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GUSTAVO RANIERI (REVISTA DA CULTURA #58 – AGO-2014)
FOTO DARYAN DORNELLES
Elke Maravilha tem um medo imenso de se autoplagiar. Tudo soa tão original ao longo de seus
69 anos que a preocupação é compreensível. Seria muito mais fácil, decerto, compilar os
melhores momentos e viver em torno de uma retrospectiva. Mas Elke é feita de mudanças.
Muitas mudanças.
Nascida na antiga Leningrado – atual São Petersburgo –, morou durante a infância na Alemanha
e na França antes de aportar com a família, aos 6 anos, na mineira Itabira, de Carlos Drummond
de Andrade; e chegar na juventude ao Rio de Janeiro, onde vive até hoje. Fala nove idiomas; foi
professora de línguas – a mais jovem a dar aulas na Aliança Francesa, com apenas 12 anos –,
bancária, secretária, bibliotecária e tradutora; modelo e manequim, trabalhou nos anos 1960 e
1970 com estilistas brasileiros de peso, como Guilherme Guimarães; atriz de cinema e novelas;
jurada ícone do Cassino do Chacrinha e do Show de Calouros, com Silvio Santos; apresentadora
de talk-show; performer; casada oito vezes; perucas e visuais exóticos; reúne dentro dela todas
as religiões, “mas nenhuma institucionalizada”; apaixonada pela raça negra e por cabelo crespo;
vive entre santos, caveiras, magos, objetos fálicos, Buda, Jesus, fotos, almofadas... Vive com
suas bilhões de partes que formam uma só. “Quero me ver no espelho em todas as 7 bilhões de
pessoas no mundo.”
Filha do russo George Grunupp e da alemã Liezelotte Von Sonden, que foram unidos em tempos
de guerra, quando “ninguém mais é nobre”, Elke é uma pessoa consciente de todos os caminhos
que tomou, incluindo três abortos. Pisciana de fevereiro de 1945, ela costuma assustar quem se
preserva com máscaras. “Atraio quem tenho que atrair e afasto quem quero (risos). O Sasha,
meu último ex-marido, falou assim: ‘Elke, eles fogem de você porque sabem que você vê o que
vai na alma deles, e eles não sabem nada da tua alma. Eles morrem de medo’.” É por isso que
suas referências não estão na literatura ou no cinema, mas sim no que captura do outro. “Não
sou uma grande leitora. Li apenas três autores, mas foi a obra completa deles: Monteiro Lobato,
Nikos Kazantzákis e Dostoiévski. E Nise da Silveira [médica psiquiatra de quem foi muito amiga]
me falou: ‘Se você leu Dostoiévski, então, não precisa ler mais nada! Ele sabe tudo da alma
humana’.”
Na conversa a seguir, realizada em seu apartamento, no Leme, fica evidente o motivo de Elke
Maravilha ser a entrevistada que encarna o tema desta edição da Revista da Cultura.
Atualmente circulando o país com dois espetáculos, Elke cantae Elke – Do sagrado ao profano,
ela está pronta para o que vier. “Me irrito profundamente quando as pessoas falam com a minha
memória em vez de falar comigo. Porque, meu amor, eu sou de rupturas.”
Quando se olha sua trajetória, a Elke que fica em evidência é aquela que parece aceitar
todas as mudanças que a vida traz. É sempre na vanguarda mesmo?
Eu me recuso a ser ultrapassada, porque odeio aquela coisa: “Ai, como era bom... Ai, o Rio era
tão bom...”. Eu falo: “Olha, o Rio era canhestro”. “Cidade maravilhosa, cheia de encantos mil?”.
Ah, vai se foder, né?! Olha o que virou! Agora sim, meu amor: “Rio 40 graus, cidade maravilha,
purgatório da beleza e do caos”. Agora vai sair alguma coisa desse Rio de Janeiro. Ah, vai.
Porque zona de conforto não faz a gente evoluir. Você sabe como é o ser humano mais ou
menos, não sabe? É muito necessário o embate. Nós estamos em guerra há muito tempo e,
enquanto nós formos do jeito que somos, é necessário ter guerra. É a ruptura. É a ruptura do
velho. Porque em guerra, meu amor, ninguém é mais nada!
E você vem ao mundo justamente durante a guerra.
Sou filha da guerra. Nasci em 22 de fevereiro de 1945 em Leningrado – hoje São Petersburgo.
Foi no fim da guerra. Você imagina: a minha mãe era Liezelotte Von Sonden, uma nobre alemã.
Casou com o meu pai, em 1944, um russo que se chamava George Grunupp, descendente de
vikings. Então, quando é que uma nobre alemã, com a beleza que ela tinha – que era um
absurdo! –, casaria com um vira-lata russo fodido, sem um tostão e ferido de guerra? Só em
guerra. Porque em guerra ninguém mais é nobre. A guerra nos coloca onde a gente pertence, ou
seja, no rés-do-chão.
Não somos nada além disso, não?
Porra nenhuma! Tenho impressão de que a gente nasceu para evoluir, mas a evolução é muito
lenta. E cada povo evolui em um tempo. E depois, é a tal coisa: para a Mãe Natureza, o tempo
em que o “ser humano” está na Terra é um peido.
Sendo que a vida de cada um vai durar no máximo 80, 90 anos...
É. E a gente que inventou isso, esse tempo, né? Porque a gente nasce, cresce, envelhece e
morre – ou não, porque tem gente que morre menino ainda. Vamos dizer: se eu morro amanhã,
eu tenho 69, para mim foi, pelo menos nessa fase, a vida inteira. Agora... 69? Mãe Natureza? Ela
não tem começo e não tem fim.
Mais uma vez, não é nada...
Porra nenhuma! E olha por quantas rupturas já passou. Quantas culturas e pessoas já
nasceram, cresceram e morreram. Porque a cultura tem que morrer também para vir outra. É!
Você vê essas culturas mais antigas, que ficam sempre se achando. Acham que são os donos
da verdade, porque é a cultura mais antiga. Acho que a única que não pensa assim, que é a de
que eu gosto mais, é a grega.
Mas as mudanças que te embalam desde a infância jamais te assustaram?
Não. Elas sempre foram um prazer para mim, desde criança. Acho que uma coisa que deve ter
me tocado dessas mudanças, deve ter me ajudado nisso, talvez seja que a gente foi imigrante.
Acho que, inconscientemente, deve ter sido. Porque não lembro, mas foi uma mudança grande.
Você sair de São Petersburgo, depois ir para Alemanha, depois França e Brasil. Agora, meu pai
foi muito responsável pelas mudanças. Porque ele mudava – a gente vivia mudando tanto de
lugar porque materialmente não dava certo, então, ia para outro lugar e vinha e não sei o quê, e,
em um instante, se adaptava e pronto. Ele era vira-lata. Vira-lata muda mais fácil, né?
Seu pai é uma de suas maiores referências até hoje?
Claro. Meu pai sempre foi uma referência, até maior do que minha mãe. Não era melhor do que
minha mãe, mas como referência; porque sempre gostei mais do mundo masculino do que do
feminino. Minha mãe era uma exceção. E ela nem sabia que era mãe, era mais uma geminiana
amiga. Mas não gosto muito do mundo feminino.
Por quê?
Por exemplo, a gente ia a cavalo para Itabira. Eram 20 quilômetros de distância. Chegava lá,
meu pai ia fazer as coisas dele e me deixava em uma casa que tinha 11 mulheres. Eu olhava
aquele movimento e não via afeto. Era maldizer empregada, maldizer namorado, maldizer,
maldizer, maldizer. Quando eu saía com o meu pai e os amigos dele, era uma farra. Enchiam a
cara, falavam merda. Se abraçavam, filosofavam. Um sacaneava o outro. Era uma festa! Até
que, um dia, falei para o meu pai: “Eu sou mulher, né?”. Ele falou: “É”. “Você é homem?” “É.”
Falei: “Eu tenho que ser igual mulher?(risos)”. Ele falou assim: “Por que, você não gostou?”. Eu
disse: “Não, pai”. E ele respondeu: “Não, minha filha. Seja o que você quiser”. Aí, saquei que,
enquanto gênero, o homem era melhor. Então, resolvi não ser mais mulher. Resolvi não mais ser
ligada a gênero. Resolvi ser uma pessoa... E poucas mulheres viraram pessoas. Sempre aquela
coisa: homem X mulher. Quem é mais inteligente? Ai, me cansa!
Essa foi uma das primeiras mudanças?
Pode ser, pode ser... Eu era parecida com a alma do meu pai. E ele falava uma coisa: “Minha
filha, presta atenção na Mãe Natureza. Ela nos ensina tudo”. E eu falei: “Mas você me ensina!”.
Ele falou assim: “Não. Até acho que ensino. Faço parte da Mãe Natureza, só que eu erro. A Mãe
Natureza não erra”. Então, vi que a Mãe Natureza não gosta de estagnação. Ela odeia
estagnação. Deserto no Saara já foi mar. Agora ele é deserto e está voltando a ser mar. Claro
que não vai ser para nós. Em uma hora dessas, a Amazônia vai virar deserto. Isso é normal. Isso
a Mãe Natureza designa. Pretensão o ser humano achar que é ele quem cria e destrói. Não, nós
somos instrumentos da Mãe Natureza. Porque, antes do homem, o mundo acabou cinco vezes
[ao longo dos últimos 500 milhões de anos, no que os cientistas chamam de Big Five]. Está
provado cientificamente. Rupturas: pá! Meu pai me ensinou sobre a Mãe Natureza. Ele era um
livre–pensador. Eu gostaria de ser livre-pensadora como ele.
Você não é livre-pensadora?
Acho que ainda não.
E o que é ser?
Não estar atrelado a nada: crenças, religiões. Estar no todo e não estar. Acho que sou um
pouco, porque aquela minha frase preferida ali [ela aponta para um quadro na parede], do Álvaro
de Campos [heterônimo de Fernando Pessoa]: “Ergo em cada canto de minha alma um altar a
um deus diferente (risos)”. Mas aquela frase me faz politeísta, não me faz livre-pensadora (risos).
Mas não é ser livre-pensadora poder cultivar todos os deuses que quiser?
Não sei se é suficiente. Porque liberdade, amor, eu ainda penso que a liberdade não existe.
Acho que a gente só é livre para escolher a prisão em que a gente quer ficar.
Você acredita que tudo o que a gente fizer será, em algum momento, um tipo de prisão?
Penso assim. Sobre algumas pessoas, por exemplo, pensei um dia: “Madre Teresa foi livre. Não,
ela escolheu aquela prisão para ela”.
E era rígida aquela prisão.
Pra cacete! Aí você pensa: “Ah, o anarquista é livre”. Regras pra cacete (risos). Talvez o ser de
rua seja livre, porque ele não paga condomínio. Nunca fui moradora de rua, mas sempre pensei
que, talvez, as pessoas mais livres fossem as moradoras de rua. E depois vi a maneira como as
pessoas tiram esses moradores da rua e falei: “Ih, gente... Não vai ser legal tirar uma pessoa
dessa liberdade e botar entre quatro paredes”. Aí, as pessoas voltam para a rua. Não é
evolução. Não é! Mesmo a prisão do vício da droga, porque usei quase todas, até crack. Só não
tive coragem com heroína. Tem gente que é usada pela droga, mas eu a usei; foi diferente. A
minha geração, por exemplo, usava droga para autoconhecimento. Agora, as pessoas usam
para curtir, para fugir das situações.
Não para entrar dentro dela.
E tem muitas drogas, inclusive que não são penalizadas. Tem gente que usa Jesus Cristo como
droga. Tem gente que usa o poder, que eu acho que é a pior das drogas. O poder temporal.
Você vê a cara dos chamados “poderosos” – porque para mim eles não são porra nenhuma – e
são muito poucos que não têm cara de drogados. Muito poucos! Reparou? Aliás, qual é a droga
que nunca matou até hoje? Foi o poder. O que é que matou mais: foi a cocaína ou Medellín? O
poder é a pior droga do mundo até hoje.
Você jamais se considera uma pessoa livre então?
Sempre deixo claro que não sou [livre]. Eu preciso pagar contas. Então, quer dizer, a maior parte
das coisas que faço, eu escolhi. É um caminho, talvez, mais difícil o de querer evoluir e aprender
mais. Logo, tenho agora menos público. Como dizia o pisciano Astor Piazzolla: “Quanto melhor
eu fico, menos público tenho” (risos). Antes, eu escolhia grade. Aliás, quem me deu um toque
uma vez foi um chamado “louco de hospício”. Foi uma das rupturas da minha vida muito
interessante.
Como assim?
Sempre fui muito ao hospício. Agora, faz tempo que não vou. Sou madrinha dos leprosos – hoje
se chama hanseníase, tem que ser politicamente correto –, dos presidiários, das prostitutas, dos
garis. E, também, dos chamados loucos. Isso, antes mesmo de conhecer [a renomada médica
psiquiatra] Nise da Silveira. Tinha um hospício que eu visitava e todos os loucos gostavam muito
de mim. Mas um deles não gostava de jeito nenhum. E a gente gosta de ser gostado, né (risos)?
É outra prisão (risos).
Importa quem goste?
Às vezes importa [quem gosta], para mim importa. Mas isso também é uma prisão. Nitidamente,
tinha um [interno do hospício] que não gostava. Olhava para mim, saía dali. Olhava para mim, e
saía. Lúcido! De louco não tinha nada. Era tão louco quanto eu e você, mas era mais inteligente
e mais lúcido. Então, o que a família fez? Botou ele no hospício. Mas ele era muito forte. E ali
dentro ele começou a incomodar mais e mais. Aí davam drogas, choque elétrico. Mas droga,
choque elétrico para ele era igualzinho a esse café aqui para nós. Sabe? Metiam-no dentro de
uma solitária. Eu, às vezes, passava na frente da solitária, ele estava lá sentado. Eu o chamava
para falar comigo, ele não me olhava. Até que um dia, a Madre Teresa que sou (gargalhada) –
Ridícula! Viva Dostoiévski, que sempre diz que nós todos somos ridículos – chegou e falou
assim: “Escuta fulano, conversa comigo! Pô, conversa comigo. Vem cá, você não acha muito
chato viver aqui atrás das grades não? Por que você não amansa um pouco? Porque, do jeito
que você é, as pessoas te castigam demais. Te dão droga, te dão choque elétrico, te deixam
atrás dessas grades. Você não acha muito chato viver a tua vida inteira atrás dessas grades
não?”. Aí ele levantou, olhou para mim e veio berrando: “Quem é você para me dizer o que eu
tenho que fazer? Depois, é uma questão de perspectiva, meu bem: também estou te vendo atrás
das grades”. Foi lá e sentou.
O que você fez?
Botei o meu rabo no meio das pernas e fiquei dois dias sentada nas almofadas pensando. Só
porque posso ir para o Japão sou livre? A diferença é que minha prisão é um pouco maior. E
depois que fui presa, então, na época do Médici, pensei: “O cara tem razão. Eu sou livrinha aqui
dentro dessa prisão”. Prisão, para mim, é só um prédio. Porque a minha alma ninguém consegue
aprisionar.
Você pensa que o visual exótico assumido por você há tanto tempo é uma prisão?
Boa pergunta! Nunca me perguntaram isso. Agora, analisando, porque eu nunca pensei nisso,
não. Não! Escrava não, porque tenho prazer em fazê-lo. Entende? Tem dias que fico em dúvida:
“O que é que sou hoje?”. “O que estou hoje?” Aliás, “estou hoje”, porque nesse ponto eu puxei
muito o lado russo, cuja língua não tem verbo ser, só estar. Eu gosto de mostrar como sou, gosto
de me enfeitar. Eu sempre tive a impressão de que os deuses erraram com a gente. Sempre
falei: “Poxa vida, olha o cavalo, que maravilha! O tigre já sabe para que veio, não precisa de
banho de loja, não precisa de maquiagem. Até a minhoca já sabe a que veio. Nós, não, somos
pretensiosos. Os macacos pelados, muito feios, que precisam de filosofia, porque senão ficam
idiotas. Todo dia a gente precisa aprender. É uma prisão também (risos).
Você já declarou ter feito três abortos. Hoje, aos 69 anos, se arrepende de não ter filhos?
Não tive filhos porque não saberia educar uma criança, mas observo que, entre os negros – eles
são mil vezes melhores do que os brancos – vivem a avó, a mãe, o pai e as crianças todos
juntos. Um aprendendo com o outro, nas chamadas comunidades. Eles ainda vivem em tribo.
Nós vivemos em uma tribinho que a gente inventou – pai, mãe e filho ou pai, mãe e dois filhos –
e não dá nem para escolher de quem você vai gostar. Porque é mentira que todos os pais
gostam dos filhos. E é mentira que todos os filhos gostam dos pais. Fiz aborto sem a menor
culpa, porque não sei educar uma criança. O que eu vou dizer para uma criança? Não sei fazer
esse jogo.
As crianças gostam de você?
Tem umas que levam cada susto quando me veem. A criança, ou me ama de paixão, ou então
buááá. Cachorro também foge de mim; já vi cachorro bravo fugir de mim. Aí meu amigo, já
falecido, falou: “Você viu, não te chamo de loira fantasma à toa. Criança e cachorro veem
assombração!” (risos). Porque fizeram uma estrutura para todo mundo parecer um pouco, ficar
uniforme, né? Mas eu não sou.
As suas mudanças ao longo de todo o trajeto acarretaram algum tipo de dor?
Foi muito sem dor, muito natural... Sempre. Fiquei adolescente: tá, fiquei adolescente. Fiquei
meia-idade: ótimo. Fiquei velha: ótimo... Uma coisa que não quero jamais é que não me notem.
Gosto de chamar atenção – bom, está na cara, né (gargalhadas)? Très basique! Gosto muito.
Mas nunca aconteceu de eu não chamar atenção.
Nem os oito casamentos que acabaram te ocasionaram algum sofrimento?
Não, não, não.
Ou com a morte do seu pai?
Morte? Imagina! Meu pai me preparou para a morte desde o dia em que nasci! Todos os dias,
meu pai falava assim em relação à morte: “Não se esqueça de que eu vou morrer. Não se
esqueça de que tua mãe vai morrer. Não se esqueça que você vai morrer. Não se esqueça de
que teus irmãos vão morrer”. Ele me ensinou a tragédia. Por isso que não sou dramática, sou
trágica. O inexorável é trágico. O trágico não chora, ele pranteia. O drama é que fala: “Ah, o que
fizeram comigo! Ahh...”. O inexorável é a tragédia. Ou seja, τραγωδία [/tragothia/], em grego, tem
dois significados: canção ou, então, tragédia. O que os deuses determinaram, você não pode
modificar. O que os deuses determinaram? Que você nascesse e morresse.
A Grécia, inclusive, é muito presente em sua história.
Cheguei a morar um ano na Grécia. Tinha 21 anos, era namorada do Alex [Alexandros
Evremidis], meu primeiro marido, e moramos um ano dentro de um carro. A Grécia adora
rupturas. Acho que os únicos povos que conheço que não têm medo do ridículo – porque o
brasileiro morre de medo do ridículo – são os gregos e os russos. E sempre fui bem dionisíaca. A
Grécia é dionisíaca. Dionísio era aquele deus do prazer, do vinho, que se joga no abismo para
ver o que tem lá embaixo. Eu já fiz muito isso: me joguei no abismo para ver o que tinha.
Quais abismos?
Por exemplo, como já disse, fui presa na época do Médici, mas fiquei só seis dias na cadeia.
Perdi a cidadania brasileira. Até hoje sou apátrida, embora tenha passaporte alemão. Acho que
os deuses, antes de eu vir para a Terra, me falaram: “Olha, você vai para a Terra, mas vai te
acontecer de um tudo, tá? Você aguenta?”. E falei: “Aguento!”.
Alguma depressão já te alcançou?
Não. O que penso é que o importante na gente é nascer e morrer; de resto, é uma linguiça que a
gente tem que encher. Estou vendo que nesta linguiça moderna tem muito pânico, depressão.
Cada um chama atenção como pode, não é, querido? Eu boto uma caveira aqui [ela aponta para
o acessório que usa], o outro fica lá, sofrendo. Amor! O que significa a caveira? O inexorável.
“Daqui a pouco, eu vou ser assim.” Para eu me lembrar. E é uma caveira bem-humorada, porque
ela tem uma florzinha; é rock and roll, que eu adoro; é o inexorável mesmo.
Você falou sobre ter menos público. Como lida com esse fato?
É natural. E ficar mais velho também, porque as pessoas não valorizam o velho. Normal. Mas,
olha, é uma festa na rua. Todo mundo vem falar comigo. Todo mundo vem tirar retrato.
Mas há a vontade de que continuem perpetuando sua trajetória?
Não sou exemplo para ninguém, não. Não sou Alexandre, o Grande. Tanto que, há 20 anos,
querem fazer biografia minha. Não! Biografia não é para a Elke. Deve ser apenas para quem
modificou o mundo, como Sócrates, Platão...
Elke, em meio a milhões de histórias construídas, vividas, transformadas, é possível
definir quem é você? Quantas Elkes existem aí dentro?
7 bilhões. Acho que todo mundo aqui é um só. O mundo é um só. Todas as pessoas do mundo
são uma só. Eu gostaria de conhecer as 7 bilhões, mas não consigo. Gosto de me ver nas outras
pessoas. Elas me fazem ver meus lados. Então, você é um espelho para mim. Eu me gosto em
você. Em algumas pessoas, não me gosto. Porque, claro, vendo os defeitos do outro, é porque já
os tenho, né? Porque, se não, como é que eu veria? Tenho todos os defeitos do mundo. Então, a
gente nunca deveria dizer “eu não gosto de fulano”. A gente deveria dizer “eu não me gosto em
fulano”. Tem pessoas que puxam o melhor lado da gente; outras, o pior. Mas sou elas também.
Sou!
Fonte: http://www.revistadacultura.com.br/entrevistas/conversa/14-07-31/7_Bilh%C3%B5es_de_Elkes.aspx

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  • 1. BBIILLHHÕÕEESS DDEE EELLKKEESS GUSTAVO RANIERI (REVISTA DA CULTURA #58 – AGO-2014) FOTO DARYAN DORNELLES Elke Maravilha tem um medo imenso de se autoplagiar. Tudo soa tão original ao longo de seus 69 anos que a preocupação é compreensível. Seria muito mais fácil, decerto, compilar os melhores momentos e viver em torno de uma retrospectiva. Mas Elke é feita de mudanças. Muitas mudanças.
  • 2. Nascida na antiga Leningrado – atual São Petersburgo –, morou durante a infância na Alemanha e na França antes de aportar com a família, aos 6 anos, na mineira Itabira, de Carlos Drummond de Andrade; e chegar na juventude ao Rio de Janeiro, onde vive até hoje. Fala nove idiomas; foi professora de línguas – a mais jovem a dar aulas na Aliança Francesa, com apenas 12 anos –, bancária, secretária, bibliotecária e tradutora; modelo e manequim, trabalhou nos anos 1960 e 1970 com estilistas brasileiros de peso, como Guilherme Guimarães; atriz de cinema e novelas; jurada ícone do Cassino do Chacrinha e do Show de Calouros, com Silvio Santos; apresentadora de talk-show; performer; casada oito vezes; perucas e visuais exóticos; reúne dentro dela todas as religiões, “mas nenhuma institucionalizada”; apaixonada pela raça negra e por cabelo crespo; vive entre santos, caveiras, magos, objetos fálicos, Buda, Jesus, fotos, almofadas... Vive com suas bilhões de partes que formam uma só. “Quero me ver no espelho em todas as 7 bilhões de pessoas no mundo.” Filha do russo George Grunupp e da alemã Liezelotte Von Sonden, que foram unidos em tempos de guerra, quando “ninguém mais é nobre”, Elke é uma pessoa consciente de todos os caminhos que tomou, incluindo três abortos. Pisciana de fevereiro de 1945, ela costuma assustar quem se preserva com máscaras. “Atraio quem tenho que atrair e afasto quem quero (risos). O Sasha, meu último ex-marido, falou assim: ‘Elke, eles fogem de você porque sabem que você vê o que vai na alma deles, e eles não sabem nada da tua alma. Eles morrem de medo’.” É por isso que suas referências não estão na literatura ou no cinema, mas sim no que captura do outro. “Não sou uma grande leitora. Li apenas três autores, mas foi a obra completa deles: Monteiro Lobato, Nikos Kazantzákis e Dostoiévski. E Nise da Silveira [médica psiquiatra de quem foi muito amiga] me falou: ‘Se você leu Dostoiévski, então, não precisa ler mais nada! Ele sabe tudo da alma humana’.” Na conversa a seguir, realizada em seu apartamento, no Leme, fica evidente o motivo de Elke Maravilha ser a entrevistada que encarna o tema desta edição da Revista da Cultura. Atualmente circulando o país com dois espetáculos, Elke cantae Elke – Do sagrado ao profano, ela está pronta para o que vier. “Me irrito profundamente quando as pessoas falam com a minha memória em vez de falar comigo. Porque, meu amor, eu sou de rupturas.” Quando se olha sua trajetória, a Elke que fica em evidência é aquela que parece aceitar todas as mudanças que a vida traz. É sempre na vanguarda mesmo? Eu me recuso a ser ultrapassada, porque odeio aquela coisa: “Ai, como era bom... Ai, o Rio era tão bom...”. Eu falo: “Olha, o Rio era canhestro”. “Cidade maravilhosa, cheia de encantos mil?”. Ah, vai se foder, né?! Olha o que virou! Agora sim, meu amor: “Rio 40 graus, cidade maravilha, purgatório da beleza e do caos”. Agora vai sair alguma coisa desse Rio de Janeiro. Ah, vai. Porque zona de conforto não faz a gente evoluir. Você sabe como é o ser humano mais ou menos, não sabe? É muito necessário o embate. Nós estamos em guerra há muito tempo e, enquanto nós formos do jeito que somos, é necessário ter guerra. É a ruptura. É a ruptura do velho. Porque em guerra, meu amor, ninguém é mais nada! E você vem ao mundo justamente durante a guerra. Sou filha da guerra. Nasci em 22 de fevereiro de 1945 em Leningrado – hoje São Petersburgo. Foi no fim da guerra. Você imagina: a minha mãe era Liezelotte Von Sonden, uma nobre alemã. Casou com o meu pai, em 1944, um russo que se chamava George Grunupp, descendente de vikings. Então, quando é que uma nobre alemã, com a beleza que ela tinha – que era um absurdo! –, casaria com um vira-lata russo fodido, sem um tostão e ferido de guerra? Só em guerra. Porque em guerra ninguém mais é nobre. A guerra nos coloca onde a gente pertence, ou seja, no rés-do-chão. Não somos nada além disso, não? Porra nenhuma! Tenho impressão de que a gente nasceu para evoluir, mas a evolução é muito lenta. E cada povo evolui em um tempo. E depois, é a tal coisa: para a Mãe Natureza, o tempo em que o “ser humano” está na Terra é um peido.
  • 3. Sendo que a vida de cada um vai durar no máximo 80, 90 anos... É. E a gente que inventou isso, esse tempo, né? Porque a gente nasce, cresce, envelhece e morre – ou não, porque tem gente que morre menino ainda. Vamos dizer: se eu morro amanhã, eu tenho 69, para mim foi, pelo menos nessa fase, a vida inteira. Agora... 69? Mãe Natureza? Ela não tem começo e não tem fim. Mais uma vez, não é nada... Porra nenhuma! E olha por quantas rupturas já passou. Quantas culturas e pessoas já nasceram, cresceram e morreram. Porque a cultura tem que morrer também para vir outra. É! Você vê essas culturas mais antigas, que ficam sempre se achando. Acham que são os donos da verdade, porque é a cultura mais antiga. Acho que a única que não pensa assim, que é a de que eu gosto mais, é a grega. Mas as mudanças que te embalam desde a infância jamais te assustaram? Não. Elas sempre foram um prazer para mim, desde criança. Acho que uma coisa que deve ter me tocado dessas mudanças, deve ter me ajudado nisso, talvez seja que a gente foi imigrante. Acho que, inconscientemente, deve ter sido. Porque não lembro, mas foi uma mudança grande. Você sair de São Petersburgo, depois ir para Alemanha, depois França e Brasil. Agora, meu pai foi muito responsável pelas mudanças. Porque ele mudava – a gente vivia mudando tanto de lugar porque materialmente não dava certo, então, ia para outro lugar e vinha e não sei o quê, e, em um instante, se adaptava e pronto. Ele era vira-lata. Vira-lata muda mais fácil, né? Seu pai é uma de suas maiores referências até hoje? Claro. Meu pai sempre foi uma referência, até maior do que minha mãe. Não era melhor do que minha mãe, mas como referência; porque sempre gostei mais do mundo masculino do que do feminino. Minha mãe era uma exceção. E ela nem sabia que era mãe, era mais uma geminiana amiga. Mas não gosto muito do mundo feminino. Por quê? Por exemplo, a gente ia a cavalo para Itabira. Eram 20 quilômetros de distância. Chegava lá, meu pai ia fazer as coisas dele e me deixava em uma casa que tinha 11 mulheres. Eu olhava aquele movimento e não via afeto. Era maldizer empregada, maldizer namorado, maldizer, maldizer, maldizer. Quando eu saía com o meu pai e os amigos dele, era uma farra. Enchiam a cara, falavam merda. Se abraçavam, filosofavam. Um sacaneava o outro. Era uma festa! Até que, um dia, falei para o meu pai: “Eu sou mulher, né?”. Ele falou: “É”. “Você é homem?” “É.” Falei: “Eu tenho que ser igual mulher?(risos)”. Ele falou assim: “Por que, você não gostou?”. Eu disse: “Não, pai”. E ele respondeu: “Não, minha filha. Seja o que você quiser”. Aí, saquei que, enquanto gênero, o homem era melhor. Então, resolvi não ser mais mulher. Resolvi não mais ser ligada a gênero. Resolvi ser uma pessoa... E poucas mulheres viraram pessoas. Sempre aquela coisa: homem X mulher. Quem é mais inteligente? Ai, me cansa! Essa foi uma das primeiras mudanças? Pode ser, pode ser... Eu era parecida com a alma do meu pai. E ele falava uma coisa: “Minha filha, presta atenção na Mãe Natureza. Ela nos ensina tudo”. E eu falei: “Mas você me ensina!”. Ele falou assim: “Não. Até acho que ensino. Faço parte da Mãe Natureza, só que eu erro. A Mãe Natureza não erra”. Então, vi que a Mãe Natureza não gosta de estagnação. Ela odeia estagnação. Deserto no Saara já foi mar. Agora ele é deserto e está voltando a ser mar. Claro que não vai ser para nós. Em uma hora dessas, a Amazônia vai virar deserto. Isso é normal. Isso a Mãe Natureza designa. Pretensão o ser humano achar que é ele quem cria e destrói. Não, nós somos instrumentos da Mãe Natureza. Porque, antes do homem, o mundo acabou cinco vezes [ao longo dos últimos 500 milhões de anos, no que os cientistas chamam de Big Five]. Está provado cientificamente. Rupturas: pá! Meu pai me ensinou sobre a Mãe Natureza. Ele era um livre–pensador. Eu gostaria de ser livre-pensadora como ele. Você não é livre-pensadora? Acho que ainda não.
  • 4. E o que é ser? Não estar atrelado a nada: crenças, religiões. Estar no todo e não estar. Acho que sou um pouco, porque aquela minha frase preferida ali [ela aponta para um quadro na parede], do Álvaro de Campos [heterônimo de Fernando Pessoa]: “Ergo em cada canto de minha alma um altar a um deus diferente (risos)”. Mas aquela frase me faz politeísta, não me faz livre-pensadora (risos). Mas não é ser livre-pensadora poder cultivar todos os deuses que quiser? Não sei se é suficiente. Porque liberdade, amor, eu ainda penso que a liberdade não existe. Acho que a gente só é livre para escolher a prisão em que a gente quer ficar. Você acredita que tudo o que a gente fizer será, em algum momento, um tipo de prisão? Penso assim. Sobre algumas pessoas, por exemplo, pensei um dia: “Madre Teresa foi livre. Não, ela escolheu aquela prisão para ela”. E era rígida aquela prisão. Pra cacete! Aí você pensa: “Ah, o anarquista é livre”. Regras pra cacete (risos). Talvez o ser de rua seja livre, porque ele não paga condomínio. Nunca fui moradora de rua, mas sempre pensei que, talvez, as pessoas mais livres fossem as moradoras de rua. E depois vi a maneira como as pessoas tiram esses moradores da rua e falei: “Ih, gente... Não vai ser legal tirar uma pessoa dessa liberdade e botar entre quatro paredes”. Aí, as pessoas voltam para a rua. Não é evolução. Não é! Mesmo a prisão do vício da droga, porque usei quase todas, até crack. Só não tive coragem com heroína. Tem gente que é usada pela droga, mas eu a usei; foi diferente. A minha geração, por exemplo, usava droga para autoconhecimento. Agora, as pessoas usam para curtir, para fugir das situações. Não para entrar dentro dela. E tem muitas drogas, inclusive que não são penalizadas. Tem gente que usa Jesus Cristo como droga. Tem gente que usa o poder, que eu acho que é a pior das drogas. O poder temporal. Você vê a cara dos chamados “poderosos” – porque para mim eles não são porra nenhuma – e são muito poucos que não têm cara de drogados. Muito poucos! Reparou? Aliás, qual é a droga que nunca matou até hoje? Foi o poder. O que é que matou mais: foi a cocaína ou Medellín? O poder é a pior droga do mundo até hoje. Você jamais se considera uma pessoa livre então? Sempre deixo claro que não sou [livre]. Eu preciso pagar contas. Então, quer dizer, a maior parte das coisas que faço, eu escolhi. É um caminho, talvez, mais difícil o de querer evoluir e aprender mais. Logo, tenho agora menos público. Como dizia o pisciano Astor Piazzolla: “Quanto melhor eu fico, menos público tenho” (risos). Antes, eu escolhia grade. Aliás, quem me deu um toque uma vez foi um chamado “louco de hospício”. Foi uma das rupturas da minha vida muito interessante. Como assim? Sempre fui muito ao hospício. Agora, faz tempo que não vou. Sou madrinha dos leprosos – hoje se chama hanseníase, tem que ser politicamente correto –, dos presidiários, das prostitutas, dos garis. E, também, dos chamados loucos. Isso, antes mesmo de conhecer [a renomada médica psiquiatra] Nise da Silveira. Tinha um hospício que eu visitava e todos os loucos gostavam muito de mim. Mas um deles não gostava de jeito nenhum. E a gente gosta de ser gostado, né (risos)? É outra prisão (risos). Importa quem goste? Às vezes importa [quem gosta], para mim importa. Mas isso também é uma prisão. Nitidamente, tinha um [interno do hospício] que não gostava. Olhava para mim, saía dali. Olhava para mim, e saía. Lúcido! De louco não tinha nada. Era tão louco quanto eu e você, mas era mais inteligente e mais lúcido. Então, o que a família fez? Botou ele no hospício. Mas ele era muito forte. E ali dentro ele começou a incomodar mais e mais. Aí davam drogas, choque elétrico. Mas droga, choque elétrico para ele era igualzinho a esse café aqui para nós. Sabe? Metiam-no dentro de uma solitária. Eu, às vezes, passava na frente da solitária, ele estava lá sentado. Eu o chamava
  • 5. para falar comigo, ele não me olhava. Até que um dia, a Madre Teresa que sou (gargalhada) – Ridícula! Viva Dostoiévski, que sempre diz que nós todos somos ridículos – chegou e falou assim: “Escuta fulano, conversa comigo! Pô, conversa comigo. Vem cá, você não acha muito chato viver aqui atrás das grades não? Por que você não amansa um pouco? Porque, do jeito que você é, as pessoas te castigam demais. Te dão droga, te dão choque elétrico, te deixam atrás dessas grades. Você não acha muito chato viver a tua vida inteira atrás dessas grades não?”. Aí ele levantou, olhou para mim e veio berrando: “Quem é você para me dizer o que eu tenho que fazer? Depois, é uma questão de perspectiva, meu bem: também estou te vendo atrás das grades”. Foi lá e sentou. O que você fez? Botei o meu rabo no meio das pernas e fiquei dois dias sentada nas almofadas pensando. Só porque posso ir para o Japão sou livre? A diferença é que minha prisão é um pouco maior. E depois que fui presa, então, na época do Médici, pensei: “O cara tem razão. Eu sou livrinha aqui dentro dessa prisão”. Prisão, para mim, é só um prédio. Porque a minha alma ninguém consegue aprisionar. Você pensa que o visual exótico assumido por você há tanto tempo é uma prisão? Boa pergunta! Nunca me perguntaram isso. Agora, analisando, porque eu nunca pensei nisso, não. Não! Escrava não, porque tenho prazer em fazê-lo. Entende? Tem dias que fico em dúvida: “O que é que sou hoje?”. “O que estou hoje?” Aliás, “estou hoje”, porque nesse ponto eu puxei muito o lado russo, cuja língua não tem verbo ser, só estar. Eu gosto de mostrar como sou, gosto de me enfeitar. Eu sempre tive a impressão de que os deuses erraram com a gente. Sempre falei: “Poxa vida, olha o cavalo, que maravilha! O tigre já sabe para que veio, não precisa de banho de loja, não precisa de maquiagem. Até a minhoca já sabe a que veio. Nós, não, somos pretensiosos. Os macacos pelados, muito feios, que precisam de filosofia, porque senão ficam idiotas. Todo dia a gente precisa aprender. É uma prisão também (risos). Você já declarou ter feito três abortos. Hoje, aos 69 anos, se arrepende de não ter filhos? Não tive filhos porque não saberia educar uma criança, mas observo que, entre os negros – eles são mil vezes melhores do que os brancos – vivem a avó, a mãe, o pai e as crianças todos juntos. Um aprendendo com o outro, nas chamadas comunidades. Eles ainda vivem em tribo. Nós vivemos em uma tribinho que a gente inventou – pai, mãe e filho ou pai, mãe e dois filhos – e não dá nem para escolher de quem você vai gostar. Porque é mentira que todos os pais gostam dos filhos. E é mentira que todos os filhos gostam dos pais. Fiz aborto sem a menor culpa, porque não sei educar uma criança. O que eu vou dizer para uma criança? Não sei fazer esse jogo. As crianças gostam de você? Tem umas que levam cada susto quando me veem. A criança, ou me ama de paixão, ou então buááá. Cachorro também foge de mim; já vi cachorro bravo fugir de mim. Aí meu amigo, já falecido, falou: “Você viu, não te chamo de loira fantasma à toa. Criança e cachorro veem assombração!” (risos). Porque fizeram uma estrutura para todo mundo parecer um pouco, ficar uniforme, né? Mas eu não sou. As suas mudanças ao longo de todo o trajeto acarretaram algum tipo de dor? Foi muito sem dor, muito natural... Sempre. Fiquei adolescente: tá, fiquei adolescente. Fiquei meia-idade: ótimo. Fiquei velha: ótimo... Uma coisa que não quero jamais é que não me notem. Gosto de chamar atenção – bom, está na cara, né (gargalhadas)? Très basique! Gosto muito. Mas nunca aconteceu de eu não chamar atenção. Nem os oito casamentos que acabaram te ocasionaram algum sofrimento? Não, não, não. Ou com a morte do seu pai? Morte? Imagina! Meu pai me preparou para a morte desde o dia em que nasci! Todos os dias, meu pai falava assim em relação à morte: “Não se esqueça de que eu vou morrer. Não se
  • 6. esqueça de que tua mãe vai morrer. Não se esqueça que você vai morrer. Não se esqueça de que teus irmãos vão morrer”. Ele me ensinou a tragédia. Por isso que não sou dramática, sou trágica. O inexorável é trágico. O trágico não chora, ele pranteia. O drama é que fala: “Ah, o que fizeram comigo! Ahh...”. O inexorável é a tragédia. Ou seja, τραγωδία [/tragothia/], em grego, tem dois significados: canção ou, então, tragédia. O que os deuses determinaram, você não pode modificar. O que os deuses determinaram? Que você nascesse e morresse. A Grécia, inclusive, é muito presente em sua história. Cheguei a morar um ano na Grécia. Tinha 21 anos, era namorada do Alex [Alexandros Evremidis], meu primeiro marido, e moramos um ano dentro de um carro. A Grécia adora rupturas. Acho que os únicos povos que conheço que não têm medo do ridículo – porque o brasileiro morre de medo do ridículo – são os gregos e os russos. E sempre fui bem dionisíaca. A Grécia é dionisíaca. Dionísio era aquele deus do prazer, do vinho, que se joga no abismo para ver o que tem lá embaixo. Eu já fiz muito isso: me joguei no abismo para ver o que tinha. Quais abismos? Por exemplo, como já disse, fui presa na época do Médici, mas fiquei só seis dias na cadeia. Perdi a cidadania brasileira. Até hoje sou apátrida, embora tenha passaporte alemão. Acho que os deuses, antes de eu vir para a Terra, me falaram: “Olha, você vai para a Terra, mas vai te acontecer de um tudo, tá? Você aguenta?”. E falei: “Aguento!”. Alguma depressão já te alcançou? Não. O que penso é que o importante na gente é nascer e morrer; de resto, é uma linguiça que a gente tem que encher. Estou vendo que nesta linguiça moderna tem muito pânico, depressão. Cada um chama atenção como pode, não é, querido? Eu boto uma caveira aqui [ela aponta para o acessório que usa], o outro fica lá, sofrendo. Amor! O que significa a caveira? O inexorável. “Daqui a pouco, eu vou ser assim.” Para eu me lembrar. E é uma caveira bem-humorada, porque ela tem uma florzinha; é rock and roll, que eu adoro; é o inexorável mesmo. Você falou sobre ter menos público. Como lida com esse fato? É natural. E ficar mais velho também, porque as pessoas não valorizam o velho. Normal. Mas, olha, é uma festa na rua. Todo mundo vem falar comigo. Todo mundo vem tirar retrato. Mas há a vontade de que continuem perpetuando sua trajetória? Não sou exemplo para ninguém, não. Não sou Alexandre, o Grande. Tanto que, há 20 anos, querem fazer biografia minha. Não! Biografia não é para a Elke. Deve ser apenas para quem modificou o mundo, como Sócrates, Platão... Elke, em meio a milhões de histórias construídas, vividas, transformadas, é possível definir quem é você? Quantas Elkes existem aí dentro? 7 bilhões. Acho que todo mundo aqui é um só. O mundo é um só. Todas as pessoas do mundo são uma só. Eu gostaria de conhecer as 7 bilhões, mas não consigo. Gosto de me ver nas outras pessoas. Elas me fazem ver meus lados. Então, você é um espelho para mim. Eu me gosto em você. Em algumas pessoas, não me gosto. Porque, claro, vendo os defeitos do outro, é porque já os tenho, né? Porque, se não, como é que eu veria? Tenho todos os defeitos do mundo. Então, a gente nunca deveria dizer “eu não gosto de fulano”. A gente deveria dizer “eu não me gosto em fulano”. Tem pessoas que puxam o melhor lado da gente; outras, o pior. Mas sou elas também. Sou! Fonte: http://www.revistadacultura.com.br/entrevistas/conversa/14-07-31/7_Bilh%C3%B5es_de_Elkes.aspx