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Vários autores
Araçatuba, 2014
Contos
melhores
2014
Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP)
(Câmara Brasileira do Livro, SP, Brasil)
Índices para catálogo sistemático: 1. Contos : Antologia : Literatura brasileira 869.9308
Copyright © vários autores
Editor: Hélio Consolaro
Revisora: Maria Rosa Dias
Capa e editoração gráfica: Celso Nicolete
Impressão: Eko Gráfica - (18) 3636.7790
Secretaria Municipal da Cultura
Rua Anita Garibaldi, 75 - CEP 16010-280
Araçatuba - SP
secretariacult@gmail.com - (18) 3636.1270
concursodecontos.blogspot.com
Contos melhores 2014. -- Araçatuba, SP : Editora
Eko Gráfica, 2014.
ISBN: 978-85-68298-04-6
1. Contos brasileiros - Coletâneas.
14-08545 CDD-869.9308
Prefácio
E
ste livro é composto por partes, conforme as categorias do 27.º Concurso
Internacional de Contos “Cidade de Araçatuba”: regionais, nacionais e inter-
nacionais.
Quem escolheu os 24 contos (o livro tem 26, porque há dois da comissão
julgadora) foram pessoas conhecidas por Araçatuba como escritores e professores
de nossas universidades.
Se a comissão julgadora fosse outra, com certeza, teríamos outro resulta-
do, porque, por mais que se adotem critérios objetivos de seleção, dificilmente se
consegue se livrar da subjetividade. E em arte (e literatura é arte) a subjetividade
é uma riqueza.
No certame, houve participação de escritores jovens e idosos (dois extre-
mos: 19 e 70 anos); de iniciantes a gente com dezenas de livros publicados.
O concurso existe desde 1985, criado pelo primeiro secretário de Cultura
de Araçatuba, Paulo Grobe, e já tem a credibilidade dos escritores brasileiros; e
mais recentemente, do mundo lusófono. A Secretaria Municipal da Cultura, com o
certame, no bojo da 6.ª Jornada de Literatura de Araçatuba, quer incentivar a escri-
tura, estimular o surgimento de novos escritores, projetando Araçatuba no mundo
literário.
Leia os textos, caro leitor, sem perder o exercício crítico, mas que a acidez
não mate um escritor que ainda esteja no ninho. Publicar este livro (e entregá-lo
a todos os presentes na noite de premiação) é uma forma de exercício literário,
garantindo a visibilidade dos “contos melhores” do 27.º Concurso Internacional de
Contos da “Cidade de Araçatuba”.
Boa leitura.
Hélio Consolaro
Secretário municipal de Cultura de Araçatuba-SP
Sumário
Prefácio.......................................................................................................... 3
Parte 1 – Contos melhores regionais
1.º colocado – Calçadão, alface e escolhas
Jean da Silva Oliveira – Araçatuba-SP............................................................ 08
2.º colocado – A procissão
Fernando Verga – Araçatuba-SP .................................................................... 10
3.º colocado – O colecionador de sonhos
Mário Bueno – Araçatuba-SP......................................................................... 17
1.ª menção honrosa – Contratempos
Isleide Cristina Sicarelli de Oliveira – Guararapes-SP....................................... 21
2.ª menção honrosa – Leite quente com açúcar
Rita Lavoyer.................................................................................................. 26
3.ª menção honrosa – O louva-deus
Caroline da Silva Rodrigues ........................................................................... 33
4.ª menção honrosa – A velhice do rei
Rodolfo Elias Minari – Valparaíso ................................................................... 36
5.ª menção honrosa – A luz na janela
Odair Maurício de Albuquerque – Penápolis-SP .............................................. 43
Parte 2 – Contos melhores nacionais
1.º colocado – 13600 Os olhos mais lindos que já me olharam
J.R. Bazilista – São Paulo-SP......................................................................... 48
2.º colocado – Mas o homem era velho, já
Paulo Henrique Pappen – Porto Alegre-RS...................................................... 53
3.º colocado – Pomo da discórdia
Gérson Luiz Colombo – Canoas-RS................................................................ 56
1.ª menção honrosa – Recado para Marluce
Álvaro Cardoso Gomes – São Sebastião-SP.................................................... 64
2.ª menção honrosa – Coqueluche
Douglas MCT – São Paulo............................................................................. 71
3.ª menção honrosa – O regresso do herói
Paulo Sério Marques – Sinop-MT................................................................... 74
4.ª menção honrosa – A Bovary do Largo das Ideias
Rodrigo Machado Freire – Goiânia-GO ........................................................... 80
5.ª menção honrosa – A última vez que vi meu pai
Henrique Bom – Nova Friburgo-RJ................................................................. 84
Parte 3 – Contos melhores internacionais
1.º colocado – Ricochete
Mônica Barroso Reis Simão- Fundão – Portugal.............................................. 89
2.º colocado – O giz na estrada
Jorge José Pires Figueiredo – Alverca – Portugal............................................ 95
3.º colocado – A campanha do leite
Fátima Bica .................................................................................................. 99
1.ª menção honrosa – O perfume de Abigail
Marcus Filgueiras – brasileiro morando em Montividéu-Uruguai..................... 104
2.ª menção honrosa – A árvore que dava frutos de metal
Maria de Fátima Esteves Martins – Coimbra – Portugal................................. 110
3.ª menção honrosa – Círculos da Vida
Desirée Jung – brasileira morando no Canadá.............................................. 112
4.ª menção honrosa – Gare do Oriente
Al Cino Elyseu – Merceana – Portugal.......................................................... 120
5.ª menção honrosa – O velho e o vento
Susana Luís Carvalho Machado – Santa Maria da Feira - Portugal................. 125
Parte 4 – Contos da comissão julgadora
O mascate
Marilurdes Martins Campezi ........................................................................ 130
Uma noite de outono
Emília Goulart ............................................................................................. 134
Parte 5 – Anexos
Participantes da Comissão Julgadora........................................................... 139
Cartaz de divulgação do concurso................................................................ 140
Parte 1
Contos melhores
regionais
8
Contos Melhores - 2014
Calçadão, alface e escolhas
Categoria regional - 1.º colocado - Jean da Silva Oliveira – Araçatuba-SP*
E
lis encarou seus olhos no espelho e viu que algo lhe faltava. O bairro Água
Branca já abrira o portal para fazer nascer o sol, que preguiçosamente iniciava
sua jornada de doze horas para, enfim, adormecer no Mão Divina, restituindo
a noite pingada de estrelas. Em gestos automáticos, ela lavou e depois pintou o
rosto. Tomou café e seguiu pela Avenida dos Estados rumo ao centro como se
máquina fosse. O que lhe fora tirado pelo tempo fazia falta existencialmente. E ela
seguia em frente para tentar não pensar nisso. Som do trânsito, buzina, chão que
passa, passa.
Mas como não pensar na infância que se esvai com o vir e ir do sol? Como
não sentir saudade do tempo em que o mundo lhe dava colo e deixava para o futuro
as obrigações das realizações pessoais e profissionais. A pequena Elis, com seus
olhos de sonhadora, acelerava sua moto como se pudesse fugir de si mesma, da
presença da ausência que sentia dos tempos de inocência e brincadeira na ladeira
da rua Bahia, na Vila Mendonça. Hoje, é Calçadão, meta de vendas, falta de alguém
para encostar a cabeça e, entre um namoro e outro, também poder chorar.
A mente ainda procurava motivos para fixar-se na vida real quando a peque-
na Elis se deu conta que já se posicionava atrás do balcão. O moço bonito da loja
em frente já lhe dava o sorriso pontual. Gelo na porta do estômago. Dúvida se iria
falar com ele ou esperar ele vir falar com ela. Atendimento. Mulheres que entram e
saem da loja. Perguntas. Araras de roupas coloridas. Preços. Descontos. Vendas e
nãos. Tudo como se sincronizado fosse. Vida que segue.
E o moço do outro lado da rua sorrindo. Tentação em uma manhã quente.
Bochechas vermelhas, não necessariamente de vergonha. A menina dá lugar à
mulher. Sorri de volta. Aceno tímido com as mãos. Vergonha, olhos baixos para o
chão e cabelo jogado para trás da orelha. Crescer não é tão ruim assim.
A vida segue na rotina da loja até o horário do almoço. Elis, sentada no
quartinho dos fundos, com o prato nas mãos, cala seus desejos com a boca cheia
de feijão. Aonde será que está o moço bonito da loja de móveis? Ela queria estar
rindo com ele no banco da praça.Tristeza. Saudade do que nunca teve.Arroz, feijão
9
Contos Melhores - 2014
e salada. Vida igual ao alface. Sem gosto.
Passa o tempo e é hora de voltar à rotina. Mulheres com suas pernas apres-
sadas, vendas, nãos, sorrisos e grosserias. Gerente que cobra, povo que não com-
pra e a vida avermelhando como o chão do Calçadão quando o sol já se aproxima
da sua habitual despedida.
Uma criança, distraída, deixa cair um pedaço de salgado no chão. Pompas
surgem de todos os lados. Bicam, bicam, bicam. Um balé anárquico surge no Cal-
çadão do centro de Araçatuba. Ao vencedor, as batatas! Ela se lembrou da frase,
mas não do autor ou livro. Coisa da época de escola. Riu de si mesma, das pombas
e da briga pela sobrevivência.As outras vendedoras e ela são como as pombas. De
bicada a bicada, vencendo na vida.
Elis deixou a loja no final do expediente, sendo ela, agora, a dona das pernas
apressadas. Seu pensamento quase engrenava quando foi interrompida por pas-
sos rápidos de outras pessoas. Era o rapaz bonito da loja em frente. Convite para
passear no shopping amanhã à noite. Gelo no estômago. Ela vai pensar. Amanhã
responde. Ela segue em passos afoitos, mas para em frente a uma loja de sapatos.
Preço alto. Prestação acima dos 30% do salário. Medo de comprar.
Elis, em sua moto, ruma para casa. Nenhum dos dois satisfeitos. Ela, lhe
faltando algo, que ainda não sabe explicar. A moto, carente de aventuras. No máxi-
mo, idas e vindas, e esperas longas no sol escaldante. Sem emoção para lembrar.
O silêncio cúmplice entre menina e sua máquina é maior que as buzinas, as re-
clamações sobre os semáforos demorados e o tilintar das estrelas que começam
a pingar no céu.
Jogada no sofá, Elis sonha com o moço da loja, pensa nas pombas, no
alface sem graça da vida. Falta algo. Sim, são eles, os sapatos. Aqueles sapatos
vão lhe tirar o sono!
*Jean da Silva Oliveira, 38 anos, é jornalista, efetivo na Prefeitura Municipal de Araçatuba,
articulista do jornal Folha da Região.
10
Contos Melhores - 2014
A procissão
Categoria regional - 2.º colocado - Fernando Henrique Bonomi Verga–
Araçatuba-SP*
À
quela época, gostava de sentar à sombra do barranco na encruzilhada que
dava pra venda.Chegava por uma estrada de terra, empinada que doía as
pernas. Minha avó, mais velha que aquele barranco, me levava de varinha
por conta disso. Mas eu gostava daquela sombra. O sol não passava de jeito ne-
nhum. Tinha um pé de goiaba no topo do barranco, da vermelha, doce, sem bicho,
e na encruzilhada sempre tem brisa. Gostava daquela sombra e da terra vermelha
do chão. Da brisa e da goiaba vermelha.Gostava de comer goiaba à sombra fresca
do barranco no chão de terra. A varinha não gostava da sombra, da terra, da brisa
nem da goiaba. Minha avó não gostava de nada. Só da varinha e de moeda. Vi
muita árvore perder varinha por eu gostar de ficar naquela sombra.
Depois de tantas surras aprendi que tudo era culpa do calção sujo. Eu mo-
rava vizinho de uma mata, então comecei a pular a cerca do sítio e correraté lá
para trocar o meu calção por um bem velho e sujo, depois saía pra brincar. O outro,
que também era velho, mas um pouco mais limpo, ficava pendurado numa árvore.
Minhas pernas já eram empoeiradas todos os dias, então a velha não notava dife-
rença. Me sentiesperto quando percebi que ninguém reparava nas minhas pernas
de terra. Quando consegui manter o calção mais limpo sem sujar, conquistei minha
liberdade.Comia goiaba na minha sombra e voltava pra casa com as pernas de
terra, mas com o calção do jeito que ela queria.
Naquele tempo a cidade ficava muito longe; nem sabia o que tinha lá. Fui
uma vez de charrete levar queijo pra minha avó e perdi a conta das curvas. Quan-
do cheguei lá entreguei o queijo, peguei as moedas e voltei. Saí cedo e cheguei
anoitecendo em casa. Demorou pra eu voltar na cidade. Levava na venda, de vez
em quando, mas era perto; nem precisava de charrete. Fazia questão de dar três
viagens só pra andar pela estrada.
Quando ela ia pra cidade eu sempre chegava mais cedo na encruzilhada.
Minha sombra engoiabada me esperava tranquila e soprava uma manta de poeira
fresca pra eu deitar na terra. Quando a cabeça da velha saltava no topo da subida
11
Contos Melhores - 2014
ao longe, eu corria pra cima do barranco. Espiava ela passar até o olho perder pra
curva. Ela contava cada moeda até chegar em casa, repetindo a contavez após vez,
conferindo os centavos sem respirar. Já tinha juntado sete sacos de moedas em
casa. Ela nem aguentava carregar. Nem eu. Nem um saco eu conseguia levantar.
Tinha poucas oportunidades pra tentar, por que não podia nem entrar no quarto
dela. Mas, das vezes que tentei, sequer ergui do chão.
Eu nunca entendi o que ela fazia com essas moedas. Nunca comprava
nada. Não tinha conta na venda.A luz era de lamparina. Lenha eu pegava na mata.
Tinha sete vacas que davam leite de sobra pra fazer o queijo. Eu nem comia esse
queijo, por que tudo virava moeda. Lá ninguém precisava da cidade. Só minha avó,
que buscava cada vez mais moedas. A velha precisava delas e eu via isso em seus
olhos.
Na estrada da venda viviam poucas pessoas. Duas famílias, eu e minha avó,
um homem sozinho, outro viúvo, que era o dono da venda, uma mulher solitária e
um velho vagabundo. Conhecia todos de tanto passar todo dia na estrada. O últi-
mo era o dono da venda, onde eu buscava moedas pra minha avó.Quase nunca
falava com as pessoas, mas sabia das histórias de todas elas. Cada um contava
do seu jeito um causo ocorrido com o vizinho. Depois de trocar o calção e pegar a
estrada,eu ia ouvindo conversa alheia e reparando nas coisas.
A primeira casa era a de uma mulher com sete filhos. Diziam que ela teve
nove, mas os dois últimos desapareceram. Ninguém sabia o que tinha acontecido.O
marido trabalhava na roça e as crianças sempre estavam chorando quando eu pas-
sava. A casa era de pau, com um quintal entulhado, pomar abandonado, cheio de
mato, mas com frutas. Num canto via-se um amontoado de terra que talvez tivesse
sido uma horta. Não tinha uma flor, um vaso, um enfeite qualquer. A única beleza
era a própria dona, que ficava na janela penteando os cabelos. Às vezes se voltava
pra dentro pra se olhar no espelho. Não suava uma gota, mesmo naquele calor
triste. Diziam que era por que não fazia nada, a não ser pentear os cabelos e se
manter sem suar. Mas triste era ver as crianças chorando e chamando a mãe do
lado de fora, pela janela. A impressão que dava toda vez que passava era que ela
se trancava no quarto. As crianças não sentiam fome por que tinha fruta no pomar.
Só tinha fruta no pomar por suor das próprias árvores.Aquelas árvores tinham pena
daquelas crianças. De todas da estrada essas eram as únicas que davam frutas o
ano inteiro. O marido chegava tarde e cansado e ainda cozinhava pra todo mundo,
por que a mulher não gostava de suar no calor do fogão a lenha. Pela estrada eu
12
Contos Melhores - 2014
ficava pensando o que ela fazia pra ficar gelada. Até o pau seco da cerca suava
naquele sol.
Tinha um homem que morava sozinho numa casa que quase entrava na
mata, vizinho da mulher que não suava. Eu tinha medo dele. A porta e as janelas
estavam fechadas parecia que desde sempre; não tinha sinal de vida na frente da
casa. Nunca passei por aquela cerca, mas dava pra ver umas coisas na parte do
fundo. Parecia que era caçador, com couraças de tatu e cobra penduradas nas
primeiras árvores da fronteira com a casa.Tinha arapucas e machados cravados
em tocos soltos. Diziam que ele espancava as paredes e dava pra ouvir o ranger de
seus dentes durante a noite, fazendo um barulho que aterrorizava os sete filhos da
mulher que não suava. Era um homem sozinho e furioso. Diziam que só cessava
quando saía de madrugada pra cortar lenha. Praguejava a cada machadada até a
escuridão enfraquecer e depois corria pra mata. Ninguém se aproximava daquela
casa.
Na outra borda da estrada tinha o sítio de uma família comum. Dava bem
de frente pra casa da mulher que não suava. Um pai, uma mãe, uma menina e
um menino.O pai trabalhava na roça, a mãe cuidava da casa, da horta, galinhas
e porcos, os filhos se revezavam no auxílio à mãe e ao pai e brincavam no quintal
após terminarem suas tarefas. A casa tinha jardim na frente, com grama podada,
trepadeiras volumosas subindo a cerca bem cuidada, varanda com vasos e plantas
floridas, janelas com cortinas e a melhor horta da estrada.Capricho da mãe. Quan-
do o pai chegava da roça colocava uma cadeira bem na porteira do sítio para pitar
o cigarro de palha. Diziam que ele observava a vizinha se penteando na janela. Que
observava quando ela se olhava no espelho. Que observava sua pele lisa sem suor.
Diziam que culpava o homem sozinho pelo sumiço dos dois filhos dela.Diziam que
esses dois filhos também eram dele. Diziam que sua esposa não sorria. Diziam que
ela rogava doenças pra vizinha.
Essas três casas ficavam perto da casa da minha avó. Ela não conversava
quase nada comigo, mas soltava ao vento suas divagações sobre essas pessoas.A
velha costuravaconversas de uma casa com a outra com precisão. O que para todo
o resto eram suspeitas misteriosas para ela era fato consumado.
Mais à frente, depois de um trecho, morava um velho vagabundo, sem vi-
zinho algum. A cerca quebrada do seu sítio mais criava espaço que dividia. Minha
avó, que era das mais antigas daquela estrada, brigava com ele só de passar em
frente ao casebre desconjuntado do velho. Ela dizia que ele nunca pegou numa
13
Contos Melhores - 2014
enxada a vida inteira, que era um velho de mão lisa. Não tinha um calo na palma da
mão. Que onde já se viu um velho que não tem calo. Dizia que lhe devia moedas.
Dizia que casa de gente vagabunda era suja, que quintal de gente vagabunda era
matagal, que comida de gente vagabunda era dada. De onde ele tirava comida eu
não sabia, mas que minha avó não lhe dava queijo isso era verdade. O dono da
venda nem entrar no estabelecimento deixava o velho. Dizia que nunca lhe pagou
as pingas que bebeu, que nunca aceitou o emprego que ofereceu, que nunca agra-
deceu um prato que comeu.
Mais à frente, uma curva depois do casebre do velho, tinha uma casa que
ficava em cima do barranco, bem rente à estrada, rodeada por uma cerca sem por-
teira. Em torno dela tinha um espinheiro que isolava até a porta da frente. Na janela,
lá do alto, uma mulher solitária passava o dia a resmungar contra quem passava.
Ela dizia pra mim que os queijos da minha avó eram podres. Que a família do pai
que observava era mentirosa. Que o dono da venda era um miserável. Que o ve-
lho vagabundo era vagabundo. Que o homem sozinho era um assassino.Naquelas
bandas, era difícil alguma novidade acontecer. Quando acontecia, ela resmungava
e botava defeito. Diziam que ela nunca gostou de ninguém, nem da própria mãe, a
quem culpava por ter morrido sem deixar posses. Diziam que ela não sentia fome,
de tão ruim que era.
Era a última casa antes da venda. Eu passava pela mulher solitária com um
saco de queijo nas costas e a ouvia resmungando. Ficava imaginando o que ela
fazia trancada naquela casa, sozinha. Devia ficar apodrecendo as coisas dos ou-
tros. Me dava medo de pensar nela sentada no escuro pensando coisas ruins para
as pessoas. Mas eu tinha medo também dos outros moradores da estrada. Todos
pareciam empenhados em perpetuar uma maldição.
O dono da venda, diziam, negou comida à esposa moribunda por que não
queria desperdiçar, já que ela ia morrer logo. Diziam que pediu ao padre uma
novena pra ficar viúvo mais cedo, já que não tinha solução, pois estava gastando
comida à toa.
Todos moravam na estrada que dava pra venda, pela qual eu passava todo
dia pra brincar no barranco da encruzilhada que tinha um pé de goiaba vermelha
e brisa fresca. A outra estrada que nascia na encruzilhada eu nunca pegava. Era
muito fechada, com mata dos dois lados e barrancos altos. Só tinha casa há muita
distância pra frente. Nunca vi ninguém pegar essa outra estrada. Às vezes, eu
pensava que ninguém sabia que a gente morava ali. Naquele tempo, a gente vivia
14
Contos Melhores - 2014
tão escondido que muitas coisas que viviam escondidasdos olhos do mundo se
aproximavam da gente.
Num dia, aproveitei que minha avó foi mais cedo para cidade e corri pra
brincar na encruzilhada. Pulei a cerca do sítio e fui pra mata. Chegando lá, não
achei meu calção sujo. Olhei para os lados assustado pensando que o homem
sozinho estava por ali. Mas não vi nem ouvi nada. Procurei por perto; talvez o vento
tivesse derrubado. Não achei. Pensei comigo que essas coisas davam de sumir
uma hora ou outra. Saí da mata e peguei a estrada com o calção mais limpo mes-
mo. Era só tomar mais cuidado pra não levar uma surra da velha.
Passando pela casa da mulher que não suava vi as crianças felizes dançan-
do ciranda em frente à janela vazia.Virei o pescoço para a casa do homem sozinho
e vi portas e janelas abertas. Olhei para o outro lado da estrada e vi a esposa do pai
que observava sorrindo. Que dia esquisito tinha amanhecido.
Continuei andando e, chegando à casa do velho vagabundo, vi duas enxa-
das encostadas na cerca quebrada e um cavalo pastando no seu quintal cheio de
mato. Que banquete para o cavalo. Quando fiz a curva, não ouvi nenhum resmungo.
A mulher solitária não estava na janela e seu espinheiro tinha perdido todos os
espinhos. Chegando na encruzilhada, subi no barranco pra pegar goiaba e vi a
venda fechada.
Nunca tinha visto essa estrada mudar tanto, mexendo com coisas que pa-
reciam permanentes. Do alto do pé de goiaba olhei para a outra estrada. Naquele
dia ela parecia mais fechada, com uma sombra escura. O vento soprava contrário,
batendo nas minhas costas e indo para essa estrada. Naquele dia a brisa fresca
não fez graça no meu rosto nem poeira pra eu deitar. O vento empurrava para a
estrada escurecida. Mesmo assim, acabei dormindo à sombra do barranco. Dormi
na encruzilhada no dia mais estranho que já vira.
Quando acordei, fiquei apavorado. Já era noite e minha avó já devia estar
em casa. Isso significava que já tinha passado por ali e me visto deitado na terra
com o calção mais limpo. Devia estar me esperando na porta com uma varinha
na mão. Fiquei pensando por um breve instante numa maneira para me safar. Foi
quando ouvi um barulho vindo da estrada que dava pra casa. Uma luz tremulante
começava a projetar sombras nos barrancos. Ela estava chegando ao topo da subi-
da. A velha devia estar muito brava pra vir atrás de mim uma hora daquelas.
Do outro lado da encruzilhada, pela estrada que nunca fui, uma escuri-
dão profunda avançou e silenciou a noite. Pela estrada de casa, aquela penumbra
15
Contos Melhores - 2014
tremulante se aproximava e outros sons começaram a surgir.Lamentos de dor,
sofrimento, arrependimento. Corri para cima do barranco e ali me escondi. Fiquei
espiando o que se aproximava, rezando para que não me visse e passasse adiante,
seja lá o que fosse e qual fosse sua intenção.
No topo daquela subida surgiu uma mulher segurando uma tocha em uma
das mãos, bem próxima ao rosto. Sua pele estava avermelhada e suando muito.
Na outra mão levava um espelho. Ela tentava se olhar, mas seus olhos estavam
costurados. Pelo andar pesado e relutante percebia-se que era puxada ou empur-
rada, mas eu não via nada ao seu redor. Passou perante meus olhos e, dobrando a
encruzilhada, seguiu pela estrada que nunca fui.
Não me movi, pois escutava lamentações vindo da estrada de casa. Mais
uma figura apareceu no alto da subida. Um homem sem pele vinha em direção
à encruzilhada. Ele caminhava com muita dificuldade, sangrando a cada passo,
gemendo e chorando de arrependimento. Quando ele estava bem à minha frente,
duas crianças vieram correndo e começaram a açoitá-lo, levando-o para a estrada
que nunca fui.
Ouvi um barulho metálico, como se algo muito pesado martelasse o chão de
terra. Cruzou a subida um homem envolto com uma roupa de ferro ardente como
brasa. Ele se contorcia e gritava, desejando violentamente retirar aquela roupa.
Parecia uma armadura em chamas, com um cadeado selando uma trava em suas
costas. Foi-se pela estrada escura.
Ouvi um cavalo relinchando e algo rolou pela estrada, vindo do topo da
subida. Rolou até parar embaixo dos meus olhos, aos pés do barranco. Era um
velho com as mãos e os pés decepados. Quando o cavalo se aproximou, empurrou
o velho para a estrada do outro lado da encruzilhada.
Essas aparições foram se apresentando para mim. Eu permaneci paralisa-
do, com a respiração acelerada, mas tentando não fazer nenhum barulho. Um grito
de dor petrificou minha alma, agudo como uma navalha. Uma mulher com o corpo
encoberto de espinhos andava rumo à estrada onde nunca fui. Quando ela tentava
retirá-los, eles entravam mais em sua carne.
Enquanto ela sumia na escuridão, ouvi cães latindo. Um homem estava sen-
do arrastado pela língua por um grande cão, enquanto outros abriam-lhe a barriga
com mordidas ferozes. Desapareceu pela estrada escura e silenciosa.
Pensei que tivesse acabado, mais ouvi barulho de algo sendo arrastado.
Vinha de longe, misturado a gemidos de muito esforço. Surgiu uma velha de ca-
16
Contos Melhores - 2014
beça baixa com sete cordas amarradas a seus pés. Na ponta de cada uma delas,
um saco de moedas. Minha avó vinha em direção à encruzilhada e, assim como os
outros, passaria rumo à estrada escura, para onde eu nunca tinha ido.
Quando se aproximou do barranco, olhou para cima e me encarou. No lugar
de seus olhos havia duas moedas. Elas brilharam como seus olhos brilhavam ao
contar cada centavo de sua coleção. Não segurava nenhuma varinha em suas
mãos. Não disse nada, apenas me observou. Abaixou a cabeça e continuou sua
lamentosa procissão rumo à estrada escura, arrastando toda a tristezado peso que
acumulou durante a vida.
Naquele tempo, a gente vivia tão escondido que muitas coisas que viviam
escondidas dos olhos do mundo se aproximavam da gente.
*Fernando Henrique Bononi Verga, 30 anos,é jornalista, secretário municipal de Comuni-
cação Social da Prefeitura de Araçatuba-SP.
17
Contos Melhores - 2014
O colecionador de sonhos
Categoria regional - 3.º colocado - Mário Henrique Silveira Bueno –
Araçatuba-SP*
O
fim do mês ainda estava longe, o orçamento, porém, já inspirava cuidados.
Diante da gôndola do supermercado,Antonio olhava indeciso entre a cerveja
na prateleira e o sabonete em sua mão. Era um homem de hábitos extrema-
mente controlados, mas, vez ou outra, se permitia a pequenas liberalidades, como
tomar uma garrafa de cerveja importada ou começar um sabonete novo ao invés de
usar a costumeira maçaroca de sobras, que os mais sovinas, ou de poucas posses,
costumam fazer.
Seria cientista por vocação, mas os desmandos da vida, entretanto, o trans-
formaram em um invisível funcionário da burocracia estatal, esquecido em algum
almoxarifado bolorento e mal iluminado da cidade. Reservado e discreto, passaria
por um sujeito qualquer em meio à multidão, um comum, não fosse um segredo
que carregava guardado a sete chaves: construíra uma minúscula engenhoca me-
cânica capaz de capturar sonhos.
É que Antonio possuía uma estranha e insana obsessão pelos sonhos e
quereres alheios. Sua obsessão era tamanha que, nas horas vagas, havia constru-
ído a máquina a fim de guardar para si todos os sonhos do mundo.
O aparelho, apesar de engenhoso, tinha o funcionamento bem simples. Bas-
tava aproximá-lo das pessoas que ele capturava de suas falas, ou pensamentos,
tudo aquilo que fosse relativo a sonhos. Por isso Antonio andava invariavelmente
munido de seu apetrecho, escondido em bolsos de camisa para que, em qualquer
situação, lhe fosse possível armazenar suas preciosidades oníricas.
Esgueirava-se sorrateiramente, como uma sombra, no ônibus, na padaria,
na rua, no supermercado, em qualquer lugar onde estivesse, com o intuito de ga-
rimpar nas conversas dos outros os desejos, as vontades e os sonhos.
A noite, já em casa, transferia o conteúdo da máquina para potes de vidros,
que eram adicionados a outros milhares de potes que acumulara em vários anos.
Somente a ele tinha sido reservado o poder de enxergar os sonhos nos transparen-
tes recipientes, o que fazia com extremo prazer.
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Contos Melhores - 2014
O ato de observar lhe ensinara que havia dois tipos de sonhos: os sonhos
que as pessoas sonham quando estão acordadas, e os sonhos que as pessoas
sonham quando estão dormindo.
Os primeiros são os que falam dos desejos, das vontades e quereres, como
os sonhos de consumo, sonhos de amor, liberdade, saúde, emprego, a casa pró-
pria, filhos, uma vida mais simples, um carro, viagens, uma pequena horta, um jan-
tar em Paris. Dessa espécie Antonio possuía guardados vários tipos, desde sonhos
triviais até sonhos megalomaníacos.
Dos sonhos cuja natureza era daqueles sonhados por pessoas que sonham
dormindo, havia alguns que eram razoavelmente comuns, como, por exemplo, so-
nhar que se está voando livremente pelo ar e sonhar com animais. Havia também
os sonhos que traziam pessoas e fatos já há muito tempo esquecidos, e os sonhos
que propiciavam o encontro com familiares falecidos. Alguns retornavam ao útero
materno, enquanto outros iam para guerra. Havia os que viajavam por alguma galá-
xia perdida do universo em companhia de extraterrestres, e os que estouravam for-
tunas nos cassinos de Los Angeles. Também havia os pesadelos e aqueles sonhos
tumultuados, confusos, misturados um no outro, completamente fora de lógica e
desprovidos de qualquer sentido. Por esses tinha especial apreço.
Obviamente que, na prática, acontecia de um tipo de sonho invadir o espaço
do outro, a ponto de confundirem-se, mas, na teoria de Antonio, eram somente
aqueles dois os tipos que existiam.
Antonio chegava em casa, descarregava os sonhos, e contemplava extasia-
do aquele quase sem fim de vidros enfileirados, maravilhado pela imensa capaci-
dade do imaginário humano.
Sonhos seus, porém, não os tinha. Eram todos os dos outros.
Calhou certa vez, em sua ausência, de sua casa ser invadida por ladrões.
Estes remexeram gavetas e abriram armários em busca de algo que pudesse ser
furtado. bagunçaram tudo. A coleção de sonhos provocou nos ladrões um misto
de espanto e incredulidade: quem seria maluco de guardar milhares de pequenos
frascos, todos aparentemente vazios, organizados com tanto rigor e método?
Enfurecidos por não encontrarem nada de valor, os assaltantes acharam por
bem trazer abaixo todos os armários que guardavam a coleção de Antonio e, com
eles, todos os milhares de potes que armazenavam os sonhos.
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Contos Melhores - 2014
Em questão de minutos o local transformou-se em uma verdadeira cena de
guerra. No chão formou-se uma espessa camada de vidros quebrados, tampas e
restos de prateleiras, que os assaltantes também fizeram questão de quebrar.
Antonio, que chegou horas mais tarde, se deparou, perplexo, com a casa
arrombada, revirada e toda sua coleção destruída. Sentiu o corpo estremecer e,
em seguida, adormecer. Passou mal, teve ânsias e o estômago embrulhou. Então,
sentiu sede. Uma sede que não se pode explicar. Sede que água não mata. Sentiu
como se toda água do oceano tivesse invadido seu corpo, trazendo com ela tam-
bém todo o seu sal, em um prenúncio do que estava por vir.
Em choque, andou em meio aquele caleidoscópio de vidros partidos, à pro-
cura de qualquer sonho, qualquer um que, por ventura, tivesse sobrado. Entre um
frasco quebrado e outro descobriu que não havia restado nenhum. A destruição
ocasionada pelos assaltantes fez com que todos os sonhos simplesmente evapo-
rassem de seus recipientes. Ele nunca havia pensado nessa possibilidade, mas sua
intuição dizia agora que esse acontecimento iria trazer desdobramentos inimagi-
náveis.
Os sonhos, efêmeros e voláteis, em forma de vapor, começaram a se reunir
no céu e a formarem gigantescas nuvens negras, densas e opressoras, que foram
aumentando exponencialmente a cada sonho que lhes era incorporado. Girando
furiosamente, as grandes nuvens, não resistindo à força da sede de Antonio e aos
ditames da natureza, desabaram em forma de água sobre a terra, em volume e
velocidade nunca antes vistos. Chovia de tal forma que toda a cidade transbordou,
sofrendo estragos de enormes proporções.
Não tendo para onde fugir, Antonio foi então levado de forma violenta pelas
águas, tendo que lutar bravamente por sua sobrevivência. Resistiu por dois dias à
enchente na copa de uma grande árvore, de onde via passar em turbilhões e en-
xurradas os milhares de sonhos que havia acumulado anos a fio. Todo seu esforço
havia se perdido e agora os sonhos de sua coleção estavam se transformando
numa imponderável e cruel realidade, arrastando a tudo e a todos com impiedade.
No terceiro dia, com as águas ainda lambendo-lhe os pés, Antonio avistou
um helicóptero que vasculhava a área em busca de sobreviventes. Com o pouco de
forças que ainda tinha, arrancou a camisa e acenou desesperadamente para que
fosse visto.
Em poucos minutos a cesta de resgate já estava a seu alcance. Com a ajuda
do socorrista entrou na cesta, e, segundos depois, o helicóptero já partia rumo a
um local seguro.
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Contos Melhores - 2014
Rapidamente a aeronave atingiu grande altitude. Antonio sentia-se relativa-
mente seguro e protegido dentro do cesto quando algo inesperado aconteceu. Um
forte estalo e o cabo de aço, que sustentava a cesta, se rompe.A cesta e seus dois
ocupantes despencam no céu em direção à pequena porção de terra que acabava
de se projetar. Tomado pela terrível sensação da queda livre, Antonio perde a res-
piração. São quatro longos e torturantes segundos de desespero até o impacto no
solo.
Um milésimo antes do impacto, porém, Antonio dá um pulo na cama e
acorda com o coração disparado. Grito preso na garganta, levemente atordoado e
confuso, ele percebe que está em seu quarto. Olha o relógio. São seis e meia da
manhã. Respira fundo e aliviado. Alguns minutos depois, sai da cama e se prepara
para mais um rotineiro dia de trabalho. Ao mirar o espelho não se reconhece como
Antonio. Ele vê outra pessoa; vê, de fato, quem realmente é. Seu nome verdadeiro
é Miguel, e já tinha perdido as contas de quantas vezes sonhara que era Antonio.
Horas mais tarde, no supermercado, ele compra um sabonete novo.
*Mário Henrique Silveira Bueno, 42 anos, é fotógrafo artístico, já ganhou vários prêmios
como artista plástico, Araçatuba-SP.
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Contos Melhores - 2014
Contratempos
Categoria regional - 1.ª menção honrosa - Isleide Cristina Sicarelli de Oliveira –
Guararapes-SP*
P
ela janela, apenas um ínfimo foco de luz adentrava seu quarto. Com olhos
semicerrados, via a luz também pelo meio. No fundo, buscava meios: de
entender, aceitar, sobreviver.
Na casa, não fosse o ruído do ventilador que girava incessante, o silêncio
seria rei. Aquele final de tarde era escaldante, candente. Mas seu coração estava
frio, tão gélido que o fervor da temperatura ambiente não poderia afetar seu couro.
Isso mesmo, a casca que a protegia, afinal, o próprio tempo a fez assim.
Durante anos se expôs a tudo: vento, chuva, sol. Contudo, pouco a pouco
foi poluída, castigada, ficou demais para fora, agora só vivia para dentro: de casa,
de si apenas. Só!
O que lhe restava naquele momento era pensar, reviver as poucas nuances
de alegria que tivera, fazer das mesmas eternidade, ao menos em pensamento, já
que a realidade tinha sido tão dura com aquela mulher que, um dia, fora tão mole:
de coração, em atitudes. E a moleza do passado deixara reflexos: flacidez! Estam-
pada na face, no pescoço, nos braços. Não tinha expressão. Afônica. Sem forças:
físicas, emocionais.
Abriu um pouco mais os olhos, a claridade aumentou, ainda que dela, de
seu interior, emanassem sombras, fora, nem os móveis pareciam circundá-la, tudo
estava distante. Exceto o ventilador. Este girava, rodava , circulava , cada vez mais
próximo. Para ela, uma metáfora da vida.
Em meio a calmaria e escuridão do espaço, foi interrompida por um grito.
Era uma voz infantil. Havia por ali uma criança. Novos vizinhos? Não tinha certeza.
Há tempos não se dirigia ao quintal, nem à calçada: estava sempre descalça. Na
cama. Pés ao léu. Perdera-se no tempo, aliás, como dizia, “havia perdido seu tem-
po”. E quanto tempo já se passara! Por isso, não lhe importavam mais os anos,
meses, dia da semana, as horas... vivia os segundos, contava-os ora mentalmente,
para evitar movimentações, ora em situações de maior disposição, momentos
raros, por meio do toque dos dedos junto à madeira da cama: conseguia, assim,
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Contos Melhores - 2014
suportar o tempo. Era seu jeito de encarar a vida.
Ouviu novamente a voz. Certificara-se de que era mesmo uma criança.
Cantarolava algo estranho, desconhecido. Perfeito! Um encontro entre díspares.
E passou a se atentar à voz, aos dizeres. Gradualmente, foi invadida por uma sen-
sação de curiosidade, a imaginação voltara a aflorar: surgiam-lhe rostos, gestos,
movimentos. Junto ao giro do ventilador, os pensamentos também giravam. E foi
assim que a cabeça também girou. Os pés giraram. Com muito esforço, levantou-
-se. Aproximou-se da vidraça. Encostou seu rosto nela. Suavemente, afastou-se
aos poucos. Foi ao centro do quarto. Soltou os longos cabelos: grisalhos.Também o
corpo. Agora, de olhos plenamente fechados, inexplicavelmente deixava girar sua-
vemente toda sua estrutura. Dançava, a seu modo, ao som da criança que cantava
lá fora. Parecia-lhe um remédio: um sopro de vida. E nos rodopios também se
recordara do baile de formatura, quando girou nos braços do rapaz que tanto admi-
rara na sala e, somente naquela noite, havia sido por ele notada e convidada para
dançar a primeira valsa de sua vida. Tempo perdido. Lembrou-se da roda gigante,
de quando girou com o primeiro namorado. Lembrou-se dos giros que realizava no
trabalho, das rodas com suas crianças.Ainda que não tivesse filhos, educou tantos
pequenos, sem gerá-los, ela os girou. Ofereceu-lhes novos círculos. Fez rodas,
cantigas, rodopiou... mas chegou o momento de cessar. Era tempo.
Em mente, guardara o conceito de que o relógio sempre gira e mostra a
hora de parar. O relógio sempre girou em uma sintonia que ela não pôde conter.
Nem voltar os ponteiros. Mas com seu ventilador era diferente: a mulher se fizera
capaz. Movimentos! Talvez, giros contrários. Escolhia o sentido do vento. O relógio...
ah, o relógio... sempre na mesma direção: para o fim. Ou o começo: diferente! Mas
apenas para quem pode desfrutar do tempo. Por isso, preferira, por anos, olhar
para o ventilador, com ou sem interrupções. Abolira de sua casa o relógio.
E a música continuava, era a voz da criança, e ela também seguia na ca-
dência: vagarosamente, gozando de pouco equilíbrio, girava em ternos contornos .
Num momento súbito, resolveu, embora tendo apresentado dificuldades,
abrir a janela. E assim a luz adentrou seu quarto.Acima do muro, avistara uma joia.
Hipnotizada, parou. No jardim do vizinho havia um pé de girassol. Percebeu então
que nele também girava sua única flor, tão devagar, tão sem pressa, e, meu Deus,
tinha luz! Ao som da voz da criança, o girassol parecia dançar, girar lentamente,
sorrir para a velha. E assim como o girassol, seus lábios foram se movimentando,
a face sofria para esboçar um leve, breve sorriso. Ela não podia ver suas rugas,
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Contos Melhores - 2014
as marcas do tempo. Também não tinha mais espelhos. E era melhor não tê-los.
Por isso, pouco a pouco sorriu. Mas a voz da criança cessou. Os pensamentos no
passado também se encerraram ali. A viagem acabara. Contudo, ainda havia a flor,
o girassol, e ele girava, lentamente...
Por horas, ficou naquela janela, contemplando a flor gigante, amarela. Era
como o sol, mas não queimava sua pele, seu couro. Era como as rodas da vida das
quais participou, e não sentia medo que o giro dourado cessasse, pois o movimento
era lento, e, naquele instante, parecia lhe haver ainda muito tempo. “Tempo? Oh,
meu Deus!”.
Mas os giros do ponteiro do relógio, ainda que não tivesse o maldito marca-
dor cronológico em sua casa, eram rápidos, ligeiros, fugazes: era de novo o tempo,
seu grande inimigo. Ela não tinha relógios, mas os mesmos existiam e não podia
detê-los.
Ao cair da noite, já não era possível avistar a imagem da flor com a mesma
magia que invadira o peito daquela mulher diante do primeiro encontro: sua liber-
tação! Há muito esperou chegar esse momento.
Escuridão: ela também a acompanhara. Por anos. Iria voltar à cama, o
ventilador continuaria a girar. Por ela, seu giro poderia ser controlado, ritmado, de
acordo com os sentidos que desejasse. Quem dera pudesse fazer o mesmo com
o relógio...
Iria deitar-se à espera de, quem sabe, mais um dia. Desejou que o venti-
lador tivesse movimentos tão passivos como os do girassol, pois assim poderia
pensar na luz. Traria ao menos sua imagem. E assim o fez. E, com seus giros, foi
novamente cerrando os olhos. Viajou . Porém, não eram mais lembranças, agora
tinha sonhos. Eram sonhos com cor.Abandonara a escuridão.Tudo estava amarelo,
dourado: era a luz. Por tanto tempo a buscara... E assim adormeceu. Agora tudo
era claro, como ela: Clarice.
Na manhã seguinte, o silêncio invadira aquela casa, parecia superior aos
outros dias. O ventilador não mais girava. Havia acabado a energia? Pela fresta da
janela, nem um frágil foco de raio do sol. Nem penumbra. O dia ia se passando, as
horas: o tempo. Não havia sol. Nuvens escuras ofuscavam a possibilidade de luz.
No quarto, a escuridão também imperava. Sem sons, sem giros. Lá fora, um grito:
pueril!
- Mãe, o girassol caiu! Está murcho, acho que morreu. Que droga! E vai
chover...
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Contos Melhores - 2014
– Calma, menina! Vão nascer outros. São como as pessoas: nascem, vivem,
mas depois morrem. Passam! Nada é para sempre. Para tudo há um tempo. Aliás,
anda porque o tempo também mudou...
– Ah! Não queria que o tempo passasse! Não queria que chegasse a hora
de ir à escola! Não queria ter que parar de brincar! Para isso que devem viver as
crianças. Não queria que o girassol morresse. Eu só queria brincar. Não podia cho-
ver! Mãe, ele era tão bonito, tão amarelinho, parecia feito de luz, parecia mesmo
com o sol...
– Chega, menina! Deixe de conversa fiada. Está tentando me enrolar para
ganhar tempo e não fazer o que precisa!
– Mas a senhora não disse que o tempo passa? Como ganhar tempo? O
tempo a gente só perde...
– Ah, moleca! !Pare com suas enrolações. É hora de tomar banho, de se
arrumar para ir à escola. E eu também preciso trabalhar. Meu serviço me espera,
meus alunos me esperam. Também vou à escola.
Na casa ao lado, na casa da velha, a única irmã, mais nova, chegara e avis-
tara o corpo estendido na cama, pensou em chamá-la: “Clari...”. Tudo estava rijo,
finalmente, literalmente, sem vida. Não pareceu surpresa. Já era esperada sua hora
há algum tempo.Apenas precisava tomar as providências necessárias, burocracias
para o sepultamento. Não a visitara há dias, a pedido da própria enferma. Ela que
fora clara, Dona Clarice, estava como sua casa: escura. Clarice não mais reluziria.
Nem se houvesse flores, nem mesmo com o girassol. Clarice não tinha mais tempo.
No quarto, sobre um criado- mudo, a irmã ainda avistou um caderno velho
com algumas anotações: devaneios, lembranças registradas pela mulher sem luz.
De relance, viu no final da página aberta: “Eu odeio relógios. Não consigo controlá-
-los. Eu odeio o tempo: ele sempre me controlou”. E respirou fundo. Embora um
pouco abatida, estava com pressa. Precisava tomar atitudes, formalidades da vida.
Teria de avisar os poucos parentes que tinham, talvez alguns conhecidos da faleci-
da e, naquele momento, estava preocupada com o almoço que ainda não fizera. O
bisneto viria almoçar em sua casa após a saída da escola. O marido também che-
garia para o almoço. E a casa nem tinha sido varrida. Naquele dia, não deu tempo.
Havia tanta coisa para fazer. Precisava, também, lutar contra o tempo.
A menina da casa vizinha saiu a caminho da escola. Atrasada. Porém, não
se preocupava. Caminhava. Seus passos eram leves. Ela ainda era livre. Nunca
vira a velha Clarice. Não sabia de sua existência, eram duas estranhas. Embora
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Contos Melhores - 2014
possuíssem tantas coisas em comum. Não iria ao seu velório, seu enterro. Para
ela, ainda que o girassol também tivesse morrido, outros nasceriam, assim como a
velha vizinha anônima, haveria outras “Clarices”.
A tarde avançava nublada, mas o sol voltaria, pois como dissera a mãe da
menina da casa ao lado,” na vida tudo passa, muda, acaba”. Por isso, não tinha
pressa! Para ela, para a menina da casa ao lado, ainda haveria tempo. Mesmo que
também não o apreciasse, ele, por enquanto, não a incomodava freneticamente.
Tampouco conhecia sua plurissignificação. Na prática, acabara de iniciar sua traje-
tória: para a vida.Ao contrário da velha Clarice, que também seguira: para a morte.
E caminhou. Sem medos. Apenas contratempos.
*Isleide Cristina Sicarelli de Oliveira, 35 anos, professora, Guararapes-SP.
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Contos Melhores - 2014
Leite com açúcar
Categoria regional - 2.ª menção honrosa - Rita Lavoyer – Araçatuba-SP*
M
elissa é uma criança admirável. Consegue projetar histórias com cená-
rios cinematográficos, servindo-se apenas de gestos e palavras. Com seus
doze anos de pura magia e encanto, dá vida ao inanimado. Escalaram-na,
mais uma vez, para o teste. Chegara-lhe a hora de mostrar que o papel ajustava-
-se a ela. Nenhuma candidata, que por ventura houvesse, poderia tomá-lo. Me-
lissa, convicta, adentrou o palco improvisado: uma simples sala, mas que, com
sua genialidade poderia ser transformada. Ela a iluminaria com sua luz e cada
canto seria o que quisesse que fosse. Recursos faziam-se desnecessários àquela
eminente artista mirim que, com primor, representava os fatos, enrijando os bas-
tidores. Sabia que havia pessoas que se escondiam de seus olhos para melhor
observá-la, avaliá-la para a atribuição do papel, talvez, para testá-la ou espicaçá-
-la. Nada disso a abalaria, desempenharia com perfeição o monólogo e ganharia
o que pretendia daqueles observadores. Dar-lhes-ia as respostas que quisessem,
contando-as. Genial! Algumas vezes, fora surpreendida com os seus olhos negros
parados no tempo. Como fixava-se longamente em um ponto sem mexer o globo
ocular impressionava quem a assistia. Magnífica!
– Mamãe e eu éramos unidas, não tínhamos ninguém por nós. Era filha
única, como eu. Mamãe trazia mágoas da vovó, acho, desde a sua infância, por isso
estavam, mãe e filha, dolorosamente presentes uma na vida da outra. Viviam bem
quando cada uma ficava em sua casa. Papai... eu não o conheci. Não me falavam
sobre ele, somente que morreu antes de eu nascer, mas não acreditava nessa his-
tória. Não havia segredos entre mim e mamãe. Acreditava. Mas havia! Havia uma
caixa onde ela guardava o seu vestido de noiva. Tinha vontade de pegá-lo para ver
como era o seu corte, o seu modelo. Deveria ser justo, marcando a silhueta que
mamãe apresentava numa foto onde um dia eu a vi, somente... Nunca vi outra foto
dela!
Enquanto ela declamava a história, sendo observada por profissionais da-
quela arte de encenar, movimentava suas mãozinhas frágeis, projetando no ar, com
a suavidade de seus gestos, as imagens de sua personagem. Dramática Melissa!
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Contos Melhores - 2014
– Pelo pouco que mamãe me deixou ver, percebi que o vestido era de
mangas longas. A renda, já amarelada, era rústica. Trazia um formato de rosas e,
no miolinho, algumas imitações de pérolas, descascadas. Bordado simples. Queria
tanto ver aquele vestido! Prová-lo sempre foi a minha vontade, mas como? Mamãe
o trazia trancado! Disse-me que daria azar, - A encenação seguia perfeita e a sala
ia ganhando espectadores-analisadores. – Confessei-lhe, certa vez, um sonho: que
o meu vestido de noiva teria babadinhos na barra e um decote-princesa. Queria
que as mangas fossem compridas, porque deixam o vestido mais elegante. Sur-
preendeu-me ela gritar comigo! Disse-me que o cortaria se eu chegasse com um
em casa! Insistiu que aquilo não era assunto pra mim! Percebendo-me com medo
dela, preparou-me o leite quente com açúcar e eu me acalmei. Aprendeu com
minha avó que leite quente com açúcar tira medo de criança. Cada gole quente
dentro de mim alivia-me muito.
Com a voz na medida exata para o enredo e sem sorriso algum, transmuta-
va-se para que sua fisionomia alcançasse o estágio de atriz profissional cujo texto
e palco foram, espontaneamente, programados por ela. Era daquela transmutação
que os holofotes não podiam se desfocalizar. Os peritos, ali presentes, não paravam
de anotar em seus relatórios a análise da destreza daquela expoente. Brilhante,
Melissa!
– Após um dia atrás do outro em nossas vidas rotineiras, o dia da vovó fa-
lecer chegou. Mamãe não chorou. Eu a vi escolhendo a roupa para enterrá-la. Ela
passeava com as mãos sobre as peças que estavam penduradas no guarda-roupa.
Senti que ela abraçava as roupas da vovó querendo ter em seus braços um corpo
que já não poderia vesti-las. Suas mãos tentavam enxergar uma roupa que melhor
se adequasse àquela ocasião da vovó. Ocasião! Foi como eu ouvi mamãe dizer!
Separou uma blusa estampada, muito velha, e uma saia que não combinava com
nada. Deixou o conjunto desornado sobre a cama. Arrancou as roupas que vovó
vestia e começou a limpá-la com toalhas ensaboadas. Usou o sabonete preferi-
do da vovó. Perguntei-lhe se queria que eu a ajudasse. Respondeu-me com um
“não” isento de qualquer sentimento. Foi uma cena chocante vê-la limpando o
corpo da vovó. Era o seu último banho. Vi muita pele esparramada sobre a cama.
O corpo dela era muito estranho, as partes que o compunham pareciam não se
encaixarem umas nas outras, aquele pescoço torto... Morreu nas mãos da minha
mãe, estávamos juntas naquele dia, na casa dela. Era muito doente e a sua saúde
piorara muito. Sentei-me no pé da cama e observei que as unhas dos pés da vovó
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Contos Melhores - 2014
não eram cuidadas, suas pernas estavam roxas, como o pescoço. Ainda bem que
mamãe desconfiou que eu não teria coragem de ajudá-la na tarefa e pediu que me
retirasse, mas que mantivesse silêncio absoluto e as luzes apagadas. Pela primeira
vez vi uma mulher nua! Meu corpo, não minh’alma, careceu imediato: leite quente
com açúcar! Necessitava repor minhas energias. Preparei-o como mamãe fazia
para me acalmar quando eu sentia medo.
O público mantinha-se controlado. Aquele papel seria exclusivamente dela!
– Trocou-a e tomou outras providências, também sozinha. Vi minha avó
tão feia naquelas roupas velhas que a minha mãe escolheu para aquela ocasião!
Senti raiva da minha mãe naquele momento, parecia que se vingava, aproveitando-
-se porque vovó não podia mais se defender dos ataques que ela lhe provocava.
Sempre as vi assim: atracavam-se verbalmente quando estavam juntas. Vovó tinha
muitas amigas, mas passamos a noite sozinhas com ela. Dois homens da funerária
encarregaram-se de tudo. Não sei exatamente o que a minha mãe resolveu com
eles. Fiquei pensando em como eu faria aquele serviço com a minha mãe se ela
partisse. Fui lendo-lhe a anatomia, ansiando aquele corpo nu sobre a cama e eu
limpando-o. A enterraria com o vestido de noiva. Não lhe serviria, certamente, mas
daria um jeito.Vê-lo por completo já me satisfaria. Confessei isso à vovó certa vez...
Movimentaram-se, apreensivos, os que analisavam, com afinco, aquela ex-
planação.Nada poderia passar-lhes despercebido. Ela acrescentara o: “confessei
isso à vovó certa vez...” que, até então, não constava declarado. Ah, Melissa...
– Não sei se não aguentei, mas dormi e ela me acordou para levarmos
a vovó. Os homens já tinham chegado e precisavam fechar o caixão. Nenhum
vizinho? – perguntava-me! Será que eles não estranharam o silêncio na casa?
Queria tanto gritar para que me ouvissem! Mas não era possível, mamãe pediu-
-me muito silêncio... eu o-be-de-ci... Dei um beijo na vovó. Meus lábios não
queriam se desgrudar daquela pele gelada e endurecida. Vovó estava inchada, o
rosto deformado. Havia um lenço no pescoço dela. Senti uma vontade enorme que
ela voltasse. Solucei tão alto que fui repreendida por minha mãe, que nem sei se
chorou ou não, porque eu dormi e não a ajudei a velar vovó. Nunca mais a veria.
Ela contava muitas histórias pra mim, queria que eu as aprendesse, porque contar
histórias desenvolve habilidades, afirmava-me. Algumas eu tinha que repetir várias
vezes para ela certificar-se de que eu estava contando certinho, sem pular nenhum
detalhe. Ralhava, sempre me corrigia, depois me servia leite quente com açúcar,
incentivando-me: “Terás que aprender a contar!”
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Contos Melhores - 2014
Aprendera bem com a avó. As palavras a impregnaram:
– “Deves saber que és competente. A melhor! Se disto te conscientizares
farás com que os outros te vejam como tu queres ser vista” – Ah! Vovó, cheia de
“tus” e “tes”... usadora e abusadora da segunda pessoa, bem... abusadora não,
pois era oriunda de Portugal. Eu era a sua “Mel”... – Sentiu saudosa ternura por
ela. Murmurou: “– Vovó...” – Os homens levaram-na. Mamãe trancou a porta da
casa da vovó e saímos. Entramos naquele carro. Não podíamos ir ali, mas fomos
porque vovó só tinha a nós duas naquele momento, e a funerária. Era apertado. Os
homens foram no banco da frente. Eu fiquei apertadinha entre o caixão e a parede
dura e fria daquele carro, como o coração da minha mãe: duro e frio. O caixão era
feio, simples e pobre.Vovó não era rica, mas aquele caixão não combinava com ela.
A madeira de caixão fino brilha, tem pegadores do lado onde muitos se agarram
para levar o morto para o cemitério. Reparava quando ia aos velórios com vovó.
Talvez tenha sido por isso que mamãe comprou um caixão vagabundo, sem brilho
na madeira e com pegadores míseros nas laterais, porque não tinha ninguém para
admirar o brilho da madeira, muito menos se agarrar ao caixão da minha avó para
levá-la à cova. Mel...
Transfigurara-se. Os músculos ativos de sua emoção permitiam-se diálo-
gos. Não era a Melissa, mas a atriz; ou não era a atriz, e sim a neta? Não recebeu
aplausos, sabiam, pois, estarem distante do desfecho. Astuciosa menina!
– Os amigos dela, embora velhos, talvez se agarrariam às alças na tentativa
de trazê-la de volta, alguns deles sabiam que ela passara mal os últimos dias, mas
mamãe não os avisou. Quis muito, dentro daquele carro de funerária, que um deles
se arriscasse, trazendo-a de volta... Os olhos frios e pobres da minha mãe, fixados
em mim, contrariavam minha vontade oculta! A saudade que eu já sentia dela ra-
chava meu peito e sem demora um soluço seguido de lágrimas escapou-me! Sen-
tia que faltava-me um pedaço, mas os meus restos seguiam com ela! Lembrei-me
de quando me confessava coisas, fazendo-me prometer que não revelaria à minha
mãe! Era segredo nosso, havia lhe prometido, embora isso me aborrecesse, porque
não havia segredos entre mim e mamãe! Mas não podia quebrar a confiança que
vovó me depositara. Ficaria de mal de mim, não me permitiria visitá-la e não me
contaria mais histórias, ao ponto de eu as decorar. Eu a queria viva e ser a sua
“Mel”. No coração da minha mãe ela, há muito, já tinha morrido! Sabia que ela não
amava minha avó!
Nasce da atriz uma menina em lágrimas que se agiganta com sua força
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Contos Melhores - 2014
criativa, permeando naquela sala o envoltório sedutor a que ela se propôs exibir!
– Há três dias enterramos vovó e não saí mais. Não vieram à nossa casa
perguntar por que eu faltei às aulas. Sonhei com este momento. Não vou sentir as
roupas dela no armário. Não tenho dúvidas: será enterrada com o vestido de noiva!
Fiz todo o ritual, limpei o corpo da mamãe com toalhas e usei sabonetes cheirosos.
Tantos anos morando nesta casa e não tinha percebido o quanto o vestido estava
no alto. Mamãe o alcançava subindo na cadeira. Providenciei o necessário para
subir, destranquei a parte de cima do armário e toquei a caixa. Uma sensação
indescritível transcorreu o meu corpo. Não sei dizer o que era. Só sei que toquei a
caixa onde habitava um sonho de noiva. Cada batida do meu coração arrebentava-
-me o peito e eu pude sentir mamãe entre os panos. Observei-a deitada. Os cortes
daqueles tecidos acomodavam os meus imutáveis sonhos. Trouxe a caixa para
baixo e a abri. Estava amarelado. Era godê de tecido fino, leve e com uma fita de
cetim azul claro embaixo do busto. Era muito largo aquele vestido com manchas
escuras.A renda compunha apenas o busto e as mangas. Por que não era de cor-
po justo como o imaginava? As manchas seriam de vinho? Havia um papel escrito
junto com o vestido na caixa.
Novamente a menina se apresenta. Era o foco de olhares atentos dos que
mantinham mãos ocupadas em relatórios.
– Não! As manchas não eram de vinho, eram de sangue, por isso o vestido
não era justo, havia razões para o sangue, mas precisava ser naquela ocasião? E
agora, não tínhamos ninguém por nós! O que será de mim? O que será de mim?
A sala, iluminada pelas imaginações de Melissa, silenciou-se. Com suas
mãozinhas, pequenas e frágeis, tampa o rosto e limpa as lágrimas que lhe escor-
rem na face. A mulher adiantou-se ao centro daquele palco improvisado.
– Melissa, como você a encontrou? Foi apenas para conhecer o vestido
com o qual sua mãe se casou que você fez aquilo? Havia outra razão além do
vestido?
– Encontrou?! Doutora, eu só queria ver o vestido, depois vesti-la. Também
não sabia que tinha aquele papel dentro da caixa... Ela não se casou! Eu não sabia
que ela não tinha se casado. Nunca me disse nada, só que o meu pai tinha morrido.
– Melissa, você já nos historiou esses fatos, sem inverter um parágrafo do
que já havia falado... Somente acrescentando, desta vez, o que “confessou à sua
avó”!
– “A polícia já terminou a perícia, Melissa!” - “ O que estava escrito no
papel que encontrou junto com o vestido? - “ O psiquiatra a aguarda, Melissa!”.
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Contos Melhores - 2014
Também já repetiram as perguntas um monte de vezes, doutora!
– E você não tem mais nenhuma lembrança da ocorrência, além dessa
história que você repete há meses?
– Doutora, eu pensei que mamãe não gostasse da vovó e eu a odiei nesses
três últimos dias. Queria a vovó de volta e também queria a minha mãe, as queria
unidas, mas me incomodou a forma com que ela fez vovó partir. Vovó sempre me
pedia segredo quando me contava sobre o aborto que mamãe tentou fazer antes
do casamento. Ela sempre me dizia que mamãe não queria que eu nascesse. Mas
eu li outra história no papel que caiu de dentro do vestido, quando eu o desdobrei.
– Melissa, não são três dias, são meses e você continua dentro desses “três
dias” que vem nos contando... O papel, onde está e o que estava escrito?
– “Para minha filha Melissa” - era isso que estava escrito. Eu o queimei,
senhora, junto com o vestido. Promete, doutora, que irão vestir a minha mãe com
roupa bonita, que combine com a beleza e o amor que ela tinha por mim? Por
favor, não enterre a minha mãe junto com a minha avó. Aquela velha fria foi quem
tentou me matar quando eu ainda estava na barriga da minha mãe, no dia do seu
casamento, adiantando o meu nascimento. Mamãe salvou a minha vida das garras
da vovó e o noivo não apareceu. Ela não merecia isso, não merecia aquela mãe.
Bem feito o que mamãe fez a ela, e eu a culpava... Posso beijá-la antes que me
levem novamente?
– Levaram o corpo, Melissa, há meses! Tinha muitas perfurações. Preci-
samos encontrar a arma. Constatamos que você teve várias faltas na escola, não
foram apenas três dias como diz.A diretora informou aos investigadores que tenta-
ram localizá-las, mas sem sucesso. O vestido, Melissa? Onde o queimou?
– Eu ficava com minha avó, doutora, ela passou por vários problemas de
saúde o mês passado, semana passada ela piorou, até que veio a falecer.A minha
mãe trabalhava muito, chegava sempre muito tarde, por isso não nos encontraram.
– Melissa, nenhuma funerária confirmou essa passagem que você nos con-
ta sobre a morte e o sepultamento da sua avó. O túmulo que você nos indicou não
recebeu nenhum corpo nos últimos meses. Os vizinhos da sua avó já foram inter-
rogados e todos confirmaram que ela estava bem de saúde. Nenhum viu o carro da
funerária sair com um caixão de lá. Onde está a arma que usou para matar a sua
mãe e onde está o corpo da sua avó?
– Onde está vovó, doutora? Onde está vovó?
– Melissa, como era a caixa onde estava guardado o vestido de noiva?
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Contos Melhores - 2014
– Bonita e enfeitada com fita. – Respondeu tranquilamente.
Espantosa! Ela voltou a paralisar o globo ocular num ponto fixo daquela sala
- palco simulado para apresentar uma história, dissimulada ou não? Que atriz!
– Melissa, a perícia detectou outras digitais na cena do crime. Havia mais
alguém com você? Melissa, você quer tomar um copo de leite quente com açúcar?
– Claro que não, doutora! Claro que não, doutora!
Foi perfeita no que se propôs a fazer, impressionando os que ali estavam
para analisar a sua performance. Corajosa menina cuja fragilidade apresentava-se
não dar conta daquela dramatização, levantava questionamentos aos presentes.
– Será dela esse papel, doutora? E o pai dela? Vamos puxar esse caso
também?
– Por enquanto não! Levem-na e substituam o leite quente com açúcar por
suco gelado. Quem sabe ela nos surpreenda com outras histórias? Ela é excelente
contadora de fatos! Ah, Mel... Mel... Adoro ouvi-la!
– Sim senhora, doutora!
*Rita de Cássia Zuim Lavoyer é professora, vários livros publicados, Araçatuba-SP.
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Contos Melhores - 2014
O louva-deus
Categoria regional - 3.ª menção honrosa - Caroline da Silva Rodrigues –
Araçatuba-SP*
N
ão foi culpa de Sarah os eventos que ali ocorreram. Ao menos foi o que ela
disse a si mesma enquanto relembrava aquele momento no mínimo bizarro
em que seu filho, seu sangue, se pôs a chorar diante de um simples louva-
-deus.
Antes disso os dois tinham tido uma tarde muito satisfatória, um programa
de mãe e filho. Ela havia cancelado seus compromissos no domingo e levado a
criança para um passeio de carro, em seguida, um sorvete. Cristian havia dado
risada quando ela derrubou um pouco do sorvete em sua blusa e Sarah não resistiu
a provocá-lo.
– Cuidado, Cristian – disse – Se você ficar rindo, o devorador de crianças
virá te pegar!
– Devorador...?! – Cristian riu mais ainda – Isso não existe!
– Ah, não, existe sim – Sarah se debruçou em sua direção como se estives-
se dizendo algo de suma importância – É um bicho horroroso que aparece quando
as crianças riem da mãe e que devoram sem parar aquele que está rindo. Dizem
que só sobra uma poça de sangue no chão, no local onde havia a criança.
– Isso é besteira mãe – mas Cristian já olhava para os lados, apreensivo.
– Você é que sabe – Sarah disse, dando uma lambida em seu sorvete –
mas, se eu fosse você, tomaria cuida... BÚÚÚ!
Ela não completou a frase, avançando com as duas mãos na clássica pos-
tura de “assustar”.
Cristian começou a chorar muito alto. Dividida entre abaixar a cabeça ante
tamanho constrangimento e consolar a criança, Sarah demorou a perceber que não
era mais o foco da atenção do garoto. Virou-se na direção que Cristian encarava e
viu um louva-deus em cima de outra mesa.
O bicho parecia muito maior do que os outros insetos da sua espécie que
Sarah já havia visto e parecia olhar diretamente para Cristian, que não parava de
chorar. Durante um tempo que Sarah não saberia precisar, mas que provavelmente
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Contos Melhores - 2014
foram apenas alguns segundos, eles ficaram congelados naquele momento, com
Cristian chorando e Sarah compartilhando observando aquele louva-deus, uma
sensação estranha na boca do estômago.
De repente um jornal esmagou o inseto, o que só fez com que Cristian cho-
rasse ainda mais alto, mas tirou Sarah de seu transe.
– O que está acontecendo aqui?!
Moabe, seu ex-marido, perguntou, dividindo o olhar entre Sarah e Cristian.
O jornal com que matara o louva-deus ainda enrolado em sua mão.
– Olá, Moabe – Sarah respondeu, ainda um pouco perturbada – Cristian se
assustou com o louva-deus.
Moabe suspirou, mas logo sorriu e acariciou o cabelo do filho com a mão
que não segurava o jornal.
– Melhor agora, amigão?
Cristian, que parou de chorar assim que Moabe dissera suas primeiras pa-
lavras, assentiu com a cabeça, mas ainda parecia um tanto pálido e cabisbaixo.
Sarah imaginou que a reação não era nada mais do que vergonha pela atitude de
instantes atrás.
– Já são cinco horas? – Sarah disse e olhou o relógio, ansiosa para mudar
de assunto.
– Ainda faltam alguns minutos, cheguei um pouco mais cedo. – Ele se sen-
tou na mesa com eles – Foi tudo bem, Cristian? Você se divertiu?
Mais uma vez Cristian apenas assentiu.
– Nós demos uma volta de carro antes de parar aqui – Sarah se sentiu
compelida a dizer algo para preencher aquele silêncio – Mostrei para Cristian mi-
nha casa nova.
– Mamãe me deu um quarto só pra mim – Cristian murmurou timidamente,
parecendo muito diferente do garoto de minutos atrás.
– Que ótimo amigão – seu pai retrucou rapidamente, naquele tom que os
adultos costumavam usar com as crianças – Você pode dormir lá quando for visitar
sua mãe.
Sarah sentiu uma pontada de culpa a ênfase que Moabe deu a palavra vi-
sitar, mas se recusou a ter aquela discussão mais uma vez - ele não iria fazer com
que se sentisse culpada por ser uma mãe ausente.
Desde o inicio a ideia de ter um filho partira de Moabe, Sarah era contra.
Por insistência dele acabou engravidando e como tudo terminara? Há vários anos
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Contos Melhores - 2014
Sarah saíra daquela depressão pós-parto, mas ainda se lembrava muito bem de
toda a dor e sofrimento.
Moabe olhou para o relógio em seu pulso e se levantou.
– Nós já vamos indo – ele colocou a mão no braço de Cristian, que se
sobressaltou em seu lugar. Na certa ainda estava sob efeito daquela cena com o
louva-deus – Vamos, filhão.
Cristian levantou-se lentamente e se aproximou de Sarah
– Tchau, mãe – disse.
– Tchau, Cristian. Te vejo na semana que vem?
– Estaremos te esperando sexta-feira – Moabe disse, pegando o garoto
no colo antes que Sarah pudesse abraçá-lo. Ela havia prometido a si mesma que
o faria daquela vez, mas seu ex-marido interrompeu seu momento com Cristian.
– Estarei na sua casa às 8 – Sarah forçou-se a dizer, os sentimentos am-
bivalentes.
Moabe apenas assentiu e caminhou para a saída, ainda levando Cristian no
colo. Enquanto observava seu filho ser levado embora, Sarah sentiu o familiar senti-
mento de alívio mas, junto dele, novamente aquela sensação na boca do estômago.
Algo no olhar de Cristian para ela, enquanto seu Moabe o levava embora,
fez com que Sarah se lembrasse do louva-deus. Naquele momento, também sentiu
vontade de chorar.
*Caroline da Silva Rodrigues é professora, 22 anos, já venceu o concurso de Concurso de
Contos Cidade de Araçatuba em 1.º lugar na categoria regional. Araçatuba-SP.
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Contos Melhores - 2014
A velhice do rei
Categoria regional - 4.ª menção honrosa - Rodolfo Elias Minari – Valparaíso-SP*
N
esta suíte, entre os pequenos brinquedos e símbolos que amealhei pelo fio
das décadas, misturados a algumas centenas de livros – tudo disposto em
estantes que tomam as quatro paredes –, se encontra em lugar de destaque
a bonequinha russa a que chamam Matrioshka.No cômodo não existe lugar para
quadros ou pôsteres, por isso as lombadas dos livros precisam compor a mensa-
gem, e pelo meu minuciosotrabalho assim o faziam; e os bonecos, ícones, estátuas
e amuletos de diversas tradições que colecionoacentuam a tridimensionalidade
e a plurissignificação de todo o saber científico, artístico, histórico e esotérico ali
representados. Girando a cabeça sobre o eixo vagarosamente vejoa cor e o nome
de cada volume, como filhos meus, como ovelhas bíblicas – e todas me parecem
estar em seu lugar.
Mas eraevidente que Matrioshka não gostava do local onde eu a pusera.E
eu, sentado em frente ao computador, resolvi de repente que disso era a culpa
pelo a que hoje em dia chamam bloqueio criativo. Na minha época se chamava
ficar sem dinheiro.Culpei a falta de dinheiro e o excesso dele. Tentei culpar tanta
coisa. Eu precisava fazer isso, achar a razão da ruptura e consertar. Barrar o esco-
amento de ideias. Qualquer tentativa é melhor do que ficar estático olhando essa
tela brilhante. Por longo período culpara o computador, mas hoje dependo dele,
meus dedos não tem força para datilografar e minha mão trêmula se cansa logo
de escrever à mão. Penso em Goethe que, com mais idade do que eu, decidiu-se a
escrever uma segunda parte de “Fausto”. Pesquisei no google e confirmei que ele o
intentara meio século antes da invenção da primeira caneta-tinteiro e era obrigado
portanto ao esforço de molhar repetidamente sua pena; sinto a plena convicção de
que não confiaria em mim mesmo ao ponto de me fatigar e ter ciência do esquema
a que sucumbo me deprime.
Sou um velho covarde e antissocial; a quem vai interessar o que eu escre-
vo? Olho com nojo para a página de luz. Isso nem é papel. E o que está escrito
não se poderia nem sonhar literatura, e mais acertado seria dizer de si um refluxo
de consciência. Lembranças que vomito aleatoriamente, sem qualquer objetivo ou
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Contos Melhores - 2014
direção. Nos últimos anos, usara demais o exercício da escrita como catarse, cobri
o sagrado ofício de imundície me purgando, e, curado, ignorei voltar ao suor e à
devoção,e pelo anátema paguei com a desonra.A forma fálica de uma caneta faz
essa impotência da escrita tornar-se ainda mais semelhante à do sexo. As garotas
que atraio até aqui (usando, antes, a fama e o frisson sobre meu pensamento,
mas, hoje, somente um valor humilhante em dinheiro) me saciam, mas não me
fazem sentir homem. Uma delas defendeu que tanto o sexo quanto a escrita são
metáforas, essa impotência é de algo maior, é de tudo. Para se alcançar qualquer
coisa é preciso certa rigidez de personalidade, ou se fica parado ad eternum entre
o caminho da vontade e o das perdas e ganhos. E por isso o falo é o símbolo por
excelência, ele mostra o ser humano como é e como se pretende. Bela ideia – eu
pensara me vendo em repouso, no espelho. Um pouco atrasada, eu me disse,
aprendendo a rir de mim mesmo, estou só uns cento e vinte anos atrasado.
Estive perto demais do Olimpo para me contentar com ser rei em terra de
idiotas.
Apago todo o texto e olho para os deuses em volta de mim, Baco, Shiva, um
velho pajé, o touro Ápis, Santo Antônio, Iemanjá, Jesus, Buda. Clamo seu perdão
e que iluminem minha mente decrépita, que acendam uma luz em meu coração,
que me deixem lembrar dos sonhos, da felicidade que eu tinha em sero menor
dos serviçais da Arte e do orgulho em manter-me, por ela, pobre. Eu tinha uma
missão. E tinha uma força incrível. Uma energia que eu sentia circular e crescer,
quando alinhava oschakras, na região do abdome. Se eu pudesse ser um menino
de novo, se o senso de eternidade e o ímpeto missionário me tomassem novamente
e se as palavras me saíssem abundantemente e sem esforço... Assim foi com os
dezbest-sellers que escrevi, mas já lá se vão tantos anos. E não os de juventude
que passam ligeiro eprazerosamente, mas anos de velhice que se arrastam e só
trazem dor e perda.
O espelho, antes pleno, portal de possibilidade e mistério, de onde tirei o
meu “Sangue Estancado” em apenas quarenta dias, é hoje, ao invés de poço, um
negro buraco que em vez de dar só tira. Nele só vejo refletida a minha desgraça, e
nada brilha em volta. Nenhum constructo visual como era praxe aparecer ao meu
redor, no espelho, ou em circundando a chama de uma vela, que eu via de olhos fe-
chados, em um dos muitos tipos de meditação que eu praticava. Tudo que enxergo
são rugas que nada tem a ensinar. Não há dignidade em ser velho.
Especialmente esta última frase me causa, ao relê-la, repulsa. É patético
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Contos Melhores - 2014
como tento me espremer grosseiramente, esmagar o que resta de humano em
busca de um suco amargo, confissão, cicuta, uma merda melodramática que não
granjearia simpatia nem por pena.
Apago tudo.
Que merda.
A Musa não acaricia mais os meus cabelos; Matrioshka não diz o que sabe;
o espelho ruiu. Quem pode ajudar a responder o que sou eu?
Sou um velho decadente e a grande tragédia é que isso já não fica interes-
sante, no papel. Metalinguagem saiu de moda assim que a palavra se popularizou.
E pouca coisa é mais manjada literariamente do que um apartamento sufocante.
Sou uma metáfora pobre, uma cópia desgastada de mim mesmo.
Merda.
Saio para o corredor, tateando as paredes, quase a pedir que me sufoque,
ofenda, ou acaricie ou mate, ou qualquer coisa que se faça a alguém.
De pé no centro da sala me desnudo. As portas de vidro estão descobertas.
Que importa? Quem sabe alguém veja esse corpo ridículo e ao menos se choque
ou ria ou exclame o que seja exceto este silêncio a meu respeito, essa não reação
à minha existência. Mas não vão dois minutos até desistir. Ainda que obrigassem
pessoas a ver o meu corpo, ele não seria mais um indivíduo, ele seria “aquilo que
o tempo faz com a beleza”; seria uma mensagem, mas não minha: seria a espécie
humana, o atman divino, a nossa ascendência avisando que não pode haver espe-
rança, pois tudo é vaidade e o próprio Senhor as destrói. Tateio a pouca carne que
me resta sob a pele. Os ossos de todos os gênios aguardam esses meus.
É assim que o vício se transforma na serpente engolindo eternamente o
próprio rabo. Disfarçado em esquemas, retorna sempre sob um novo pretexto, ou
um antigo revestido de uma nova força persuasiva. Se me aguarda o cadafalso, por
que dispender os meus últimos dias à mercê da angústia? Por que me humilhar
tentando fazer o que já não consigo? Por que preferir frustração ao prazer?
Ligo o computador da sala. Mal entro no site e a ansiedade se esvai como
mágica. Toda questão existencial cai por terra enquanto estudo as fotos das ga-
rotas. Filosofia fica sendo só uma palavra, e a dor da escrita, uma metáfora. Mas
é difícil adivinhar qual dentre elas sabe conversar. Qual dessas mulheres teria ao
menos consciência de sua ignorância, para se deslumbrar com minha inútil e va-
zante erudição? Apenas no começo eu escolhia a mais bonita. Dessa vez foi seu
nome, Milene, que me fez voltar ao quarto, obrigado à visão do meu fracasso sobre
a mesa, procurar minha carteira.
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Contos Melhores - 2014
Enquanto voltava à sala, já com cartão de crédito em punho, o resto de
escritor agonizante tremeu em meu peito com dilacerantes espasmos. Ele queria
viver. Ainda sou fragmentário, mais de um ser, sou trezentos, e nem a velhice e
nem terapias nem deuses nos foram capazes de conciliar, ainda sinto nitidamente
meu ego desprendido de tudo, tentando manter-se acima, e, enterrados meu pai
e minha mãe há muito tempo, nunca fui capaz de deixá-los, como o próprio Jesus
sugeria, então não deveria ter perdido tempo com essas coisas, e agora que não
acredito em sutilezas, preciso de outra matéria prima.
Digito o nome de usuário e senha. Ser ou não ser?
Ligo a cafeteira italiana, a coisa mais metafísica que há. Nem o trivial ajuda
mais. Murchou-me o assombro, o brilho curioso nos olhos, um maço de alface na
cozinha era vida pulsante e vicejava no estilo de meu romance lindamente, junto
das cenouras e do alho-poró, só que agora o repolho e as batatas no fundo da
geladeira são apenas repolho e batata e empesteiam até a sala com seu cheiro de
podridão – de velhice.
Número do cartão. Ano e mês de validade. Código de segurança.
Depois de uns minutos, recebo resposta. Pagamento não autorizado. Sua
reserva expirará em 4min59seg... 58... 57...
Prostro-me no sofá. Destino, aviso, sinal? Ou é para testar se quero, mes-
mo, aquilo? No fim, já que tudo é vaidade, o limite entre persistência heroica e
teimosia burra é zero.
Então, lembro-me que adormeci. Sonhei, talvez. Creio que sonhei que Mi-
chele chegava, e eu brincava mil jogos com ela. Não precisava tocá-la; eu era
outra vez exímio com as palavras e narrando lhe incutia sensações como nenhum
erotismo o faria. Ela me chamava de Rei Salomão.
Despertei. Dentro ou fora do sonho? Ou, mais importante, qual tem mais
valor literário? Talvez a dúvida. Literatura é incerteza.
Soou a campainha, um fá sustenido, estridente, tenso, som de cor arroxea-
da, entre ciano e magenta.Tal ruído me acordou definitivamente. Um susto, porque
ninguém entra sem ser anunciado, antes, pelos porteiros.
Demorei um pouco a me vestir; pensei que, nesse lapso, ouviria o fá suste-
nido outra vez, porém houve silêncio. Quando abri a porta,
“Oi”, disse ela.
Fiquei sem ação por um instante. Há muito tempo eu não via uma beleza
tão... Que dizer? Inexiste adjetivo. Tentar descrever sua beleza me faria sentir um
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Contos Melhores - 2014
ainda pior escritor do que sou. Ela era uma mistura de tudo o que eu acumulara de
singelo e doce em minha vida. Lembrou-me a amoreira da infância tanto quanto as
pirâmides do Egito, e fez-me recordar a paisagem de um sítio, na Rússia, que não
merecera menção nos relatos, mas fulgia, agora, ressignificada por tudo o que a
beleza da menina tinha a ensinar.
“Oi. Entre”, eu disse; ela entrou e postou-se no centro da sala sem nada
dizer.
“Você é a Milene?”
“Milene está bom para você?”
“Gostaria de chamá-la pelo nome.”
“Tenho muitos nomes”, ela disse, e notei que seus olhos (azuis?) já haviam
fotografado as salas e as partes do corredor e da cozinha visíveisalém das portas
entreabertas. “Pode me chamar como quiser. Ana. Ruth. Maria. Milene. Medusa.”
Parecia, ao mesmo tempo, ter bem menos e bem mais do que vinte e um.
Parecia ter catorze, e trinta cinco. Parecia criança e, no instante seguinte, anciã.
“O que você faz?”, perguntei.
“Ajudo os homens... lembrar... ter vida correndo nas veias.”
“Além disso”, insisti.
“Eu... Estudo. Letras. Terceiro ano. Diurno.”
Meu egozinho se inflou. Como aos vinte anos. Queria isso na cama. Pouco
antes de. Frente a espelho. O brilho em meus olhos ao vê-la ouvir o meu nome.
Ela se entregaria, apaixonada, inconsequentemente submissa, a primeira em anos
a fazer amor comigo adredemente ou, o que era melhor (o diabozinho me dizia),
ela se cobriria e alegaria não poder fazer amor com alguém em posição idealizada,
quase mítica. Fui ansioso e ainda na sala contei-lhe e, para minha grande surpresa,
ela jurou nunca ter ouvido o meu nome. Mostrei-lhe os cinco livros com os quais fiz
fortuna e fama. Eu ainda tinha o dinheiro e a fama se fora, e, na frente da deusa,
constatei tristemente que teria preferido o contrário. Ela olhou as capas e voltou sua
atenção para uma antiga edição estrangeira de As mil e uma noites.
“Viu”, eu disse, “nem se interessa pelo que escrevi.”
“Eu me interesso pelo que você vai escrever”, ela disse, “mais do que você
imagina”, olhando para mim com tal doçura, que eu perdoaria 490 vezes. Entre
suas sobrancelhas, um ponto brilhante captava o meu foco como um imã, cercado
por todos os lados pela luz dos seus olhos, para os quais eu não conseguia olhar
diretamente (esverdeados?). Ali, numa zona ao centro de sua face oblíqua, conflu-
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Contos Melhores - 2014
íam olhares de todos os tempos e infinitos deuses conhecidos e desconhecidos,
incontáveis manifestações de Brahman e todos os santos e orixás e budas e pajés
e com estes sua floresta onde cada curumim e cada bicho e cada planta contém
espírito e dom e me fez assimilar em memórias passadascada olhar de planta e
gente e bicho que já vi em setenta e cinco anos.
Ela me fez falar e ouviu tudo por horas, sem se sentar um instante, e o
vestido dela encobria seus pés. Contei tudo desde o meu último livro, há vinte
anos, e a sequência de fatos que me fez nunca mais escrever. Ela identificou uma
a uma minhas dores, igual a uma mãe tira bichos de pé de seu filho, com espinho
de laranjeira e uma delicadeza de fada, ela me curou, eu ouvia sons de água e das
esferas.
“Se eu fosse você, abandonaria essa rejeição”, disse ela finalmente, e foi
como afastar todo passado doloroso com um sopro fresco de vida,“Ela é o sinal
da sua genialidade e loucura. Mas precisamos deixá-la para trás agora. Seu ego
elástico se inflou tanto que o dominou, até hoje. Agora o medo é de tornar-se um
louco comum. Talvez eu tenha vindo para lhe dizer que não precisa ser aceito, não
agora; que todas as pessoas do universo não são todas que lerão o livro. Ele não é
para mim; talvez para minha neta.”
Depois disso assumiu novamente um aspecto fragmentário e ofuscante, e
entre seus olhos se manifestaram outra vez os panteões divinos, a se multiplicar
– como para provar que eles são muitos mais do que nós – numa velocidade que
obscureceu minha visão e meu entendimento. A última coisa que entendi foi que
todas essas figuras se resumem numa só, de uma mulher, uma menina, àpoda
Milene à minha frente. Por influência do ponto brilhante entro em letargia. Vejo,
já sem foco, que ela vem em minha direção e se inclina até beijar-me, não sei na
testa ou no rosto ou na boca,pois imediatamente antes de seus lábios me tocarem
adormeci.
No sonho, Milene sonhava comigo.
Despertei. E, em toda essa história, é a primeira vez que me sinto realmente
acordado. No entanto, sei agora, nunca poderei ter a certeza.
Um absoluto vazio. Sua ausência tem a força de duzentos homens armados.
Em cada ponto das três dimensões do apartamento sussurrava a potencialidade do
novo. Embeveci-me. O caos tinha barulhos de água e faísca de luz, e o vazio que
ela deixara revelou-se um poço, fonte transbordante, as palavras fluíam em minha
cabeça como em um rio caudaloso. Difícil até escolher o que escreveria primeiro.
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Contos Melhores - 2014
Mas um sibilo, a voz dela inda ecoando, me disse que ainda não. Que aproveitasse
o olhar enlevado e revisse a tudo, a cada objeto, livro e até minhas velhas meias e
cuecas e a minha dentadura, pois as coisas sentiam saudade de mim e em breve
serão objetos de um morto. Saboreei cada cor e formato na sala, cozinha. Lavei
minha barba malfeita e escarrei, com um pouco de sangue, na pia. Finalmente o
corredor me sufocou, com mãos geladas. Com um resto de forças entrei em meu
quarto. Perdi, um a um, os sentidos, enquanto caía. A última coisa que vi foi: Ma-
trioshka não estava em seu lugar.
Tombei sobre a cama e entendi que era a hora. Meu corpo começou as pro-
vidências. Nesse instante como nunca percebi sua inteligência, como se contraía
com força e em espasmos botava para fora todo o ar residual; senti as células de
oxigênio percorrerem o caminho desde os pés, e como todos os músculos estão
emaranhados uns nos outros e é a mesma coisa o coração e o dedinho. Morrer
não é ruim.
Sobre o criado mudo vi uma pilha de papéis. Tentei pegar, mas só joguei ao
assoalho centenas de folhas escritas à mão. O título.“Estrela de Fogo.” Fechei pela
última vez os meus olhos e, entre caleidoscópios perfeitos, uma suave voz feminina
começou a ler para mim a minha história e eu soube que, assim como Matrioshka
estava no lugar a ela destinado, o livro encontraria as mãos e os corações corretos
até que, quem sabe daqui a cinquenta ou cem anos, encontre seu destinatárioe
viva.
*Rodolfo Elias Minari, músico, cantor, escritor. Valparaíso-SP.
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Contos Melhores - 2014
A luz na janela
Categoria regional - 5.ª menção honrosa - Odair Maurício de Albuquerque-
Penápolis-SP*
P
eguei gosto por este quarto, Helena.Tanto tempo aqui eacabamos por nosa-
costumar com os mínimos detalhes. Somos animais adaptáveis, caso contrá-
rio estaríamos todos em uma grande barca furada. No começo, um vácuo e
essesilêncio. Silêncio, mil vezes silêncio. Como a calmaria nos desespera. Quere-
mos ouvir, não importa o quê. Bobagens, muitas bobagens é o que queremos ouvir,
mas só lhe dão um amontoado de nada. E o que é o nada? Esse corpo inerte na
cama seria a resposta mais plausível. Ele não vive e, no entanto, está aqui. Mutila-
ram sua vontade.
A quietude de tudo me assombra. Nenhum suspiro, nenhuma exclamação
de desalento. Não sou criticado, não sofro injúrias, sou apenas uma mortalha en-
carnada. Que calmaria. Você,Helena, gostaria desse estado zen. Diria que estamos
gravitando, entrando num mundo paralelo, em outro plano cósmico. Uma baboseira
que nunca dei crédito. Mas você acreditava nisso. Sempre acreditou.
Crer. Você me dizia para ter fé e tudo ia melhorar. Que saída engenhosa
essa: basta ter fé e você encontrará a saída do buraco em que você caiu. Mas
se eu tiver fé e não sair? “É porque sua crença não é tão forte, capaz de fazê-lo
acreditar”, diria você. E se minha fé me enganar? Se eu achar que é fé quando
na verdade é meu desejo que fala mais alto,com o único propósito de sair daqui e
voltar a fazer tudo que fiz antes sem nenhum remorso? Ela sorria complacente:“Já
é um começo”. Eu insistia. E se eu enganasse a todos, demonstrando a fé que não
tinha,para ficar curado, e depois ririade tudo por não passar de uma fraude?“Você
não enganaria a Ele”, responderia ela, com aquela serenidade que me exasperava.
Desisti. Conformei-mee aceitei sua placidez.
Noite. A única luz que desponta vem da janela aberta trazida pela lua que
se mostra cheia. Não a vejo, mas me fica a impressão de que ela está enorme. Sua
luminosidade suave entra e desenha uma faixa no chão do quarto. Se ao menos eu
pudesse me aproximar do parapeitoe olhar os movimentos dos prédios ao redor...
Me sentiria como James Stewart em Janela indiscreta. Que excitante!Aí um crime
44
Contos Melhores - 2014
surge e a monotonia se acaba. O criminoso esquartejando sua mulher, colocando
num baú e de repente me surpreende observando tudo. Uma testemunha a ser
apagada. Ele sairia de seu apartamento, viria ao prédio em que me encontro, en-
traria no meu quarto e... Surpresa...Veria que a testemunha de acusação não tinha
como escapar pela janela e nem quebrar a outra perna. Notaria também que mal
falava com um lado da boca e nem teria o trabalho de cometer mais um crime. Já
era um homem morto...
Olho o dedão dos pés e eles parecem tão distantes!Todo o corpo até o
pescoço uma grande massa fixa. Um ponto imóvel naquela cidade imensa; cidade
que aprendi a conhecer desde cedo com os colegas Janjão, Pituba, Ourives e Pé-
-de-Chinelo, figuras exóticas e singulares, mas não vieram.Talvez não tivessem co-
ragem de me ver ali deitado.Foi com eles que desbravei a noite. Janjão me ensinara
a fumar; Pé-de-Chinelo, a uma boa briga; Ourives, a saborear todo tipo de bebida,
e com Pituba,aprendi a conversar. Bons camaradas, mas não vieram... Na verdade,
poucos vieram.Apenas no começo o fluxo de pessoas foi mais intenso, mas logo
o encanto que toda tragédia despertanoinício se perdeu em meio aos afazeres de
cada um. Ninguém tem tanto tempo assim pra ficar chorando à beira da cama de
um moribundo. Chegam um a um, com uma das mãos segurando a outra, sem
palavras pra dizer, no fundo se regozijando que antes eu do que eles.
A noite é longa para quem não tem o que fazer. Olhei o quarto, enxerguei-
sombras. Um suporte para roupas do lado esquerdo me observava. Olhei para “ele”
e mesenti como se estivesse com visita; visita que examinavaapenas, nada dizia.
Esse sim seria grande camarada. Sem julgamentos, censuras,acusações, não quer
saber o que aconteceu.Olhamo-nos e em silêncio era como se fizéssemos confi-
dências, como só um amigo faria. Mas me retenho... Tenho medo.
O medo! Transfigurado em várias camadas,ele se desdobra pelo quarto es-
curo, tomando a forma de alguém que possa estar a me ouvir por detrás da porta,
da parede, escondido no banheiro, embaixo da cama, no teto, atocaiado no forro,
dentro do armário. Era um medo antigo, da infância. Cobria-se à noite com o lençol
como se este fosse um escudo, que me envolvia e me protegia. Meus paisdormiam
num dos quartos; meus irmãos,em outro, todos juntos, empilhados, e eu no sofá da
sala. Volta e meia retirava a cabeça para respirar ou por causa do calor, para logo
em seguida retornar à minha posição, não conseguindo pegar no sono, e quando
conseguia um pouco, logoacordava em pesadelos. Agora meus braços não puxam
mais o lençol.
45
Contos Melhores - 2014
Meu “interlocutor”jamais entenderia minhas aflições. Coisas de criança que
permaneciam no adulto, metamorfoseadas em gestos imperfeitos, sem nexo, in-
fantis, ainda – depois de tanto tempo. Infantis nas ações, na voz que não queria
sair, no titubear do primeiro emprego, nos quase-namoros frustrados, nas amiza-
des-relâmpago, na incerteza se queria beber ou fumar e, no fim,acabaria fazendo
os dois. Isso foi bom, ajudou na personalidade. Fiquei mais atrevido, andava de
peito estufado, cheguei nas meninas, uns foras aqui e outros ali, nada que a bebida
não curasse, e um cigarro para me acompanhar deitado no gramado da praça, de
olho nas estrelas, pensando em Francine, que apesar de ser uma menina enjoada
eu acreditava em sua conversa mansa, de víbora, coisas de Adão e Eva, Sansão
e Dalila, Bentinho e Capitu, traições por trás daquele sorriso falsoà espera do mo-
mento oportuno ou da minha desistência. Prevaleceu a primeira...
Meu “companheiro” de infortúnio mantinha-se ereto, impassível, dois bra-
ços estendidos. Sorri com a ideia daquele suporte ser alguém com vida, mas que
nada dizia. Era como se ele me apontasse para a janela e indicasse a abertura que
propiciava uma infinidade de coisas que aquele quarto não podia me proporcionar.
Ele indicava sistematicamente e eu olhava meu corpo estendido e sem reação, sem
movimento.
O movimento. Eu poderia agora lamentar a impossibilidade de andar depois
do acontecido, seria óbvio e previsível. Mas não vou dizer nada sobre isso. Não
que as incertezas deixassem de saltar a cada minuto, mas não vou falar sobre
esperanças mortas. Eu cavei minha própria sepultura, portanto, o jeito seria seguir
o novo rumo e ninguém precisava ouvir minhas lamentações, choradeiras, pedidos
de clemência ou ajuda a Deus.
Deus. A nossa hipocrisia chega às raias da insanidade. Nunca fui de ir à
igreja, rezar, fazer orações ou coisas do gênero por mais que Helena me convi-
dasse. “Você se sentirá bem”, suplicava. No momento em que borrei as calças
por medo de morrer, lembrei-me Dele. Foi mais ou menos o mesmo que rezar um
pai-nosso ou coisa que o valha. Mas nada adiantou. Como diria Cotinha, o que tem
de acontecer não há jeito de mudar. Consolador...
E lá estava meu irretocável interlocutor que continuava com o braço es-
tendido, esquecido. Era como se ele me incitasse a ir à janela. Quer que eu vá?
– pergunto ou julgo perguntar. Minha voz está fanhosa, não a reconheço. Me es-
forço, mas não vejo um milímetro dos dedos se moverem, sejam dos pés ou das
mãos. Mas continuo a tentar. Como gostaria que no lugar daquele suporte surgisse
Helena, em movimentos suaves, olhar que dissimulava tantos sentimentos e que
conseguia escondê-los ao mesmo tempo.
46
Contos Melhores - 2014
Mas Helena já não estava entre nós. Só me restava aquele suporte no canto
do quarto. Se fosse alguém, diria que o olhar penetrante e cheio de confiança es-
tava ali para me indicar o caminho da salvação: a janela. A lua permanecia como
antes, plenamente iluminada, não tinha como errar o caminho.Vamos! Era como se
eu o ouvisse. Não desista, meu rapaz, erga-se, vamos, levante-se.
Milagre, meus dedos mexiam, percebia-se um leve deslocar, coisa ínfima,
milímetros deslizando um dedo ao lado do outro. Talvez a fraca iluminação me
confundia, mas não podia ser, eu sentia movimentos, mínimos, mas movimentos, o
que era mais extraordinário.
Sinto agora os músculos das pernas, os braços. Consigo firmar os cotovelos
no colchão, vou pausadamente levantando o tronco, e já diviso toda a extensão da
cama, que até então era vista parcialmente. Sento e respiro. Sentado, já posso ver
algum movimento lá fora. Jogo as pernas para um dos lados. Começo a descer da
cama. O primeiro passo foi emocionante, não menos que isso. Como se eu voltasse
a ser criança. Mas como criança, fui ao chão.Apoiei as mãos no piso e fui devagar-
zinho me erguendo. Para não levar um novo tombo, me apoiei na parede, até me
aproximar da janela. Fiquei ali por um bom tempo, sentindo o ar revigorante. Não
saberia dizer as horas, mas isso não me importava. Respirei como se acabasse de
sair de uma clausura.
Me apoiei no parapeito e subi. Avistei toda a cidade sob meus pés. Olhei
para o céu e vi uma constelação indescritível e me lembrei de Helena. Sempre
amiga. Por mais bonita que fosse, nunca me imaginei dando-lhe um beijo, senão de
amigos. Ou melhor, de irmãos. Ela, mais velha, orientando, e eu atrás, tropeçando
e errando sempre. Olhei para baixo e vi pontos minúsculos que se moviam. Se ela
me visse aqui, me repreenderia,com certeza, como a mãe ao filho; como naquela
vez em que subi numa mangueira e ela, desesperada, me pedia pra descer –caso
contrário, contaria aos meus pais. Nunca contou.E eu subi mais alto para deixá-la
ainda mais em desespero.Ou quando fomos ao rancho do Pituba. Pulei daquela
altura de cabeça, num mergulho espetacular, e sai do outro lado do rio. Ou quando
eu empinei a moto para fazer graça para asmeninas que ficavam na calçada justa-
mente para nos incitar a fazer todo tipo de maluquice, e batemos num poste... Mas
agora ela não me repreenderia. Podia pular quando quisesse. Porque esse,Helena,
será o meu último salto e você não precisará se preocupar mais.
*Odair Maurício de Albuquerque, 44 anos, técnico contábil, Penápolis-SP.
Parte 2
Contos melhores
nacionais
48
Contos Melhores - 2014
Título: 13.600 -
Os olhos mais lindos
que já me olharam
Categoria nacional - 1.º colocado - J.R. Bazilista, São Paulo, SP*
S
e chovia era lama para todo lado e naquela manhã chovia desde a noite
passada. Os tratores da usina iam buscar os ônibus no começo da subida e
puxavam até a portaria, não havia maneira de um ônibus subir sem ajuda.
Dizem que já tombou mais de um tentando subir, sobe e na metade patina e volta
descontrolado e vira, nunca vi, hoje ninguém tenta, os tratores puxam um a um. A
chuva era fina e não sei por que eu não confiava no motorista. O trator puxava como
se nada tivesse acontecendo.
Desci na portaria junto com os outros, batemos cartão para entrar e passo
rápido para fugir da chuva, nada de moleza. Da portaria até o barracão da oficina
tinha bem uns quinhentos metros que foi feito num minuto, se o dia começava
nesse pique certamente ia ser daqueles!
Entrei no banheiro que também era vestiário e fui até meu armário. Abri e
fiquei olhando o velhinho que tomava conta do banheiro, resmungando e colocando
uns ‘papelão’ no chão para conter o barro, em vão, meu rastro se confundia com
os de outros. Uma turma entrava as seis e a minha que era menor, as sete, mas
com a lerdeza dos tratores, hoje até as oito ainda estaria chegando gente e seu
Flauzino teria um tréco.
Nem bem guardei minhas coisas e o encarregado me pegou.
– Você vai dar uma mão no socorro, pega as ordens de serviço na minha
sala e já separa as ferramentas que a coisa tá feia hoje ‘o home’ taí!
‘O home’ era o dono de tudo e bastava falar ‘ A o home’ que até as estopas
jogadas no chão pulavam sozinhas para o tambor de lixo, até as pombinhas do
telhado pensavam duas vezes em cagar quando se ouvia ‘a o home’, terror e pau-
-mandado a melhor relação patrão-empregado.
– Pode levar a marmita que hoje não tem previsão!
O “Socorro” era umas equipes que iam pra fora da oficina.
49
Contos Melhores - 2014
Peguei minha marmita que tinha acabado de tirar e coloquei dentro da
bolsa novamente, ajeitei a garrafa de café, tudo sem dar um piu. Assim era meu
jeito de lidar dar com esse filho da puta, só balançava a cabeça, sim e não que
nem retardado.
Saí do banheiro e ao entrar no barracão já avistei o Socorro e Stuart Eduward
conferindo os pneus da Toyota.
Juro era esse o nome dele! Entre Josés, Joãos, Dedato, Sebastião, Cuíca,
Rebimbela, Zóio, Negão, Sinvaldo, Mauro Sergio, Luís, Marcão...Tinha lá um Stuart
Eduward! E o cara era esquisito também!
– Me mandaram ir contigo!
– Você pega as ferramentas que eu vou lá ao almoxarifado levar umas
‘requisição’.
– Chá comigo!
Guardei a bolsa dentro da caminhonete e fui buscar as ferramentas. Primei-
ro peguei as ordens de serviço e dois encarregados discutiam, não ouvi no cu de
quem iria entrar, não sendo no meu, fodasse! Na ferramentaria o Marquinho, que
era o ferramenteiro, a essa hora da manhã já estava com veadagem,“o home taí, o
home taí”. - Fodasse meu, pega aquela chave de três polegadas e racha na cabeça
dele que eu quero ver se tu não vira o herói! - “Cê tá é doido!” Peguei o que tinha
de pegar e me mandei e ele ficou lá repetindo: “O home taí, o home!”
O Stuart Eduward não havia voltado, guardei as ferramentas atrás na cami-
nhonete e entrei na cabine e fiquei ouvindo o rádio amador. Ele chegou e jogou as
peças requisitadas em cima do banco, subiu, ligou e engatou ré.
– Não está esquecendo nada?
– Não! Respondi, mas deixa-me falar um pouco como ele era. Sabe o cow-
boy do Marlboro? Velho, cabelo farto e pintado de preto, topete meio Elvis segurado
na pasta ‘Trim’, duas dobras na manga do uniforme. A cor do meu uniforme perto
do dele é uma vergonha! Deixa-me ver... ãh... sapatão engraxado e cigarro no bico,
calado, olhos meios serrados com ar sério compenetrado. Em suma, sua figura
que fazia jus ao nome. Eu não tinha nada contra ele, mas preferia trabalhar com os
outros mecânicos. Na verdade era puxa-saco demais pro meu gosto, mas vamos
lá, tudo menos ficar aqui na oficina.
Passamos a portaria exclusiva da oficina e o guarda falou alguma coisa pra
ele que eu não entendi e ele deu risada, acho que foi a primeira vez que vi o Stuart
Eduward rindo. Pegamos uma rua de cascalho e lama que a ‘Toyota’ tirava de letra.
O nosso primeiro ‘socorro’ era em um ônibus perdido no meio do nada.Tínhamos a
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Livro contos melhores 2014 edição final

  • 2. Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP) (Câmara Brasileira do Livro, SP, Brasil) Índices para catálogo sistemático: 1. Contos : Antologia : Literatura brasileira 869.9308 Copyright © vários autores Editor: Hélio Consolaro Revisora: Maria Rosa Dias Capa e editoração gráfica: Celso Nicolete Impressão: Eko Gráfica - (18) 3636.7790 Secretaria Municipal da Cultura Rua Anita Garibaldi, 75 - CEP 16010-280 Araçatuba - SP secretariacult@gmail.com - (18) 3636.1270 concursodecontos.blogspot.com Contos melhores 2014. -- Araçatuba, SP : Editora Eko Gráfica, 2014. ISBN: 978-85-68298-04-6 1. Contos brasileiros - Coletâneas. 14-08545 CDD-869.9308
  • 3. Prefácio E ste livro é composto por partes, conforme as categorias do 27.º Concurso Internacional de Contos “Cidade de Araçatuba”: regionais, nacionais e inter- nacionais. Quem escolheu os 24 contos (o livro tem 26, porque há dois da comissão julgadora) foram pessoas conhecidas por Araçatuba como escritores e professores de nossas universidades. Se a comissão julgadora fosse outra, com certeza, teríamos outro resulta- do, porque, por mais que se adotem critérios objetivos de seleção, dificilmente se consegue se livrar da subjetividade. E em arte (e literatura é arte) a subjetividade é uma riqueza. No certame, houve participação de escritores jovens e idosos (dois extre- mos: 19 e 70 anos); de iniciantes a gente com dezenas de livros publicados. O concurso existe desde 1985, criado pelo primeiro secretário de Cultura de Araçatuba, Paulo Grobe, e já tem a credibilidade dos escritores brasileiros; e mais recentemente, do mundo lusófono. A Secretaria Municipal da Cultura, com o certame, no bojo da 6.ª Jornada de Literatura de Araçatuba, quer incentivar a escri- tura, estimular o surgimento de novos escritores, projetando Araçatuba no mundo literário. Leia os textos, caro leitor, sem perder o exercício crítico, mas que a acidez não mate um escritor que ainda esteja no ninho. Publicar este livro (e entregá-lo a todos os presentes na noite de premiação) é uma forma de exercício literário, garantindo a visibilidade dos “contos melhores” do 27.º Concurso Internacional de Contos da “Cidade de Araçatuba”. Boa leitura. Hélio Consolaro Secretário municipal de Cultura de Araçatuba-SP
  • 4.
  • 5. Sumário Prefácio.......................................................................................................... 3 Parte 1 – Contos melhores regionais 1.º colocado – Calçadão, alface e escolhas Jean da Silva Oliveira – Araçatuba-SP............................................................ 08 2.º colocado – A procissão Fernando Verga – Araçatuba-SP .................................................................... 10 3.º colocado – O colecionador de sonhos Mário Bueno – Araçatuba-SP......................................................................... 17 1.ª menção honrosa – Contratempos Isleide Cristina Sicarelli de Oliveira – Guararapes-SP....................................... 21 2.ª menção honrosa – Leite quente com açúcar Rita Lavoyer.................................................................................................. 26 3.ª menção honrosa – O louva-deus Caroline da Silva Rodrigues ........................................................................... 33 4.ª menção honrosa – A velhice do rei Rodolfo Elias Minari – Valparaíso ................................................................... 36 5.ª menção honrosa – A luz na janela Odair Maurício de Albuquerque – Penápolis-SP .............................................. 43 Parte 2 – Contos melhores nacionais 1.º colocado – 13600 Os olhos mais lindos que já me olharam J.R. Bazilista – São Paulo-SP......................................................................... 48 2.º colocado – Mas o homem era velho, já Paulo Henrique Pappen – Porto Alegre-RS...................................................... 53 3.º colocado – Pomo da discórdia Gérson Luiz Colombo – Canoas-RS................................................................ 56 1.ª menção honrosa – Recado para Marluce Álvaro Cardoso Gomes – São Sebastião-SP.................................................... 64 2.ª menção honrosa – Coqueluche Douglas MCT – São Paulo............................................................................. 71 3.ª menção honrosa – O regresso do herói Paulo Sério Marques – Sinop-MT................................................................... 74
  • 6. 4.ª menção honrosa – A Bovary do Largo das Ideias Rodrigo Machado Freire – Goiânia-GO ........................................................... 80 5.ª menção honrosa – A última vez que vi meu pai Henrique Bom – Nova Friburgo-RJ................................................................. 84 Parte 3 – Contos melhores internacionais 1.º colocado – Ricochete Mônica Barroso Reis Simão- Fundão – Portugal.............................................. 89 2.º colocado – O giz na estrada Jorge José Pires Figueiredo – Alverca – Portugal............................................ 95 3.º colocado – A campanha do leite Fátima Bica .................................................................................................. 99 1.ª menção honrosa – O perfume de Abigail Marcus Filgueiras – brasileiro morando em Montividéu-Uruguai..................... 104 2.ª menção honrosa – A árvore que dava frutos de metal Maria de Fátima Esteves Martins – Coimbra – Portugal................................. 110 3.ª menção honrosa – Círculos da Vida Desirée Jung – brasileira morando no Canadá.............................................. 112 4.ª menção honrosa – Gare do Oriente Al Cino Elyseu – Merceana – Portugal.......................................................... 120 5.ª menção honrosa – O velho e o vento Susana Luís Carvalho Machado – Santa Maria da Feira - Portugal................. 125 Parte 4 – Contos da comissão julgadora O mascate Marilurdes Martins Campezi ........................................................................ 130 Uma noite de outono Emília Goulart ............................................................................................. 134 Parte 5 – Anexos Participantes da Comissão Julgadora........................................................... 139 Cartaz de divulgação do concurso................................................................ 140
  • 8. 8 Contos Melhores - 2014 Calçadão, alface e escolhas Categoria regional - 1.º colocado - Jean da Silva Oliveira – Araçatuba-SP* E lis encarou seus olhos no espelho e viu que algo lhe faltava. O bairro Água Branca já abrira o portal para fazer nascer o sol, que preguiçosamente iniciava sua jornada de doze horas para, enfim, adormecer no Mão Divina, restituindo a noite pingada de estrelas. Em gestos automáticos, ela lavou e depois pintou o rosto. Tomou café e seguiu pela Avenida dos Estados rumo ao centro como se máquina fosse. O que lhe fora tirado pelo tempo fazia falta existencialmente. E ela seguia em frente para tentar não pensar nisso. Som do trânsito, buzina, chão que passa, passa. Mas como não pensar na infância que se esvai com o vir e ir do sol? Como não sentir saudade do tempo em que o mundo lhe dava colo e deixava para o futuro as obrigações das realizações pessoais e profissionais. A pequena Elis, com seus olhos de sonhadora, acelerava sua moto como se pudesse fugir de si mesma, da presença da ausência que sentia dos tempos de inocência e brincadeira na ladeira da rua Bahia, na Vila Mendonça. Hoje, é Calçadão, meta de vendas, falta de alguém para encostar a cabeça e, entre um namoro e outro, também poder chorar. A mente ainda procurava motivos para fixar-se na vida real quando a peque- na Elis se deu conta que já se posicionava atrás do balcão. O moço bonito da loja em frente já lhe dava o sorriso pontual. Gelo na porta do estômago. Dúvida se iria falar com ele ou esperar ele vir falar com ela. Atendimento. Mulheres que entram e saem da loja. Perguntas. Araras de roupas coloridas. Preços. Descontos. Vendas e nãos. Tudo como se sincronizado fosse. Vida que segue. E o moço do outro lado da rua sorrindo. Tentação em uma manhã quente. Bochechas vermelhas, não necessariamente de vergonha. A menina dá lugar à mulher. Sorri de volta. Aceno tímido com as mãos. Vergonha, olhos baixos para o chão e cabelo jogado para trás da orelha. Crescer não é tão ruim assim. A vida segue na rotina da loja até o horário do almoço. Elis, sentada no quartinho dos fundos, com o prato nas mãos, cala seus desejos com a boca cheia de feijão. Aonde será que está o moço bonito da loja de móveis? Ela queria estar rindo com ele no banco da praça.Tristeza. Saudade do que nunca teve.Arroz, feijão
  • 9. 9 Contos Melhores - 2014 e salada. Vida igual ao alface. Sem gosto. Passa o tempo e é hora de voltar à rotina. Mulheres com suas pernas apres- sadas, vendas, nãos, sorrisos e grosserias. Gerente que cobra, povo que não com- pra e a vida avermelhando como o chão do Calçadão quando o sol já se aproxima da sua habitual despedida. Uma criança, distraída, deixa cair um pedaço de salgado no chão. Pompas surgem de todos os lados. Bicam, bicam, bicam. Um balé anárquico surge no Cal- çadão do centro de Araçatuba. Ao vencedor, as batatas! Ela se lembrou da frase, mas não do autor ou livro. Coisa da época de escola. Riu de si mesma, das pombas e da briga pela sobrevivência.As outras vendedoras e ela são como as pombas. De bicada a bicada, vencendo na vida. Elis deixou a loja no final do expediente, sendo ela, agora, a dona das pernas apressadas. Seu pensamento quase engrenava quando foi interrompida por pas- sos rápidos de outras pessoas. Era o rapaz bonito da loja em frente. Convite para passear no shopping amanhã à noite. Gelo no estômago. Ela vai pensar. Amanhã responde. Ela segue em passos afoitos, mas para em frente a uma loja de sapatos. Preço alto. Prestação acima dos 30% do salário. Medo de comprar. Elis, em sua moto, ruma para casa. Nenhum dos dois satisfeitos. Ela, lhe faltando algo, que ainda não sabe explicar. A moto, carente de aventuras. No máxi- mo, idas e vindas, e esperas longas no sol escaldante. Sem emoção para lembrar. O silêncio cúmplice entre menina e sua máquina é maior que as buzinas, as re- clamações sobre os semáforos demorados e o tilintar das estrelas que começam a pingar no céu. Jogada no sofá, Elis sonha com o moço da loja, pensa nas pombas, no alface sem graça da vida. Falta algo. Sim, são eles, os sapatos. Aqueles sapatos vão lhe tirar o sono! *Jean da Silva Oliveira, 38 anos, é jornalista, efetivo na Prefeitura Municipal de Araçatuba, articulista do jornal Folha da Região.
  • 10. 10 Contos Melhores - 2014 A procissão Categoria regional - 2.º colocado - Fernando Henrique Bonomi Verga– Araçatuba-SP* À quela época, gostava de sentar à sombra do barranco na encruzilhada que dava pra venda.Chegava por uma estrada de terra, empinada que doía as pernas. Minha avó, mais velha que aquele barranco, me levava de varinha por conta disso. Mas eu gostava daquela sombra. O sol não passava de jeito ne- nhum. Tinha um pé de goiaba no topo do barranco, da vermelha, doce, sem bicho, e na encruzilhada sempre tem brisa. Gostava daquela sombra e da terra vermelha do chão. Da brisa e da goiaba vermelha.Gostava de comer goiaba à sombra fresca do barranco no chão de terra. A varinha não gostava da sombra, da terra, da brisa nem da goiaba. Minha avó não gostava de nada. Só da varinha e de moeda. Vi muita árvore perder varinha por eu gostar de ficar naquela sombra. Depois de tantas surras aprendi que tudo era culpa do calção sujo. Eu mo- rava vizinho de uma mata, então comecei a pular a cerca do sítio e correraté lá para trocar o meu calção por um bem velho e sujo, depois saía pra brincar. O outro, que também era velho, mas um pouco mais limpo, ficava pendurado numa árvore. Minhas pernas já eram empoeiradas todos os dias, então a velha não notava dife- rença. Me sentiesperto quando percebi que ninguém reparava nas minhas pernas de terra. Quando consegui manter o calção mais limpo sem sujar, conquistei minha liberdade.Comia goiaba na minha sombra e voltava pra casa com as pernas de terra, mas com o calção do jeito que ela queria. Naquele tempo a cidade ficava muito longe; nem sabia o que tinha lá. Fui uma vez de charrete levar queijo pra minha avó e perdi a conta das curvas. Quan- do cheguei lá entreguei o queijo, peguei as moedas e voltei. Saí cedo e cheguei anoitecendo em casa. Demorou pra eu voltar na cidade. Levava na venda, de vez em quando, mas era perto; nem precisava de charrete. Fazia questão de dar três viagens só pra andar pela estrada. Quando ela ia pra cidade eu sempre chegava mais cedo na encruzilhada. Minha sombra engoiabada me esperava tranquila e soprava uma manta de poeira fresca pra eu deitar na terra. Quando a cabeça da velha saltava no topo da subida
  • 11. 11 Contos Melhores - 2014 ao longe, eu corria pra cima do barranco. Espiava ela passar até o olho perder pra curva. Ela contava cada moeda até chegar em casa, repetindo a contavez após vez, conferindo os centavos sem respirar. Já tinha juntado sete sacos de moedas em casa. Ela nem aguentava carregar. Nem eu. Nem um saco eu conseguia levantar. Tinha poucas oportunidades pra tentar, por que não podia nem entrar no quarto dela. Mas, das vezes que tentei, sequer ergui do chão. Eu nunca entendi o que ela fazia com essas moedas. Nunca comprava nada. Não tinha conta na venda.A luz era de lamparina. Lenha eu pegava na mata. Tinha sete vacas que davam leite de sobra pra fazer o queijo. Eu nem comia esse queijo, por que tudo virava moeda. Lá ninguém precisava da cidade. Só minha avó, que buscava cada vez mais moedas. A velha precisava delas e eu via isso em seus olhos. Na estrada da venda viviam poucas pessoas. Duas famílias, eu e minha avó, um homem sozinho, outro viúvo, que era o dono da venda, uma mulher solitária e um velho vagabundo. Conhecia todos de tanto passar todo dia na estrada. O últi- mo era o dono da venda, onde eu buscava moedas pra minha avó.Quase nunca falava com as pessoas, mas sabia das histórias de todas elas. Cada um contava do seu jeito um causo ocorrido com o vizinho. Depois de trocar o calção e pegar a estrada,eu ia ouvindo conversa alheia e reparando nas coisas. A primeira casa era a de uma mulher com sete filhos. Diziam que ela teve nove, mas os dois últimos desapareceram. Ninguém sabia o que tinha acontecido.O marido trabalhava na roça e as crianças sempre estavam chorando quando eu pas- sava. A casa era de pau, com um quintal entulhado, pomar abandonado, cheio de mato, mas com frutas. Num canto via-se um amontoado de terra que talvez tivesse sido uma horta. Não tinha uma flor, um vaso, um enfeite qualquer. A única beleza era a própria dona, que ficava na janela penteando os cabelos. Às vezes se voltava pra dentro pra se olhar no espelho. Não suava uma gota, mesmo naquele calor triste. Diziam que era por que não fazia nada, a não ser pentear os cabelos e se manter sem suar. Mas triste era ver as crianças chorando e chamando a mãe do lado de fora, pela janela. A impressão que dava toda vez que passava era que ela se trancava no quarto. As crianças não sentiam fome por que tinha fruta no pomar. Só tinha fruta no pomar por suor das próprias árvores.Aquelas árvores tinham pena daquelas crianças. De todas da estrada essas eram as únicas que davam frutas o ano inteiro. O marido chegava tarde e cansado e ainda cozinhava pra todo mundo, por que a mulher não gostava de suar no calor do fogão a lenha. Pela estrada eu
  • 12. 12 Contos Melhores - 2014 ficava pensando o que ela fazia pra ficar gelada. Até o pau seco da cerca suava naquele sol. Tinha um homem que morava sozinho numa casa que quase entrava na mata, vizinho da mulher que não suava. Eu tinha medo dele. A porta e as janelas estavam fechadas parecia que desde sempre; não tinha sinal de vida na frente da casa. Nunca passei por aquela cerca, mas dava pra ver umas coisas na parte do fundo. Parecia que era caçador, com couraças de tatu e cobra penduradas nas primeiras árvores da fronteira com a casa.Tinha arapucas e machados cravados em tocos soltos. Diziam que ele espancava as paredes e dava pra ouvir o ranger de seus dentes durante a noite, fazendo um barulho que aterrorizava os sete filhos da mulher que não suava. Era um homem sozinho e furioso. Diziam que só cessava quando saía de madrugada pra cortar lenha. Praguejava a cada machadada até a escuridão enfraquecer e depois corria pra mata. Ninguém se aproximava daquela casa. Na outra borda da estrada tinha o sítio de uma família comum. Dava bem de frente pra casa da mulher que não suava. Um pai, uma mãe, uma menina e um menino.O pai trabalhava na roça, a mãe cuidava da casa, da horta, galinhas e porcos, os filhos se revezavam no auxílio à mãe e ao pai e brincavam no quintal após terminarem suas tarefas. A casa tinha jardim na frente, com grama podada, trepadeiras volumosas subindo a cerca bem cuidada, varanda com vasos e plantas floridas, janelas com cortinas e a melhor horta da estrada.Capricho da mãe. Quan- do o pai chegava da roça colocava uma cadeira bem na porteira do sítio para pitar o cigarro de palha. Diziam que ele observava a vizinha se penteando na janela. Que observava quando ela se olhava no espelho. Que observava sua pele lisa sem suor. Diziam que culpava o homem sozinho pelo sumiço dos dois filhos dela.Diziam que esses dois filhos também eram dele. Diziam que sua esposa não sorria. Diziam que ela rogava doenças pra vizinha. Essas três casas ficavam perto da casa da minha avó. Ela não conversava quase nada comigo, mas soltava ao vento suas divagações sobre essas pessoas.A velha costuravaconversas de uma casa com a outra com precisão. O que para todo o resto eram suspeitas misteriosas para ela era fato consumado. Mais à frente, depois de um trecho, morava um velho vagabundo, sem vi- zinho algum. A cerca quebrada do seu sítio mais criava espaço que dividia. Minha avó, que era das mais antigas daquela estrada, brigava com ele só de passar em frente ao casebre desconjuntado do velho. Ela dizia que ele nunca pegou numa
  • 13. 13 Contos Melhores - 2014 enxada a vida inteira, que era um velho de mão lisa. Não tinha um calo na palma da mão. Que onde já se viu um velho que não tem calo. Dizia que lhe devia moedas. Dizia que casa de gente vagabunda era suja, que quintal de gente vagabunda era matagal, que comida de gente vagabunda era dada. De onde ele tirava comida eu não sabia, mas que minha avó não lhe dava queijo isso era verdade. O dono da venda nem entrar no estabelecimento deixava o velho. Dizia que nunca lhe pagou as pingas que bebeu, que nunca aceitou o emprego que ofereceu, que nunca agra- deceu um prato que comeu. Mais à frente, uma curva depois do casebre do velho, tinha uma casa que ficava em cima do barranco, bem rente à estrada, rodeada por uma cerca sem por- teira. Em torno dela tinha um espinheiro que isolava até a porta da frente. Na janela, lá do alto, uma mulher solitária passava o dia a resmungar contra quem passava. Ela dizia pra mim que os queijos da minha avó eram podres. Que a família do pai que observava era mentirosa. Que o dono da venda era um miserável. Que o ve- lho vagabundo era vagabundo. Que o homem sozinho era um assassino.Naquelas bandas, era difícil alguma novidade acontecer. Quando acontecia, ela resmungava e botava defeito. Diziam que ela nunca gostou de ninguém, nem da própria mãe, a quem culpava por ter morrido sem deixar posses. Diziam que ela não sentia fome, de tão ruim que era. Era a última casa antes da venda. Eu passava pela mulher solitária com um saco de queijo nas costas e a ouvia resmungando. Ficava imaginando o que ela fazia trancada naquela casa, sozinha. Devia ficar apodrecendo as coisas dos ou- tros. Me dava medo de pensar nela sentada no escuro pensando coisas ruins para as pessoas. Mas eu tinha medo também dos outros moradores da estrada. Todos pareciam empenhados em perpetuar uma maldição. O dono da venda, diziam, negou comida à esposa moribunda por que não queria desperdiçar, já que ela ia morrer logo. Diziam que pediu ao padre uma novena pra ficar viúvo mais cedo, já que não tinha solução, pois estava gastando comida à toa. Todos moravam na estrada que dava pra venda, pela qual eu passava todo dia pra brincar no barranco da encruzilhada que tinha um pé de goiaba vermelha e brisa fresca. A outra estrada que nascia na encruzilhada eu nunca pegava. Era muito fechada, com mata dos dois lados e barrancos altos. Só tinha casa há muita distância pra frente. Nunca vi ninguém pegar essa outra estrada. Às vezes, eu pensava que ninguém sabia que a gente morava ali. Naquele tempo, a gente vivia
  • 14. 14 Contos Melhores - 2014 tão escondido que muitas coisas que viviam escondidasdos olhos do mundo se aproximavam da gente. Num dia, aproveitei que minha avó foi mais cedo para cidade e corri pra brincar na encruzilhada. Pulei a cerca do sítio e fui pra mata. Chegando lá, não achei meu calção sujo. Olhei para os lados assustado pensando que o homem sozinho estava por ali. Mas não vi nem ouvi nada. Procurei por perto; talvez o vento tivesse derrubado. Não achei. Pensei comigo que essas coisas davam de sumir uma hora ou outra. Saí da mata e peguei a estrada com o calção mais limpo mes- mo. Era só tomar mais cuidado pra não levar uma surra da velha. Passando pela casa da mulher que não suava vi as crianças felizes dançan- do ciranda em frente à janela vazia.Virei o pescoço para a casa do homem sozinho e vi portas e janelas abertas. Olhei para o outro lado da estrada e vi a esposa do pai que observava sorrindo. Que dia esquisito tinha amanhecido. Continuei andando e, chegando à casa do velho vagabundo, vi duas enxa- das encostadas na cerca quebrada e um cavalo pastando no seu quintal cheio de mato. Que banquete para o cavalo. Quando fiz a curva, não ouvi nenhum resmungo. A mulher solitária não estava na janela e seu espinheiro tinha perdido todos os espinhos. Chegando na encruzilhada, subi no barranco pra pegar goiaba e vi a venda fechada. Nunca tinha visto essa estrada mudar tanto, mexendo com coisas que pa- reciam permanentes. Do alto do pé de goiaba olhei para a outra estrada. Naquele dia ela parecia mais fechada, com uma sombra escura. O vento soprava contrário, batendo nas minhas costas e indo para essa estrada. Naquele dia a brisa fresca não fez graça no meu rosto nem poeira pra eu deitar. O vento empurrava para a estrada escurecida. Mesmo assim, acabei dormindo à sombra do barranco. Dormi na encruzilhada no dia mais estranho que já vira. Quando acordei, fiquei apavorado. Já era noite e minha avó já devia estar em casa. Isso significava que já tinha passado por ali e me visto deitado na terra com o calção mais limpo. Devia estar me esperando na porta com uma varinha na mão. Fiquei pensando por um breve instante numa maneira para me safar. Foi quando ouvi um barulho vindo da estrada que dava pra casa. Uma luz tremulante começava a projetar sombras nos barrancos. Ela estava chegando ao topo da subi- da. A velha devia estar muito brava pra vir atrás de mim uma hora daquelas. Do outro lado da encruzilhada, pela estrada que nunca fui, uma escuri- dão profunda avançou e silenciou a noite. Pela estrada de casa, aquela penumbra
  • 15. 15 Contos Melhores - 2014 tremulante se aproximava e outros sons começaram a surgir.Lamentos de dor, sofrimento, arrependimento. Corri para cima do barranco e ali me escondi. Fiquei espiando o que se aproximava, rezando para que não me visse e passasse adiante, seja lá o que fosse e qual fosse sua intenção. No topo daquela subida surgiu uma mulher segurando uma tocha em uma das mãos, bem próxima ao rosto. Sua pele estava avermelhada e suando muito. Na outra mão levava um espelho. Ela tentava se olhar, mas seus olhos estavam costurados. Pelo andar pesado e relutante percebia-se que era puxada ou empur- rada, mas eu não via nada ao seu redor. Passou perante meus olhos e, dobrando a encruzilhada, seguiu pela estrada que nunca fui. Não me movi, pois escutava lamentações vindo da estrada de casa. Mais uma figura apareceu no alto da subida. Um homem sem pele vinha em direção à encruzilhada. Ele caminhava com muita dificuldade, sangrando a cada passo, gemendo e chorando de arrependimento. Quando ele estava bem à minha frente, duas crianças vieram correndo e começaram a açoitá-lo, levando-o para a estrada que nunca fui. Ouvi um barulho metálico, como se algo muito pesado martelasse o chão de terra. Cruzou a subida um homem envolto com uma roupa de ferro ardente como brasa. Ele se contorcia e gritava, desejando violentamente retirar aquela roupa. Parecia uma armadura em chamas, com um cadeado selando uma trava em suas costas. Foi-se pela estrada escura. Ouvi um cavalo relinchando e algo rolou pela estrada, vindo do topo da subida. Rolou até parar embaixo dos meus olhos, aos pés do barranco. Era um velho com as mãos e os pés decepados. Quando o cavalo se aproximou, empurrou o velho para a estrada do outro lado da encruzilhada. Essas aparições foram se apresentando para mim. Eu permaneci paralisa- do, com a respiração acelerada, mas tentando não fazer nenhum barulho. Um grito de dor petrificou minha alma, agudo como uma navalha. Uma mulher com o corpo encoberto de espinhos andava rumo à estrada onde nunca fui. Quando ela tentava retirá-los, eles entravam mais em sua carne. Enquanto ela sumia na escuridão, ouvi cães latindo. Um homem estava sen- do arrastado pela língua por um grande cão, enquanto outros abriam-lhe a barriga com mordidas ferozes. Desapareceu pela estrada escura e silenciosa. Pensei que tivesse acabado, mais ouvi barulho de algo sendo arrastado. Vinha de longe, misturado a gemidos de muito esforço. Surgiu uma velha de ca-
  • 16. 16 Contos Melhores - 2014 beça baixa com sete cordas amarradas a seus pés. Na ponta de cada uma delas, um saco de moedas. Minha avó vinha em direção à encruzilhada e, assim como os outros, passaria rumo à estrada escura, para onde eu nunca tinha ido. Quando se aproximou do barranco, olhou para cima e me encarou. No lugar de seus olhos havia duas moedas. Elas brilharam como seus olhos brilhavam ao contar cada centavo de sua coleção. Não segurava nenhuma varinha em suas mãos. Não disse nada, apenas me observou. Abaixou a cabeça e continuou sua lamentosa procissão rumo à estrada escura, arrastando toda a tristezado peso que acumulou durante a vida. Naquele tempo, a gente vivia tão escondido que muitas coisas que viviam escondidas dos olhos do mundo se aproximavam da gente. *Fernando Henrique Bononi Verga, 30 anos,é jornalista, secretário municipal de Comuni- cação Social da Prefeitura de Araçatuba-SP.
  • 17. 17 Contos Melhores - 2014 O colecionador de sonhos Categoria regional - 3.º colocado - Mário Henrique Silveira Bueno – Araçatuba-SP* O fim do mês ainda estava longe, o orçamento, porém, já inspirava cuidados. Diante da gôndola do supermercado,Antonio olhava indeciso entre a cerveja na prateleira e o sabonete em sua mão. Era um homem de hábitos extrema- mente controlados, mas, vez ou outra, se permitia a pequenas liberalidades, como tomar uma garrafa de cerveja importada ou começar um sabonete novo ao invés de usar a costumeira maçaroca de sobras, que os mais sovinas, ou de poucas posses, costumam fazer. Seria cientista por vocação, mas os desmandos da vida, entretanto, o trans- formaram em um invisível funcionário da burocracia estatal, esquecido em algum almoxarifado bolorento e mal iluminado da cidade. Reservado e discreto, passaria por um sujeito qualquer em meio à multidão, um comum, não fosse um segredo que carregava guardado a sete chaves: construíra uma minúscula engenhoca me- cânica capaz de capturar sonhos. É que Antonio possuía uma estranha e insana obsessão pelos sonhos e quereres alheios. Sua obsessão era tamanha que, nas horas vagas, havia constru- ído a máquina a fim de guardar para si todos os sonhos do mundo. O aparelho, apesar de engenhoso, tinha o funcionamento bem simples. Bas- tava aproximá-lo das pessoas que ele capturava de suas falas, ou pensamentos, tudo aquilo que fosse relativo a sonhos. Por isso Antonio andava invariavelmente munido de seu apetrecho, escondido em bolsos de camisa para que, em qualquer situação, lhe fosse possível armazenar suas preciosidades oníricas. Esgueirava-se sorrateiramente, como uma sombra, no ônibus, na padaria, na rua, no supermercado, em qualquer lugar onde estivesse, com o intuito de ga- rimpar nas conversas dos outros os desejos, as vontades e os sonhos. A noite, já em casa, transferia o conteúdo da máquina para potes de vidros, que eram adicionados a outros milhares de potes que acumulara em vários anos. Somente a ele tinha sido reservado o poder de enxergar os sonhos nos transparen- tes recipientes, o que fazia com extremo prazer.
  • 18. 18 Contos Melhores - 2014 O ato de observar lhe ensinara que havia dois tipos de sonhos: os sonhos que as pessoas sonham quando estão acordadas, e os sonhos que as pessoas sonham quando estão dormindo. Os primeiros são os que falam dos desejos, das vontades e quereres, como os sonhos de consumo, sonhos de amor, liberdade, saúde, emprego, a casa pró- pria, filhos, uma vida mais simples, um carro, viagens, uma pequena horta, um jan- tar em Paris. Dessa espécie Antonio possuía guardados vários tipos, desde sonhos triviais até sonhos megalomaníacos. Dos sonhos cuja natureza era daqueles sonhados por pessoas que sonham dormindo, havia alguns que eram razoavelmente comuns, como, por exemplo, so- nhar que se está voando livremente pelo ar e sonhar com animais. Havia também os sonhos que traziam pessoas e fatos já há muito tempo esquecidos, e os sonhos que propiciavam o encontro com familiares falecidos. Alguns retornavam ao útero materno, enquanto outros iam para guerra. Havia os que viajavam por alguma galá- xia perdida do universo em companhia de extraterrestres, e os que estouravam for- tunas nos cassinos de Los Angeles. Também havia os pesadelos e aqueles sonhos tumultuados, confusos, misturados um no outro, completamente fora de lógica e desprovidos de qualquer sentido. Por esses tinha especial apreço. Obviamente que, na prática, acontecia de um tipo de sonho invadir o espaço do outro, a ponto de confundirem-se, mas, na teoria de Antonio, eram somente aqueles dois os tipos que existiam. Antonio chegava em casa, descarregava os sonhos, e contemplava extasia- do aquele quase sem fim de vidros enfileirados, maravilhado pela imensa capaci- dade do imaginário humano. Sonhos seus, porém, não os tinha. Eram todos os dos outros. Calhou certa vez, em sua ausência, de sua casa ser invadida por ladrões. Estes remexeram gavetas e abriram armários em busca de algo que pudesse ser furtado. bagunçaram tudo. A coleção de sonhos provocou nos ladrões um misto de espanto e incredulidade: quem seria maluco de guardar milhares de pequenos frascos, todos aparentemente vazios, organizados com tanto rigor e método? Enfurecidos por não encontrarem nada de valor, os assaltantes acharam por bem trazer abaixo todos os armários que guardavam a coleção de Antonio e, com eles, todos os milhares de potes que armazenavam os sonhos.
  • 19. 19 Contos Melhores - 2014 Em questão de minutos o local transformou-se em uma verdadeira cena de guerra. No chão formou-se uma espessa camada de vidros quebrados, tampas e restos de prateleiras, que os assaltantes também fizeram questão de quebrar. Antonio, que chegou horas mais tarde, se deparou, perplexo, com a casa arrombada, revirada e toda sua coleção destruída. Sentiu o corpo estremecer e, em seguida, adormecer. Passou mal, teve ânsias e o estômago embrulhou. Então, sentiu sede. Uma sede que não se pode explicar. Sede que água não mata. Sentiu como se toda água do oceano tivesse invadido seu corpo, trazendo com ela tam- bém todo o seu sal, em um prenúncio do que estava por vir. Em choque, andou em meio aquele caleidoscópio de vidros partidos, à pro- cura de qualquer sonho, qualquer um que, por ventura, tivesse sobrado. Entre um frasco quebrado e outro descobriu que não havia restado nenhum. A destruição ocasionada pelos assaltantes fez com que todos os sonhos simplesmente evapo- rassem de seus recipientes. Ele nunca havia pensado nessa possibilidade, mas sua intuição dizia agora que esse acontecimento iria trazer desdobramentos inimagi- náveis. Os sonhos, efêmeros e voláteis, em forma de vapor, começaram a se reunir no céu e a formarem gigantescas nuvens negras, densas e opressoras, que foram aumentando exponencialmente a cada sonho que lhes era incorporado. Girando furiosamente, as grandes nuvens, não resistindo à força da sede de Antonio e aos ditames da natureza, desabaram em forma de água sobre a terra, em volume e velocidade nunca antes vistos. Chovia de tal forma que toda a cidade transbordou, sofrendo estragos de enormes proporções. Não tendo para onde fugir, Antonio foi então levado de forma violenta pelas águas, tendo que lutar bravamente por sua sobrevivência. Resistiu por dois dias à enchente na copa de uma grande árvore, de onde via passar em turbilhões e en- xurradas os milhares de sonhos que havia acumulado anos a fio. Todo seu esforço havia se perdido e agora os sonhos de sua coleção estavam se transformando numa imponderável e cruel realidade, arrastando a tudo e a todos com impiedade. No terceiro dia, com as águas ainda lambendo-lhe os pés, Antonio avistou um helicóptero que vasculhava a área em busca de sobreviventes. Com o pouco de forças que ainda tinha, arrancou a camisa e acenou desesperadamente para que fosse visto. Em poucos minutos a cesta de resgate já estava a seu alcance. Com a ajuda do socorrista entrou na cesta, e, segundos depois, o helicóptero já partia rumo a um local seguro.
  • 20. 20 Contos Melhores - 2014 Rapidamente a aeronave atingiu grande altitude. Antonio sentia-se relativa- mente seguro e protegido dentro do cesto quando algo inesperado aconteceu. Um forte estalo e o cabo de aço, que sustentava a cesta, se rompe.A cesta e seus dois ocupantes despencam no céu em direção à pequena porção de terra que acabava de se projetar. Tomado pela terrível sensação da queda livre, Antonio perde a res- piração. São quatro longos e torturantes segundos de desespero até o impacto no solo. Um milésimo antes do impacto, porém, Antonio dá um pulo na cama e acorda com o coração disparado. Grito preso na garganta, levemente atordoado e confuso, ele percebe que está em seu quarto. Olha o relógio. São seis e meia da manhã. Respira fundo e aliviado. Alguns minutos depois, sai da cama e se prepara para mais um rotineiro dia de trabalho. Ao mirar o espelho não se reconhece como Antonio. Ele vê outra pessoa; vê, de fato, quem realmente é. Seu nome verdadeiro é Miguel, e já tinha perdido as contas de quantas vezes sonhara que era Antonio. Horas mais tarde, no supermercado, ele compra um sabonete novo. *Mário Henrique Silveira Bueno, 42 anos, é fotógrafo artístico, já ganhou vários prêmios como artista plástico, Araçatuba-SP.
  • 21. 21 Contos Melhores - 2014 Contratempos Categoria regional - 1.ª menção honrosa - Isleide Cristina Sicarelli de Oliveira – Guararapes-SP* P ela janela, apenas um ínfimo foco de luz adentrava seu quarto. Com olhos semicerrados, via a luz também pelo meio. No fundo, buscava meios: de entender, aceitar, sobreviver. Na casa, não fosse o ruído do ventilador que girava incessante, o silêncio seria rei. Aquele final de tarde era escaldante, candente. Mas seu coração estava frio, tão gélido que o fervor da temperatura ambiente não poderia afetar seu couro. Isso mesmo, a casca que a protegia, afinal, o próprio tempo a fez assim. Durante anos se expôs a tudo: vento, chuva, sol. Contudo, pouco a pouco foi poluída, castigada, ficou demais para fora, agora só vivia para dentro: de casa, de si apenas. Só! O que lhe restava naquele momento era pensar, reviver as poucas nuances de alegria que tivera, fazer das mesmas eternidade, ao menos em pensamento, já que a realidade tinha sido tão dura com aquela mulher que, um dia, fora tão mole: de coração, em atitudes. E a moleza do passado deixara reflexos: flacidez! Estam- pada na face, no pescoço, nos braços. Não tinha expressão. Afônica. Sem forças: físicas, emocionais. Abriu um pouco mais os olhos, a claridade aumentou, ainda que dela, de seu interior, emanassem sombras, fora, nem os móveis pareciam circundá-la, tudo estava distante. Exceto o ventilador. Este girava, rodava , circulava , cada vez mais próximo. Para ela, uma metáfora da vida. Em meio a calmaria e escuridão do espaço, foi interrompida por um grito. Era uma voz infantil. Havia por ali uma criança. Novos vizinhos? Não tinha certeza. Há tempos não se dirigia ao quintal, nem à calçada: estava sempre descalça. Na cama. Pés ao léu. Perdera-se no tempo, aliás, como dizia, “havia perdido seu tem- po”. E quanto tempo já se passara! Por isso, não lhe importavam mais os anos, meses, dia da semana, as horas... vivia os segundos, contava-os ora mentalmente, para evitar movimentações, ora em situações de maior disposição, momentos raros, por meio do toque dos dedos junto à madeira da cama: conseguia, assim,
  • 22. 22 Contos Melhores - 2014 suportar o tempo. Era seu jeito de encarar a vida. Ouviu novamente a voz. Certificara-se de que era mesmo uma criança. Cantarolava algo estranho, desconhecido. Perfeito! Um encontro entre díspares. E passou a se atentar à voz, aos dizeres. Gradualmente, foi invadida por uma sen- sação de curiosidade, a imaginação voltara a aflorar: surgiam-lhe rostos, gestos, movimentos. Junto ao giro do ventilador, os pensamentos também giravam. E foi assim que a cabeça também girou. Os pés giraram. Com muito esforço, levantou- -se. Aproximou-se da vidraça. Encostou seu rosto nela. Suavemente, afastou-se aos poucos. Foi ao centro do quarto. Soltou os longos cabelos: grisalhos.Também o corpo. Agora, de olhos plenamente fechados, inexplicavelmente deixava girar sua- vemente toda sua estrutura. Dançava, a seu modo, ao som da criança que cantava lá fora. Parecia-lhe um remédio: um sopro de vida. E nos rodopios também se recordara do baile de formatura, quando girou nos braços do rapaz que tanto admi- rara na sala e, somente naquela noite, havia sido por ele notada e convidada para dançar a primeira valsa de sua vida. Tempo perdido. Lembrou-se da roda gigante, de quando girou com o primeiro namorado. Lembrou-se dos giros que realizava no trabalho, das rodas com suas crianças.Ainda que não tivesse filhos, educou tantos pequenos, sem gerá-los, ela os girou. Ofereceu-lhes novos círculos. Fez rodas, cantigas, rodopiou... mas chegou o momento de cessar. Era tempo. Em mente, guardara o conceito de que o relógio sempre gira e mostra a hora de parar. O relógio sempre girou em uma sintonia que ela não pôde conter. Nem voltar os ponteiros. Mas com seu ventilador era diferente: a mulher se fizera capaz. Movimentos! Talvez, giros contrários. Escolhia o sentido do vento. O relógio... ah, o relógio... sempre na mesma direção: para o fim. Ou o começo: diferente! Mas apenas para quem pode desfrutar do tempo. Por isso, preferira, por anos, olhar para o ventilador, com ou sem interrupções. Abolira de sua casa o relógio. E a música continuava, era a voz da criança, e ela também seguia na ca- dência: vagarosamente, gozando de pouco equilíbrio, girava em ternos contornos . Num momento súbito, resolveu, embora tendo apresentado dificuldades, abrir a janela. E assim a luz adentrou seu quarto.Acima do muro, avistara uma joia. Hipnotizada, parou. No jardim do vizinho havia um pé de girassol. Percebeu então que nele também girava sua única flor, tão devagar, tão sem pressa, e, meu Deus, tinha luz! Ao som da voz da criança, o girassol parecia dançar, girar lentamente, sorrir para a velha. E assim como o girassol, seus lábios foram se movimentando, a face sofria para esboçar um leve, breve sorriso. Ela não podia ver suas rugas,
  • 23. 23 Contos Melhores - 2014 as marcas do tempo. Também não tinha mais espelhos. E era melhor não tê-los. Por isso, pouco a pouco sorriu. Mas a voz da criança cessou. Os pensamentos no passado também se encerraram ali. A viagem acabara. Contudo, ainda havia a flor, o girassol, e ele girava, lentamente... Por horas, ficou naquela janela, contemplando a flor gigante, amarela. Era como o sol, mas não queimava sua pele, seu couro. Era como as rodas da vida das quais participou, e não sentia medo que o giro dourado cessasse, pois o movimento era lento, e, naquele instante, parecia lhe haver ainda muito tempo. “Tempo? Oh, meu Deus!”. Mas os giros do ponteiro do relógio, ainda que não tivesse o maldito marca- dor cronológico em sua casa, eram rápidos, ligeiros, fugazes: era de novo o tempo, seu grande inimigo. Ela não tinha relógios, mas os mesmos existiam e não podia detê-los. Ao cair da noite, já não era possível avistar a imagem da flor com a mesma magia que invadira o peito daquela mulher diante do primeiro encontro: sua liber- tação! Há muito esperou chegar esse momento. Escuridão: ela também a acompanhara. Por anos. Iria voltar à cama, o ventilador continuaria a girar. Por ela, seu giro poderia ser controlado, ritmado, de acordo com os sentidos que desejasse. Quem dera pudesse fazer o mesmo com o relógio... Iria deitar-se à espera de, quem sabe, mais um dia. Desejou que o venti- lador tivesse movimentos tão passivos como os do girassol, pois assim poderia pensar na luz. Traria ao menos sua imagem. E assim o fez. E, com seus giros, foi novamente cerrando os olhos. Viajou . Porém, não eram mais lembranças, agora tinha sonhos. Eram sonhos com cor.Abandonara a escuridão.Tudo estava amarelo, dourado: era a luz. Por tanto tempo a buscara... E assim adormeceu. Agora tudo era claro, como ela: Clarice. Na manhã seguinte, o silêncio invadira aquela casa, parecia superior aos outros dias. O ventilador não mais girava. Havia acabado a energia? Pela fresta da janela, nem um frágil foco de raio do sol. Nem penumbra. O dia ia se passando, as horas: o tempo. Não havia sol. Nuvens escuras ofuscavam a possibilidade de luz. No quarto, a escuridão também imperava. Sem sons, sem giros. Lá fora, um grito: pueril! - Mãe, o girassol caiu! Está murcho, acho que morreu. Que droga! E vai chover...
  • 24. 24 Contos Melhores - 2014 – Calma, menina! Vão nascer outros. São como as pessoas: nascem, vivem, mas depois morrem. Passam! Nada é para sempre. Para tudo há um tempo. Aliás, anda porque o tempo também mudou... – Ah! Não queria que o tempo passasse! Não queria que chegasse a hora de ir à escola! Não queria ter que parar de brincar! Para isso que devem viver as crianças. Não queria que o girassol morresse. Eu só queria brincar. Não podia cho- ver! Mãe, ele era tão bonito, tão amarelinho, parecia feito de luz, parecia mesmo com o sol... – Chega, menina! Deixe de conversa fiada. Está tentando me enrolar para ganhar tempo e não fazer o que precisa! – Mas a senhora não disse que o tempo passa? Como ganhar tempo? O tempo a gente só perde... – Ah, moleca! !Pare com suas enrolações. É hora de tomar banho, de se arrumar para ir à escola. E eu também preciso trabalhar. Meu serviço me espera, meus alunos me esperam. Também vou à escola. Na casa ao lado, na casa da velha, a única irmã, mais nova, chegara e avis- tara o corpo estendido na cama, pensou em chamá-la: “Clari...”. Tudo estava rijo, finalmente, literalmente, sem vida. Não pareceu surpresa. Já era esperada sua hora há algum tempo.Apenas precisava tomar as providências necessárias, burocracias para o sepultamento. Não a visitara há dias, a pedido da própria enferma. Ela que fora clara, Dona Clarice, estava como sua casa: escura. Clarice não mais reluziria. Nem se houvesse flores, nem mesmo com o girassol. Clarice não tinha mais tempo. No quarto, sobre um criado- mudo, a irmã ainda avistou um caderno velho com algumas anotações: devaneios, lembranças registradas pela mulher sem luz. De relance, viu no final da página aberta: “Eu odeio relógios. Não consigo controlá- -los. Eu odeio o tempo: ele sempre me controlou”. E respirou fundo. Embora um pouco abatida, estava com pressa. Precisava tomar atitudes, formalidades da vida. Teria de avisar os poucos parentes que tinham, talvez alguns conhecidos da faleci- da e, naquele momento, estava preocupada com o almoço que ainda não fizera. O bisneto viria almoçar em sua casa após a saída da escola. O marido também che- garia para o almoço. E a casa nem tinha sido varrida. Naquele dia, não deu tempo. Havia tanta coisa para fazer. Precisava, também, lutar contra o tempo. A menina da casa vizinha saiu a caminho da escola. Atrasada. Porém, não se preocupava. Caminhava. Seus passos eram leves. Ela ainda era livre. Nunca vira a velha Clarice. Não sabia de sua existência, eram duas estranhas. Embora
  • 25. 25 Contos Melhores - 2014 possuíssem tantas coisas em comum. Não iria ao seu velório, seu enterro. Para ela, ainda que o girassol também tivesse morrido, outros nasceriam, assim como a velha vizinha anônima, haveria outras “Clarices”. A tarde avançava nublada, mas o sol voltaria, pois como dissera a mãe da menina da casa ao lado,” na vida tudo passa, muda, acaba”. Por isso, não tinha pressa! Para ela, para a menina da casa ao lado, ainda haveria tempo. Mesmo que também não o apreciasse, ele, por enquanto, não a incomodava freneticamente. Tampouco conhecia sua plurissignificação. Na prática, acabara de iniciar sua traje- tória: para a vida.Ao contrário da velha Clarice, que também seguira: para a morte. E caminhou. Sem medos. Apenas contratempos. *Isleide Cristina Sicarelli de Oliveira, 35 anos, professora, Guararapes-SP.
  • 26. 26 Contos Melhores - 2014 Leite com açúcar Categoria regional - 2.ª menção honrosa - Rita Lavoyer – Araçatuba-SP* M elissa é uma criança admirável. Consegue projetar histórias com cená- rios cinematográficos, servindo-se apenas de gestos e palavras. Com seus doze anos de pura magia e encanto, dá vida ao inanimado. Escalaram-na, mais uma vez, para o teste. Chegara-lhe a hora de mostrar que o papel ajustava- -se a ela. Nenhuma candidata, que por ventura houvesse, poderia tomá-lo. Me- lissa, convicta, adentrou o palco improvisado: uma simples sala, mas que, com sua genialidade poderia ser transformada. Ela a iluminaria com sua luz e cada canto seria o que quisesse que fosse. Recursos faziam-se desnecessários àquela eminente artista mirim que, com primor, representava os fatos, enrijando os bas- tidores. Sabia que havia pessoas que se escondiam de seus olhos para melhor observá-la, avaliá-la para a atribuição do papel, talvez, para testá-la ou espicaçá- -la. Nada disso a abalaria, desempenharia com perfeição o monólogo e ganharia o que pretendia daqueles observadores. Dar-lhes-ia as respostas que quisessem, contando-as. Genial! Algumas vezes, fora surpreendida com os seus olhos negros parados no tempo. Como fixava-se longamente em um ponto sem mexer o globo ocular impressionava quem a assistia. Magnífica! – Mamãe e eu éramos unidas, não tínhamos ninguém por nós. Era filha única, como eu. Mamãe trazia mágoas da vovó, acho, desde a sua infância, por isso estavam, mãe e filha, dolorosamente presentes uma na vida da outra. Viviam bem quando cada uma ficava em sua casa. Papai... eu não o conheci. Não me falavam sobre ele, somente que morreu antes de eu nascer, mas não acreditava nessa his- tória. Não havia segredos entre mim e mamãe. Acreditava. Mas havia! Havia uma caixa onde ela guardava o seu vestido de noiva. Tinha vontade de pegá-lo para ver como era o seu corte, o seu modelo. Deveria ser justo, marcando a silhueta que mamãe apresentava numa foto onde um dia eu a vi, somente... Nunca vi outra foto dela! Enquanto ela declamava a história, sendo observada por profissionais da- quela arte de encenar, movimentava suas mãozinhas frágeis, projetando no ar, com a suavidade de seus gestos, as imagens de sua personagem. Dramática Melissa!
  • 27. 27 Contos Melhores - 2014 – Pelo pouco que mamãe me deixou ver, percebi que o vestido era de mangas longas. A renda, já amarelada, era rústica. Trazia um formato de rosas e, no miolinho, algumas imitações de pérolas, descascadas. Bordado simples. Queria tanto ver aquele vestido! Prová-lo sempre foi a minha vontade, mas como? Mamãe o trazia trancado! Disse-me que daria azar, - A encenação seguia perfeita e a sala ia ganhando espectadores-analisadores. – Confessei-lhe, certa vez, um sonho: que o meu vestido de noiva teria babadinhos na barra e um decote-princesa. Queria que as mangas fossem compridas, porque deixam o vestido mais elegante. Sur- preendeu-me ela gritar comigo! Disse-me que o cortaria se eu chegasse com um em casa! Insistiu que aquilo não era assunto pra mim! Percebendo-me com medo dela, preparou-me o leite quente com açúcar e eu me acalmei. Aprendeu com minha avó que leite quente com açúcar tira medo de criança. Cada gole quente dentro de mim alivia-me muito. Com a voz na medida exata para o enredo e sem sorriso algum, transmuta- va-se para que sua fisionomia alcançasse o estágio de atriz profissional cujo texto e palco foram, espontaneamente, programados por ela. Era daquela transmutação que os holofotes não podiam se desfocalizar. Os peritos, ali presentes, não paravam de anotar em seus relatórios a análise da destreza daquela expoente. Brilhante, Melissa! – Após um dia atrás do outro em nossas vidas rotineiras, o dia da vovó fa- lecer chegou. Mamãe não chorou. Eu a vi escolhendo a roupa para enterrá-la. Ela passeava com as mãos sobre as peças que estavam penduradas no guarda-roupa. Senti que ela abraçava as roupas da vovó querendo ter em seus braços um corpo que já não poderia vesti-las. Suas mãos tentavam enxergar uma roupa que melhor se adequasse àquela ocasião da vovó. Ocasião! Foi como eu ouvi mamãe dizer! Separou uma blusa estampada, muito velha, e uma saia que não combinava com nada. Deixou o conjunto desornado sobre a cama. Arrancou as roupas que vovó vestia e começou a limpá-la com toalhas ensaboadas. Usou o sabonete preferi- do da vovó. Perguntei-lhe se queria que eu a ajudasse. Respondeu-me com um “não” isento de qualquer sentimento. Foi uma cena chocante vê-la limpando o corpo da vovó. Era o seu último banho. Vi muita pele esparramada sobre a cama. O corpo dela era muito estranho, as partes que o compunham pareciam não se encaixarem umas nas outras, aquele pescoço torto... Morreu nas mãos da minha mãe, estávamos juntas naquele dia, na casa dela. Era muito doente e a sua saúde piorara muito. Sentei-me no pé da cama e observei que as unhas dos pés da vovó
  • 28. 28 Contos Melhores - 2014 não eram cuidadas, suas pernas estavam roxas, como o pescoço. Ainda bem que mamãe desconfiou que eu não teria coragem de ajudá-la na tarefa e pediu que me retirasse, mas que mantivesse silêncio absoluto e as luzes apagadas. Pela primeira vez vi uma mulher nua! Meu corpo, não minh’alma, careceu imediato: leite quente com açúcar! Necessitava repor minhas energias. Preparei-o como mamãe fazia para me acalmar quando eu sentia medo. O público mantinha-se controlado. Aquele papel seria exclusivamente dela! – Trocou-a e tomou outras providências, também sozinha. Vi minha avó tão feia naquelas roupas velhas que a minha mãe escolheu para aquela ocasião! Senti raiva da minha mãe naquele momento, parecia que se vingava, aproveitando- -se porque vovó não podia mais se defender dos ataques que ela lhe provocava. Sempre as vi assim: atracavam-se verbalmente quando estavam juntas. Vovó tinha muitas amigas, mas passamos a noite sozinhas com ela. Dois homens da funerária encarregaram-se de tudo. Não sei exatamente o que a minha mãe resolveu com eles. Fiquei pensando em como eu faria aquele serviço com a minha mãe se ela partisse. Fui lendo-lhe a anatomia, ansiando aquele corpo nu sobre a cama e eu limpando-o. A enterraria com o vestido de noiva. Não lhe serviria, certamente, mas daria um jeito.Vê-lo por completo já me satisfaria. Confessei isso à vovó certa vez... Movimentaram-se, apreensivos, os que analisavam, com afinco, aquela ex- planação.Nada poderia passar-lhes despercebido. Ela acrescentara o: “confessei isso à vovó certa vez...” que, até então, não constava declarado. Ah, Melissa... – Não sei se não aguentei, mas dormi e ela me acordou para levarmos a vovó. Os homens já tinham chegado e precisavam fechar o caixão. Nenhum vizinho? – perguntava-me! Será que eles não estranharam o silêncio na casa? Queria tanto gritar para que me ouvissem! Mas não era possível, mamãe pediu- -me muito silêncio... eu o-be-de-ci... Dei um beijo na vovó. Meus lábios não queriam se desgrudar daquela pele gelada e endurecida. Vovó estava inchada, o rosto deformado. Havia um lenço no pescoço dela. Senti uma vontade enorme que ela voltasse. Solucei tão alto que fui repreendida por minha mãe, que nem sei se chorou ou não, porque eu dormi e não a ajudei a velar vovó. Nunca mais a veria. Ela contava muitas histórias pra mim, queria que eu as aprendesse, porque contar histórias desenvolve habilidades, afirmava-me. Algumas eu tinha que repetir várias vezes para ela certificar-se de que eu estava contando certinho, sem pular nenhum detalhe. Ralhava, sempre me corrigia, depois me servia leite quente com açúcar, incentivando-me: “Terás que aprender a contar!”
  • 29. 29 Contos Melhores - 2014 Aprendera bem com a avó. As palavras a impregnaram: – “Deves saber que és competente. A melhor! Se disto te conscientizares farás com que os outros te vejam como tu queres ser vista” – Ah! Vovó, cheia de “tus” e “tes”... usadora e abusadora da segunda pessoa, bem... abusadora não, pois era oriunda de Portugal. Eu era a sua “Mel”... – Sentiu saudosa ternura por ela. Murmurou: “– Vovó...” – Os homens levaram-na. Mamãe trancou a porta da casa da vovó e saímos. Entramos naquele carro. Não podíamos ir ali, mas fomos porque vovó só tinha a nós duas naquele momento, e a funerária. Era apertado. Os homens foram no banco da frente. Eu fiquei apertadinha entre o caixão e a parede dura e fria daquele carro, como o coração da minha mãe: duro e frio. O caixão era feio, simples e pobre.Vovó não era rica, mas aquele caixão não combinava com ela. A madeira de caixão fino brilha, tem pegadores do lado onde muitos se agarram para levar o morto para o cemitério. Reparava quando ia aos velórios com vovó. Talvez tenha sido por isso que mamãe comprou um caixão vagabundo, sem brilho na madeira e com pegadores míseros nas laterais, porque não tinha ninguém para admirar o brilho da madeira, muito menos se agarrar ao caixão da minha avó para levá-la à cova. Mel... Transfigurara-se. Os músculos ativos de sua emoção permitiam-se diálo- gos. Não era a Melissa, mas a atriz; ou não era a atriz, e sim a neta? Não recebeu aplausos, sabiam, pois, estarem distante do desfecho. Astuciosa menina! – Os amigos dela, embora velhos, talvez se agarrariam às alças na tentativa de trazê-la de volta, alguns deles sabiam que ela passara mal os últimos dias, mas mamãe não os avisou. Quis muito, dentro daquele carro de funerária, que um deles se arriscasse, trazendo-a de volta... Os olhos frios e pobres da minha mãe, fixados em mim, contrariavam minha vontade oculta! A saudade que eu já sentia dela ra- chava meu peito e sem demora um soluço seguido de lágrimas escapou-me! Sen- tia que faltava-me um pedaço, mas os meus restos seguiam com ela! Lembrei-me de quando me confessava coisas, fazendo-me prometer que não revelaria à minha mãe! Era segredo nosso, havia lhe prometido, embora isso me aborrecesse, porque não havia segredos entre mim e mamãe! Mas não podia quebrar a confiança que vovó me depositara. Ficaria de mal de mim, não me permitiria visitá-la e não me contaria mais histórias, ao ponto de eu as decorar. Eu a queria viva e ser a sua “Mel”. No coração da minha mãe ela, há muito, já tinha morrido! Sabia que ela não amava minha avó! Nasce da atriz uma menina em lágrimas que se agiganta com sua força
  • 30. 30 Contos Melhores - 2014 criativa, permeando naquela sala o envoltório sedutor a que ela se propôs exibir! – Há três dias enterramos vovó e não saí mais. Não vieram à nossa casa perguntar por que eu faltei às aulas. Sonhei com este momento. Não vou sentir as roupas dela no armário. Não tenho dúvidas: será enterrada com o vestido de noiva! Fiz todo o ritual, limpei o corpo da mamãe com toalhas e usei sabonetes cheirosos. Tantos anos morando nesta casa e não tinha percebido o quanto o vestido estava no alto. Mamãe o alcançava subindo na cadeira. Providenciei o necessário para subir, destranquei a parte de cima do armário e toquei a caixa. Uma sensação indescritível transcorreu o meu corpo. Não sei dizer o que era. Só sei que toquei a caixa onde habitava um sonho de noiva. Cada batida do meu coração arrebentava- -me o peito e eu pude sentir mamãe entre os panos. Observei-a deitada. Os cortes daqueles tecidos acomodavam os meus imutáveis sonhos. Trouxe a caixa para baixo e a abri. Estava amarelado. Era godê de tecido fino, leve e com uma fita de cetim azul claro embaixo do busto. Era muito largo aquele vestido com manchas escuras.A renda compunha apenas o busto e as mangas. Por que não era de cor- po justo como o imaginava? As manchas seriam de vinho? Havia um papel escrito junto com o vestido na caixa. Novamente a menina se apresenta. Era o foco de olhares atentos dos que mantinham mãos ocupadas em relatórios. – Não! As manchas não eram de vinho, eram de sangue, por isso o vestido não era justo, havia razões para o sangue, mas precisava ser naquela ocasião? E agora, não tínhamos ninguém por nós! O que será de mim? O que será de mim? A sala, iluminada pelas imaginações de Melissa, silenciou-se. Com suas mãozinhas, pequenas e frágeis, tampa o rosto e limpa as lágrimas que lhe escor- rem na face. A mulher adiantou-se ao centro daquele palco improvisado. – Melissa, como você a encontrou? Foi apenas para conhecer o vestido com o qual sua mãe se casou que você fez aquilo? Havia outra razão além do vestido? – Encontrou?! Doutora, eu só queria ver o vestido, depois vesti-la. Também não sabia que tinha aquele papel dentro da caixa... Ela não se casou! Eu não sabia que ela não tinha se casado. Nunca me disse nada, só que o meu pai tinha morrido. – Melissa, você já nos historiou esses fatos, sem inverter um parágrafo do que já havia falado... Somente acrescentando, desta vez, o que “confessou à sua avó”! – “A polícia já terminou a perícia, Melissa!” - “ O que estava escrito no papel que encontrou junto com o vestido? - “ O psiquiatra a aguarda, Melissa!”.
  • 31. 31 Contos Melhores - 2014 Também já repetiram as perguntas um monte de vezes, doutora! – E você não tem mais nenhuma lembrança da ocorrência, além dessa história que você repete há meses? – Doutora, eu pensei que mamãe não gostasse da vovó e eu a odiei nesses três últimos dias. Queria a vovó de volta e também queria a minha mãe, as queria unidas, mas me incomodou a forma com que ela fez vovó partir. Vovó sempre me pedia segredo quando me contava sobre o aborto que mamãe tentou fazer antes do casamento. Ela sempre me dizia que mamãe não queria que eu nascesse. Mas eu li outra história no papel que caiu de dentro do vestido, quando eu o desdobrei. – Melissa, não são três dias, são meses e você continua dentro desses “três dias” que vem nos contando... O papel, onde está e o que estava escrito? – “Para minha filha Melissa” - era isso que estava escrito. Eu o queimei, senhora, junto com o vestido. Promete, doutora, que irão vestir a minha mãe com roupa bonita, que combine com a beleza e o amor que ela tinha por mim? Por favor, não enterre a minha mãe junto com a minha avó. Aquela velha fria foi quem tentou me matar quando eu ainda estava na barriga da minha mãe, no dia do seu casamento, adiantando o meu nascimento. Mamãe salvou a minha vida das garras da vovó e o noivo não apareceu. Ela não merecia isso, não merecia aquela mãe. Bem feito o que mamãe fez a ela, e eu a culpava... Posso beijá-la antes que me levem novamente? – Levaram o corpo, Melissa, há meses! Tinha muitas perfurações. Preci- samos encontrar a arma. Constatamos que você teve várias faltas na escola, não foram apenas três dias como diz.A diretora informou aos investigadores que tenta- ram localizá-las, mas sem sucesso. O vestido, Melissa? Onde o queimou? – Eu ficava com minha avó, doutora, ela passou por vários problemas de saúde o mês passado, semana passada ela piorou, até que veio a falecer.A minha mãe trabalhava muito, chegava sempre muito tarde, por isso não nos encontraram. – Melissa, nenhuma funerária confirmou essa passagem que você nos con- ta sobre a morte e o sepultamento da sua avó. O túmulo que você nos indicou não recebeu nenhum corpo nos últimos meses. Os vizinhos da sua avó já foram inter- rogados e todos confirmaram que ela estava bem de saúde. Nenhum viu o carro da funerária sair com um caixão de lá. Onde está a arma que usou para matar a sua mãe e onde está o corpo da sua avó? – Onde está vovó, doutora? Onde está vovó? – Melissa, como era a caixa onde estava guardado o vestido de noiva?
  • 32. 32 Contos Melhores - 2014 – Bonita e enfeitada com fita. – Respondeu tranquilamente. Espantosa! Ela voltou a paralisar o globo ocular num ponto fixo daquela sala - palco simulado para apresentar uma história, dissimulada ou não? Que atriz! – Melissa, a perícia detectou outras digitais na cena do crime. Havia mais alguém com você? Melissa, você quer tomar um copo de leite quente com açúcar? – Claro que não, doutora! Claro que não, doutora! Foi perfeita no que se propôs a fazer, impressionando os que ali estavam para analisar a sua performance. Corajosa menina cuja fragilidade apresentava-se não dar conta daquela dramatização, levantava questionamentos aos presentes. – Será dela esse papel, doutora? E o pai dela? Vamos puxar esse caso também? – Por enquanto não! Levem-na e substituam o leite quente com açúcar por suco gelado. Quem sabe ela nos surpreenda com outras histórias? Ela é excelente contadora de fatos! Ah, Mel... Mel... Adoro ouvi-la! – Sim senhora, doutora! *Rita de Cássia Zuim Lavoyer é professora, vários livros publicados, Araçatuba-SP.
  • 33. 33 Contos Melhores - 2014 O louva-deus Categoria regional - 3.ª menção honrosa - Caroline da Silva Rodrigues – Araçatuba-SP* N ão foi culpa de Sarah os eventos que ali ocorreram. Ao menos foi o que ela disse a si mesma enquanto relembrava aquele momento no mínimo bizarro em que seu filho, seu sangue, se pôs a chorar diante de um simples louva- -deus. Antes disso os dois tinham tido uma tarde muito satisfatória, um programa de mãe e filho. Ela havia cancelado seus compromissos no domingo e levado a criança para um passeio de carro, em seguida, um sorvete. Cristian havia dado risada quando ela derrubou um pouco do sorvete em sua blusa e Sarah não resistiu a provocá-lo. – Cuidado, Cristian – disse – Se você ficar rindo, o devorador de crianças virá te pegar! – Devorador...?! – Cristian riu mais ainda – Isso não existe! – Ah, não, existe sim – Sarah se debruçou em sua direção como se estives- se dizendo algo de suma importância – É um bicho horroroso que aparece quando as crianças riem da mãe e que devoram sem parar aquele que está rindo. Dizem que só sobra uma poça de sangue no chão, no local onde havia a criança. – Isso é besteira mãe – mas Cristian já olhava para os lados, apreensivo. – Você é que sabe – Sarah disse, dando uma lambida em seu sorvete – mas, se eu fosse você, tomaria cuida... BÚÚÚ! Ela não completou a frase, avançando com as duas mãos na clássica pos- tura de “assustar”. Cristian começou a chorar muito alto. Dividida entre abaixar a cabeça ante tamanho constrangimento e consolar a criança, Sarah demorou a perceber que não era mais o foco da atenção do garoto. Virou-se na direção que Cristian encarava e viu um louva-deus em cima de outra mesa. O bicho parecia muito maior do que os outros insetos da sua espécie que Sarah já havia visto e parecia olhar diretamente para Cristian, que não parava de chorar. Durante um tempo que Sarah não saberia precisar, mas que provavelmente
  • 34. 34 Contos Melhores - 2014 foram apenas alguns segundos, eles ficaram congelados naquele momento, com Cristian chorando e Sarah compartilhando observando aquele louva-deus, uma sensação estranha na boca do estômago. De repente um jornal esmagou o inseto, o que só fez com que Cristian cho- rasse ainda mais alto, mas tirou Sarah de seu transe. – O que está acontecendo aqui?! Moabe, seu ex-marido, perguntou, dividindo o olhar entre Sarah e Cristian. O jornal com que matara o louva-deus ainda enrolado em sua mão. – Olá, Moabe – Sarah respondeu, ainda um pouco perturbada – Cristian se assustou com o louva-deus. Moabe suspirou, mas logo sorriu e acariciou o cabelo do filho com a mão que não segurava o jornal. – Melhor agora, amigão? Cristian, que parou de chorar assim que Moabe dissera suas primeiras pa- lavras, assentiu com a cabeça, mas ainda parecia um tanto pálido e cabisbaixo. Sarah imaginou que a reação não era nada mais do que vergonha pela atitude de instantes atrás. – Já são cinco horas? – Sarah disse e olhou o relógio, ansiosa para mudar de assunto. – Ainda faltam alguns minutos, cheguei um pouco mais cedo. – Ele se sen- tou na mesa com eles – Foi tudo bem, Cristian? Você se divertiu? Mais uma vez Cristian apenas assentiu. – Nós demos uma volta de carro antes de parar aqui – Sarah se sentiu compelida a dizer algo para preencher aquele silêncio – Mostrei para Cristian mi- nha casa nova. – Mamãe me deu um quarto só pra mim – Cristian murmurou timidamente, parecendo muito diferente do garoto de minutos atrás. – Que ótimo amigão – seu pai retrucou rapidamente, naquele tom que os adultos costumavam usar com as crianças – Você pode dormir lá quando for visitar sua mãe. Sarah sentiu uma pontada de culpa a ênfase que Moabe deu a palavra vi- sitar, mas se recusou a ter aquela discussão mais uma vez - ele não iria fazer com que se sentisse culpada por ser uma mãe ausente. Desde o inicio a ideia de ter um filho partira de Moabe, Sarah era contra. Por insistência dele acabou engravidando e como tudo terminara? Há vários anos
  • 35. 35 Contos Melhores - 2014 Sarah saíra daquela depressão pós-parto, mas ainda se lembrava muito bem de toda a dor e sofrimento. Moabe olhou para o relógio em seu pulso e se levantou. – Nós já vamos indo – ele colocou a mão no braço de Cristian, que se sobressaltou em seu lugar. Na certa ainda estava sob efeito daquela cena com o louva-deus – Vamos, filhão. Cristian levantou-se lentamente e se aproximou de Sarah – Tchau, mãe – disse. – Tchau, Cristian. Te vejo na semana que vem? – Estaremos te esperando sexta-feira – Moabe disse, pegando o garoto no colo antes que Sarah pudesse abraçá-lo. Ela havia prometido a si mesma que o faria daquela vez, mas seu ex-marido interrompeu seu momento com Cristian. – Estarei na sua casa às 8 – Sarah forçou-se a dizer, os sentimentos am- bivalentes. Moabe apenas assentiu e caminhou para a saída, ainda levando Cristian no colo. Enquanto observava seu filho ser levado embora, Sarah sentiu o familiar senti- mento de alívio mas, junto dele, novamente aquela sensação na boca do estômago. Algo no olhar de Cristian para ela, enquanto seu Moabe o levava embora, fez com que Sarah se lembrasse do louva-deus. Naquele momento, também sentiu vontade de chorar. *Caroline da Silva Rodrigues é professora, 22 anos, já venceu o concurso de Concurso de Contos Cidade de Araçatuba em 1.º lugar na categoria regional. Araçatuba-SP.
  • 36. 36 Contos Melhores - 2014 A velhice do rei Categoria regional - 4.ª menção honrosa - Rodolfo Elias Minari – Valparaíso-SP* N esta suíte, entre os pequenos brinquedos e símbolos que amealhei pelo fio das décadas, misturados a algumas centenas de livros – tudo disposto em estantes que tomam as quatro paredes –, se encontra em lugar de destaque a bonequinha russa a que chamam Matrioshka.No cômodo não existe lugar para quadros ou pôsteres, por isso as lombadas dos livros precisam compor a mensa- gem, e pelo meu minuciosotrabalho assim o faziam; e os bonecos, ícones, estátuas e amuletos de diversas tradições que colecionoacentuam a tridimensionalidade e a plurissignificação de todo o saber científico, artístico, histórico e esotérico ali representados. Girando a cabeça sobre o eixo vagarosamente vejoa cor e o nome de cada volume, como filhos meus, como ovelhas bíblicas – e todas me parecem estar em seu lugar. Mas eraevidente que Matrioshka não gostava do local onde eu a pusera.E eu, sentado em frente ao computador, resolvi de repente que disso era a culpa pelo a que hoje em dia chamam bloqueio criativo. Na minha época se chamava ficar sem dinheiro.Culpei a falta de dinheiro e o excesso dele. Tentei culpar tanta coisa. Eu precisava fazer isso, achar a razão da ruptura e consertar. Barrar o esco- amento de ideias. Qualquer tentativa é melhor do que ficar estático olhando essa tela brilhante. Por longo período culpara o computador, mas hoje dependo dele, meus dedos não tem força para datilografar e minha mão trêmula se cansa logo de escrever à mão. Penso em Goethe que, com mais idade do que eu, decidiu-se a escrever uma segunda parte de “Fausto”. Pesquisei no google e confirmei que ele o intentara meio século antes da invenção da primeira caneta-tinteiro e era obrigado portanto ao esforço de molhar repetidamente sua pena; sinto a plena convicção de que não confiaria em mim mesmo ao ponto de me fatigar e ter ciência do esquema a que sucumbo me deprime. Sou um velho covarde e antissocial; a quem vai interessar o que eu escre- vo? Olho com nojo para a página de luz. Isso nem é papel. E o que está escrito não se poderia nem sonhar literatura, e mais acertado seria dizer de si um refluxo de consciência. Lembranças que vomito aleatoriamente, sem qualquer objetivo ou
  • 37. 37 Contos Melhores - 2014 direção. Nos últimos anos, usara demais o exercício da escrita como catarse, cobri o sagrado ofício de imundície me purgando, e, curado, ignorei voltar ao suor e à devoção,e pelo anátema paguei com a desonra.A forma fálica de uma caneta faz essa impotência da escrita tornar-se ainda mais semelhante à do sexo. As garotas que atraio até aqui (usando, antes, a fama e o frisson sobre meu pensamento, mas, hoje, somente um valor humilhante em dinheiro) me saciam, mas não me fazem sentir homem. Uma delas defendeu que tanto o sexo quanto a escrita são metáforas, essa impotência é de algo maior, é de tudo. Para se alcançar qualquer coisa é preciso certa rigidez de personalidade, ou se fica parado ad eternum entre o caminho da vontade e o das perdas e ganhos. E por isso o falo é o símbolo por excelência, ele mostra o ser humano como é e como se pretende. Bela ideia – eu pensara me vendo em repouso, no espelho. Um pouco atrasada, eu me disse, aprendendo a rir de mim mesmo, estou só uns cento e vinte anos atrasado. Estive perto demais do Olimpo para me contentar com ser rei em terra de idiotas. Apago todo o texto e olho para os deuses em volta de mim, Baco, Shiva, um velho pajé, o touro Ápis, Santo Antônio, Iemanjá, Jesus, Buda. Clamo seu perdão e que iluminem minha mente decrépita, que acendam uma luz em meu coração, que me deixem lembrar dos sonhos, da felicidade que eu tinha em sero menor dos serviçais da Arte e do orgulho em manter-me, por ela, pobre. Eu tinha uma missão. E tinha uma força incrível. Uma energia que eu sentia circular e crescer, quando alinhava oschakras, na região do abdome. Se eu pudesse ser um menino de novo, se o senso de eternidade e o ímpeto missionário me tomassem novamente e se as palavras me saíssem abundantemente e sem esforço... Assim foi com os dezbest-sellers que escrevi, mas já lá se vão tantos anos. E não os de juventude que passam ligeiro eprazerosamente, mas anos de velhice que se arrastam e só trazem dor e perda. O espelho, antes pleno, portal de possibilidade e mistério, de onde tirei o meu “Sangue Estancado” em apenas quarenta dias, é hoje, ao invés de poço, um negro buraco que em vez de dar só tira. Nele só vejo refletida a minha desgraça, e nada brilha em volta. Nenhum constructo visual como era praxe aparecer ao meu redor, no espelho, ou em circundando a chama de uma vela, que eu via de olhos fe- chados, em um dos muitos tipos de meditação que eu praticava. Tudo que enxergo são rugas que nada tem a ensinar. Não há dignidade em ser velho. Especialmente esta última frase me causa, ao relê-la, repulsa. É patético
  • 38. 38 Contos Melhores - 2014 como tento me espremer grosseiramente, esmagar o que resta de humano em busca de um suco amargo, confissão, cicuta, uma merda melodramática que não granjearia simpatia nem por pena. Apago tudo. Que merda. A Musa não acaricia mais os meus cabelos; Matrioshka não diz o que sabe; o espelho ruiu. Quem pode ajudar a responder o que sou eu? Sou um velho decadente e a grande tragédia é que isso já não fica interes- sante, no papel. Metalinguagem saiu de moda assim que a palavra se popularizou. E pouca coisa é mais manjada literariamente do que um apartamento sufocante. Sou uma metáfora pobre, uma cópia desgastada de mim mesmo. Merda. Saio para o corredor, tateando as paredes, quase a pedir que me sufoque, ofenda, ou acaricie ou mate, ou qualquer coisa que se faça a alguém. De pé no centro da sala me desnudo. As portas de vidro estão descobertas. Que importa? Quem sabe alguém veja esse corpo ridículo e ao menos se choque ou ria ou exclame o que seja exceto este silêncio a meu respeito, essa não reação à minha existência. Mas não vão dois minutos até desistir. Ainda que obrigassem pessoas a ver o meu corpo, ele não seria mais um indivíduo, ele seria “aquilo que o tempo faz com a beleza”; seria uma mensagem, mas não minha: seria a espécie humana, o atman divino, a nossa ascendência avisando que não pode haver espe- rança, pois tudo é vaidade e o próprio Senhor as destrói. Tateio a pouca carne que me resta sob a pele. Os ossos de todos os gênios aguardam esses meus. É assim que o vício se transforma na serpente engolindo eternamente o próprio rabo. Disfarçado em esquemas, retorna sempre sob um novo pretexto, ou um antigo revestido de uma nova força persuasiva. Se me aguarda o cadafalso, por que dispender os meus últimos dias à mercê da angústia? Por que me humilhar tentando fazer o que já não consigo? Por que preferir frustração ao prazer? Ligo o computador da sala. Mal entro no site e a ansiedade se esvai como mágica. Toda questão existencial cai por terra enquanto estudo as fotos das ga- rotas. Filosofia fica sendo só uma palavra, e a dor da escrita, uma metáfora. Mas é difícil adivinhar qual dentre elas sabe conversar. Qual dessas mulheres teria ao menos consciência de sua ignorância, para se deslumbrar com minha inútil e va- zante erudição? Apenas no começo eu escolhia a mais bonita. Dessa vez foi seu nome, Milene, que me fez voltar ao quarto, obrigado à visão do meu fracasso sobre a mesa, procurar minha carteira.
  • 39. 39 Contos Melhores - 2014 Enquanto voltava à sala, já com cartão de crédito em punho, o resto de escritor agonizante tremeu em meu peito com dilacerantes espasmos. Ele queria viver. Ainda sou fragmentário, mais de um ser, sou trezentos, e nem a velhice e nem terapias nem deuses nos foram capazes de conciliar, ainda sinto nitidamente meu ego desprendido de tudo, tentando manter-se acima, e, enterrados meu pai e minha mãe há muito tempo, nunca fui capaz de deixá-los, como o próprio Jesus sugeria, então não deveria ter perdido tempo com essas coisas, e agora que não acredito em sutilezas, preciso de outra matéria prima. Digito o nome de usuário e senha. Ser ou não ser? Ligo a cafeteira italiana, a coisa mais metafísica que há. Nem o trivial ajuda mais. Murchou-me o assombro, o brilho curioso nos olhos, um maço de alface na cozinha era vida pulsante e vicejava no estilo de meu romance lindamente, junto das cenouras e do alho-poró, só que agora o repolho e as batatas no fundo da geladeira são apenas repolho e batata e empesteiam até a sala com seu cheiro de podridão – de velhice. Número do cartão. Ano e mês de validade. Código de segurança. Depois de uns minutos, recebo resposta. Pagamento não autorizado. Sua reserva expirará em 4min59seg... 58... 57... Prostro-me no sofá. Destino, aviso, sinal? Ou é para testar se quero, mes- mo, aquilo? No fim, já que tudo é vaidade, o limite entre persistência heroica e teimosia burra é zero. Então, lembro-me que adormeci. Sonhei, talvez. Creio que sonhei que Mi- chele chegava, e eu brincava mil jogos com ela. Não precisava tocá-la; eu era outra vez exímio com as palavras e narrando lhe incutia sensações como nenhum erotismo o faria. Ela me chamava de Rei Salomão. Despertei. Dentro ou fora do sonho? Ou, mais importante, qual tem mais valor literário? Talvez a dúvida. Literatura é incerteza. Soou a campainha, um fá sustenido, estridente, tenso, som de cor arroxea- da, entre ciano e magenta.Tal ruído me acordou definitivamente. Um susto, porque ninguém entra sem ser anunciado, antes, pelos porteiros. Demorei um pouco a me vestir; pensei que, nesse lapso, ouviria o fá suste- nido outra vez, porém houve silêncio. Quando abri a porta, “Oi”, disse ela. Fiquei sem ação por um instante. Há muito tempo eu não via uma beleza tão... Que dizer? Inexiste adjetivo. Tentar descrever sua beleza me faria sentir um
  • 40. 40 Contos Melhores - 2014 ainda pior escritor do que sou. Ela era uma mistura de tudo o que eu acumulara de singelo e doce em minha vida. Lembrou-me a amoreira da infância tanto quanto as pirâmides do Egito, e fez-me recordar a paisagem de um sítio, na Rússia, que não merecera menção nos relatos, mas fulgia, agora, ressignificada por tudo o que a beleza da menina tinha a ensinar. “Oi. Entre”, eu disse; ela entrou e postou-se no centro da sala sem nada dizer. “Você é a Milene?” “Milene está bom para você?” “Gostaria de chamá-la pelo nome.” “Tenho muitos nomes”, ela disse, e notei que seus olhos (azuis?) já haviam fotografado as salas e as partes do corredor e da cozinha visíveisalém das portas entreabertas. “Pode me chamar como quiser. Ana. Ruth. Maria. Milene. Medusa.” Parecia, ao mesmo tempo, ter bem menos e bem mais do que vinte e um. Parecia ter catorze, e trinta cinco. Parecia criança e, no instante seguinte, anciã. “O que você faz?”, perguntei. “Ajudo os homens... lembrar... ter vida correndo nas veias.” “Além disso”, insisti. “Eu... Estudo. Letras. Terceiro ano. Diurno.” Meu egozinho se inflou. Como aos vinte anos. Queria isso na cama. Pouco antes de. Frente a espelho. O brilho em meus olhos ao vê-la ouvir o meu nome. Ela se entregaria, apaixonada, inconsequentemente submissa, a primeira em anos a fazer amor comigo adredemente ou, o que era melhor (o diabozinho me dizia), ela se cobriria e alegaria não poder fazer amor com alguém em posição idealizada, quase mítica. Fui ansioso e ainda na sala contei-lhe e, para minha grande surpresa, ela jurou nunca ter ouvido o meu nome. Mostrei-lhe os cinco livros com os quais fiz fortuna e fama. Eu ainda tinha o dinheiro e a fama se fora, e, na frente da deusa, constatei tristemente que teria preferido o contrário. Ela olhou as capas e voltou sua atenção para uma antiga edição estrangeira de As mil e uma noites. “Viu”, eu disse, “nem se interessa pelo que escrevi.” “Eu me interesso pelo que você vai escrever”, ela disse, “mais do que você imagina”, olhando para mim com tal doçura, que eu perdoaria 490 vezes. Entre suas sobrancelhas, um ponto brilhante captava o meu foco como um imã, cercado por todos os lados pela luz dos seus olhos, para os quais eu não conseguia olhar diretamente (esverdeados?). Ali, numa zona ao centro de sua face oblíqua, conflu-
  • 41. 41 Contos Melhores - 2014 íam olhares de todos os tempos e infinitos deuses conhecidos e desconhecidos, incontáveis manifestações de Brahman e todos os santos e orixás e budas e pajés e com estes sua floresta onde cada curumim e cada bicho e cada planta contém espírito e dom e me fez assimilar em memórias passadascada olhar de planta e gente e bicho que já vi em setenta e cinco anos. Ela me fez falar e ouviu tudo por horas, sem se sentar um instante, e o vestido dela encobria seus pés. Contei tudo desde o meu último livro, há vinte anos, e a sequência de fatos que me fez nunca mais escrever. Ela identificou uma a uma minhas dores, igual a uma mãe tira bichos de pé de seu filho, com espinho de laranjeira e uma delicadeza de fada, ela me curou, eu ouvia sons de água e das esferas. “Se eu fosse você, abandonaria essa rejeição”, disse ela finalmente, e foi como afastar todo passado doloroso com um sopro fresco de vida,“Ela é o sinal da sua genialidade e loucura. Mas precisamos deixá-la para trás agora. Seu ego elástico se inflou tanto que o dominou, até hoje. Agora o medo é de tornar-se um louco comum. Talvez eu tenha vindo para lhe dizer que não precisa ser aceito, não agora; que todas as pessoas do universo não são todas que lerão o livro. Ele não é para mim; talvez para minha neta.” Depois disso assumiu novamente um aspecto fragmentário e ofuscante, e entre seus olhos se manifestaram outra vez os panteões divinos, a se multiplicar – como para provar que eles são muitos mais do que nós – numa velocidade que obscureceu minha visão e meu entendimento. A última coisa que entendi foi que todas essas figuras se resumem numa só, de uma mulher, uma menina, àpoda Milene à minha frente. Por influência do ponto brilhante entro em letargia. Vejo, já sem foco, que ela vem em minha direção e se inclina até beijar-me, não sei na testa ou no rosto ou na boca,pois imediatamente antes de seus lábios me tocarem adormeci. No sonho, Milene sonhava comigo. Despertei. E, em toda essa história, é a primeira vez que me sinto realmente acordado. No entanto, sei agora, nunca poderei ter a certeza. Um absoluto vazio. Sua ausência tem a força de duzentos homens armados. Em cada ponto das três dimensões do apartamento sussurrava a potencialidade do novo. Embeveci-me. O caos tinha barulhos de água e faísca de luz, e o vazio que ela deixara revelou-se um poço, fonte transbordante, as palavras fluíam em minha cabeça como em um rio caudaloso. Difícil até escolher o que escreveria primeiro.
  • 42. 42 Contos Melhores - 2014 Mas um sibilo, a voz dela inda ecoando, me disse que ainda não. Que aproveitasse o olhar enlevado e revisse a tudo, a cada objeto, livro e até minhas velhas meias e cuecas e a minha dentadura, pois as coisas sentiam saudade de mim e em breve serão objetos de um morto. Saboreei cada cor e formato na sala, cozinha. Lavei minha barba malfeita e escarrei, com um pouco de sangue, na pia. Finalmente o corredor me sufocou, com mãos geladas. Com um resto de forças entrei em meu quarto. Perdi, um a um, os sentidos, enquanto caía. A última coisa que vi foi: Ma- trioshka não estava em seu lugar. Tombei sobre a cama e entendi que era a hora. Meu corpo começou as pro- vidências. Nesse instante como nunca percebi sua inteligência, como se contraía com força e em espasmos botava para fora todo o ar residual; senti as células de oxigênio percorrerem o caminho desde os pés, e como todos os músculos estão emaranhados uns nos outros e é a mesma coisa o coração e o dedinho. Morrer não é ruim. Sobre o criado mudo vi uma pilha de papéis. Tentei pegar, mas só joguei ao assoalho centenas de folhas escritas à mão. O título.“Estrela de Fogo.” Fechei pela última vez os meus olhos e, entre caleidoscópios perfeitos, uma suave voz feminina começou a ler para mim a minha história e eu soube que, assim como Matrioshka estava no lugar a ela destinado, o livro encontraria as mãos e os corações corretos até que, quem sabe daqui a cinquenta ou cem anos, encontre seu destinatárioe viva. *Rodolfo Elias Minari, músico, cantor, escritor. Valparaíso-SP.
  • 43. 43 Contos Melhores - 2014 A luz na janela Categoria regional - 5.ª menção honrosa - Odair Maurício de Albuquerque- Penápolis-SP* P eguei gosto por este quarto, Helena.Tanto tempo aqui eacabamos por nosa- costumar com os mínimos detalhes. Somos animais adaptáveis, caso contrá- rio estaríamos todos em uma grande barca furada. No começo, um vácuo e essesilêncio. Silêncio, mil vezes silêncio. Como a calmaria nos desespera. Quere- mos ouvir, não importa o quê. Bobagens, muitas bobagens é o que queremos ouvir, mas só lhe dão um amontoado de nada. E o que é o nada? Esse corpo inerte na cama seria a resposta mais plausível. Ele não vive e, no entanto, está aqui. Mutila- ram sua vontade. A quietude de tudo me assombra. Nenhum suspiro, nenhuma exclamação de desalento. Não sou criticado, não sofro injúrias, sou apenas uma mortalha en- carnada. Que calmaria. Você,Helena, gostaria desse estado zen. Diria que estamos gravitando, entrando num mundo paralelo, em outro plano cósmico. Uma baboseira que nunca dei crédito. Mas você acreditava nisso. Sempre acreditou. Crer. Você me dizia para ter fé e tudo ia melhorar. Que saída engenhosa essa: basta ter fé e você encontrará a saída do buraco em que você caiu. Mas se eu tiver fé e não sair? “É porque sua crença não é tão forte, capaz de fazê-lo acreditar”, diria você. E se minha fé me enganar? Se eu achar que é fé quando na verdade é meu desejo que fala mais alto,com o único propósito de sair daqui e voltar a fazer tudo que fiz antes sem nenhum remorso? Ela sorria complacente:“Já é um começo”. Eu insistia. E se eu enganasse a todos, demonstrando a fé que não tinha,para ficar curado, e depois ririade tudo por não passar de uma fraude?“Você não enganaria a Ele”, responderia ela, com aquela serenidade que me exasperava. Desisti. Conformei-mee aceitei sua placidez. Noite. A única luz que desponta vem da janela aberta trazida pela lua que se mostra cheia. Não a vejo, mas me fica a impressão de que ela está enorme. Sua luminosidade suave entra e desenha uma faixa no chão do quarto. Se ao menos eu pudesse me aproximar do parapeitoe olhar os movimentos dos prédios ao redor... Me sentiria como James Stewart em Janela indiscreta. Que excitante!Aí um crime
  • 44. 44 Contos Melhores - 2014 surge e a monotonia se acaba. O criminoso esquartejando sua mulher, colocando num baú e de repente me surpreende observando tudo. Uma testemunha a ser apagada. Ele sairia de seu apartamento, viria ao prédio em que me encontro, en- traria no meu quarto e... Surpresa...Veria que a testemunha de acusação não tinha como escapar pela janela e nem quebrar a outra perna. Notaria também que mal falava com um lado da boca e nem teria o trabalho de cometer mais um crime. Já era um homem morto... Olho o dedão dos pés e eles parecem tão distantes!Todo o corpo até o pescoço uma grande massa fixa. Um ponto imóvel naquela cidade imensa; cidade que aprendi a conhecer desde cedo com os colegas Janjão, Pituba, Ourives e Pé- -de-Chinelo, figuras exóticas e singulares, mas não vieram.Talvez não tivessem co- ragem de me ver ali deitado.Foi com eles que desbravei a noite. Janjão me ensinara a fumar; Pé-de-Chinelo, a uma boa briga; Ourives, a saborear todo tipo de bebida, e com Pituba,aprendi a conversar. Bons camaradas, mas não vieram... Na verdade, poucos vieram.Apenas no começo o fluxo de pessoas foi mais intenso, mas logo o encanto que toda tragédia despertanoinício se perdeu em meio aos afazeres de cada um. Ninguém tem tanto tempo assim pra ficar chorando à beira da cama de um moribundo. Chegam um a um, com uma das mãos segurando a outra, sem palavras pra dizer, no fundo se regozijando que antes eu do que eles. A noite é longa para quem não tem o que fazer. Olhei o quarto, enxerguei- sombras. Um suporte para roupas do lado esquerdo me observava. Olhei para “ele” e mesenti como se estivesse com visita; visita que examinavaapenas, nada dizia. Esse sim seria grande camarada. Sem julgamentos, censuras,acusações, não quer saber o que aconteceu.Olhamo-nos e em silêncio era como se fizéssemos confi- dências, como só um amigo faria. Mas me retenho... Tenho medo. O medo! Transfigurado em várias camadas,ele se desdobra pelo quarto es- curo, tomando a forma de alguém que possa estar a me ouvir por detrás da porta, da parede, escondido no banheiro, embaixo da cama, no teto, atocaiado no forro, dentro do armário. Era um medo antigo, da infância. Cobria-se à noite com o lençol como se este fosse um escudo, que me envolvia e me protegia. Meus paisdormiam num dos quartos; meus irmãos,em outro, todos juntos, empilhados, e eu no sofá da sala. Volta e meia retirava a cabeça para respirar ou por causa do calor, para logo em seguida retornar à minha posição, não conseguindo pegar no sono, e quando conseguia um pouco, logoacordava em pesadelos. Agora meus braços não puxam mais o lençol.
  • 45. 45 Contos Melhores - 2014 Meu “interlocutor”jamais entenderia minhas aflições. Coisas de criança que permaneciam no adulto, metamorfoseadas em gestos imperfeitos, sem nexo, in- fantis, ainda – depois de tanto tempo. Infantis nas ações, na voz que não queria sair, no titubear do primeiro emprego, nos quase-namoros frustrados, nas amiza- des-relâmpago, na incerteza se queria beber ou fumar e, no fim,acabaria fazendo os dois. Isso foi bom, ajudou na personalidade. Fiquei mais atrevido, andava de peito estufado, cheguei nas meninas, uns foras aqui e outros ali, nada que a bebida não curasse, e um cigarro para me acompanhar deitado no gramado da praça, de olho nas estrelas, pensando em Francine, que apesar de ser uma menina enjoada eu acreditava em sua conversa mansa, de víbora, coisas de Adão e Eva, Sansão e Dalila, Bentinho e Capitu, traições por trás daquele sorriso falsoà espera do mo- mento oportuno ou da minha desistência. Prevaleceu a primeira... Meu “companheiro” de infortúnio mantinha-se ereto, impassível, dois bra- ços estendidos. Sorri com a ideia daquele suporte ser alguém com vida, mas que nada dizia. Era como se ele me apontasse para a janela e indicasse a abertura que propiciava uma infinidade de coisas que aquele quarto não podia me proporcionar. Ele indicava sistematicamente e eu olhava meu corpo estendido e sem reação, sem movimento. O movimento. Eu poderia agora lamentar a impossibilidade de andar depois do acontecido, seria óbvio e previsível. Mas não vou dizer nada sobre isso. Não que as incertezas deixassem de saltar a cada minuto, mas não vou falar sobre esperanças mortas. Eu cavei minha própria sepultura, portanto, o jeito seria seguir o novo rumo e ninguém precisava ouvir minhas lamentações, choradeiras, pedidos de clemência ou ajuda a Deus. Deus. A nossa hipocrisia chega às raias da insanidade. Nunca fui de ir à igreja, rezar, fazer orações ou coisas do gênero por mais que Helena me convi- dasse. “Você se sentirá bem”, suplicava. No momento em que borrei as calças por medo de morrer, lembrei-me Dele. Foi mais ou menos o mesmo que rezar um pai-nosso ou coisa que o valha. Mas nada adiantou. Como diria Cotinha, o que tem de acontecer não há jeito de mudar. Consolador... E lá estava meu irretocável interlocutor que continuava com o braço es- tendido, esquecido. Era como se ele me incitasse a ir à janela. Quer que eu vá? – pergunto ou julgo perguntar. Minha voz está fanhosa, não a reconheço. Me es- forço, mas não vejo um milímetro dos dedos se moverem, sejam dos pés ou das mãos. Mas continuo a tentar. Como gostaria que no lugar daquele suporte surgisse Helena, em movimentos suaves, olhar que dissimulava tantos sentimentos e que conseguia escondê-los ao mesmo tempo.
  • 46. 46 Contos Melhores - 2014 Mas Helena já não estava entre nós. Só me restava aquele suporte no canto do quarto. Se fosse alguém, diria que o olhar penetrante e cheio de confiança es- tava ali para me indicar o caminho da salvação: a janela. A lua permanecia como antes, plenamente iluminada, não tinha como errar o caminho.Vamos! Era como se eu o ouvisse. Não desista, meu rapaz, erga-se, vamos, levante-se. Milagre, meus dedos mexiam, percebia-se um leve deslocar, coisa ínfima, milímetros deslizando um dedo ao lado do outro. Talvez a fraca iluminação me confundia, mas não podia ser, eu sentia movimentos, mínimos, mas movimentos, o que era mais extraordinário. Sinto agora os músculos das pernas, os braços. Consigo firmar os cotovelos no colchão, vou pausadamente levantando o tronco, e já diviso toda a extensão da cama, que até então era vista parcialmente. Sento e respiro. Sentado, já posso ver algum movimento lá fora. Jogo as pernas para um dos lados. Começo a descer da cama. O primeiro passo foi emocionante, não menos que isso. Como se eu voltasse a ser criança. Mas como criança, fui ao chão.Apoiei as mãos no piso e fui devagar- zinho me erguendo. Para não levar um novo tombo, me apoiei na parede, até me aproximar da janela. Fiquei ali por um bom tempo, sentindo o ar revigorante. Não saberia dizer as horas, mas isso não me importava. Respirei como se acabasse de sair de uma clausura. Me apoiei no parapeito e subi. Avistei toda a cidade sob meus pés. Olhei para o céu e vi uma constelação indescritível e me lembrei de Helena. Sempre amiga. Por mais bonita que fosse, nunca me imaginei dando-lhe um beijo, senão de amigos. Ou melhor, de irmãos. Ela, mais velha, orientando, e eu atrás, tropeçando e errando sempre. Olhei para baixo e vi pontos minúsculos que se moviam. Se ela me visse aqui, me repreenderia,com certeza, como a mãe ao filho; como naquela vez em que subi numa mangueira e ela, desesperada, me pedia pra descer –caso contrário, contaria aos meus pais. Nunca contou.E eu subi mais alto para deixá-la ainda mais em desespero.Ou quando fomos ao rancho do Pituba. Pulei daquela altura de cabeça, num mergulho espetacular, e sai do outro lado do rio. Ou quando eu empinei a moto para fazer graça para asmeninas que ficavam na calçada justa- mente para nos incitar a fazer todo tipo de maluquice, e batemos num poste... Mas agora ela não me repreenderia. Podia pular quando quisesse. Porque esse,Helena, será o meu último salto e você não precisará se preocupar mais. *Odair Maurício de Albuquerque, 44 anos, técnico contábil, Penápolis-SP.
  • 48. 48 Contos Melhores - 2014 Título: 13.600 - Os olhos mais lindos que já me olharam Categoria nacional - 1.º colocado - J.R. Bazilista, São Paulo, SP* S e chovia era lama para todo lado e naquela manhã chovia desde a noite passada. Os tratores da usina iam buscar os ônibus no começo da subida e puxavam até a portaria, não havia maneira de um ônibus subir sem ajuda. Dizem que já tombou mais de um tentando subir, sobe e na metade patina e volta descontrolado e vira, nunca vi, hoje ninguém tenta, os tratores puxam um a um. A chuva era fina e não sei por que eu não confiava no motorista. O trator puxava como se nada tivesse acontecendo. Desci na portaria junto com os outros, batemos cartão para entrar e passo rápido para fugir da chuva, nada de moleza. Da portaria até o barracão da oficina tinha bem uns quinhentos metros que foi feito num minuto, se o dia começava nesse pique certamente ia ser daqueles! Entrei no banheiro que também era vestiário e fui até meu armário. Abri e fiquei olhando o velhinho que tomava conta do banheiro, resmungando e colocando uns ‘papelão’ no chão para conter o barro, em vão, meu rastro se confundia com os de outros. Uma turma entrava as seis e a minha que era menor, as sete, mas com a lerdeza dos tratores, hoje até as oito ainda estaria chegando gente e seu Flauzino teria um tréco. Nem bem guardei minhas coisas e o encarregado me pegou. – Você vai dar uma mão no socorro, pega as ordens de serviço na minha sala e já separa as ferramentas que a coisa tá feia hoje ‘o home’ taí! ‘O home’ era o dono de tudo e bastava falar ‘ A o home’ que até as estopas jogadas no chão pulavam sozinhas para o tambor de lixo, até as pombinhas do telhado pensavam duas vezes em cagar quando se ouvia ‘a o home’, terror e pau- -mandado a melhor relação patrão-empregado. – Pode levar a marmita que hoje não tem previsão! O “Socorro” era umas equipes que iam pra fora da oficina.
  • 49. 49 Contos Melhores - 2014 Peguei minha marmita que tinha acabado de tirar e coloquei dentro da bolsa novamente, ajeitei a garrafa de café, tudo sem dar um piu. Assim era meu jeito de lidar dar com esse filho da puta, só balançava a cabeça, sim e não que nem retardado. Saí do banheiro e ao entrar no barracão já avistei o Socorro e Stuart Eduward conferindo os pneus da Toyota. Juro era esse o nome dele! Entre Josés, Joãos, Dedato, Sebastião, Cuíca, Rebimbela, Zóio, Negão, Sinvaldo, Mauro Sergio, Luís, Marcão...Tinha lá um Stuart Eduward! E o cara era esquisito também! – Me mandaram ir contigo! – Você pega as ferramentas que eu vou lá ao almoxarifado levar umas ‘requisição’. – Chá comigo! Guardei a bolsa dentro da caminhonete e fui buscar as ferramentas. Primei- ro peguei as ordens de serviço e dois encarregados discutiam, não ouvi no cu de quem iria entrar, não sendo no meu, fodasse! Na ferramentaria o Marquinho, que era o ferramenteiro, a essa hora da manhã já estava com veadagem,“o home taí, o home taí”. - Fodasse meu, pega aquela chave de três polegadas e racha na cabeça dele que eu quero ver se tu não vira o herói! - “Cê tá é doido!” Peguei o que tinha de pegar e me mandei e ele ficou lá repetindo: “O home taí, o home!” O Stuart Eduward não havia voltado, guardei as ferramentas atrás na cami- nhonete e entrei na cabine e fiquei ouvindo o rádio amador. Ele chegou e jogou as peças requisitadas em cima do banco, subiu, ligou e engatou ré. – Não está esquecendo nada? – Não! Respondi, mas deixa-me falar um pouco como ele era. Sabe o cow- boy do Marlboro? Velho, cabelo farto e pintado de preto, topete meio Elvis segurado na pasta ‘Trim’, duas dobras na manga do uniforme. A cor do meu uniforme perto do dele é uma vergonha! Deixa-me ver... ãh... sapatão engraxado e cigarro no bico, calado, olhos meios serrados com ar sério compenetrado. Em suma, sua figura que fazia jus ao nome. Eu não tinha nada contra ele, mas preferia trabalhar com os outros mecânicos. Na verdade era puxa-saco demais pro meu gosto, mas vamos lá, tudo menos ficar aqui na oficina. Passamos a portaria exclusiva da oficina e o guarda falou alguma coisa pra ele que eu não entendi e ele deu risada, acho que foi a primeira vez que vi o Stuart Eduward rindo. Pegamos uma rua de cascalho e lama que a ‘Toyota’ tirava de letra. O nosso primeiro ‘socorro’ era em um ônibus perdido no meio do nada.Tínhamos a