afeta período posterior e talvez inatingível, bem
a saúde dos(as) trabalhadores(as) de modo como o lazer e as brincadeiras. A sua mar-
oculto e silencioso. ca é a exploração, que, reforçada pela desi-
gualdade social, adquire um caráter de algo
Ao se refletir sobre a situação de uma “natural”, pois, após conversar e observar o
família que sobrevive da atividade de ca- trabalho das crianças por horas, num local
tar lixo para posterior seleção e venda de movimentado, ninguém questionou ou de-
materiais recicláveis, pretende-se eviden- nunciou a presença delas e o seu trabalho.
ciar os riscos biopsicossociais inerentes à
situação e sensibilizar sobre a importân- O trabalho projeta o ser humano para
cia de pesquisas e ações intersetoriais e perspectivas profissionais, sociais e para
interdisciplinares nesta área, como já des- a realização pessoal, mas quando há a
tacado pela Organização Internacional do inserção precoce, além dessas perspecti-
Trabalho (OIT, 2006). vas ficarem tolhidas, pode ocorrer o que
Martins (1993) chamou de supressão da
Nesse tipo de trabalho, os riscos po- infância. O trabalho infanto-juvenil tor-
dem ser muitos. A OIT (2006), ao discutir nou-se um fenômeno social da pobreza e
o trabalho de crianças e adolescentes em geralmente ocorre em condições insalu-
lixão, aponta que se trata de uma ativida- bres e danosas para o desenvolvimento
de insalubre, perigosa e penosa, o que se biopsicossociocultural de crianças e ado-
aplica à situação apresentada, pois, além lescentes, como já abordado por Garbin,
da atividade de coleta do lixo, a família, Santos e Carmo (2004).
inclusive crianças, residia no local, em
meio ao lixo, propensos a: Asmus et al. (2005) discutem que mui-
tas atividades, apesar de seguras para os
[...] possibilidades acentuadas de aciden- adultos, não o são para as pessoas em cres-
tes, intoxicações alimentares e químicas cimento que têm maiores chances de de-
por metal pesado; infecções respiratórias,
senvolver doenças ocupacionais, tanto de
cutâneas, digestivas; desidratações, ane-
mias por má nutrição, fadigas por esforço
forma mais precoce quanto com maior gra-
intenso e exposição a altas temperaturas vidade. Chamam a atenção para o fato de
do ambiente. (OIT, 2006, p. 69) que o dano pode não ser evidente até um
estágio bastante posterior da vida (ATSDR,
O fórum “Lixo e Cidadania” aponta 2001 apud ASMUS et al., 2005).
que, em 1998, quando houve intoxicação
alimentar de crianças devido à possível As situações apresentadas a partir de
ingestão de carne humana proveniente de observações do cotidiano revelam que o
lixo hospitalar, num lixão em Olinda-PE, trabalho infantil ainda persiste revestido
iniciou-se o esforço de várias instituições de uma nova roupagem: a informalidade.
na busca de resolver a questão, constituin- Os dados da Pesquisa Nacional por Amos-
do inclusive o “Fórum Nacional Lixo e Ci- tragem de Domicílios (PNAD), referentes
dadania” (FÓRUM, 2006). ao período de 1992 a 2002, mostram que o
número de trabalhadores infantis reduziu
Outros riscos, como a contaminação do de 4,1 milhões em 1992 (12,1%) para 2,1
ambiente (solo, ar e água), devem ser con- milhões em 2002 (6,5%), na faixa etária de
siderados, pois se observou que o local era 5 a 14 anos (BRASIL, 2004).
propício para diversos vetores causadores
de enfermidades, como ratos, moscas, ba- Reconhece-se a avançada legislação 3
Redação dada pela Emenda Cons-
ratas, só para citar alguns. voltada à redução e à erradicação do tra- titucional n. 20 de 15/12/1998.
balho infantil vigente em nosso país, como 4
Capítulo IV – Da proteção do tra-
Na terceira situação, evidenciou-se o o Estatuto da Criança e Adolescente – ECA balho do menor: Art.403 (redação
trabalho infantil inserido no mercado de (BRASIL, 1990a), a Constituição Federal3 dada pela lei n. 10097/2000); Art.
trabalho, no modo da economia considera- e a Consolidação das Leis Trabalhistas 404; Art. 405 (redação dada pela
do informal, que, diante da sua proibição (CLT)4. Destaca-se que ao adolescente só é Lei n. 10097/2000).
legal, assume também o caráter clandesti- permitido trabalhar dos 14 aos 16 anos na
no, além da questão cultural da “ajuda”. condição de aprendiz e deve ser respeitada
Revista Brasileira de Saúde Ocupacional, São Paulo, 32 (115): 121-134, 2007 131
12. a proibição em situações e condições inse- algo natural e, como tal, oferecem poucas
guras capazes de provocar acidentes. perspectivas de mudanças.
Contudo, as situações ilustradas mos- O fato é que, diante das desigualdades
tram que o trabalho infantil ainda persiste sociais vinculadas ao desemprego e à exclu-
e que também se verifica, no nosso coti- são, acaba ocorrendo o que Dejours (2005)
diano profissional, em relação à incidên- denominou de “banalização da injustiça
social”. Há uma “aceitação” social do que
cia de acidentes de trabalho com adoles-
está posto. Esta conivência se dá pela com-
centes (LOURENÇO, 2006).
preensão da realidade como algo natural
As condições de saúde podem ser con- que, somado ao aspecto cultural do traba-
sideradas como expressões da questão lho infantil como elemento disciplinador
social, representada, neste caso, pelo tra- e preventivo da marginalidade, quando se
balho sem nenhuma regulamentação e se- trata dos mais pobres, constitui elementos
gurança que expõe crianças à situação de mantenedores desta (triste) realidade.
riscos. Além dos riscos eminentes, consi- Nobre (2003) pontua que o trabalho in-
deram-se os riscos sociais, como a exclusão fantil deve se tornar objeto da saúde coleti-
social, marcada pelo distanciamento dos va e sublinha algumas limitações do setor
direitos sociais básicos: educação, saúde e saúde frente a esta questão: evidencia a fal-
habitação. Não se trata apenas de apontar ta de reconhecimento do trabalho infantil
situações, do ponto de vista da saúde, into- como um problema de saúde pública; in-
leráveis, capazes de causar danos físicos e dica que o trabalho infantil é invisível para
as práticas de saúde, quando o reconhece,
psíquicos, mas de situar no âmbito da ex-
situa-o no patamar de resolução para o pro-
ploração do trabalho e das ordens social,
blema da miséria social.
econômica e política vigente e, portanto,
passíveis de transformação. Para que a relação entre saúde e trabalho
não caia na invisibilidade social, é necessá-
Verifica-se que as precárias condições rio reunir esforços para estudos e ações sis-
de trabalho, ora apresentadas, fazem parte temáticos que contemplem o mercado de
da histórica desigualdade social brasileira trabalho na sua totalidade e considerem os
e, neste contexto, assumem um caráter de trabalhos rural, informal e infantil.
Conclusões e considerações finais
Verifica-se que, apesar do avanço das A saúde pública já presta o atendimen-
políticas públicas, dos direitos sociais, tra- to ao trabalhador vítima de doença ou de
balhistas e políticos, das exigências para acidente relacionado ao trabalho e conta
a troca, especialmente, no âmbito inter- com serviços especializados de vigilân-
nacional, caracterizadas pelos Programas cia sanitária e epidemiológica. Contudo,
de Qualidade Total e pelas International há necessidade de romper com as ações
Standard Organization (ISO) nesse início focais e fragmentadas na assistência à saú-
de século (XXI), novas e velhas questões
de do(a) trabalhador(a) e avançar na cons-
relativas à saúde e ao trabalho (MINAYO
trução de dados fidedignos para subsidiar
GOMES & LACAZ, 2005) se põem no coti-
ações mais amplas.
diano dos(as) trabalhadores(as).
Posto o desafio, o campo ampliado da
Análises da realidade que busquem es-
clarecer os efeitos das formas de trabalho saúde do trabalhador no SUS constitui um
associadas à informalidade, velhas ques- novo paradigma de atenção à saúde, trans-
tões como as condições de trabalho rural, cende a abordagem individual curativa tra-
a erradicação do trabalho infantil e, ainda, dicional e propõe abordagens interdiscipli-
a proteção do trabalho do adolescente, as- nares, intersetoriais e de fortalecimento da
sumem caráter de urgência em que pese a sociedade rumo a mudanças eficazes para
relação entre trabalho/saúde. a promoção da saúde de quem trabalha.
132 Revista Brasileira de Saúde Ocupacional, São Paulo, 32 (115): 121-134, 2007
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