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RAIZES VOLANTES
Encontro 6
Encontro 6
Encontro 6
AUTORRETRATO
Eugênia Correia
genacor01@gmail.com
aquarelas / poemas de Eugênia Correia
ser que se reconhece na contradição e no embate. Sócrates inaugura essa tradição,
afirmando como diretriz de saber: “conhece primeiro a ti mesmo”.
Ou desenho ou sou, digo eu. Ali onde me vejo, não posso estar. É somente no olhar
do outro, aquele que escolho como anteparo privilegiado, que posso declinar minha
imagem de mim. Minha análise produz demanda de espaços por onde possam
circular esses restos intraduzíveis, irreconciliáveis com a linguagem.
Ou desenho ou sou, digo eu. Ali onde me vejo, não posso estar. É somente no olhar
do outro, aquele que escolho como anteparo privilegiado, que posso declinar minha
imagem de mim. Minha análise produz demanda de espaços por onde possam
circular esses restos intraduzíveis, irreconciliáveis com a linguagem.
Ou desenho ou sou, digo eu. Ali onde me vejo, não posso estar. É somente no olhar
do outro, aquele que escolho como anteparo privilegiado, que posso declinar minha
imagem de mim. Minha análise produz demanda de espaços por onde possam
circular esses restos intraduzíveis, irreconciliáveis com a linguagem.
Produções expressivas adquirem a qualidade terapeutizante, o dom de serem artísticas ao serem
reconhecidas pelo outro que vê e reconhece nesse sentido. Há vários tipos de “outro”: aquele que
coincide com o fantasma que nos define no desejo, outro “outro” que nos orienta no espaço, cada
um ecoando uma cena que se faz única quando articula as outras em um único fotograma.
Fotografar é juntar as diferentes lentes em um suporte suficientemente acolhedor, formando
nesse instante o reflexo único do “outro de si” que recebe de volta esse traço como o efeito
chamado “definitivo”. Definidor.
Receio que minhas aquarelas produzam uma verborragia, pedagogia, explicitando demais, por
juntarem poema e imagem na mesma figura.
Para compartilhar o que me inspira, trago artistas que também juntam palavras e imagens,
procurando com eles alcançar sua cumplicidade de leitor, para meu work-in-progress
“Autorretratos”.
Durer, Zé Rufino, Sophie Calle, Raymond Quenneau, Marcel Duchamp são minhas referências
iniciais na construção da série
Dentre os seres vivos, somente o humano se espanta diante da sua própria imagem.
Nada mais assustador que um olhar fixado em nós.
Nada mais benfazejo que a recuperação da leveza ancorada em um fio confiável.
Nada mais benfazejo que a recuperação da leveza ancorada em um fio confiável.
Nada mais benfazejo que a recuperação da leveza ancorada em um fio confiável.
Escada, número, geométrica figura,
olhar perfura horizonte:
flutua.
flutua.
futura.
Melancolia -Durer -
Albert Durer - famoso por fazer tão belo seu próprio retrato, mistura vários elementos no
quadro“Melancolia”: letras, números, um bebê posicionado na mesma linha do adulto, com uma escada
entre eles, sugerindo um fluxo a seguir. Sobre a cabeça do homem, o “quadrado mágico”,onde os números
apresentam sempre o mesmo resultado na soma das colunas, barras, diagonais, e mesmo a data em que
concluiu o trabalho. O resultado é sempre 34. Esse quadrado já existia desde a Idade Média e Durer
reconstrói acrescentando novas coincidências para o 34.
Ao me retratar colocando a rodilha na parte superior do vaso, ao invés de posicioná-la embaixo, penso nos
momentos que se enrodilham produzindo risco de sufocação, angústia, repetindo um pensamento
obssessivo, que sempre “dá no mesmo” 34, por mostrarem um ponto que não posso apreender, a não que
consiga transformar “auto” em “alter”, o outro me abrindo um novo enigma, uma nova conta, lá, em outro
ponto exterior, que permita que me dê conta de mim. Esse ponto não pode “ter” sentido, ele puxa,
magnetiza outro tipo de inscrição: aquela que sai da sequência anterior, que permite deslizamento em vez
de sufocação. A produção arteterapêutica não é suporte apenas para busca de sentido. Ao restaurar a
fluidez associativa, acolhendo o non-sense, um primeiro distanciamento permite sair do quadrado mágico
para um quadro banal.
• O bebê e o adulto ladeados por uma escada evoca o
espaço da família, uma primeira imagem marcará
para sempre o jogo das identificações. Amor, ódio,
aconchego e terror marcam a vida infantil. Contar
sobre esse lugar psíquico, o eu e seu entorno na
infância, não equivale a uma regressão, pois esse
passado nunca passou. O autorretrato testemunha a
herança que recebemos a cada dia que o eu nos
aconchega em um nome próprio.
Do quadrado ao quadro - da tela à carta do ancestral
Zé Rufino - artista de João Pessoa - Cartas de Areia. Inscrições sobre material de
arquivo familiar. Cartas de Areia.
A leitura de Rufino das cartas de seus avós formula a busca pelo recebimento de
uma herança sempre em suspensão. Suporte instigante para uma obra de arte,
chocante e perigoso, as cartas sempre tiveram na minha vida o peso do oxigênio
que se respira. Já escrevi para mim mesmo, colocando no correio e ficando feliz
ao receber. As cartas que fiz e recebi são, ainda hoje, razões para viver. Carta,
email, texto, a escrita epistolar, filosófica, é a minha cara. As cartas de Rufino
têm tudo a ver comigo.
corpo da obra, o corpo como obra
Rufino lança a problemática do ancestral familiarizado em uma história de vida.
Isso me fez pensar a violência urbana como uma ausência de avós. Como se a
proximidade da morte não fosse aceita, a violência aumenta onde declinam os
avós, reduzidos ou a doentes ou a estorvos. Lá onde a narrativa se reduz ao
discurso jurídico ou biológico, testemunhando em carne viva a crise
civilizatória, o sujeito é pura decadência. Susan Greenfield, neuroscientista,
demonstra que a restauração da capacidade de narrar impulsiona a neotenia,
produção de novas ligações neuronais.
A explicação das neurosciências é apaziguadora, instigante, e remete ao enigma
do sujeito: outros seres vivos têm ligações neuronais até mais complexas que as
nossas, mas não parece existir um sujeito, um tipo exclusivamente humano de
produção: em um certo momento, as ligações fazem uma torsão esclarecedora, e
nos vemos a nós, com menor ou maior espanto, a cada vez.
• Dar a volta por cima, fazer o luto, elaborar a
experiência, conceder um destino menos nefasto:
recolher a lágrima transformando, a própria lágrima,
em um cântaro que a contenha. Do espaço plano do
espelho, passar à curva do espaço riemanniano, onde
a luz vai, rebate, se curva, e volta.
• AUTO-RETRATO
Fita adesiva sobre parede
• Implacável, meu nomadismo carregou minhas mudanças por 8 cidades, até chegar a João Pessoa, onde moro há 9 anos.
Uma tela me acompanha há três décadas conservando instigante frescor. Chegando ao Cabo Branco, a tela foi colada à
parede com uma fita adesiva, tendo sido transportada para a sala há algumas semanas. Instigantes, eloquentes,
incontornáveis, as manchas desenhadas pela fita adesiva fazem um retrato de mim.
•
As manchas de fita adesiva não se deixam transportar. Passo tinta procurando um efeito de decalque em papel poroso,
fotografo, tento copiar com lápis, com tinta acrílica, caneta... nada! As manchas são como o momento que atravesso ao
ser capturada por elas.
•
Nada me consola de uma saudade avassaladora. A tela junta no mesmo fotograma o que vivi nesses trinta anos,
evocando com suas linhas entrecruzadas minhas impressões digitais, mapas e rendas enlaçadas pela cola. As seis
manchas fotografadas juntas formam um quadrado com um vazio no centro, como um códex pelo avesso. Sou eu a mãe
reunindo os filhos justamente por aceitar que sigam sem mim. É esse meu pungente auto-retrato.
• Também trabalhando sobre o códex, essa inspirada forma de reunir folhas de
maneira tão eficaz, Sophie Calle lança mão de fotografias, textos, performance,
entrevistas, misturando códigos e produzindo susto ali onde havia rotina. O
objeto livro assume uma função surpreendente, ao permitir que faça uma
catarse por meio do relato de um incidente traumático relatado dezenas de
vezes, nas folhas esquerdas do livro, contrapostas a entrevistas que ela faz com
pessoas encontradas ao acaso. A pergunta era “Qual a coisa mais dolorosa que já
lhe aconteceu?” À medida que o livro avança, o relato da esquerda vai ficando
menor, e a cor das letras vai clareando até não restar nada a não ser a imagem
do telefone vermelho, que trouxe a notícia traumática. Essa imagem, do telefone
sozinho, permanece como cicatriz incontornável, testemunha do luto realizado,
assim como desse resto, sem sentido, sem função, que fica ali sem passar. Um
pouco como o quadrado mágico no quadro de Durer, ou da lágrima desnudada
do meu poema.
Se em vão se vê derramar / tão límpida lágrima sua / deixe aqui a gota nua / e em
seu sonho amanhã / ela lhe amamentará.
• Diante de uma explosão de lágrimas, adrenalinas, na crise em sua exuberância,
a calma chega margeando um ponto de apoio e contenção. Uma lágrima, uma
só, um lamento, depurado: no que se converteria?
• Sophi Calle propõe a entrevista como uma das belas-artes. A questão dirigida ao
outro como recurso para esculpir um “quantum”isolado, portátil, desdobrável: e
com você, como foi?
• O códex permite a obra de Calle: nas folhas do lado esquerdo, a descrição do
momento traumático, revisitado até a náusea. Nas folhas do lado direito, as
respostas à pergunta dirigida a pessoas encontradas ao acaso: “Qual a coisa
mais dolorosa que já lhe aconteceu na vida?”
• O “resultado” foi permitir que o incidente repetido nas folhas da esquerda
perdessem a visibilidade, dissolvidas no movimento de escutar quem está ao
lado.
• Bicicleta tem duas rodas. Ao destacar uma única
roda, suspensa em um banquinho de cozinha,
Duchamp faz pensar em solidão. Expor a roda
sozinha dignifica o movimento que ela faz até mesmo
quando suspensa no ar, sem correia, sem chão...
• Em “A noiva desnudada por seus celibatários:
mesmo”, a idéia de um revestimento da dor de amor,
humanizado, amparado, ritualizado no estatuto da
“noiva”, aquela jamais desposada, encontra no olhar
dos celibatários, no plural, um ponto de vista que
ampara e faz rir.
• A rodilha, a carta, a mancha de cola, a folha do livro,
a lágrima solta, a roda de bicicleta, essas “unidades”
encadeadas, fazem sentido no olho que conceder seu
imprescindível ponto de apoio. Seu olho é a lombada
necessária à página.
autorretrato
• o oco do mundo se alojou na sala.
• na cozinha fez um uivo, madrugada afora.
• o tempo não passava. não passou. não passa.
• mas esse poema no olho de quem lê
• passa uma passagem
• para a poesia do oco do mundo,
• que se perfila,
• em kilômetro, metro, quilo.
• essa sombra do oco ali, sou eu,
• eu sou aquilo.
• e
autorretrato
• Cada um dos elementos da composição de Duchamp
vai se esclarecendo por meio dos comentários e
textos. Não há obra em o comentário. A instalação
“instala”o amor em tempos dois mil, o celibato, a
noiva, o desnudamento. Meu desenho faz muda o
título para “A noiva vestida pelos celibatários:
mesmo”, numa alusão à Duchamp e à minha
tentativa de “vestir”o vaso, mantendo a
“noividade”(uma noiva é aquela que não se casou,
não de novo, noiva é a nova, a que ainda não é). Esse
autorretrato me diverte e se presta como antídoto
contra a solidão. A forma repetida é o vaso, o jarro, o
côncavo, presente na rodilha e no pote.
• AUTORRETRATO 1 - O pote e a rodilha
• 2 -
Encontro 6 - Autoretrato

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Encontro 6 - Autoretrato

  • 1. RAIZES VOLANTES Encontro 6 Encontro 6 Encontro 6 AUTORRETRATO Eugênia Correia genacor01@gmail.com aquarelas / poemas de Eugênia Correia
  • 2. ser que se reconhece na contradição e no embate. Sócrates inaugura essa tradição, afirmando como diretriz de saber: “conhece primeiro a ti mesmo”. Ou desenho ou sou, digo eu. Ali onde me vejo, não posso estar. É somente no olhar do outro, aquele que escolho como anteparo privilegiado, que posso declinar minha imagem de mim. Minha análise produz demanda de espaços por onde possam circular esses restos intraduzíveis, irreconciliáveis com a linguagem. Ou desenho ou sou, digo eu. Ali onde me vejo, não posso estar. É somente no olhar do outro, aquele que escolho como anteparo privilegiado, que posso declinar minha imagem de mim. Minha análise produz demanda de espaços por onde possam circular esses restos intraduzíveis, irreconciliáveis com a linguagem. Ou desenho ou sou, digo eu. Ali onde me vejo, não posso estar. É somente no olhar do outro, aquele que escolho como anteparo privilegiado, que posso declinar minha imagem de mim. Minha análise produz demanda de espaços por onde possam circular esses restos intraduzíveis, irreconciliáveis com a linguagem. Produções expressivas adquirem a qualidade terapeutizante, o dom de serem artísticas ao serem reconhecidas pelo outro que vê e reconhece nesse sentido. Há vários tipos de “outro”: aquele que coincide com o fantasma que nos define no desejo, outro “outro” que nos orienta no espaço, cada um ecoando uma cena que se faz única quando articula as outras em um único fotograma. Fotografar é juntar as diferentes lentes em um suporte suficientemente acolhedor, formando nesse instante o reflexo único do “outro de si” que recebe de volta esse traço como o efeito chamado “definitivo”. Definidor. Receio que minhas aquarelas produzam uma verborragia, pedagogia, explicitando demais, por juntarem poema e imagem na mesma figura. Para compartilhar o que me inspira, trago artistas que também juntam palavras e imagens, procurando com eles alcançar sua cumplicidade de leitor, para meu work-in-progress “Autorretratos”. Durer, Zé Rufino, Sophie Calle, Raymond Quenneau, Marcel Duchamp são minhas referências iniciais na construção da série
  • 3.
  • 4. Dentre os seres vivos, somente o humano se espanta diante da sua própria imagem. Nada mais assustador que um olhar fixado em nós. Nada mais benfazejo que a recuperação da leveza ancorada em um fio confiável. Nada mais benfazejo que a recuperação da leveza ancorada em um fio confiável. Nada mais benfazejo que a recuperação da leveza ancorada em um fio confiável. Escada, número, geométrica figura, olhar perfura horizonte: flutua. flutua. futura.
  • 5.
  • 6. Melancolia -Durer - Albert Durer - famoso por fazer tão belo seu próprio retrato, mistura vários elementos no quadro“Melancolia”: letras, números, um bebê posicionado na mesma linha do adulto, com uma escada entre eles, sugerindo um fluxo a seguir. Sobre a cabeça do homem, o “quadrado mágico”,onde os números apresentam sempre o mesmo resultado na soma das colunas, barras, diagonais, e mesmo a data em que concluiu o trabalho. O resultado é sempre 34. Esse quadrado já existia desde a Idade Média e Durer reconstrói acrescentando novas coincidências para o 34. Ao me retratar colocando a rodilha na parte superior do vaso, ao invés de posicioná-la embaixo, penso nos momentos que se enrodilham produzindo risco de sufocação, angústia, repetindo um pensamento obssessivo, que sempre “dá no mesmo” 34, por mostrarem um ponto que não posso apreender, a não que consiga transformar “auto” em “alter”, o outro me abrindo um novo enigma, uma nova conta, lá, em outro ponto exterior, que permita que me dê conta de mim. Esse ponto não pode “ter” sentido, ele puxa, magnetiza outro tipo de inscrição: aquela que sai da sequência anterior, que permite deslizamento em vez de sufocação. A produção arteterapêutica não é suporte apenas para busca de sentido. Ao restaurar a fluidez associativa, acolhendo o non-sense, um primeiro distanciamento permite sair do quadrado mágico para um quadro banal.
  • 7. • O bebê e o adulto ladeados por uma escada evoca o espaço da família, uma primeira imagem marcará para sempre o jogo das identificações. Amor, ódio, aconchego e terror marcam a vida infantil. Contar sobre esse lugar psíquico, o eu e seu entorno na infância, não equivale a uma regressão, pois esse passado nunca passou. O autorretrato testemunha a herança que recebemos a cada dia que o eu nos aconchega em um nome próprio.
  • 8.
  • 9. Do quadrado ao quadro - da tela à carta do ancestral Zé Rufino - artista de João Pessoa - Cartas de Areia. Inscrições sobre material de arquivo familiar. Cartas de Areia. A leitura de Rufino das cartas de seus avós formula a busca pelo recebimento de uma herança sempre em suspensão. Suporte instigante para uma obra de arte, chocante e perigoso, as cartas sempre tiveram na minha vida o peso do oxigênio que se respira. Já escrevi para mim mesmo, colocando no correio e ficando feliz ao receber. As cartas que fiz e recebi são, ainda hoje, razões para viver. Carta, email, texto, a escrita epistolar, filosófica, é a minha cara. As cartas de Rufino têm tudo a ver comigo.
  • 10. corpo da obra, o corpo como obra Rufino lança a problemática do ancestral familiarizado em uma história de vida. Isso me fez pensar a violência urbana como uma ausência de avós. Como se a proximidade da morte não fosse aceita, a violência aumenta onde declinam os avós, reduzidos ou a doentes ou a estorvos. Lá onde a narrativa se reduz ao discurso jurídico ou biológico, testemunhando em carne viva a crise civilizatória, o sujeito é pura decadência. Susan Greenfield, neuroscientista, demonstra que a restauração da capacidade de narrar impulsiona a neotenia, produção de novas ligações neuronais. A explicação das neurosciências é apaziguadora, instigante, e remete ao enigma do sujeito: outros seres vivos têm ligações neuronais até mais complexas que as nossas, mas não parece existir um sujeito, um tipo exclusivamente humano de produção: em um certo momento, as ligações fazem uma torsão esclarecedora, e nos vemos a nós, com menor ou maior espanto, a cada vez.
  • 11. • Dar a volta por cima, fazer o luto, elaborar a experiência, conceder um destino menos nefasto: recolher a lágrima transformando, a própria lágrima, em um cântaro que a contenha. Do espaço plano do espelho, passar à curva do espaço riemanniano, onde a luz vai, rebate, se curva, e volta.
  • 12. • AUTO-RETRATO Fita adesiva sobre parede • Implacável, meu nomadismo carregou minhas mudanças por 8 cidades, até chegar a João Pessoa, onde moro há 9 anos. Uma tela me acompanha há três décadas conservando instigante frescor. Chegando ao Cabo Branco, a tela foi colada à parede com uma fita adesiva, tendo sido transportada para a sala há algumas semanas. Instigantes, eloquentes, incontornáveis, as manchas desenhadas pela fita adesiva fazem um retrato de mim. • As manchas de fita adesiva não se deixam transportar. Passo tinta procurando um efeito de decalque em papel poroso, fotografo, tento copiar com lápis, com tinta acrílica, caneta... nada! As manchas são como o momento que atravesso ao ser capturada por elas. • Nada me consola de uma saudade avassaladora. A tela junta no mesmo fotograma o que vivi nesses trinta anos, evocando com suas linhas entrecruzadas minhas impressões digitais, mapas e rendas enlaçadas pela cola. As seis manchas fotografadas juntas formam um quadrado com um vazio no centro, como um códex pelo avesso. Sou eu a mãe reunindo os filhos justamente por aceitar que sigam sem mim. É esse meu pungente auto-retrato.
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  • 15. • Também trabalhando sobre o códex, essa inspirada forma de reunir folhas de maneira tão eficaz, Sophie Calle lança mão de fotografias, textos, performance, entrevistas, misturando códigos e produzindo susto ali onde havia rotina. O objeto livro assume uma função surpreendente, ao permitir que faça uma catarse por meio do relato de um incidente traumático relatado dezenas de vezes, nas folhas esquerdas do livro, contrapostas a entrevistas que ela faz com pessoas encontradas ao acaso. A pergunta era “Qual a coisa mais dolorosa que já lhe aconteceu?” À medida que o livro avança, o relato da esquerda vai ficando menor, e a cor das letras vai clareando até não restar nada a não ser a imagem do telefone vermelho, que trouxe a notícia traumática. Essa imagem, do telefone sozinho, permanece como cicatriz incontornável, testemunha do luto realizado, assim como desse resto, sem sentido, sem função, que fica ali sem passar. Um pouco como o quadrado mágico no quadro de Durer, ou da lágrima desnudada do meu poema.
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  • 17. Se em vão se vê derramar / tão límpida lágrima sua / deixe aqui a gota nua / e em seu sonho amanhã / ela lhe amamentará. • Diante de uma explosão de lágrimas, adrenalinas, na crise em sua exuberância, a calma chega margeando um ponto de apoio e contenção. Uma lágrima, uma só, um lamento, depurado: no que se converteria? • Sophi Calle propõe a entrevista como uma das belas-artes. A questão dirigida ao outro como recurso para esculpir um “quantum”isolado, portátil, desdobrável: e com você, como foi? • O códex permite a obra de Calle: nas folhas do lado esquerdo, a descrição do momento traumático, revisitado até a náusea. Nas folhas do lado direito, as respostas à pergunta dirigida a pessoas encontradas ao acaso: “Qual a coisa mais dolorosa que já lhe aconteceu na vida?” • O “resultado” foi permitir que o incidente repetido nas folhas da esquerda perdessem a visibilidade, dissolvidas no movimento de escutar quem está ao lado.
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  • 20. • Bicicleta tem duas rodas. Ao destacar uma única roda, suspensa em um banquinho de cozinha, Duchamp faz pensar em solidão. Expor a roda sozinha dignifica o movimento que ela faz até mesmo quando suspensa no ar, sem correia, sem chão... • Em “A noiva desnudada por seus celibatários: mesmo”, a idéia de um revestimento da dor de amor, humanizado, amparado, ritualizado no estatuto da “noiva”, aquela jamais desposada, encontra no olhar dos celibatários, no plural, um ponto de vista que ampara e faz rir.
  • 21. • A rodilha, a carta, a mancha de cola, a folha do livro, a lágrima solta, a roda de bicicleta, essas “unidades” encadeadas, fazem sentido no olho que conceder seu imprescindível ponto de apoio. Seu olho é a lombada necessária à página.
  • 22. autorretrato • o oco do mundo se alojou na sala. • na cozinha fez um uivo, madrugada afora. • o tempo não passava. não passou. não passa. • mas esse poema no olho de quem lê • passa uma passagem • para a poesia do oco do mundo, • que se perfila, • em kilômetro, metro, quilo. • essa sombra do oco ali, sou eu, • eu sou aquilo. • e
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  • 25. • Cada um dos elementos da composição de Duchamp vai se esclarecendo por meio dos comentários e textos. Não há obra em o comentário. A instalação “instala”o amor em tempos dois mil, o celibato, a noiva, o desnudamento. Meu desenho faz muda o título para “A noiva vestida pelos celibatários: mesmo”, numa alusão à Duchamp e à minha tentativa de “vestir”o vaso, mantendo a “noividade”(uma noiva é aquela que não se casou, não de novo, noiva é a nova, a que ainda não é). Esse autorretrato me diverte e se presta como antídoto contra a solidão. A forma repetida é o vaso, o jarro, o côncavo, presente na rodilha e no pote.
  • 26. • AUTORRETRATO 1 - O pote e a rodilha • 2 -