SlideShare ist ein Scribd-Unternehmen logo
1 von 14
1. VÓ CAIU NA PISCINA
Noite na casa da serra, a luz apagou. Entra o garoto:
– Pai, vó caiu na piscina.
– Tudo bem, filho.
O garoto insiste:
– Escutou o que eu falei, pai?
– Escutei, e daí? Tudo bem.
– Cê não vai lá?
– Não estou com vontade de cair na piscina.
– Mas ela tá lá...
– Eu sei, você já me contou. Agora deixe seu pai fumar um cigarrinho descansado.
– Tá escuro, pai.
– Assimaté é melhor. Eu gosto de fumar no escuro. Daqui a pouco a luz volta. Se não voltar, dá no mesmo.
Pede à sua mãe pra acender a vela na sala. Eu fico aqui mesmo, sossegado.
– Pai...
– Meu filho, vá dormir. É melhor você deitar logo. Amanhã cedinho a gente volta pro Rio, e você custa a
acordar. Não quero atrasar a descida por sua causa.
– Vó tá com uma vela.
– Pois então? Tudo bem. Depois ela acende.
– Já tá acesa.
– Se está acesa, não tem problema. Quando ela sair da piscina, pega a vela e volta direitinho pra casa. Não
vai errar o caminho, a distância é pequena, você sabe muito bem que sua avó não precisa de guia.
– Por quê cê não acredita no que eu digo?
– Como não acredito? Acredito sim.
– Cê não tá acreditando.
– Você falou que a sua avó caiu na piscina, eu acreditei e disse: tudo bem. Que é que você queria que eu
dissesse?
– Não, pai, cê não acreditou ni mim.
– Ah, você está me enchendo. Vamos acabar com isso. Eu acreditei. Quantas vezes você quer que eu diga
isso? Ou você acha que estou dizendo que acreditei mas estou mentindo? Fique sabendo que seu pai não
gosta de mentir.
– Não te chamei de mentiroso.
– Não chamou, mas está duvidando de mim. Bem, não vamos discutir por causa de uma bobagem. Sua avó
caiu na piscina, e daí? É um direito dela. Não tem nada de extraordinário cair na piscina. Eu só não caio
porque estou meio resfriado.
– Ô, pai, cê é de morte!
O garoto sai, desolado. Aquele velho não compreende mesmo nada. Daí a pouco chega a mãe:
– Eduardo, você sabe que dona Marieta caiu na piscina?
– Até você, Fátima? Não chega o Nelsinho vir com essa ladainha?
– Eduardo, está escuro que nem breu, sua mãe tropeçou, escorregou e foi parar dentro da piscina, ouviu?
Está com a velaacesa na mão,pedindoparaque tiremelade lá, Eduardo!Não pode sair sozinha, está com a
roupa encharcada, pesando muito, e se você não for depressa, ela vai ter uma coisa! Ela morre, Eduardo!
– Como? Por que aquele diabo não me disse isto? Ele falou apenas que ela tinha caído na piscina, não
explicou que ela tinha tropeçado, escorregado e caído!
Saiu correndo, nem esperou a vela, tropeçou, quase que ia parar também dentro d’água.
– Mamãe,me desculpe!Omeninonãome disse nadadireito.Falouque asenhoracaiu na piscina. Eu pensei
que a senhora estava se banhando.
– Está bem,Eduardo – disse dona Marieta, safando-se da água pela mão do filho, e sempre empunhando a
velaque conseguiramanteracesa. – Mas de outra vezvocê vai prestar mais atenção no sentido dos verbos,
ouviu? Nelsinho falou direito, você é que teve um acesso de burrice, meu filho!
ANDRADE, Carlos Drummond de. Vó caiu na piscina. Rio de Janeiro: Ed. Record, 1996.
2. CONSELHOS DE UM VELHO APAIXONADO
Quandoencontraralguéme esse alguém fizer seu coração parar de funcionar por alguns segundos,
preste atenção: pode ser a pessoa mais importante da sua vida.
Se os olharesse cruzareme,neste momento,houveromesmobrilhointensoentreeles,fique alerta:
pode ser a pessoa que você está esperando desde o dia em que nasceu.
Se o toque dos lábios for intenso, se o beijo for apaixonante, e os olhos se encherem d'água neste
momento, perceba: existe algo mágico entre vocês.
Se o 1º e o último pensamento do seu dia for essa pessoa, se a vontade de ficar juntos chegar a
apertar o coração, agradeça: Algo do céu te mandou um presente divino : O AMOR.
Se um dia tiveremque pedirperdãoumaooutropor algummotivoe,emtroca, receberumabraço,
um sorriso, um afago nos cabelos e os gestos valerem mais que mil palavras, entregue-se: vocês foram
feitos um pro outro.
Se por algum motivo você estiver triste, se a vida te deu uma rasteira e a outra pessoa sofrer o seu
sofrimento, chorar as suas lágrimas e enxugá-las com ternura, que coisa maravilhosa: você poderá contar
com ela em qualquer momento de sua vida.
Se você conseguir,empensamento,sentirocheirodapessoacomose ela estivesse ali do seu lado...
Se você achar a pessoamaravilhosamente linda,mesmoelaestando de pijamas velhos, chinelos de
dedo e cabelos emaranhados...
Se você não consegue trabalhar direito o dia todo, ansioso pelo encontro que está marcado para a
noite...
Se você nãoconsegue imaginar,de maneiranenhuma,umfuturosemapessoaao seulado...Se você
tivera certezaque vai ver a outra envelhecendoe,mesmo assim, tiver a convicção que vai continuar sendo
louco por ela...
Se você preferir fechar os olhos, antes de ver a outra partindo: é o amor que chegou na sua ida.
Muitas pessoas apaixonam-se muitas vezes na vida, mas poucas amam ou encontram um amor
verdadeiro.
Às vezesencontrame,pornãoprestarematençãonessessinais,deixamoamorpassar, sem deixá-lo
acontecer verdadeiramente. É o livre-arbítrio.
Por isso, preste atenção nos sinais.
Não deixe que as loucuras do dia-a-dia o deixem cego para a melhor coisa da vida: o AMOR !!!
Ame muito...muitíssimo...
CARLOSDRUMMOND DE ANDRADE
3. VIÚVA LOURA
- "Viúva, 21 anos..."
- Tadinha.A vida é isso.
- "Loura..."
- Melhorou.
- "Fazendeira, rica..."
- Epa, muda completamente de figura.
- "Pertencente a tradicional família mineira..."
- Corta essa!
- "Recém-chegada do interior..."
- Então, não custa sondar a barra.
- "Procura companhia masculina..."
- Ainda bem que é masculina.Tou às ordens.
- "Que seja jovem..."
- Você acha que 38 anos está na pauta?
- "Bem intencionado..."
- Nunca fui outra coisa na vida.
- "De fino trato..."
- Não é por me gabar,mas...
- "Conhecedor dos pontos pitorescos do Rio..."
- Que é que ela entende por pontos pitorescos? Eu
prefiro pontos estratégicos.
- "Para passeios e..."
- Etc., lógico.
- "Futuro compromisso matrimonial..."
- Corta! Corta!
- É mesmo.
- Aliás,eu não tenho mais de 38. Tinha,semana
passada.
- E rica...Rica de que? Talvez de predicados apenas.
- Poxa, até parece que você está querendo a viúva
pro seu bico.Pera aí, mau- caráter.
- Eu? Vê lá seeu vou nessa onda de anúncio.Tou
prevenindo pra você não se grilar.Viúva,mineira,
loura...Se é mineira,não deve ser loura.Se é loura.É
artificial.Seé artificial...
- Deixa a viuvinha ser loura emineira,deixa.
- Olha,eu conheci uma loura que, alémde outros
negativos,era careca.
- Ora,peruca resolve.
- Sei não, mas tudo isso junto- mineira,viúva,loura,
21 anos,rica...
- Que é que tem?
- É exagero. Não precisava Ter tantas qualidades.
- Foi uma graça de Deus.
- Você não merece tanto.
- Será outra graça de Deus.
- Deus não deve ser assimtão desperdiçado com
suas graças.
- Lá vem você querendo dar instruções ao Altíssimo.
Perde essa mania.
- Bom, mas você não sabe que mineiro esconde
milho até de monjolo?
- Continua.
- "Cartas com sigilo absoluto..."
- Evidente.
- "Indicações pessoais..."
- Minha ficha é mais limpa do que caixa d'água de
edifício quanto o síndico vai ao terraço.
- "E fotos..."
- Arrgh! Só tenho 3x4, muito fajuta.Mas tiro de
calção,frente, perfil e fundos.
- "Para a portaria dessejornal,sob n°019 834."
- Pera aí. Tou anotando. 019?
- 834.
- Legal. 834 é o número de meu edifício,19 é pavão,
que tem a perna dourada.Lê mais.
- Já li tudo, ué.
- Lê outra vez. Repete.
- Vai decorar?
- Vou gravar melhor na nuca,vou raciocinar em
bloco,vou...
- Se habilitar,né?
- Correto.
- Calma,rapaz.Sabe lá que espécie de viúva é essa?
- Vou ver pra conferir.
- Pode nem ser viúva.
- E daí?
- Diz que tem 21 anos,mas quem garante que não é
modéstia? Às vezes tem três vezes 21.
- Então você admite que ela é mineira.
- E que cria galinhasemração,na baseda
parapsicologia?
- Também sou mineiro, uai.
- E nunca me confessou.Eu jurava quevocê fosse
capixaba.
- Fui. Questão de limites,minha terra passou pra
banda de cá. Não espalha,sim?
- Me tapeou essetempo todo.
- Esquece.
- Vai ser dura a parada:mineira loura versus mineiro
mascarado.
- Fica em família,né?
- A tradicional?
- As duas.Eu na minha,ela na dela.
- Agora sou eu que digo: tadinha.
- Por quê? Se ela botou anúncio,quer transar.Eu
transo.No figurino.
- É verdade que tem muito carioca por aí,muito
paulista,muito nortista,espiando maré.Talvez você
chegue tarde.
- Duvido. Você sabeque nessas coisassou meio
Fittipaldi.Comigo é Fórmula-1.
- Mineiro contando prosa? Nunca vi isso.
- Bem, mineiro é capazde contar prosa só pra
esconder que é mineiro...
- Chega, amizade, você já ganhou a viuvinha com
fazenda e tudo, podes crer!
CARLOS DRUMMOND DE ANDRADE
4. COMO COMECEI A ESCREVER
Aí por volta de 1910 não havia rádio nem televisão, e o cinema chegava ao interior do Brasil uma vez por
semana aos domingos. As notícias do mundo vinhampelo jornal,três dias depois de publicadas no Rio de Janeiro.
Se chovia a potes, a mala do correio aparecia ensopada, uns sete dias mais tarde. Não dava para ler o papel
transformado em mingau.
Papai era assinante da Gazeta de Notícias, e antes de aprender a ler eu me sentia fascinado pelas gravuras
coloridas do suplemento de Domingo. Tentava decifrar o mistério das letras em redor das figuras, e mamãe me
ajudava nisso.Quando fui para a escola pública,já tinha a noção vaga de um universo de pa lavras que era preciso
conquistar.
Durante o curso, minhas professoras costumavam passar exercícios de redação. Cada um de nós tinha de
escrever uma carta, narra um passeio, coisas assim. Criei gosto por esse dever, que me permitia aplicar para
determinado fim o conhecimento que ia adquirindo do poder de expressão contido nos sinais reunidos em
palavras.
Daí por diante as experiências foram se acumulando, sem que eu percebesse que estava descobrindo a
leitura. Alguns elogios da professora me animavam a continuar. Ninguém falava em conto ou poesia, mas a
semente dessas coisas estavamgerminando.Meu irmão,estudante na Capital,mandava -me revistas e livros, e me
habituei a viver entre eles. Depois, já rapaz, tive sorte de conhecer outros rapazes que também gostavam de ler e
escrever.
Então começou uma fase muito boa de troca de experiências e impressões. Na mesa do café-sentado ( pois
tomava-se café sentado nos bares, e podia-se conversar horas e horas sem incomodar nem ser incomodado ) eu
tirava do bolso o que escrevera durante o dia,e meus colegas criticavam.Eles também sacavamseus escritos, e eu
tomava parte nos comentários. Tudo com naturalidade e franqueza. Aprendi muito com os amigos, e tenho pena
dos jovens de hoje que não desfrutam desse tipo de amizade crítica.
CARLOS DRUMMOND DE ANDRADE
5. MARGARIDA
A garota em êxtase brandiu o postal que recebera do namorado em excursão na Grécia :
- Coisa mais linda! Olha só o que ele escreveu: "Eu queria desfolhar teu coração como se ele fosse a mais
margarida de todas as margaridas. "Marquinhos é genial, o senhor não acha?
- Pode ser que seja, não conheço Marquinhos. Se bem que antes da era Pierre Cardin, genial era Dante, Da Vinci,
Einstein, outros assim. Mas essa frase não é de Marquinhos.
- Não é de Marquinhos?! Tá com a letra dele, assinada por ele.
- Estou vendo que assinou, mas é de Darío.
- Quem? O Darío, do Atlético Mineiro? Sem essa.
- Não minha florzinha, Darío, Rubén Darío, o poeta da Nicarágua.
- Não conheço. Então Rubén Darío falou para Marquinhos e Marquinhos
- Achou bacana e pediu emprestado a ele?
- Tenho a impressão que o Marquinhos não pediu nada emprestado a Rubén Darío. Tomou sem consultar.
- Como é que o senhor sabe?
- É muito difícil consultar o Darío.
- Por quê? Ele não dá bola para gente? Não gosta da mocidade? É careta?
- Não é nada disso. O Darío não é encontrado em parte alguma.
- Ah, ele gosta de bancar o invisível, né?
- Não creio que goste, mas é exatamente o caso dele: invisível.
- Não dá para entender.
- Vai entender logo. Ele morreu em 1916.
- Ah! E como é que o Marquinhos descobriu essa margarida, me conte!
- Simples. Leu num livro de poemas de Rubén Darío.
- Marquinhos não é ligado a leitura. Duvido.
- Se não leu no livro, leu em alguma revista, em alguma parte.
- Hã...
Ficou tão triste- os olhos, a boca, a testa franzida- que achei de meu dever confortá-la:
- Que importância tem isso? A frase é de Darío, é de Marquinhos, é de toda pessoa sensível, capaz de assimilar o
coração à margarida... Desculpe: à margarida.
Muxoxo:
- Se é de todos, não é de ninguém, não vale nada.
- Pelo contrário. Fica valendo mais, torna-se sentimento universal.
- Ah, o senhor está por fora. Eu queria a margarida só para mim. Copiada não tem graça. A graça era imaginar
Marquinhos, muito sério, desfolhando meu coração transformado em margarida, para saber se eu gosto dele, um
pouquinho, bastante, muito loucamente, nada. E a margarida sempre com uma pétala escondida por baixo da
outra, entende? Para ele não ter certeza, porque essa certeza eu não dava... Era gozado.
- Continue imaginando.
- Agora não dá pé. Marquinhos roubou a margarida, quis dar uma de poeta. Não colou.
- Espere um pouco. Eu disse que a margarida era de Rubén Darío? Esta cabeça! Esquece, minha filha. Agora me
lembro que Rubén Darío nem podia ouvir falar em margarita, começava a espirrar, a tossir, ficava sufocado, uma
coisa horrível. Alergia- que no tempo dele ainda não estava batizada. Pois é. Garanto a você, posso jurar que a
margarida não é de Darío.
- De quem é então?
- De Marquinhos, ué.
- Tem certeza que nunca ninguém antes de Marquinhos escreveu ä mais margarida de todas as margaridas"? o
senhor lê milhões, pode me responder. Tem certeza?
- Absoluta. Marquinhos é genial, reconheço. Mas, por via das dúvidas, continue escondendo uma pétala de
reserva, sim?
- Pode deixar por minha conta. Puxa, quase que eu parava de transar com o Marquinhos por causa do senhor.
Agora tá legal, tchau, vovô!
Vovô: foi assim que ela me agradeceu a mentira generosa, a bandida.
CARLOS DRUMMOND DE ANDRADE
6. A incapacidade de ser verdadeiro
Paulo tinha fama de mentiroso. Um dia chegou em casa dizendo que vira no campo
dragões - da – independência cuspindo fogo e lendo fotonovelas. A mãe botou-o de castigo,
mas na semana seguinte ele veio contando que caíra no pátio da escola um pedaço de lua, todo
cheio de buraquinhos, feito queijo, e ele provou e tinha gosto de queijo.
Desta vez Paulo não só ficou sem sobremesa, como foi proibido de jogar futebol durante
quinze dias. Quando o menino voltou falando que todas as borboletas da terra passaram pela
chácara de Siá Elpídia e queriam formar um tapete voador para transportá-lo para o sétimo
céu, a mãe decidiu levá-lo ao médico.
Após o exame, o Dr. Epaminondas abanou a cabeça: -Não há nada a fazer, Dona Coló. Esse
menino é mesmo um caso de poesia.
Carlos Drummond de Andrade
Maneira de amar
O jardineiro conversava com as flores, e elas se habituaram ao diálogo. Passava manhãs
contando coisas a uma cravina ou escutando o que lhe confiava um gerânio. O girassol não ia
muito com sua cara, ou porque não fosse homem bonito, ou porque os girassóis são orgulhosos
de natureza.
Em vão o jardineiro tentava captar-lhe as graças, pois o girassol chegava a voltar-se
contra a luz par não ver o rosto que lhe sorria. Era uma situação bastante embaraçosa, que as
outras flores não comentavam. Nunca, entretanto, o jardineiro deixou se regar o pé de girassol
e de renovar-lhe a terra, na ocasião devida.
O dono do jardim achou que seu empregado perdia muito tempo diante dos canteiros,
aparentemente não fazendo coisa alguma. E mandou-o embora, depois de assinar a carteira de
trabalho.
Depois que o jardineiro saiu, as flores ficaram tristes e censuravam-se porque não
tinham induzido o girassol a mudar de atitude. A mais triste de todas era o girassol, que não se
conformava com a ausência do homem. “Você o tratava mal, agora está arrependido?” “Não,
respondeu, estou triste porque agora não posso tratá-lo mal. É a minha maneira de amar, ele
sabia disso, e gostava”.
Carlos Drummond de Andrade
7. A estranha e "eficiente" linguagem dos namorados
– Oi,meu berilo!
– Oi,meu anjo barroco!
– Minha tanajura!Minha orquestra decâmera!
– Que bom você me chamar assim,meu pessegueiro-da-flórida!
– Você gosta,minha calhandra?
– Adoro, meu teleférico iluminado!
– Eu também gosto muito de ser tudo isso quevocê me chama!
– De verdade, meu jaguaretêde paina?
– Juro, meu cavalinho deasas!
– Então dizmais,dizmais!
– Meu oitavo,meu décimo, décimo quinto pecado capital,minha janelasobrea Acrópole,meu verso de Rilke,
minha malvasiara,meu minueto de Versailles...
– Mais,agapanto meu, tempestade minha!
– Minha folliacon variazoni,deCorelli,meu isto-e-aquilo enguirlandado,meu eu anterior a mim, meus diálogos
com Platão e Plotino ao entardecer, minha úlcera maravilhosa!
– Ai que lindo,liiiiindo,meu colar decavalheiro inglêsnumretrato de Ticiano!Meu fundo-do-mar, você me põe
louca,louca deamar as pedras,de patinar nas nuvens!
– E eu então, minha górgone, minha gárgula de Notre Dame, e eu, minha sintaxede Deus?
– Você fala como falamos balões de junho de Portinari,as joiasda coroa do reino de Samarcanda, você, meu
imperativo categórico,você, minha espada maçônica,vocême mata!
– E você também me trucida,me degola,me devolve ao estado de música,meu tambor de mina!
– Todos os incentivos oficiaisreunidos emultiplicadosnão valema tua alquimia,meu ministro do fogo!
– Tuas paisagens,teu subsolo infernal,teus labirintos são superioresem felicidadea qualquer declaração dos
direitos do homem!
– A primeira vez que eu vi você naquele bar do crepúsculo eu senti que as pirâmides eas cataratasnão valiama
tua unha do dedo mindinho!
– Porque você é o Banco das Estrelas,e pode comprar todas as coisasdo mundo, inclusiveas águas eos animais,
para restituí-los à vida em liberdade!
– Como posso ouvir outras palavrassenão as tuas,meu almanaquedo céu? Minha ciência do insabível? Meu
terremoto, meu objeto voador identificado?
– Não nascemos um para o outro, nascemos um no outro, e estamos nessa desde antes do começo dos séculos,
meu nenúfar!
– E estaremos mesmo depois que os séculos seevaporarem, ó meu desenho rupestre, meu formigão atômico!
– Mandala,raio laser,sextina!Tudo meu, é claro!
– Pomba-gira!
– Clepsidra!
– Sequóia minha minha minha!
Diálogo aparentemente louco,mas que dois namorados deimaginação mantêm todos os dias,comestas ou
outras palavrasigualmentemágicas.Não inventei nada.Apenas colecionei expansões ouvidas aqui eali,e que me
pareceram espontâneas,isto é, ninguém deve ter preparado antes o que iria dizer,de tal modo as palavrassaíam
entrecortadas de risos,interrompidaspor afagos,brotando da situação.O amor é inventivo e anula os postulados
da lógica.Eletem sua lógica própria,tão válidaquanto a outra. E os amantes se entendem sob o signo do absurdo
– não tão absurdo assim,como parece aos não-amorosos.Já ouvi no interior de Minas alguémchamar seu amor
de “meu bicho-do-pé” e receber em troca o mais cálido beijo deagradecimento.
Esta coletânea de frases deamor está aqui como introdução ao projeto não-comercial decomemorações do Dia
dos Namorados. Não para que elas sejamrepetidas mecanicamente. Todo namorado que se preze deve inventar
as besteiras líricasedeliciosasquea gente não dizpara qualquer pessoa,só para uma,e só em momentos de pura
delícia.Funciona? Ecomo!
Carlos Drummond de Andrade
8. O padeiro
Levanto cedo, faço minhas abluções, ponho a chaleira no fogo para fazer café e abro a
porta do apartamento - mas não encontro o pão costumeiro. No mesmo instante me lembro de
ter lido alguma coisa nos jornais da véspera sobre a "greve do pão dormido". De resto não é
bem uma greve, é um lock-out, greve dos patrões, que suspenderam o trabalho noturno;
acham que obrigando o povo a tomar seu café da manhã com pão dormido conseguirão não sei
bem o que do governo.
Está bem. Tomo o meu café com pão dormido, que não é tão ruim assim. E enquanto
tomo café vou me lembrando de um homem modesto que conheci antigamente. Quando vinha
deixar o pão à porta do apartamento ele apertava a campainha, mas, para não incomodar os
moradores, avisava gritando:
- Não é ninguém, é o padeiro!
Interroguei-o uma vez: como tivera a ideia de gritar aquilo?
"Então você não é ninguém?"
Ele abriu um sorriso largo. Explicou que aprendera aquilo de ouvido. Muitas vezes lhe
acontecera bater a campainha de uma casa e ser atendido por uma empregada ou outra pessoa
qualquer, e ouvir uma voz que vinha lá de dentro perguntando quem era; e ouvir a pessoa que
o atendera dizer para dentro: "não é ninguém, não senhora, é o padeiro". Assim ficara sabendo
que não era ninguém...
Ele me contou isso sem mágoa nenhuma, e se despediu ainda sorrindo. Eu não quis detê-lo
para explicar que estava falando com um colega, ainda que menos importante. Naquele tempo
eu também, como os padeiros, fazia o trabalho noturno. Era pela madrugada que deixava a
redação de jornal, quase sempre depois de uma passagem pela oficina - e muitas vezes saía já
levando na mão um dos primeiros exemplares rodados, o jornal ainda quentinho da máquina,
como pão saído do forno.
Ah, eu era rapaz, eu era rapaz naquele tempo! E às vezes me julgava importante porque
no jornal que levava para casa, além de reportagens ou notas que eu escrevera sem assinar, ia
uma crônica ou artigo com o meu nome. O jornal e o pão estariam bem cedinho na porta de
cada lar; e dentro do meu coração eu recebi a lição de humildade daquele homem entre todos
útil e entre todos alegre; "não é ninguém, é o padeiro!"
E assobiava pelas escadas.
Carlos Drummond de Andrade
9. TELEFONE
– O senhoré que é o senhormesmo?
– Como?
– Estouperguntandoquemé o senhor,afinal.
– EvaristoPestanade Matos, seucriado.
– Issoestouvendonacarteirade identidade.Maso talãode inscriçãodizAbel Setembrinode Matos.
– É meuavô paterno.
– Entãofala pra seuavô virele mesmo,trazendoa carteira.
– Istoeunão possofalarnão senhor.
– Nãopode por quê?
– Porque ele jáé falecidodesde1952.
– Se já é falecido,nadafeito.A inscriçãoestácancelada.
– Canceladacomo,se ele foi chamadopelaCompanhianojornal de hoje?
– Olha,moço,a Companhiachamouna suposiçãodele estarvivo.Nãoestando,ficasemefeitoa
chamada.Compreendeu?
– Compreendinão.A Companhiachamou,táchamado.Eu vimemnome de meusaudosoavô pagar a
primeiracotado telefoneque ele pediuhá24 anos,quandoeu era meninode colo,aliásafilhadodele.
– O senhorestáé brincando.Seuavônão precisamaisde telefone.
-Mas precisoeu,que sounetodele,seráque osenhortambémnão mora?Este talãoaqui foi
conservadopelafamíliadurante umquartode século.Meuavô,sentindoumador doladoesquerdo,
chamoumeupai e disse:“Etelberto,tiradagavetinhadocriado-mudominhainscriçãode telefone e
guarda elacom cuidado.Nãopude deixarumaparelhoparavocê,mas deixoessaesperança.Nãovende
a inscriçãopor dinheironenhum,meufilho.Satisfazminhaúltimavontade.”Disse e morreu.
– É comovente,mas…
– Esperaaí. Tem mais.Meu pai guardouo papel 13 anos e tambémembarcou,coitado.Nahora da
despedida,me fezamesmarecomendação.Estoucumprindoummandadode família,umacoisa
sagrada para mim.Já lhe dei otalão.Me dá meutelefone,cidadão.
– Esse talãoé de Abel Setembrinode Matos,ô homem!
– Eu sei.Meuavô,pai de meupai.Me tocoucomo bemde família.
-Tocoucomo? Por acaso entroueminventário,osenhor temformal de partilhaprovandoisso?
– Formal eunão tenho,mastenhoo talão.Quemmaissenãoeupodiaficarcom o talão se sou filho
únicode filhoúnicode meuavô?
– Eu sei láse o senhoré únicoou se faz parte de escadinha.NeminteressaàCompanhiasaberquemé
filhoúnicode quem.Sabe que mais?A conversajáesticoudemais.Vouchamaro próximo.
– Me atendaantes,porfavor.Não vai me obrigara ir para a televisãoreclamarodireitode meuavô,
nemcontratar advogado.Poiseuvou,eucontrato.
– Faça o que quiser.
– O que euqueroé o telefone de meuavô,pedidoem1943!
– Retire-se,osenhorestáenchendo!
– Hein?!
– Está enchendo,jádisse!
– Estoué me sentindomal…Uma coisado ladoesquerdo…umanuvem…umavertigem…A gente
esperandodesde aSegundaGuerraMundial,e nahora de receberotelefone,ahmeuDeus,oSenhor
me chama para o seuseio…Nãofazissocomigo,deixapelomenoseutomarumtáxi,irem casa
entregara meufilhoTonicoeste talão…Quemsabe se ele umdia… Cai.
Carlos Drummondde Andrade
10. Presente para a Senhora
Percorroas listasde presentespossíveisparaoDia das Mães,e sintoa dificuldadedoproblema.
Tanta coisa!Até parece que a mamãe,coitada,nãotem objetoalgumemcasa,desprovidade geladeira,
armários,lenços,liquidificador,porta-notas,tigelasde cerâmica,fogão,secadorde cabelo,batas...
Não,mamãe temgeladeirasim,claroque tem.Nãoé desse eletrodomésticofundamental que saem
os refrigerantes,oscremes,ascoisasgostosas que elareservouparao paladardo filhinho?Ofilhinho
hoje é executivo,massempre que vai visitarmamãe,sabe que elaguardouparaele umsorvete especial
na cavernado congelador.É,mas a geladeiradeve terenvelhecidomaisdepressaque mamãe.Nãotem
essesbabadosmodelo75,sugerido parapresente amãesclasse A.
- Filhinho,que exagero!
- Que nada,mãe,a senhoramerece muitomais.
- Você deviaterdeixadoseupai fazerestadespesa.
- Papai lhe deuum carro novo,não deu?Vi na calçada.
- Não. O carro eu ganhei doseuirmãoTavinho,que esteve aqui agoramesmoparame entregaras
chaves.
- E papai,nada?
- Bom, seupai me deu...Oque foi mesmoque seupai me deu?Andocom a cabeça tão distraída.Ah,
sim,uma lanchade passeio.
- Se ele deua lancha,não ia dar a geladeira.
- Ora, você sabe que seupai vai casar comaquelalourade SãoPaulo,e tem procuradoser gentil
comigode todas as maneiras,enquantonãochegaodivórcio.
O filhinhosai de queixotriste.Deraopresente maisinsignificante.Anoque vemterámaiscuidado,
consultarámaisatentamente orol de regalos.Diadas Mães provocafrustraçõesassim.
Se pensamque nas classesBe C a coisa é fácil,enganam-se.Pior.Mamãe ganhoutantosparesde
meiaque davapara abriruma casa-olga.Precisavaterrecebidoumoudoisparesde sapatos para usar
aquele monte de meias,masfilhonãosabe nuncaonúmerodo pé de mamãe.A nora, chamadaa
opinar,vai dizendo,de cabeçaleve:40.Ou 35. A mãe calça 37. Vai trocar na loja,a lojatem37 daquele
modelo?Poissim.Oexcessoconverte-se emcarência.Poucasmãesconseguem
o presente exato.A coleçãode talcosque mamãe guardounoarmário do banheiro,noarmáriodo
quarto e na mala,para dar de presente àsamigasque fazemanos,temorigemnosegundodomingode
maio.Mas o talcode sua predileção,esseelatemde comprarna drogariadistante.
- Possoescolhermeupresente doDiadasMães, meufofinho?
- Não,mãe.Perde a graça. Este ano, a senhoravai ver.Comproum barato.
- Barato? Admitoque você compre umalembrancinhabarata,mas não digaissoa suamãe.É fazer
poucode mim.
- Ih,mãe,a senhoraestápor fora mil anos.Não sabe que barato é o melhorque tem, é um barato!
- Deixe euescolher,deixe...
- Mãe é ruimde escolha.Olhaaquele blazerfuradoque asenhorame deuno Natal!
- Seuporcaria,temcoragem de dizerque suamãe lhe deuumblazerfurado?
- Viu?Nãosabe nemo que é furado.Aquelacorjá era,mãe,já era!
Pelovisto,todosdamospresenteserrados:osfilhosàsmães,asmãesaos filhos.Maridos,
namorados,idem.Sábiafoi DonaLucréciaque chamouos cinco filhose comunicou-lhes:
- Nãoprecisamtomar trabalhocomigo. Nemfazerdespesa.Ficomuitogrataavocêspelaintenção.
Basta cada um me trazer um pacotinhode paz,ouviram?
- Onde a gente arranja isso,mãe?
- Sei lá. O melhor é não procurar muito. Tragam pacotinhos vazios. A paz deve estar lá
dentro.
Carlos Drummond de Andrade
11. NO AEROPORTO
Viajou meu amigo Pedro. Fui levá-lo ao Galeão, onde esperamos três horas o seu
quadrimotor. Durante esse tempo, não faltou assunto para nos entretermos, embora não
falássemos da vã e numerosa matéria atual. Sempre tivemos muito assunto, e não deixamos de
explorá-lo a fundo. Embora Pedro seja extremamente parco de palavras, e, a bem dizer, não se
digne de pronunciar nenhuma. Quando muito, emite sílabas; o mais é conversa de gestos e
expressões pelos quais se faz entender admiravelmente. É o seu sistema.
Passou dois meses e meio em nossa casa, e foi hóspede ameno. Sorria para os
moradores, com ou sem motivo plausível. Era a sua arma, não direi secreta, porque ostensiva.
A vista da pessoa humana lhe dá prazer. Seu sorriso foi logo considerado sorriso especial,
revelador de suas boas intenções para com o mundo ocidental e oriental, e em particular o
nosso trecho de rua. Fornecedores, vizinhos e desconhecidos, gratificados com esse sorriso
(encantador, apesar da falta de dentes), abonam a classificação.
Devo dizer que Pedro, como visitante, nos deu trabalho; tinha horários especiais,
comidas especiais, roupas especiais, sabonetes especiais, criados especiais. Mas sua simples
presença e seu sorriso compensariam providências e privilégios maiores.
Recebia tudo com naturalidade, sabendo-se merecedor das distinções, e ninguém se
lembraria de achá-lo egoísta ou importuno. Suas horas de sono - e lhe apraz dormir não só à
noite como principalmente de dia - eram respeitadas como ritos sagrados, a ponto de não
ousarmos erguer a voz para não acordá-lo. Acordaria sorrindo, como de costume, e não se
zangaria com a gente, porém nós mesmos é que não nos perdoaríamos o corte de seus sonhos.
Assim, por conta de Pedro, deixamos de ouvir muito concerto para violino e
orquestra, de Bach, mas também nossos olhos e ouvidos se forraram à tortura da tevê.
Andando na ponta dos pés, ou descalços, levamos tropeções no escuro, mas sendo por amor de
Pedro não tinha importância.
Objetos que visse em nossa mão, requisitava-os. Gosta de óculos alheios (e não os
usa), relógios de pulso, copos, xícaras e vidros em geral, artigos de escritório, botões simples ou
de punho. Não é colecionador; gosta das coisas para pegá-las, mirá-las e (é seu costume ou sua
mania, que se há de fazer) pô-las na boca. Quem não o conhecer dirá que é péssimo costume,
porém duvido que mantenha este juízo diante de Pedro, de seu sorriso sem malícia e de suas
pupilas azuis — porque me esquecia de dizer que tem olhos azuis, cor que afasta qualquer
suspeita ou acusação apressada, sobre a razão íntima de seus atos.
Poderia acusá-lo de incontinência, porque não sabia distinguir entre os cômodos, e o
que lhe ocorria fazer, fazia em qualquer parte? Zangar-me com ele porque destruiu a lâmpada
do escritório? Não. Jamais me voltei para Pedro que ele não me sorrisse; tivesse eu um impulso
de irritação, e me sentiria desarmado com a sua azul maneira de olhar-me. Eu sabia que essas
coisas eram indiferentes à nossa amizade — e, até, que a nossa amizade lhe conferia caráter
necessário de prova; ou gratuito, de poesia e jogo.
Viajou meu amigo Pedro. Fico refletindo na falta que faz um amigo de um ano de
idade a seu companheiro já vivido e puído. De repente o aeroporto ficou vazio.
ANDRADE, Carlos Drummond de. Cadeira de balanço. Reprod. Em: Poesia completa e
prosa. Rio de Janeiro: José Aguilar, 1973. p.1107-1108
12. O carro, a jardineira, a calçada
No momento, a situação nas calçadas deCopacabana está mais ou menos refletida neste diálogo de mil vozes:
— Ei, tira essa jardineiradaí.
— Pra botar cano no lugar dela?
— Tira também o carro,ué.
— Pra botar aonde? Noutra calçada?
— Melhor deixar a jardineiraeo carro,cada umna sua fatia de calçada.
— E o pedestre?
— Esse já foi tirado há muito tempo.
— E por que não o carro,a jardineira eo pedestre, com lugares marcados?
— Precisa deixar espaço pros carrinhos debebê. Bebê ainda não é pedestre.
— Mas babá é.
— Então vamos repartir a calçadaentre o carro,a jardineira,o pedestre, o bebê e a babá.
— Deixando uma área pras cadeiras dos bares depraia,no calçadão.
— Assimnão dá. Só se houver revezamento.
— E meu pequinês, onde é que meu pequinês vai parar quando tiver necessidade?
— Afinal de contas,a calçadaéou não é do povo?
— Não. É dos bacanas quemoram nos edifícios enão deixama gente estacionar na calçada.
— Mas o cano também é dos bacanas.
— Só que de outros bacanas quenão moram nos edifícios daquela calçada.
— Então é uma guerra entre bacanas.
— Eu não sou bacana.Sou povo e estou pagando meu carro financiado.Ondeé que eu vou estacionar?
— Em cima das flores.
— O senhor pareceque não gosta de flor.Prefere gasolina.
— Ora,meu amigo,quem gosta de flor planteelas no vaso,dentro de casa.Eu também gosto de música,ma s não
vou curtir meu som na calçada.
— A jardineira émedonha, o cano é funcional.
— Sem essa.O cano polui,e toda planta é legal.
— Bobagem, a Celurb apreender as jardineiras.Os próprioscanos liquidamcomelas.
— Se fossesó com as jardineiras.Umdeles, em cima do passeio,mandou minha tia para o hospital.
— Eu não digo que calçada émuito perigoso? O mais seguro é não sair decasa,sob pretexto algum.
— É, mas cano na calçadatem uma vantagem. Não deixa bicicleta atacar.Bicicleta éfogo: olha só esta cicatrizna
minha canela.
— Não estou interessado na sua canela.Quero saber é quem vence esta parada:a maquina ou o homem?
— A máquina também faz parte do homem, é prolongamento dele, do corpo dele. O homem está dos dois lados,
brigando,chateando-se.
— Não terá um terceiro lado,o lado da paz?
— Tem sim,vovó. Tem a Praça da Paz,que fica em Ipanema.
— Engraçadinho.Vê lá setem pazna Praça da Paz.Tem é cano.
— Viu? Foi a conta de fundir o Estado do Rio com o Rio, e carros de Barra do Piraí vem atocha r nossas
calçadas.Só cariocaéque não tem direito.
— Separatista!As calçadastambém devem ser fundidas!
— Ah, meu Deus! Eles estão roubando nossas jardineiras!Essas folhagens!Nossos miniespaçosverdes!
— Numa hora dessas,como rapa levando as jardineiras,médico nenhum é bobo de aparecer!
— As jardineirasestão impedindo o progresso do País!
— Amanhã plantarão bosques na calçada ebotarão leões e tigres,jacarés ecascavéislá dentro,pra devorar a
gente!
— Sempre achei que esse negócio de flor na calçadaésabotagem contra a indústriaautomobilísticanacional!
— Perdão, mas alecrime espada-de-são-jorgesão muito mais nacionaisdo que os automóveis fabricadospor aí!
— Pelo visto,a confusão é geral.
— A confusão já era.Isto é a superconfusão.
— Qual,o Rio de Janeiro não existe.
— Agora é que você percebeu isso?
Carlos Drummond de Andrade
Texto extraído do livro “Boca de luar”, Ed. Record – Rio de Janeiro (RJ), pág. 37.
13. Depois do jantar
Também, que ideia a sua: andar a pé, margeando a Lagoa Rodrigo de Freitas, depois do jantar.
O vulto caminhava em sua direção, chegou bem perto, estacou à sua frente. Decerto ia pedir-lhe um auxílio.
— Não tenho trocado. Mas tenho cigarros. Quer um?
— Não fumo, respondeu o outro.
Então ele queria é saber as horas. Levantou o antebraço esquerdo,consultou o relógio:
— 9 e 17... 9 e 20, talvez. Andaram mexendo nele lá em casa.
— Não estou querendo saberquantas horas são.Prefiro o relógio.
— Como?
— Já disse.Vai passando o relógio.
— Mas ...
— Quer que eu mesmo tire? Pode machucar.
— Não. Eu tiro sozinho. Quer dizer... Estou meio sem jeito. Essa fivelinha enguiça quando menos se espera. Por
favor, me ajude.
O outro ajudou, a pulseira não era mesmo fácil de desatar. Afinal, o relógio mudou de dono.
— Agora posso continuar?
— Continuar o quê?
— O passeio.Eu estava passeando,não viu?
— Vi, sim. Espera um pouco.
— Esperar o quê?
— Passa a carteira.
— Mas...
— Quer que eu também ajude a tirar? Você não faz nada sozinho, nessa idade?
— Não é isso. Eu pensava que o relógio fosse bastante.Não é um relógio qualquer, veja bem. Coisa fina. Ainda não
acabei de pagar...
— E eu com isso? Então vou deixar o serviço pela metade?
— Bom, eu tiro a carteira. Mas vamos fazer um trato.
— Diga.
— Tou com dois mil cruzeiros. Lhe dou mil e fico com mil.
— Engraçadinho, hem? Desde quando o assaltante reparte com o assaltado o produto do assalto?
— Mas você não se identificou como assaltante.Como é que eu podia saber?
— É que eu não gosto de assustar.Sou contra isso de encostaro metal na testa do cara. Sou civilizado, manja?
— Por isso mesmo que é civilizado, você podia rachar comigo o dinheiro. Ele me faz falta, palavra de honra.
— Pera aí. Se você acha que é preciso mostrar revólver, eu mostro.
— Não precisa, não precisa.
— Essa de rachar o legume... Pensa um pouco, amizade. Você está querendo me assaltar, e diz isso com a maior
cara-de-pau.
— Eu, assaltar?! Se o dinheiro é meu, então estou assaltando a mim mesmo.
— Calma. Não baralha mais as coisas. Sou eu o assaltante,não sou?
— Claro.
— Você, o assaltado.Certo?
— Confere.
— Então deixa de poesia e passa pra cá os dois mil. Se é que são só dois mil.
— Acha que eu minto? Olha aqui as quatro notas de quinhentos.Veja se tem mais dinheiro na carteira. Se achar
uma nota de 10, de cinco cruzeiros, de um, tudo é seu. Quando eu confundi você com um, mendigo (desculpe, não
reparei bem) e disse que não tinha trocado,é porque não tinha trocado mesmo.
— Tá bom, não se discute.
— Vamos, procure nos... nos escaninhos.
— Sei lá o que é isso.Também não gosto de mexer nos guardados dos outros.Você me passa a carteira, ela fica
sendo minha, aí eu mexo nela à vontade.
— Deixe ao menos tirar os documentos?
— Deixo. Pode até ficar com a carteira. Eu não coleciono. Mas rachar com você, isso de jeito nenhum. É contra as
regras.
— Nem uma de quinhentos? Uma só.
— Nada. O mais que eu posso fazer é dar dinheiro pro ônibus.Mas nem isso você precisa. Pela pinta se vê que
mora perto.
— Nem eu ia aceitar dinheiro de você.
— Orgulhoso, hem? Fique sabendo que tenho ajudado muita gente neste mundo. Bom, tudo legal. Até outra vez.
Mas antes,uma lembrancinha.
Sacou da arma e deu-lhe um tiro no pé. Carlos Drummond de Andrade
Texto extraído do livro "Os diaslindos",Livraria José Olympio Editora — Rio de Janeiro, 1977,pág. 54.
Como Drummond começou a escrever

Weitere ähnliche Inhalte

Was ist angesagt? (20)

Projeto carnaval
Projeto carnavalProjeto carnaval
Projeto carnaval
 
Adivinhas animais domésticos
Adivinhas animais domésticosAdivinhas animais domésticos
Adivinhas animais domésticos
 
Ivan Cruz
Ivan CruzIvan Cruz
Ivan Cruz
 
Aula chapeuzinho amarelo
Aula chapeuzinho amareloAula chapeuzinho amarelo
Aula chapeuzinho amarelo
 
Mães de todos os tipos
Mães de todos os tiposMães de todos os tipos
Mães de todos os tipos
 
Projeto folclore
Projeto folcloreProjeto folclore
Projeto folclore
 
Sequência II - Cordel
Sequência II - CordelSequência II - Cordel
Sequência II - Cordel
 
Os três porquinhos
Os três porquinhosOs três porquinhos
Os três porquinhos
 
Ensino religioso 7ano
Ensino religioso 7anoEnsino religioso 7ano
Ensino religioso 7ano
 
Livros infantis
Livros infantisLivros infantis
Livros infantis
 
Sequencia didática - O gato xadrez
Sequencia didática - O gato xadrezSequencia didática - O gato xadrez
Sequencia didática - O gato xadrez
 
Atividades educação infantil z
Atividades educação infantil zAtividades educação infantil z
Atividades educação infantil z
 
respeito as pessoas.
respeito as pessoas.respeito as pessoas.
respeito as pessoas.
 
Avaliação Diagnóstica de Matematica 1º ano
Avaliação Diagnóstica de Matematica 1º anoAvaliação Diagnóstica de Matematica 1º ano
Avaliação Diagnóstica de Matematica 1º ano
 
Qual é a cor do amor...
Qual é a cor do amor...Qual é a cor do amor...
Qual é a cor do amor...
 
Marca texto - Mensagem de férias
Marca texto - Mensagem de férias Marca texto - Mensagem de férias
Marca texto - Mensagem de férias
 
Charadas
CharadasCharadas
Charadas
 
Língua portuguesa estrangeirismo
Língua portuguesa estrangeirismoLíngua portuguesa estrangeirismo
Língua portuguesa estrangeirismo
 
Aplicativo de olho na água.pdf
Aplicativo de olho na água.pdfAplicativo de olho na água.pdf
Aplicativo de olho na água.pdf
 
Género dos nomes.pdf
Género dos nomes.pdfGénero dos nomes.pdf
Género dos nomes.pdf
 

Ähnlich wie Como Drummond começou a escrever

Um rouxinol cantou... (a nightingale sang) barbara cartland-www.livros grat...
Um rouxinol cantou... (a nightingale sang)   barbara cartland-www.livros grat...Um rouxinol cantou... (a nightingale sang)   barbara cartland-www.livros grat...
Um rouxinol cantou... (a nightingale sang) barbara cartland-www.livros grat...blackink55
 
Vida... tire-o pó se precisar*
Vida... tire-o pó se precisar*Vida... tire-o pó se precisar*
Vida... tire-o pó se precisar*Cristiane Freitas
 
Tire o que precisar
Tire o que precisarTire o que precisar
Tire o que precisarAmadeu Wolff
 
Alessandro d'avenia branca como o leite, vermelha como o sangue
Alessandro d'avenia   branca como o leite, vermelha como o sangueAlessandro d'avenia   branca como o leite, vermelha como o sangue
Alessandro d'avenia branca como o leite, vermelha como o sangueLudmila Moreira
 
Ana Cristina César / a teus pés
Ana Cristina César / a teus pésAna Cristina César / a teus pés
Ana Cristina César / a teus péssullbreda
 
O homem-que-antecipou-a-sua-morte.pdf
O homem-que-antecipou-a-sua-morte.pdfO homem-que-antecipou-a-sua-morte.pdf
O homem-que-antecipou-a-sua-morte.pdfDon Wilson
 
Exercicios elementos da narratica 2015
Exercicios elementos da narratica 2015Exercicios elementos da narratica 2015
Exercicios elementos da narratica 2015Olivier Fausti Olivier
 
Exercicios elementos da narratica 2015
Exercicios elementos da narratica 2015Exercicios elementos da narratica 2015
Exercicios elementos da narratica 2015Olivier Fausti Olivier
 
Poemas para dramatizar
Poemas para dramatizarPoemas para dramatizar
Poemas para dramatizarVERA OLIVEIRA
 
É PRECISO SABER VIVER
É PRECISO SABER VIVERÉ PRECISO SABER VIVER
É PRECISO SABER VIVERBLOG's REI
 
Dias de verão a4
Dias de verão a4Dias de verão a4
Dias de verão a4rgrecia
 
Acre 4ª edição (agosto, outubro 2014)
Acre 4ª edição (agosto,  outubro 2014)Acre 4ª edição (agosto,  outubro 2014)
Acre 4ª edição (agosto, outubro 2014)AMEOPOEMA Editora
 

Ähnlich wie Como Drummond começou a escrever (20)

Simulado 2 novo
Simulado 2   novoSimulado 2   novo
Simulado 2 novo
 
Oficinas de escrita
Oficinas de escritaOficinas de escrita
Oficinas de escrita
 
Um rouxinol cantou... (a nightingale sang) barbara cartland-www.livros grat...
Um rouxinol cantou... (a nightingale sang)   barbara cartland-www.livros grat...Um rouxinol cantou... (a nightingale sang)   barbara cartland-www.livros grat...
Um rouxinol cantou... (a nightingale sang) barbara cartland-www.livros grat...
 
D 11.pptx
D 11.pptxD 11.pptx
D 11.pptx
 
Vida... tire-o pó se precisar*
Vida... tire-o pó se precisar*Vida... tire-o pó se precisar*
Vida... tire-o pó se precisar*
 
Tire o que precisar
Tire o que precisarTire o que precisar
Tire o que precisar
 
Giselda laporta
Giselda laportaGiselda laporta
Giselda laporta
 
Alessandro d'avenia branca como o leite, vermelha como o sangue
Alessandro d'avenia   branca como o leite, vermelha como o sangueAlessandro d'avenia   branca como o leite, vermelha como o sangue
Alessandro d'avenia branca como o leite, vermelha como o sangue
 
Ana Cristina César / a teus pés
Ana Cristina César / a teus pésAna Cristina César / a teus pés
Ana Cristina César / a teus pés
 
Paginaçao
PaginaçaoPaginaçao
Paginaçao
 
Blog
BlogBlog
Blog
 
O homem-que-antecipou-a-sua-morte.pdf
O homem-que-antecipou-a-sua-morte.pdfO homem-que-antecipou-a-sua-morte.pdf
O homem-que-antecipou-a-sua-morte.pdf
 
Skins the novel
Skins   the novelSkins   the novel
Skins the novel
 
Exercicios elementos da narratica 2015
Exercicios elementos da narratica 2015Exercicios elementos da narratica 2015
Exercicios elementos da narratica 2015
 
Exercicios elementos da narratica 2015
Exercicios elementos da narratica 2015Exercicios elementos da narratica 2015
Exercicios elementos da narratica 2015
 
Poemas para dramatizar
Poemas para dramatizarPoemas para dramatizar
Poemas para dramatizar
 
É PRECISO SABER VIVER
É PRECISO SABER VIVERÉ PRECISO SABER VIVER
É PRECISO SABER VIVER
 
Dias de verão a4
Dias de verão a4Dias de verão a4
Dias de verão a4
 
Interpretaçao retrato portugues
Interpretaçao retrato portuguesInterpretaçao retrato portugues
Interpretaçao retrato portugues
 
Acre 4ª edição (agosto, outubro 2014)
Acre 4ª edição (agosto,  outubro 2014)Acre 4ª edição (agosto,  outubro 2014)
Acre 4ª edição (agosto, outubro 2014)
 

Kürzlich hochgeladen

Slide - EBD ADEB 2024 Licao 02 2Trim.pptx
Slide - EBD ADEB 2024 Licao 02 2Trim.pptxSlide - EBD ADEB 2024 Licao 02 2Trim.pptx
Slide - EBD ADEB 2024 Licao 02 2Trim.pptxedelon1
 
Teoria heterotrófica e autotrófica dos primeiros seres vivos..pptx
Teoria heterotrófica e autotrófica dos primeiros seres vivos..pptxTeoria heterotrófica e autotrófica dos primeiros seres vivos..pptx
Teoria heterotrófica e autotrófica dos primeiros seres vivos..pptxTailsonSantos1
 
Projeto de Extensão - ENGENHARIA DE SOFTWARE - BACHARELADO.pdf
Projeto de Extensão - ENGENHARIA DE SOFTWARE - BACHARELADO.pdfProjeto de Extensão - ENGENHARIA DE SOFTWARE - BACHARELADO.pdf
Projeto de Extensão - ENGENHARIA DE SOFTWARE - BACHARELADO.pdfHELENO FAVACHO
 
PROJETO DE EXTENÇÃO - GESTÃO DE RECURSOS HUMANOS.pdf
PROJETO DE EXTENÇÃO - GESTÃO DE RECURSOS HUMANOS.pdfPROJETO DE EXTENÇÃO - GESTÃO DE RECURSOS HUMANOS.pdf
PROJETO DE EXTENÇÃO - GESTÃO DE RECURSOS HUMANOS.pdfHELENO FAVACHO
 
Considere a seguinte situação fictícia: Durante uma reunião de equipe em uma...
Considere a seguinte situação fictícia:  Durante uma reunião de equipe em uma...Considere a seguinte situação fictícia:  Durante uma reunião de equipe em uma...
Considere a seguinte situação fictícia: Durante uma reunião de equipe em uma...azulassessoria9
 
Projeto_de_Extensão_Agronomia_adquira_ja_(91)_98764-0830.pdf
Projeto_de_Extensão_Agronomia_adquira_ja_(91)_98764-0830.pdfProjeto_de_Extensão_Agronomia_adquira_ja_(91)_98764-0830.pdf
Projeto_de_Extensão_Agronomia_adquira_ja_(91)_98764-0830.pdfHELENO FAVACHO
 
PROJETO DE EXTENSÃO - EDUCAÇÃO FÍSICA BACHARELADO.pdf
PROJETO DE EXTENSÃO - EDUCAÇÃO FÍSICA BACHARELADO.pdfPROJETO DE EXTENSÃO - EDUCAÇÃO FÍSICA BACHARELADO.pdf
PROJETO DE EXTENSÃO - EDUCAÇÃO FÍSICA BACHARELADO.pdfHELENO FAVACHO
 
aula de bioquímica bioquímica dos carboidratos.ppt
aula de bioquímica bioquímica dos carboidratos.pptaula de bioquímica bioquímica dos carboidratos.ppt
aula de bioquímica bioquímica dos carboidratos.pptssuser2b53fe
 
GEOGRAFIA - COMÉRCIO INTERNACIONAL E BLOCOS ECONÔMICOS - PROF. LUCAS QUEIROZ.pdf
GEOGRAFIA - COMÉRCIO INTERNACIONAL E BLOCOS ECONÔMICOS - PROF. LUCAS QUEIROZ.pdfGEOGRAFIA - COMÉRCIO INTERNACIONAL E BLOCOS ECONÔMICOS - PROF. LUCAS QUEIROZ.pdf
GEOGRAFIA - COMÉRCIO INTERNACIONAL E BLOCOS ECONÔMICOS - PROF. LUCAS QUEIROZ.pdfRavenaSales1
 
atividades_reforço_4°ano_231206_132728.pdf
atividades_reforço_4°ano_231206_132728.pdfatividades_reforço_4°ano_231206_132728.pdf
atividades_reforço_4°ano_231206_132728.pdfLuizaAbaAba
 
Recomposiçao em matematica 1 ano 2024 - ESTUDANTE 1ª série.pdf
Recomposiçao em matematica 1 ano 2024 - ESTUDANTE 1ª série.pdfRecomposiçao em matematica 1 ano 2024 - ESTUDANTE 1ª série.pdf
Recomposiçao em matematica 1 ano 2024 - ESTUDANTE 1ª série.pdfFrancisco Márcio Bezerra Oliveira
 
Revolução russa e mexicana. Slides explicativos e atividades
Revolução russa e mexicana. Slides explicativos e atividadesRevolução russa e mexicana. Slides explicativos e atividades
Revolução russa e mexicana. Slides explicativos e atividadesFabianeMartins35
 
PROVA - ESTUDO CONTEMPORÂNEO E TRANSVERSAL: COMUNICAÇÃO ASSERTIVA E INTERPESS...
PROVA - ESTUDO CONTEMPORÂNEO E TRANSVERSAL: COMUNICAÇÃO ASSERTIVA E INTERPESS...PROVA - ESTUDO CONTEMPORÂNEO E TRANSVERSAL: COMUNICAÇÃO ASSERTIVA E INTERPESS...
PROVA - ESTUDO CONTEMPORÂNEO E TRANSVERSAL: COMUNICAÇÃO ASSERTIVA E INTERPESS...azulassessoria9
 
5 bloco 7 ano - Ensino Relogioso- Lideres Religiosos _ Passei Direto.pdf
5 bloco 7 ano - Ensino Relogioso- Lideres Religiosos _ Passei Direto.pdf5 bloco 7 ano - Ensino Relogioso- Lideres Religiosos _ Passei Direto.pdf
5 bloco 7 ano - Ensino Relogioso- Lideres Religiosos _ Passei Direto.pdfLeloIurk1
 
ENSINO RELIGIOSO 7º ANO INOVE NA ESCOLA.pdf
ENSINO RELIGIOSO 7º ANO INOVE NA ESCOLA.pdfENSINO RELIGIOSO 7º ANO INOVE NA ESCOLA.pdf
ENSINO RELIGIOSO 7º ANO INOVE NA ESCOLA.pdfLeloIurk1
 
PROVA - ESTUDO CONTEMPORÂNEO E TRANSVERSAL: COMUNICAÇÃO ASSERTIVA E INTERPESS...
PROVA - ESTUDO CONTEMPORÂNEO E TRANSVERSAL: COMUNICAÇÃO ASSERTIVA E INTERPESS...PROVA - ESTUDO CONTEMPORÂNEO E TRANSVERSAL: COMUNICAÇÃO ASSERTIVA E INTERPESS...
PROVA - ESTUDO CONTEMPORÂNEO E TRANSVERSAL: COMUNICAÇÃO ASSERTIVA E INTERPESS...azulassessoria9
 
Atividade - Letra da música Esperando na Janela.
Atividade -  Letra da música Esperando na Janela.Atividade -  Letra da música Esperando na Janela.
Atividade - Letra da música Esperando na Janela.Mary Alvarenga
 
apostila projeto de vida 2 ano ensino médio
apostila projeto de vida 2 ano ensino médioapostila projeto de vida 2 ano ensino médio
apostila projeto de vida 2 ano ensino médiorosenilrucks
 
"É melhor praticar para a nota" - Como avaliar comportamentos em contextos de...
"É melhor praticar para a nota" - Como avaliar comportamentos em contextos de..."É melhor praticar para a nota" - Como avaliar comportamentos em contextos de...
"É melhor praticar para a nota" - Como avaliar comportamentos em contextos de...Rosalina Simão Nunes
 
Construção (C)erta - Nós Propomos! Sertã
Construção (C)erta - Nós Propomos! SertãConstrução (C)erta - Nós Propomos! Sertã
Construção (C)erta - Nós Propomos! SertãIlda Bicacro
 

Kürzlich hochgeladen (20)

Slide - EBD ADEB 2024 Licao 02 2Trim.pptx
Slide - EBD ADEB 2024 Licao 02 2Trim.pptxSlide - EBD ADEB 2024 Licao 02 2Trim.pptx
Slide - EBD ADEB 2024 Licao 02 2Trim.pptx
 
Teoria heterotrófica e autotrófica dos primeiros seres vivos..pptx
Teoria heterotrófica e autotrófica dos primeiros seres vivos..pptxTeoria heterotrófica e autotrófica dos primeiros seres vivos..pptx
Teoria heterotrófica e autotrófica dos primeiros seres vivos..pptx
 
Projeto de Extensão - ENGENHARIA DE SOFTWARE - BACHARELADO.pdf
Projeto de Extensão - ENGENHARIA DE SOFTWARE - BACHARELADO.pdfProjeto de Extensão - ENGENHARIA DE SOFTWARE - BACHARELADO.pdf
Projeto de Extensão - ENGENHARIA DE SOFTWARE - BACHARELADO.pdf
 
PROJETO DE EXTENÇÃO - GESTÃO DE RECURSOS HUMANOS.pdf
PROJETO DE EXTENÇÃO - GESTÃO DE RECURSOS HUMANOS.pdfPROJETO DE EXTENÇÃO - GESTÃO DE RECURSOS HUMANOS.pdf
PROJETO DE EXTENÇÃO - GESTÃO DE RECURSOS HUMANOS.pdf
 
Considere a seguinte situação fictícia: Durante uma reunião de equipe em uma...
Considere a seguinte situação fictícia:  Durante uma reunião de equipe em uma...Considere a seguinte situação fictícia:  Durante uma reunião de equipe em uma...
Considere a seguinte situação fictícia: Durante uma reunião de equipe em uma...
 
Projeto_de_Extensão_Agronomia_adquira_ja_(91)_98764-0830.pdf
Projeto_de_Extensão_Agronomia_adquira_ja_(91)_98764-0830.pdfProjeto_de_Extensão_Agronomia_adquira_ja_(91)_98764-0830.pdf
Projeto_de_Extensão_Agronomia_adquira_ja_(91)_98764-0830.pdf
 
PROJETO DE EXTENSÃO - EDUCAÇÃO FÍSICA BACHARELADO.pdf
PROJETO DE EXTENSÃO - EDUCAÇÃO FÍSICA BACHARELADO.pdfPROJETO DE EXTENSÃO - EDUCAÇÃO FÍSICA BACHARELADO.pdf
PROJETO DE EXTENSÃO - EDUCAÇÃO FÍSICA BACHARELADO.pdf
 
aula de bioquímica bioquímica dos carboidratos.ppt
aula de bioquímica bioquímica dos carboidratos.pptaula de bioquímica bioquímica dos carboidratos.ppt
aula de bioquímica bioquímica dos carboidratos.ppt
 
GEOGRAFIA - COMÉRCIO INTERNACIONAL E BLOCOS ECONÔMICOS - PROF. LUCAS QUEIROZ.pdf
GEOGRAFIA - COMÉRCIO INTERNACIONAL E BLOCOS ECONÔMICOS - PROF. LUCAS QUEIROZ.pdfGEOGRAFIA - COMÉRCIO INTERNACIONAL E BLOCOS ECONÔMICOS - PROF. LUCAS QUEIROZ.pdf
GEOGRAFIA - COMÉRCIO INTERNACIONAL E BLOCOS ECONÔMICOS - PROF. LUCAS QUEIROZ.pdf
 
atividades_reforço_4°ano_231206_132728.pdf
atividades_reforço_4°ano_231206_132728.pdfatividades_reforço_4°ano_231206_132728.pdf
atividades_reforço_4°ano_231206_132728.pdf
 
Recomposiçao em matematica 1 ano 2024 - ESTUDANTE 1ª série.pdf
Recomposiçao em matematica 1 ano 2024 - ESTUDANTE 1ª série.pdfRecomposiçao em matematica 1 ano 2024 - ESTUDANTE 1ª série.pdf
Recomposiçao em matematica 1 ano 2024 - ESTUDANTE 1ª série.pdf
 
Revolução russa e mexicana. Slides explicativos e atividades
Revolução russa e mexicana. Slides explicativos e atividadesRevolução russa e mexicana. Slides explicativos e atividades
Revolução russa e mexicana. Slides explicativos e atividades
 
PROVA - ESTUDO CONTEMPORÂNEO E TRANSVERSAL: COMUNICAÇÃO ASSERTIVA E INTERPESS...
PROVA - ESTUDO CONTEMPORÂNEO E TRANSVERSAL: COMUNICAÇÃO ASSERTIVA E INTERPESS...PROVA - ESTUDO CONTEMPORÂNEO E TRANSVERSAL: COMUNICAÇÃO ASSERTIVA E INTERPESS...
PROVA - ESTUDO CONTEMPORÂNEO E TRANSVERSAL: COMUNICAÇÃO ASSERTIVA E INTERPESS...
 
5 bloco 7 ano - Ensino Relogioso- Lideres Religiosos _ Passei Direto.pdf
5 bloco 7 ano - Ensino Relogioso- Lideres Religiosos _ Passei Direto.pdf5 bloco 7 ano - Ensino Relogioso- Lideres Religiosos _ Passei Direto.pdf
5 bloco 7 ano - Ensino Relogioso- Lideres Religiosos _ Passei Direto.pdf
 
ENSINO RELIGIOSO 7º ANO INOVE NA ESCOLA.pdf
ENSINO RELIGIOSO 7º ANO INOVE NA ESCOLA.pdfENSINO RELIGIOSO 7º ANO INOVE NA ESCOLA.pdf
ENSINO RELIGIOSO 7º ANO INOVE NA ESCOLA.pdf
 
PROVA - ESTUDO CONTEMPORÂNEO E TRANSVERSAL: COMUNICAÇÃO ASSERTIVA E INTERPESS...
PROVA - ESTUDO CONTEMPORÂNEO E TRANSVERSAL: COMUNICAÇÃO ASSERTIVA E INTERPESS...PROVA - ESTUDO CONTEMPORÂNEO E TRANSVERSAL: COMUNICAÇÃO ASSERTIVA E INTERPESS...
PROVA - ESTUDO CONTEMPORÂNEO E TRANSVERSAL: COMUNICAÇÃO ASSERTIVA E INTERPESS...
 
Atividade - Letra da música Esperando na Janela.
Atividade -  Letra da música Esperando na Janela.Atividade -  Letra da música Esperando na Janela.
Atividade - Letra da música Esperando na Janela.
 
apostila projeto de vida 2 ano ensino médio
apostila projeto de vida 2 ano ensino médioapostila projeto de vida 2 ano ensino médio
apostila projeto de vida 2 ano ensino médio
 
"É melhor praticar para a nota" - Como avaliar comportamentos em contextos de...
"É melhor praticar para a nota" - Como avaliar comportamentos em contextos de..."É melhor praticar para a nota" - Como avaliar comportamentos em contextos de...
"É melhor praticar para a nota" - Como avaliar comportamentos em contextos de...
 
Construção (C)erta - Nós Propomos! Sertã
Construção (C)erta - Nós Propomos! SertãConstrução (C)erta - Nós Propomos! Sertã
Construção (C)erta - Nós Propomos! Sertã
 

Como Drummond começou a escrever

  • 1. 1. VÓ CAIU NA PISCINA Noite na casa da serra, a luz apagou. Entra o garoto: – Pai, vó caiu na piscina. – Tudo bem, filho. O garoto insiste: – Escutou o que eu falei, pai? – Escutei, e daí? Tudo bem. – Cê não vai lá? – Não estou com vontade de cair na piscina. – Mas ela tá lá... – Eu sei, você já me contou. Agora deixe seu pai fumar um cigarrinho descansado. – Tá escuro, pai. – Assimaté é melhor. Eu gosto de fumar no escuro. Daqui a pouco a luz volta. Se não voltar, dá no mesmo. Pede à sua mãe pra acender a vela na sala. Eu fico aqui mesmo, sossegado. – Pai... – Meu filho, vá dormir. É melhor você deitar logo. Amanhã cedinho a gente volta pro Rio, e você custa a acordar. Não quero atrasar a descida por sua causa. – Vó tá com uma vela. – Pois então? Tudo bem. Depois ela acende. – Já tá acesa. – Se está acesa, não tem problema. Quando ela sair da piscina, pega a vela e volta direitinho pra casa. Não vai errar o caminho, a distância é pequena, você sabe muito bem que sua avó não precisa de guia. – Por quê cê não acredita no que eu digo? – Como não acredito? Acredito sim. – Cê não tá acreditando. – Você falou que a sua avó caiu na piscina, eu acreditei e disse: tudo bem. Que é que você queria que eu dissesse? – Não, pai, cê não acreditou ni mim. – Ah, você está me enchendo. Vamos acabar com isso. Eu acreditei. Quantas vezes você quer que eu diga isso? Ou você acha que estou dizendo que acreditei mas estou mentindo? Fique sabendo que seu pai não gosta de mentir. – Não te chamei de mentiroso. – Não chamou, mas está duvidando de mim. Bem, não vamos discutir por causa de uma bobagem. Sua avó caiu na piscina, e daí? É um direito dela. Não tem nada de extraordinário cair na piscina. Eu só não caio porque estou meio resfriado. – Ô, pai, cê é de morte! O garoto sai, desolado. Aquele velho não compreende mesmo nada. Daí a pouco chega a mãe: – Eduardo, você sabe que dona Marieta caiu na piscina? – Até você, Fátima? Não chega o Nelsinho vir com essa ladainha? – Eduardo, está escuro que nem breu, sua mãe tropeçou, escorregou e foi parar dentro da piscina, ouviu? Está com a velaacesa na mão,pedindoparaque tiremelade lá, Eduardo!Não pode sair sozinha, está com a roupa encharcada, pesando muito, e se você não for depressa, ela vai ter uma coisa! Ela morre, Eduardo! – Como? Por que aquele diabo não me disse isto? Ele falou apenas que ela tinha caído na piscina, não explicou que ela tinha tropeçado, escorregado e caído! Saiu correndo, nem esperou a vela, tropeçou, quase que ia parar também dentro d’água. – Mamãe,me desculpe!Omeninonãome disse nadadireito.Falouque asenhoracaiu na piscina. Eu pensei que a senhora estava se banhando. – Está bem,Eduardo – disse dona Marieta, safando-se da água pela mão do filho, e sempre empunhando a velaque conseguiramanteracesa. – Mas de outra vezvocê vai prestar mais atenção no sentido dos verbos, ouviu? Nelsinho falou direito, você é que teve um acesso de burrice, meu filho! ANDRADE, Carlos Drummond de. Vó caiu na piscina. Rio de Janeiro: Ed. Record, 1996.
  • 2. 2. CONSELHOS DE UM VELHO APAIXONADO Quandoencontraralguéme esse alguém fizer seu coração parar de funcionar por alguns segundos, preste atenção: pode ser a pessoa mais importante da sua vida. Se os olharesse cruzareme,neste momento,houveromesmobrilhointensoentreeles,fique alerta: pode ser a pessoa que você está esperando desde o dia em que nasceu. Se o toque dos lábios for intenso, se o beijo for apaixonante, e os olhos se encherem d'água neste momento, perceba: existe algo mágico entre vocês. Se o 1º e o último pensamento do seu dia for essa pessoa, se a vontade de ficar juntos chegar a apertar o coração, agradeça: Algo do céu te mandou um presente divino : O AMOR. Se um dia tiveremque pedirperdãoumaooutropor algummotivoe,emtroca, receberumabraço, um sorriso, um afago nos cabelos e os gestos valerem mais que mil palavras, entregue-se: vocês foram feitos um pro outro. Se por algum motivo você estiver triste, se a vida te deu uma rasteira e a outra pessoa sofrer o seu sofrimento, chorar as suas lágrimas e enxugá-las com ternura, que coisa maravilhosa: você poderá contar com ela em qualquer momento de sua vida. Se você conseguir,empensamento,sentirocheirodapessoacomose ela estivesse ali do seu lado... Se você achar a pessoamaravilhosamente linda,mesmoelaestando de pijamas velhos, chinelos de dedo e cabelos emaranhados... Se você não consegue trabalhar direito o dia todo, ansioso pelo encontro que está marcado para a noite... Se você nãoconsegue imaginar,de maneiranenhuma,umfuturosemapessoaao seulado...Se você tivera certezaque vai ver a outra envelhecendoe,mesmo assim, tiver a convicção que vai continuar sendo louco por ela... Se você preferir fechar os olhos, antes de ver a outra partindo: é o amor que chegou na sua ida. Muitas pessoas apaixonam-se muitas vezes na vida, mas poucas amam ou encontram um amor verdadeiro. Às vezesencontrame,pornãoprestarematençãonessessinais,deixamoamorpassar, sem deixá-lo acontecer verdadeiramente. É o livre-arbítrio. Por isso, preste atenção nos sinais. Não deixe que as loucuras do dia-a-dia o deixem cego para a melhor coisa da vida: o AMOR !!! Ame muito...muitíssimo... CARLOSDRUMMOND DE ANDRADE
  • 3. 3. VIÚVA LOURA - "Viúva, 21 anos..." - Tadinha.A vida é isso. - "Loura..." - Melhorou. - "Fazendeira, rica..." - Epa, muda completamente de figura. - "Pertencente a tradicional família mineira..." - Corta essa! - "Recém-chegada do interior..." - Então, não custa sondar a barra. - "Procura companhia masculina..." - Ainda bem que é masculina.Tou às ordens. - "Que seja jovem..." - Você acha que 38 anos está na pauta? - "Bem intencionado..." - Nunca fui outra coisa na vida. - "De fino trato..." - Não é por me gabar,mas... - "Conhecedor dos pontos pitorescos do Rio..." - Que é que ela entende por pontos pitorescos? Eu prefiro pontos estratégicos. - "Para passeios e..." - Etc., lógico. - "Futuro compromisso matrimonial..." - Corta! Corta! - É mesmo. - Aliás,eu não tenho mais de 38. Tinha,semana passada. - E rica...Rica de que? Talvez de predicados apenas. - Poxa, até parece que você está querendo a viúva pro seu bico.Pera aí, mau- caráter. - Eu? Vê lá seeu vou nessa onda de anúncio.Tou prevenindo pra você não se grilar.Viúva,mineira, loura...Se é mineira,não deve ser loura.Se é loura.É artificial.Seé artificial... - Deixa a viuvinha ser loura emineira,deixa. - Olha,eu conheci uma loura que, alémde outros negativos,era careca. - Ora,peruca resolve. - Sei não, mas tudo isso junto- mineira,viúva,loura, 21 anos,rica... - Que é que tem? - É exagero. Não precisava Ter tantas qualidades. - Foi uma graça de Deus. - Você não merece tanto. - Será outra graça de Deus. - Deus não deve ser assimtão desperdiçado com suas graças. - Lá vem você querendo dar instruções ao Altíssimo. Perde essa mania. - Bom, mas você não sabe que mineiro esconde milho até de monjolo? - Continua. - "Cartas com sigilo absoluto..." - Evidente. - "Indicações pessoais..." - Minha ficha é mais limpa do que caixa d'água de edifício quanto o síndico vai ao terraço. - "E fotos..." - Arrgh! Só tenho 3x4, muito fajuta.Mas tiro de calção,frente, perfil e fundos. - "Para a portaria dessejornal,sob n°019 834." - Pera aí. Tou anotando. 019? - 834. - Legal. 834 é o número de meu edifício,19 é pavão, que tem a perna dourada.Lê mais. - Já li tudo, ué. - Lê outra vez. Repete. - Vai decorar? - Vou gravar melhor na nuca,vou raciocinar em bloco,vou... - Se habilitar,né? - Correto. - Calma,rapaz.Sabe lá que espécie de viúva é essa? - Vou ver pra conferir. - Pode nem ser viúva. - E daí? - Diz que tem 21 anos,mas quem garante que não é modéstia? Às vezes tem três vezes 21. - Então você admite que ela é mineira. - E que cria galinhasemração,na baseda parapsicologia? - Também sou mineiro, uai. - E nunca me confessou.Eu jurava quevocê fosse capixaba. - Fui. Questão de limites,minha terra passou pra banda de cá. Não espalha,sim? - Me tapeou essetempo todo. - Esquece. - Vai ser dura a parada:mineira loura versus mineiro mascarado. - Fica em família,né? - A tradicional? - As duas.Eu na minha,ela na dela. - Agora sou eu que digo: tadinha. - Por quê? Se ela botou anúncio,quer transar.Eu transo.No figurino. - É verdade que tem muito carioca por aí,muito paulista,muito nortista,espiando maré.Talvez você chegue tarde. - Duvido. Você sabeque nessas coisassou meio Fittipaldi.Comigo é Fórmula-1. - Mineiro contando prosa? Nunca vi isso. - Bem, mineiro é capazde contar prosa só pra esconder que é mineiro... - Chega, amizade, você já ganhou a viuvinha com fazenda e tudo, podes crer! CARLOS DRUMMOND DE ANDRADE
  • 4. 4. COMO COMECEI A ESCREVER Aí por volta de 1910 não havia rádio nem televisão, e o cinema chegava ao interior do Brasil uma vez por semana aos domingos. As notícias do mundo vinhampelo jornal,três dias depois de publicadas no Rio de Janeiro. Se chovia a potes, a mala do correio aparecia ensopada, uns sete dias mais tarde. Não dava para ler o papel transformado em mingau. Papai era assinante da Gazeta de Notícias, e antes de aprender a ler eu me sentia fascinado pelas gravuras coloridas do suplemento de Domingo. Tentava decifrar o mistério das letras em redor das figuras, e mamãe me ajudava nisso.Quando fui para a escola pública,já tinha a noção vaga de um universo de pa lavras que era preciso conquistar. Durante o curso, minhas professoras costumavam passar exercícios de redação. Cada um de nós tinha de escrever uma carta, narra um passeio, coisas assim. Criei gosto por esse dever, que me permitia aplicar para determinado fim o conhecimento que ia adquirindo do poder de expressão contido nos sinais reunidos em palavras. Daí por diante as experiências foram se acumulando, sem que eu percebesse que estava descobrindo a leitura. Alguns elogios da professora me animavam a continuar. Ninguém falava em conto ou poesia, mas a semente dessas coisas estavamgerminando.Meu irmão,estudante na Capital,mandava -me revistas e livros, e me habituei a viver entre eles. Depois, já rapaz, tive sorte de conhecer outros rapazes que também gostavam de ler e escrever. Então começou uma fase muito boa de troca de experiências e impressões. Na mesa do café-sentado ( pois tomava-se café sentado nos bares, e podia-se conversar horas e horas sem incomodar nem ser incomodado ) eu tirava do bolso o que escrevera durante o dia,e meus colegas criticavam.Eles também sacavamseus escritos, e eu tomava parte nos comentários. Tudo com naturalidade e franqueza. Aprendi muito com os amigos, e tenho pena dos jovens de hoje que não desfrutam desse tipo de amizade crítica. CARLOS DRUMMOND DE ANDRADE
  • 5. 5. MARGARIDA A garota em êxtase brandiu o postal que recebera do namorado em excursão na Grécia : - Coisa mais linda! Olha só o que ele escreveu: "Eu queria desfolhar teu coração como se ele fosse a mais margarida de todas as margaridas. "Marquinhos é genial, o senhor não acha? - Pode ser que seja, não conheço Marquinhos. Se bem que antes da era Pierre Cardin, genial era Dante, Da Vinci, Einstein, outros assim. Mas essa frase não é de Marquinhos. - Não é de Marquinhos?! Tá com a letra dele, assinada por ele. - Estou vendo que assinou, mas é de Darío. - Quem? O Darío, do Atlético Mineiro? Sem essa. - Não minha florzinha, Darío, Rubén Darío, o poeta da Nicarágua. - Não conheço. Então Rubén Darío falou para Marquinhos e Marquinhos - Achou bacana e pediu emprestado a ele? - Tenho a impressão que o Marquinhos não pediu nada emprestado a Rubén Darío. Tomou sem consultar. - Como é que o senhor sabe? - É muito difícil consultar o Darío. - Por quê? Ele não dá bola para gente? Não gosta da mocidade? É careta? - Não é nada disso. O Darío não é encontrado em parte alguma. - Ah, ele gosta de bancar o invisível, né? - Não creio que goste, mas é exatamente o caso dele: invisível. - Não dá para entender. - Vai entender logo. Ele morreu em 1916. - Ah! E como é que o Marquinhos descobriu essa margarida, me conte! - Simples. Leu num livro de poemas de Rubén Darío. - Marquinhos não é ligado a leitura. Duvido. - Se não leu no livro, leu em alguma revista, em alguma parte. - Hã... Ficou tão triste- os olhos, a boca, a testa franzida- que achei de meu dever confortá-la: - Que importância tem isso? A frase é de Darío, é de Marquinhos, é de toda pessoa sensível, capaz de assimilar o coração à margarida... Desculpe: à margarida. Muxoxo: - Se é de todos, não é de ninguém, não vale nada. - Pelo contrário. Fica valendo mais, torna-se sentimento universal. - Ah, o senhor está por fora. Eu queria a margarida só para mim. Copiada não tem graça. A graça era imaginar Marquinhos, muito sério, desfolhando meu coração transformado em margarida, para saber se eu gosto dele, um pouquinho, bastante, muito loucamente, nada. E a margarida sempre com uma pétala escondida por baixo da outra, entende? Para ele não ter certeza, porque essa certeza eu não dava... Era gozado. - Continue imaginando. - Agora não dá pé. Marquinhos roubou a margarida, quis dar uma de poeta. Não colou. - Espere um pouco. Eu disse que a margarida era de Rubén Darío? Esta cabeça! Esquece, minha filha. Agora me lembro que Rubén Darío nem podia ouvir falar em margarita, começava a espirrar, a tossir, ficava sufocado, uma coisa horrível. Alergia- que no tempo dele ainda não estava batizada. Pois é. Garanto a você, posso jurar que a margarida não é de Darío. - De quem é então? - De Marquinhos, ué. - Tem certeza que nunca ninguém antes de Marquinhos escreveu ä mais margarida de todas as margaridas"? o senhor lê milhões, pode me responder. Tem certeza? - Absoluta. Marquinhos é genial, reconheço. Mas, por via das dúvidas, continue escondendo uma pétala de reserva, sim? - Pode deixar por minha conta. Puxa, quase que eu parava de transar com o Marquinhos por causa do senhor. Agora tá legal, tchau, vovô! Vovô: foi assim que ela me agradeceu a mentira generosa, a bandida. CARLOS DRUMMOND DE ANDRADE
  • 6. 6. A incapacidade de ser verdadeiro Paulo tinha fama de mentiroso. Um dia chegou em casa dizendo que vira no campo dragões - da – independência cuspindo fogo e lendo fotonovelas. A mãe botou-o de castigo, mas na semana seguinte ele veio contando que caíra no pátio da escola um pedaço de lua, todo cheio de buraquinhos, feito queijo, e ele provou e tinha gosto de queijo. Desta vez Paulo não só ficou sem sobremesa, como foi proibido de jogar futebol durante quinze dias. Quando o menino voltou falando que todas as borboletas da terra passaram pela chácara de Siá Elpídia e queriam formar um tapete voador para transportá-lo para o sétimo céu, a mãe decidiu levá-lo ao médico. Após o exame, o Dr. Epaminondas abanou a cabeça: -Não há nada a fazer, Dona Coló. Esse menino é mesmo um caso de poesia. Carlos Drummond de Andrade Maneira de amar O jardineiro conversava com as flores, e elas se habituaram ao diálogo. Passava manhãs contando coisas a uma cravina ou escutando o que lhe confiava um gerânio. O girassol não ia muito com sua cara, ou porque não fosse homem bonito, ou porque os girassóis são orgulhosos de natureza. Em vão o jardineiro tentava captar-lhe as graças, pois o girassol chegava a voltar-se contra a luz par não ver o rosto que lhe sorria. Era uma situação bastante embaraçosa, que as outras flores não comentavam. Nunca, entretanto, o jardineiro deixou se regar o pé de girassol e de renovar-lhe a terra, na ocasião devida. O dono do jardim achou que seu empregado perdia muito tempo diante dos canteiros, aparentemente não fazendo coisa alguma. E mandou-o embora, depois de assinar a carteira de trabalho. Depois que o jardineiro saiu, as flores ficaram tristes e censuravam-se porque não tinham induzido o girassol a mudar de atitude. A mais triste de todas era o girassol, que não se conformava com a ausência do homem. “Você o tratava mal, agora está arrependido?” “Não, respondeu, estou triste porque agora não posso tratá-lo mal. É a minha maneira de amar, ele sabia disso, e gostava”. Carlos Drummond de Andrade
  • 7. 7. A estranha e "eficiente" linguagem dos namorados – Oi,meu berilo! – Oi,meu anjo barroco! – Minha tanajura!Minha orquestra decâmera! – Que bom você me chamar assim,meu pessegueiro-da-flórida! – Você gosta,minha calhandra? – Adoro, meu teleférico iluminado! – Eu também gosto muito de ser tudo isso quevocê me chama! – De verdade, meu jaguaretêde paina? – Juro, meu cavalinho deasas! – Então dizmais,dizmais! – Meu oitavo,meu décimo, décimo quinto pecado capital,minha janelasobrea Acrópole,meu verso de Rilke, minha malvasiara,meu minueto de Versailles... – Mais,agapanto meu, tempestade minha! – Minha folliacon variazoni,deCorelli,meu isto-e-aquilo enguirlandado,meu eu anterior a mim, meus diálogos com Platão e Plotino ao entardecer, minha úlcera maravilhosa! – Ai que lindo,liiiiindo,meu colar decavalheiro inglêsnumretrato de Ticiano!Meu fundo-do-mar, você me põe louca,louca deamar as pedras,de patinar nas nuvens! – E eu então, minha górgone, minha gárgula de Notre Dame, e eu, minha sintaxede Deus? – Você fala como falamos balões de junho de Portinari,as joiasda coroa do reino de Samarcanda, você, meu imperativo categórico,você, minha espada maçônica,vocême mata! – E você também me trucida,me degola,me devolve ao estado de música,meu tambor de mina! – Todos os incentivos oficiaisreunidos emultiplicadosnão valema tua alquimia,meu ministro do fogo! – Tuas paisagens,teu subsolo infernal,teus labirintos são superioresem felicidadea qualquer declaração dos direitos do homem! – A primeira vez que eu vi você naquele bar do crepúsculo eu senti que as pirâmides eas cataratasnão valiama tua unha do dedo mindinho! – Porque você é o Banco das Estrelas,e pode comprar todas as coisasdo mundo, inclusiveas águas eos animais, para restituí-los à vida em liberdade! – Como posso ouvir outras palavrassenão as tuas,meu almanaquedo céu? Minha ciência do insabível? Meu terremoto, meu objeto voador identificado? – Não nascemos um para o outro, nascemos um no outro, e estamos nessa desde antes do começo dos séculos, meu nenúfar! – E estaremos mesmo depois que os séculos seevaporarem, ó meu desenho rupestre, meu formigão atômico! – Mandala,raio laser,sextina!Tudo meu, é claro! – Pomba-gira! – Clepsidra! – Sequóia minha minha minha! Diálogo aparentemente louco,mas que dois namorados deimaginação mantêm todos os dias,comestas ou outras palavrasigualmentemágicas.Não inventei nada.Apenas colecionei expansões ouvidas aqui eali,e que me pareceram espontâneas,isto é, ninguém deve ter preparado antes o que iria dizer,de tal modo as palavrassaíam entrecortadas de risos,interrompidaspor afagos,brotando da situação.O amor é inventivo e anula os postulados da lógica.Eletem sua lógica própria,tão válidaquanto a outra. E os amantes se entendem sob o signo do absurdo – não tão absurdo assim,como parece aos não-amorosos.Já ouvi no interior de Minas alguémchamar seu amor de “meu bicho-do-pé” e receber em troca o mais cálido beijo deagradecimento. Esta coletânea de frases deamor está aqui como introdução ao projeto não-comercial decomemorações do Dia dos Namorados. Não para que elas sejamrepetidas mecanicamente. Todo namorado que se preze deve inventar as besteiras líricasedeliciosasquea gente não dizpara qualquer pessoa,só para uma,e só em momentos de pura delícia.Funciona? Ecomo! Carlos Drummond de Andrade
  • 8. 8. O padeiro Levanto cedo, faço minhas abluções, ponho a chaleira no fogo para fazer café e abro a porta do apartamento - mas não encontro o pão costumeiro. No mesmo instante me lembro de ter lido alguma coisa nos jornais da véspera sobre a "greve do pão dormido". De resto não é bem uma greve, é um lock-out, greve dos patrões, que suspenderam o trabalho noturno; acham que obrigando o povo a tomar seu café da manhã com pão dormido conseguirão não sei bem o que do governo. Está bem. Tomo o meu café com pão dormido, que não é tão ruim assim. E enquanto tomo café vou me lembrando de um homem modesto que conheci antigamente. Quando vinha deixar o pão à porta do apartamento ele apertava a campainha, mas, para não incomodar os moradores, avisava gritando: - Não é ninguém, é o padeiro! Interroguei-o uma vez: como tivera a ideia de gritar aquilo? "Então você não é ninguém?" Ele abriu um sorriso largo. Explicou que aprendera aquilo de ouvido. Muitas vezes lhe acontecera bater a campainha de uma casa e ser atendido por uma empregada ou outra pessoa qualquer, e ouvir uma voz que vinha lá de dentro perguntando quem era; e ouvir a pessoa que o atendera dizer para dentro: "não é ninguém, não senhora, é o padeiro". Assim ficara sabendo que não era ninguém... Ele me contou isso sem mágoa nenhuma, e se despediu ainda sorrindo. Eu não quis detê-lo para explicar que estava falando com um colega, ainda que menos importante. Naquele tempo eu também, como os padeiros, fazia o trabalho noturno. Era pela madrugada que deixava a redação de jornal, quase sempre depois de uma passagem pela oficina - e muitas vezes saía já levando na mão um dos primeiros exemplares rodados, o jornal ainda quentinho da máquina, como pão saído do forno. Ah, eu era rapaz, eu era rapaz naquele tempo! E às vezes me julgava importante porque no jornal que levava para casa, além de reportagens ou notas que eu escrevera sem assinar, ia uma crônica ou artigo com o meu nome. O jornal e o pão estariam bem cedinho na porta de cada lar; e dentro do meu coração eu recebi a lição de humildade daquele homem entre todos útil e entre todos alegre; "não é ninguém, é o padeiro!" E assobiava pelas escadas. Carlos Drummond de Andrade
  • 9. 9. TELEFONE – O senhoré que é o senhormesmo? – Como? – Estouperguntandoquemé o senhor,afinal. – EvaristoPestanade Matos, seucriado. – Issoestouvendonacarteirade identidade.Maso talãode inscriçãodizAbel Setembrinode Matos. – É meuavô paterno. – Entãofala pra seuavô virele mesmo,trazendoa carteira. – Istoeunão possofalarnão senhor. – Nãopode por quê? – Porque ele jáé falecidodesde1952. – Se já é falecido,nadafeito.A inscriçãoestácancelada. – Canceladacomo,se ele foi chamadopelaCompanhianojornal de hoje? – Olha,moço,a Companhiachamouna suposiçãodele estarvivo.Nãoestando,ficasemefeitoa chamada.Compreendeu? – Compreendinão.A Companhiachamou,táchamado.Eu vimemnome de meusaudosoavô pagar a primeiracotado telefoneque ele pediuhá24 anos,quandoeu era meninode colo,aliásafilhadodele. – O senhorestáé brincando.Seuavônão precisamaisde telefone. -Mas precisoeu,que sounetodele,seráque osenhortambémnão mora?Este talãoaqui foi conservadopelafamíliadurante umquartode século.Meuavô,sentindoumador doladoesquerdo, chamoumeupai e disse:“Etelberto,tiradagavetinhadocriado-mudominhainscriçãode telefone e guarda elacom cuidado.Nãopude deixarumaparelhoparavocê,mas deixoessaesperança.Nãovende a inscriçãopor dinheironenhum,meufilho.Satisfazminhaúltimavontade.”Disse e morreu. – É comovente,mas… – Esperaaí. Tem mais.Meu pai guardouo papel 13 anos e tambémembarcou,coitado.Nahora da despedida,me fezamesmarecomendação.Estoucumprindoummandadode família,umacoisa sagrada para mim.Já lhe dei otalão.Me dá meutelefone,cidadão. – Esse talãoé de Abel Setembrinode Matos,ô homem! – Eu sei.Meuavô,pai de meupai.Me tocoucomo bemde família. -Tocoucomo? Por acaso entroueminventário,osenhor temformal de partilhaprovandoisso? – Formal eunão tenho,mastenhoo talão.Quemmaissenãoeupodiaficarcom o talão se sou filho únicode filhoúnicode meuavô? – Eu sei láse o senhoré únicoou se faz parte de escadinha.NeminteressaàCompanhiasaberquemé filhoúnicode quem.Sabe que mais?A conversajáesticoudemais.Vouchamaro próximo. – Me atendaantes,porfavor.Não vai me obrigara ir para a televisãoreclamarodireitode meuavô, nemcontratar advogado.Poiseuvou,eucontrato. – Faça o que quiser. – O que euqueroé o telefone de meuavô,pedidoem1943! – Retire-se,osenhorestáenchendo! – Hein?! – Está enchendo,jádisse! – Estoué me sentindomal…Uma coisado ladoesquerdo…umanuvem…umavertigem…A gente esperandodesde aSegundaGuerraMundial,e nahora de receberotelefone,ahmeuDeus,oSenhor me chama para o seuseio…Nãofazissocomigo,deixapelomenoseutomarumtáxi,irem casa entregara meufilhoTonicoeste talão…Quemsabe se ele umdia… Cai. Carlos Drummondde Andrade
  • 10. 10. Presente para a Senhora Percorroas listasde presentespossíveisparaoDia das Mães,e sintoa dificuldadedoproblema. Tanta coisa!Até parece que a mamãe,coitada,nãotem objetoalgumemcasa,desprovidade geladeira, armários,lenços,liquidificador,porta-notas,tigelasde cerâmica,fogão,secadorde cabelo,batas... Não,mamãe temgeladeirasim,claroque tem.Nãoé desse eletrodomésticofundamental que saem os refrigerantes,oscremes,ascoisasgostosas que elareservouparao paladardo filhinho?Ofilhinho hoje é executivo,massempre que vai visitarmamãe,sabe que elaguardouparaele umsorvete especial na cavernado congelador.É,mas a geladeiradeve terenvelhecidomaisdepressaque mamãe.Nãotem essesbabadosmodelo75,sugerido parapresente amãesclasse A. - Filhinho,que exagero! - Que nada,mãe,a senhoramerece muitomais. - Você deviaterdeixadoseupai fazerestadespesa. - Papai lhe deuum carro novo,não deu?Vi na calçada. - Não. O carro eu ganhei doseuirmãoTavinho,que esteve aqui agoramesmoparame entregaras chaves. - E papai,nada? - Bom, seupai me deu...Oque foi mesmoque seupai me deu?Andocom a cabeça tão distraída.Ah, sim,uma lanchade passeio. - Se ele deua lancha,não ia dar a geladeira. - Ora, você sabe que seupai vai casar comaquelalourade SãoPaulo,e tem procuradoser gentil comigode todas as maneiras,enquantonãochegaodivórcio. O filhinhosai de queixotriste.Deraopresente maisinsignificante.Anoque vemterámaiscuidado, consultarámaisatentamente orol de regalos.Diadas Mães provocafrustraçõesassim. Se pensamque nas classesBe C a coisa é fácil,enganam-se.Pior.Mamãe ganhoutantosparesde meiaque davapara abriruma casa-olga.Precisavaterrecebidoumoudoisparesde sapatos para usar aquele monte de meias,masfilhonãosabe nuncaonúmerodo pé de mamãe.A nora, chamadaa opinar,vai dizendo,de cabeçaleve:40.Ou 35. A mãe calça 37. Vai trocar na loja,a lojatem37 daquele modelo?Poissim.Oexcessoconverte-se emcarência.Poucasmãesconseguem o presente exato.A coleçãode talcosque mamãe guardounoarmário do banheiro,noarmáriodo quarto e na mala,para dar de presente àsamigasque fazemanos,temorigemnosegundodomingode maio.Mas o talcode sua predileção,esseelatemde comprarna drogariadistante. - Possoescolhermeupresente doDiadasMães, meufofinho? - Não,mãe.Perde a graça. Este ano, a senhoravai ver.Comproum barato. - Barato? Admitoque você compre umalembrancinhabarata,mas não digaissoa suamãe.É fazer poucode mim. - Ih,mãe,a senhoraestápor fora mil anos.Não sabe que barato é o melhorque tem, é um barato! - Deixe euescolher,deixe... - Mãe é ruimde escolha.Olhaaquele blazerfuradoque asenhorame deuno Natal! - Seuporcaria,temcoragem de dizerque suamãe lhe deuumblazerfurado? - Viu?Nãosabe nemo que é furado.Aquelacorjá era,mãe,já era! Pelovisto,todosdamospresenteserrados:osfilhosàsmães,asmãesaos filhos.Maridos, namorados,idem.Sábiafoi DonaLucréciaque chamouos cinco filhose comunicou-lhes: - Nãoprecisamtomar trabalhocomigo. Nemfazerdespesa.Ficomuitogrataavocêspelaintenção. Basta cada um me trazer um pacotinhode paz,ouviram? - Onde a gente arranja isso,mãe? - Sei lá. O melhor é não procurar muito. Tragam pacotinhos vazios. A paz deve estar lá dentro. Carlos Drummond de Andrade
  • 11. 11. NO AEROPORTO Viajou meu amigo Pedro. Fui levá-lo ao Galeão, onde esperamos três horas o seu quadrimotor. Durante esse tempo, não faltou assunto para nos entretermos, embora não falássemos da vã e numerosa matéria atual. Sempre tivemos muito assunto, e não deixamos de explorá-lo a fundo. Embora Pedro seja extremamente parco de palavras, e, a bem dizer, não se digne de pronunciar nenhuma. Quando muito, emite sílabas; o mais é conversa de gestos e expressões pelos quais se faz entender admiravelmente. É o seu sistema. Passou dois meses e meio em nossa casa, e foi hóspede ameno. Sorria para os moradores, com ou sem motivo plausível. Era a sua arma, não direi secreta, porque ostensiva. A vista da pessoa humana lhe dá prazer. Seu sorriso foi logo considerado sorriso especial, revelador de suas boas intenções para com o mundo ocidental e oriental, e em particular o nosso trecho de rua. Fornecedores, vizinhos e desconhecidos, gratificados com esse sorriso (encantador, apesar da falta de dentes), abonam a classificação. Devo dizer que Pedro, como visitante, nos deu trabalho; tinha horários especiais, comidas especiais, roupas especiais, sabonetes especiais, criados especiais. Mas sua simples presença e seu sorriso compensariam providências e privilégios maiores. Recebia tudo com naturalidade, sabendo-se merecedor das distinções, e ninguém se lembraria de achá-lo egoísta ou importuno. Suas horas de sono - e lhe apraz dormir não só à noite como principalmente de dia - eram respeitadas como ritos sagrados, a ponto de não ousarmos erguer a voz para não acordá-lo. Acordaria sorrindo, como de costume, e não se zangaria com a gente, porém nós mesmos é que não nos perdoaríamos o corte de seus sonhos. Assim, por conta de Pedro, deixamos de ouvir muito concerto para violino e orquestra, de Bach, mas também nossos olhos e ouvidos se forraram à tortura da tevê. Andando na ponta dos pés, ou descalços, levamos tropeções no escuro, mas sendo por amor de Pedro não tinha importância. Objetos que visse em nossa mão, requisitava-os. Gosta de óculos alheios (e não os usa), relógios de pulso, copos, xícaras e vidros em geral, artigos de escritório, botões simples ou de punho. Não é colecionador; gosta das coisas para pegá-las, mirá-las e (é seu costume ou sua mania, que se há de fazer) pô-las na boca. Quem não o conhecer dirá que é péssimo costume, porém duvido que mantenha este juízo diante de Pedro, de seu sorriso sem malícia e de suas pupilas azuis — porque me esquecia de dizer que tem olhos azuis, cor que afasta qualquer suspeita ou acusação apressada, sobre a razão íntima de seus atos. Poderia acusá-lo de incontinência, porque não sabia distinguir entre os cômodos, e o que lhe ocorria fazer, fazia em qualquer parte? Zangar-me com ele porque destruiu a lâmpada do escritório? Não. Jamais me voltei para Pedro que ele não me sorrisse; tivesse eu um impulso de irritação, e me sentiria desarmado com a sua azul maneira de olhar-me. Eu sabia que essas coisas eram indiferentes à nossa amizade — e, até, que a nossa amizade lhe conferia caráter necessário de prova; ou gratuito, de poesia e jogo. Viajou meu amigo Pedro. Fico refletindo na falta que faz um amigo de um ano de idade a seu companheiro já vivido e puído. De repente o aeroporto ficou vazio. ANDRADE, Carlos Drummond de. Cadeira de balanço. Reprod. Em: Poesia completa e prosa. Rio de Janeiro: José Aguilar, 1973. p.1107-1108
  • 12. 12. O carro, a jardineira, a calçada No momento, a situação nas calçadas deCopacabana está mais ou menos refletida neste diálogo de mil vozes: — Ei, tira essa jardineiradaí. — Pra botar cano no lugar dela? — Tira também o carro,ué. — Pra botar aonde? Noutra calçada? — Melhor deixar a jardineiraeo carro,cada umna sua fatia de calçada. — E o pedestre? — Esse já foi tirado há muito tempo. — E por que não o carro,a jardineira eo pedestre, com lugares marcados? — Precisa deixar espaço pros carrinhos debebê. Bebê ainda não é pedestre. — Mas babá é. — Então vamos repartir a calçadaentre o carro,a jardineira,o pedestre, o bebê e a babá. — Deixando uma área pras cadeiras dos bares depraia,no calçadão. — Assimnão dá. Só se houver revezamento. — E meu pequinês, onde é que meu pequinês vai parar quando tiver necessidade? — Afinal de contas,a calçadaéou não é do povo? — Não. É dos bacanas quemoram nos edifícios enão deixama gente estacionar na calçada. — Mas o cano também é dos bacanas. — Só que de outros bacanas quenão moram nos edifícios daquela calçada. — Então é uma guerra entre bacanas. — Eu não sou bacana.Sou povo e estou pagando meu carro financiado.Ondeé que eu vou estacionar? — Em cima das flores. — O senhor pareceque não gosta de flor.Prefere gasolina. — Ora,meu amigo,quem gosta de flor planteelas no vaso,dentro de casa.Eu também gosto de música,ma s não vou curtir meu som na calçada. — A jardineira émedonha, o cano é funcional. — Sem essa.O cano polui,e toda planta é legal. — Bobagem, a Celurb apreender as jardineiras.Os próprioscanos liquidamcomelas. — Se fossesó com as jardineiras.Umdeles, em cima do passeio,mandou minha tia para o hospital. — Eu não digo que calçada émuito perigoso? O mais seguro é não sair decasa,sob pretexto algum. — É, mas cano na calçadatem uma vantagem. Não deixa bicicleta atacar.Bicicleta éfogo: olha só esta cicatrizna minha canela. — Não estou interessado na sua canela.Quero saber é quem vence esta parada:a maquina ou o homem? — A máquina também faz parte do homem, é prolongamento dele, do corpo dele. O homem está dos dois lados, brigando,chateando-se. — Não terá um terceiro lado,o lado da paz? — Tem sim,vovó. Tem a Praça da Paz,que fica em Ipanema. — Engraçadinho.Vê lá setem pazna Praça da Paz.Tem é cano. — Viu? Foi a conta de fundir o Estado do Rio com o Rio, e carros de Barra do Piraí vem atocha r nossas calçadas.Só cariocaéque não tem direito. — Separatista!As calçadastambém devem ser fundidas! — Ah, meu Deus! Eles estão roubando nossas jardineiras!Essas folhagens!Nossos miniespaçosverdes! — Numa hora dessas,como rapa levando as jardineiras,médico nenhum é bobo de aparecer! — As jardineirasestão impedindo o progresso do País! — Amanhã plantarão bosques na calçada ebotarão leões e tigres,jacarés ecascavéislá dentro,pra devorar a gente! — Sempre achei que esse negócio de flor na calçadaésabotagem contra a indústriaautomobilísticanacional! — Perdão, mas alecrime espada-de-são-jorgesão muito mais nacionaisdo que os automóveis fabricadospor aí! — Pelo visto,a confusão é geral. — A confusão já era.Isto é a superconfusão. — Qual,o Rio de Janeiro não existe. — Agora é que você percebeu isso? Carlos Drummond de Andrade Texto extraído do livro “Boca de luar”, Ed. Record – Rio de Janeiro (RJ), pág. 37.
  • 13. 13. Depois do jantar Também, que ideia a sua: andar a pé, margeando a Lagoa Rodrigo de Freitas, depois do jantar. O vulto caminhava em sua direção, chegou bem perto, estacou à sua frente. Decerto ia pedir-lhe um auxílio. — Não tenho trocado. Mas tenho cigarros. Quer um? — Não fumo, respondeu o outro. Então ele queria é saber as horas. Levantou o antebraço esquerdo,consultou o relógio: — 9 e 17... 9 e 20, talvez. Andaram mexendo nele lá em casa. — Não estou querendo saberquantas horas são.Prefiro o relógio. — Como? — Já disse.Vai passando o relógio. — Mas ... — Quer que eu mesmo tire? Pode machucar. — Não. Eu tiro sozinho. Quer dizer... Estou meio sem jeito. Essa fivelinha enguiça quando menos se espera. Por favor, me ajude. O outro ajudou, a pulseira não era mesmo fácil de desatar. Afinal, o relógio mudou de dono. — Agora posso continuar? — Continuar o quê? — O passeio.Eu estava passeando,não viu? — Vi, sim. Espera um pouco. — Esperar o quê? — Passa a carteira. — Mas... — Quer que eu também ajude a tirar? Você não faz nada sozinho, nessa idade? — Não é isso. Eu pensava que o relógio fosse bastante.Não é um relógio qualquer, veja bem. Coisa fina. Ainda não acabei de pagar... — E eu com isso? Então vou deixar o serviço pela metade? — Bom, eu tiro a carteira. Mas vamos fazer um trato. — Diga. — Tou com dois mil cruzeiros. Lhe dou mil e fico com mil. — Engraçadinho, hem? Desde quando o assaltante reparte com o assaltado o produto do assalto? — Mas você não se identificou como assaltante.Como é que eu podia saber? — É que eu não gosto de assustar.Sou contra isso de encostaro metal na testa do cara. Sou civilizado, manja? — Por isso mesmo que é civilizado, você podia rachar comigo o dinheiro. Ele me faz falta, palavra de honra. — Pera aí. Se você acha que é preciso mostrar revólver, eu mostro. — Não precisa, não precisa. — Essa de rachar o legume... Pensa um pouco, amizade. Você está querendo me assaltar, e diz isso com a maior cara-de-pau. — Eu, assaltar?! Se o dinheiro é meu, então estou assaltando a mim mesmo. — Calma. Não baralha mais as coisas. Sou eu o assaltante,não sou? — Claro. — Você, o assaltado.Certo? — Confere. — Então deixa de poesia e passa pra cá os dois mil. Se é que são só dois mil. — Acha que eu minto? Olha aqui as quatro notas de quinhentos.Veja se tem mais dinheiro na carteira. Se achar uma nota de 10, de cinco cruzeiros, de um, tudo é seu. Quando eu confundi você com um, mendigo (desculpe, não reparei bem) e disse que não tinha trocado,é porque não tinha trocado mesmo. — Tá bom, não se discute. — Vamos, procure nos... nos escaninhos. — Sei lá o que é isso.Também não gosto de mexer nos guardados dos outros.Você me passa a carteira, ela fica sendo minha, aí eu mexo nela à vontade. — Deixe ao menos tirar os documentos? — Deixo. Pode até ficar com a carteira. Eu não coleciono. Mas rachar com você, isso de jeito nenhum. É contra as regras. — Nem uma de quinhentos? Uma só. — Nada. O mais que eu posso fazer é dar dinheiro pro ônibus.Mas nem isso você precisa. Pela pinta se vê que mora perto. — Nem eu ia aceitar dinheiro de você. — Orgulhoso, hem? Fique sabendo que tenho ajudado muita gente neste mundo. Bom, tudo legal. Até outra vez. Mas antes,uma lembrancinha. Sacou da arma e deu-lhe um tiro no pé. Carlos Drummond de Andrade Texto extraído do livro "Os diaslindos",Livraria José Olympio Editora — Rio de Janeiro, 1977,pág. 54.