O documento discute a filtragem de conteúdo na internet. A filtragem, inicialmente praticada por regimes repressores, agora é adotada também por países democráticos sob a justificativa de combater terrorismo, pornografia infantil e cibersegurança. No entanto, especialistas apontam que os filtros têm pouco impacto nesses objetivos e ameaçam a liberdade de expressão. Além disso, estados buscam cada vez mais controlar a internet por meio de novas técnicas de filtragem e monitoramento, colocando em risco as liberda
Projeto de Monografia - Marketing Digital e Direito Online: Breves Considerações
Filtragem Conteúdo Ciberespaço
1. A Filtragem de Conteúdo no Ciberespaço
Ruy José Guerra Barretto de Queiroz, Professor Associado, Centro de Informática da UFPE
Espaço livre, democrático e aberto por concepção, a internet vive um momento delicado. A filtragem de
acesso tem se consolidado como ferramenta padrão na luta contra conteúdo indesejado, desde material
relacionado a grupos terroristas, passando por pornografia infantil e chegando até a espionagem de
estado com motivação política ou de soberania nacional. Como seria de se esperar, há muita
controvérsia quanto à legitimidade e à eficácia da filtragem, o que tem provocado acalorados embates
entre, de um lado políticos e reguladores, e do outro lado os tecnologistas e os defensores dos direitos
civis no ciberespaço, sobretudo a liberdade de expressão e a privacidade. Até bem pouco tempo
fazendo parte do universo dos regimes repressores, a filtragem de acesso passou a ser praticada
também em países ocidentais representantes e representativos da democracia contemporânea, vários
deles dando guarida a “listas negras” pouco transparentes de endereços e termos, outros incorporando
legislação que praticamente legitima algum tipo de filtragem.
Declarando-se disposta a combater a pornografia infantil, a Austrália anunciou recentemente planos no
mínimo controversos de implantação, nos provedores de serviços de internet, de um esquema de
filtragem por camadas. Esse esquema incluiria o uso de um filtro obrigatório para bloquear conteúdo
ilegal caracterizado por meio de “listas negras”, além de um filtro “opt-out” direcionado a famílias que
selecionariam quais restrições fariam ao acesso a partir de suas residências. Nas listas negras não
apenas pornografia infantil, mas também em princípio qualquer conteúdo relacionado a instrução em
crime, uso de droga, ou eutanásia, entre outros tópicos. A responsabilidade pela confecção das listas
negras e pela administração do esquema de filtragem ficaria sob a Australian Communications and
Media Authority, um órgão do governo australiano criado em 2005 com o propósito de servir como
agência reguladora da mídia nacional.
Em artigo no portal do Al-Jazeera (“Do web filters hinder free speech?”, 14/04/10), Jillian York e Robert
Faris alertam para o fato de que embora o esquema de filtragem australiano, caso venha a ser
implantado, se constituiria no mais abrangente do mundo ocidental, ele não seria o único. Países como
Noruega, Finlândia, Reino Unido, Dinamarca, e Holanda, todos exercem bloqueio a certos sítios
considerados como hospedeiros de pornografia infantil. Segundo os especialistas, no entanto, não
apenas o custo e o alcance desses filtros mas também seu real impacto na luta contra a pornografia
infantil seriam mínimos, pois o material continua sendo acessível utilizando os chamados “softwares de
circunvenção”. York & Faris também chamam à atenção para o fato de que outros países europeus já
implementaram sistemas de filtragem ainda mais intrusivos. Em fevereiro o parlamento francês aprovou
uma lei que inclui, entre outras coisas, um requisito de que provedores de serviços censurem sítios
numa lista negra do governo. Mais recentemente, o parlamento britânico deu seu aval a um projeto de
lei (“Digital Economy Bill”) que permitiria às cortes daquele país bloquearem completamente sítios da
internet assim como desconectarem usuários com base na violação de direitos autorais. Tudo isso, na
prática, significa concretamente filtragem de conteúdo.
2. A primeira geração de controles de acesso à internet consistia essencialmente de construir firewalls em
certos pontos-chave da internet para impedir acesso a determinado conteúdo indesejável, tendo como
seu representante mais famoso o chamado “Great Firewall” da China (em analogia à Grande Muralha).
Hoje, no entanto, as novas ferramentas que têm surgido vão além de uma mera negação da informação,
pois objetivam normatizar o controle da internet, incluem vírus direcionados e o emprego
estrategicamente planejado de ataques de negação distribuída de serviço (DDoS), monitoração em
pontos-chave da infraestrutura da rede, avisos de retirada de conteúdo, políticas rigorosas de termos de
uso, além de estratégias nacionais de amoldagem da informação. A nova geração dos controles de
acesso é analisada em livro prestes a ser lançado pela The MIT Press (“Access Controlled: The Shaping
of Power, Rights, and Rule in Cyberspace”, Org. por R. Deibert, J. Palfrey, R. Rohozinski e J. Zittrain, Abr
2010), resultado de um projeto da “OpenNet Initiative” originada a partir da colaboração do Citizen Lab
da Univ of Toronto, do Berkman Center for Internet and Society de Harvard, e do “SecDev Group”.
No capítulo inicial intitulado “Beyond Denial - Introducing Next-Generation Information Access
Controls”, Ronald Deibert e Rafal Rohozinski lembram que o surgimento da internet coincidiu com uma
série de movimentos políticos que culminaram com a dissolução da União Soviética, a queda do muro
de Berlin e do bloco comunista. No bojo de todo o entusiasmo decorrente do clima de restauração das
liberdades individuais, a idéia da redenção tecnológica e da inevitável democratização fez surgir uma
ideologia popular que identificava tecnologia com poder. Segundo Deibert & Rohozinski, essa idéia não
era exatamente nova, pois o telégrafo, a iluminação elétrica, e a telefonia, todos surgiram em
momentos históricos de grandes transformações levando a uma enorme linhagem de especulações
concernentes ao papel democratizante da tecnologia nas mudanças políticas e sociais. Tal qual ocorreu
com outros avanços tecnológicos, à medida que a internet tem crescido em termos de sua importância
política, uma arquitetura de controle (por meio de tecnologia, regulação e normas) tem surgido para
formatar uma nova paisagem geopolítica da informação. Desde a época do trabalho de pesquisa que
culminou com a publicação do livro “Access Denied: The Practice and Policy of Global Internet Filtering“
(Org. por R. Deibert, J. Palfrey, R. Rohozinski, e J. Zittrain, The MIT Press, Fev 2008), grandes mudanças
ocorreram nas políticas e práticas de controle da internet. “A rubrica conveniente do terrorismo, da
pornografia infantil, e da cibersegurança têm contribuído para uma esperança crescente de que os
estados deveriam garantir a ordem no ciberespaço, incluindo policiar conteúdo indesejado.
Paradoxalmente, estados democráticos avançados no âmbito da Organization for Security and
Cooperation in Europe—incluindo membros da União Européia—estão (talvez sem ter a intenção)
liderando a tendência para o estabelecimento de uma norma global em torno da filtragem de conteúdo
político com a introdução de propostas para censurar discurso do ódio e conteúdo islâmico militante na
internet”, advertem os autores, lembrando que a censura de conteúdo na internet não mais se restringe
a regimes autoritários. A filtragem de conteúdo está se tornando uma norma.
Ao mesmo tempo, argumentam os autores, os estados também têm se tornado mais cientes da
importância estratégica do ciberespaço levando a sua militarização. Exemplos como o uso inteligente da
internet por insurgentes e militantes no Iraque e em outras partes do Oriente Médio, a importância da
internet em conflitos como a guerra entre a Rússia e a Geórgia em 2008, e as recentes revelações a
respeito de redes de ciberespionagem em larga escala têm enfatizado o impacto do ciberespaço nos
3. aspectos mais mundanos de conflitos bélicos, e na competição geopolítica entre atores estatais e não-
estatais. E o que se vê são estados abertamente engajados em plena corrida armamentista no
ciberespaço, invariavelmente à revelia do respeito às liberdades individuais. E, em casos concretos,
empresas acabam ajudando o estado a prender e monitorar ativistas, mesmo sem ter tido a intenção de
fazê-lo. “A busca pelo controle da informação está hoje além da negação”, dizem os autores. O fato
concreto é que a nova geração de métodos de filtragem levantam questões de suma importância no que
concerne ao relacionamento entre cidadãos e estados.
Numa explícita convocação à responsabilidade corporativa, Rebecca MacKinnon, co-fundadora das
ONG’s “Global Voices” e “Global Network Initiative”, declara em seu depoimento registrado em
documento intitulado “Protecting and Advancing Freedom of Expression and Privacy in Information and
Communications Technologies” e pronunciado numa audiência da Subcomissão Judiciária de Direitos
Humanos e o Estado de Direito do Senado americano sobre “Global Internet Freedom and the Rule of
Law” em 02/03/10, que “é essencial que a indústria global das TIC’s e todos os envolvidos assumam um
compromisso público e compartilhado de respeitar os direitos dos usuários em face de ameaças
crescentes à liberdade de expressão e à privacidade. A indústria das TIC’s é diversificada, e empresas
diferentes podem tomar decisões diferentes sobre entrar ou sair de um mercado em circunstâncias
específicas tais como o momento, a localização, os relacionamentos e a natureza de um produto, serviço
ou negócio específico. Não existe abordagem do tipo ‘tamanho único’ para a responsabilidade
corporativa, tampouco um único curso correto de ação ou de script para todos seguirem.”
Segundo MacKinnon, tal qual a liberdade física, a liberdade na internet requer uma luta constante e uma
vigilância constante. Vai ser preciso também dispor de um ecossistema de apoio formado por indústria,
governo e cidadãos conscientes da ameaça à liberdade no ciberespaço, todos trabalhando em conjunto
em favor do objetivo comum.