Contribuição conapra 003 cnap-fiani documento final
1. CONTRIBUIÇÃO À CONSULTA PÚBLICA
NO 2, DE 13 DE DEZEMBRO DE 2013 –
REMUNERAÇÃO DOS PRÁTICOS
A metodologia proposta na Consulta Pública No 2 busca
estabelecer a remuneração dos práticos a partir de uma
equação de regressão envolvendo as características do serviço
prestado denominada RRR, com base em dados (conforme
afirmado) levantados a partir de variáveis observadas norteamericanas, com ajuste pela paridade do poder de compra.
Como veremos mais adiante, tal metodologia – o emprego de
uma regressão para determinar a remuneração dos práticos
em cada Zona de Praticagem (ZP) –, além de ser absolutamente
inusitada à luz da experiência internacional do setor,
desconsidera as características econômicas da prestação do
serviço. Antes porém, cabe destacar como primeira contribuição
que a regressão RRR é apresentada sem que sejam apresentados
os dados utilizados e as regressões alternativas testadas,
constando surpreendentemente no INFORME No2 da Secretaria
Executiva da Cnap que, após terem sido utilizados para a
construção da referida regressão, os dados “não existem mais”
(sic), o que caracteriza procedimento que viola os princípios
profissionais mais básicos de análise econométrica, e não
contribui para a credibilidade da decisão do regulador.
Esta contribuição, contudo, não visa apenas a discutir a
construção obscura da RRR. Esta contribuição procura também
demonstrar: (1) que não há base econômica para a construção
de uma regressão como a RRR para definir a remuneração dos
práticos, independentemente dos indicadores estatísticos de
qualidade da regressão (que não podem, de toda forma, serem
avaliados, dada a declaração de que os dados “não existem
mais), e (2) que a experiência internacional não apresenta
2. 2
nada remotamente parecido à utilização de algo como a RRR
para determinar a remuneração dos serviços de praticagem, o
que se explica pelo simples fato a ser demonstrado em (1) de
que o tratamento desta remuneração por uma equação de
regressão – ainda mais extrapolando dados de outro país –
desrespeita completamente as características econômicas
fundamentais que particularizam o serviço de praticagem.
Como é sabido, o serviço de praticagem constitui um dos
elementos fundamentais no comércio de qualquer nação,
merecendo, portanto, cuidado especial na formulação das
regras que regulam a prestação deste serviço. Também é
amplamente sabido que por suas características econômicas, o
serviço de praticagem não favorece a competição, podendo
esta, caso seja imposta ao setor, provocar danos à sociedade
que superam em muito os benefícios oriundos de eventuais
reduções nos preços. Isso porque, dada a elevada
especificidade do serviço de praticagem e a assimetria de
informação daí resultante entre o prestador e a parte que
contrata o serviço, a introdução forçada de competição por
preços leva à redução na qualidade no conhecido fenômeno da
seleção adversa. Ocorre que o problema da seleção adversa no
serviço de praticagem envolve significativas externalidades,
negativas e positivas, o que amplifica a magnitude do
problema.
Inicialmente é preciso considerar que a desatenção à qualidade
do serviço de praticagem traz em si o risco de externalidades
negativas expressivas. Essas externalidades negativas podem
decorrer do uso indevido dos espaços geográficos de
navegação e portuários, consequência de uma utilização de
ativos humanos sem qualificação adequada, ou com
intensidade excessiva, ou ainda de investimento em capital
humano insuficiente como resultado de uma competição
exacerbada que reduza a remuneração dos práticos para níveis
3. 3
inferiores aos que seriam necessários para justificar o
expressivo investimento em capital humano necessário para a
formação de práticos qualificados.
Os efeitos negativos dessas ameaças teriam impactos severos
não apenas para os agentes mais diretamente envolvidos – as
empresas de transporte marítimo, os trabalhadores nos portos
e vias navegáveis e as comunidades vizinhas – mas também
para todo o comércio internacional do país, afetando um
conjunto de bens e serviços bem mais amplo do que as
atividades de transporte aquaviário propriamente ditas, uma
vez que acidentes com navios retardam os fluxos comerciais,
quando não provocam graves prejuízos materiais, danos
ambientais ou perda de vidas humanas.
A cadeia produtiva afetada por um serviço de praticagem
inadequado, ou mesmo ausente envolve as múltiplas etapas
nas atividades de exportação e importação no país. Um
exemplo dramático foi o encalhe do navio-tanque Exxon
Valdez, em 1989, no Alasca, ocasionado por falha de navegação.
O navio carregava 1.263.000 barris de petróleo e o acidente
causou um prejuízo de US$ 25 milhões em reparos do navio,
perda de carga avaliada em US$ 3,4 milhões e danos
ambientais catastróficos, cuja reparação teve custos finais que
excederam a US$ 2 bilhões. Não havia prático a bordo, pois a
praticagem na região tinha sido considerada desnecessária.
Por outro lado, o serviço de praticagem pode envolver também
externalidades positivas. Isso porque se trata de um serviço
essencial ao funcionamento da infraestrutura de transportes
aquaviários, tendo a qualidade do serviço impacto direto no
desempenho da cadeia logística que se serve dos portos e vias
navegáveis e, assim, no comércio exterior do país, com reflexos
econômicos que se estendem muito além dos atores
diretamente envolvidos – os práticos e as empresas de
4. 4
transporte marítimo.
Portanto, o serviço de praticagem é atividade que, quando
desenvolvida adequadamente, ou seja, quando executada não
só por profissionais com elevado nível de investimento em
capital humano, mas também com a necessária coordenação
nas circunstâncias em que atuam, gera externalidades
positivas para o sistema econômico. Isso porque, ao atender de
forma segura, rápida e eficiente às embarcações que se
movimentam nos portos e vias navegáveis, promove maior
rapidez nos fluxos de comércio exterior do país, fazendo sentir
seus efeitos positivos sobre as atividades produtivas de
inúmeros bens e serviços, efeitos estes que não se refletem
diretamente no mercado de serviços de praticagem e, por
conseguinte, na remuneração desses mesmos serviços, um caso
típico de externalidades positivas.
Consequentemente, no caso da praticagem, o investimento em
níveis adequados em capital humano para as necessidades do
serviço, bem como sua coordenação e harmonização têm um
efeito positivo sistêmico para a logística do transporte
aquaviário, padronizando o curso da navegação e otimizando
as rotinas de atracação e desatracação das embarcações,
maximizando assim as possibilidades de agilização do tráfego,
dentro dos requisitos de segurança.
Todas estas constatações indicam que a remuneração do
serviço de praticagem é tarefa importante, complexa, delicada
e de importância estratégica, e que exige ponderação dos
fatores de custos (inclusive o custo do investimento em capital
humano) e de demanda na sua implementação. Todavia, o
método proposto na Consulta Pública no 2, de 13 de dezembro
de 2013 não leva em conta estes princípios consagrados nas
experiências de regulação de vários países, e procede de forma
absolutamente equivocada no tocante à definição da
5. 5
remuneração dos práticos, quando se considera não apenas a
teoria econômica convencional, mas também a experiência
internacional de regulação dos serviços de praticagem.
Com efeito, na metodologia citada, a remuneração dos práticos
é estabelecida a partir de uma regressão estatística com dados
(segundo informado) dos Estados Unidos. O equívoco da
proposta apresentada fica imediatamente evidente quando se
considera mesmo que superficialmente as características
econômicas básicas do serviço de praticagem. Basta uma
rápida consideração das condições em que o serviço é prestado
para imediatamente identificar que ele constitui um ativo
específico, tanto em função das condições de custo que
individualizam cada Zona de Praticagem (ZP), quanto das
condições de demanda (movimentação e tipo de navios que
frequentam cada ZP). Na verdade, todas as condições
apontadas na teoria econômica para que um ativo seja
específico estão presentes no serviço de praticagem:
a) Especificidade de localização. Diz-se haver especificidade
de localização quando é impossível realocar o ativo em outra
localização, o que Oliver Williamson chama de “condição de
imobilidade”. Com isso, uma vez instalado, o valor do ativo está
condicionado ao local escolhido, pois é impossível transferi-lo
para outro local. Não é preciso refletir muito para perceber que
as condições geográficas peculiares de cada Zona de
Praticagem (ZP) caracterizam especificidade de localização:
suas condições geográfias (profundidade, correntes, acidentes
naturais etc.) são únicas e não podem ser transferidas para
qualquer outro lugar. Estas condições peculiares determinam as
características do serviço de praticagem.
b) Especificidade física. Neste caso o ativo é individualizado
em relação aos demais em função de algum atributo físico.
Assim, particularidades na composição física, no desenho ou
6. 6
em qualquer outro atributo do ativo, que o diferenciem
substantivamente de ativos semelhantes, são atributos de
especificidade física. Também fica evidente que as Zonas de
Praticagem (ZPs) são afetadas por essa condição, determinada
pelas condições geográficas e climáticas que tornam única e
peculiar cada uma delas.
c) Especificidade de ativos dedicados. Nesse caso o que
torna o ativo específico é o fato de que, caso a demanda pelo
ativo não se realize, o recurso em questão não encontrará
utilização alternativa, permanecendo ocioso. Também é fácil
perceber que esse tipo de especificidade se encontra presente
nos serviços de praticagem, pois os investimentos realizados
em capital humano se encontram vinculados à efetivação da
demanda por esses serviços em dada ZP. Ou seja: o aprendizado
realizado pelo prático somente se aplica àquela ZP, sendo um
ativo dedicado que somente se justifica pela demanda da ZP em
questão. Um outro aspecto desta especificidade, presente nos
serviços de praticagem, é que os ativos devem ser
dimensionados para o atendimento a picos de demanda. Se
fossem subdimensionados, em períodos de pico seriam
geradas externalidades negativas. O problema é que cada ZP
tende a ter picos de demanda específicos.
d) Especificidade de ativos humanos. uma das principais
fontes para esta especificidade, e a mais importante para o
serviço de praticagem é o “aprender fazendo” (learning by
doing). O aprender fazendo acontece porque existem
experiências e conhecimentos que não podem ser codificados e
transmitidos de imediato a baixo custo. Somente acumulando
tempo de prática na atividade é que o indivíduo pode ter
acesso a esse conhecimento. No caso do serviço de praticagem,
não há forma de codificar e transmitir de forma confiável todas
as manobras adequadas a uma ZP. Somente o tempo e a
experiência podem ensinar o que é necessário. Uma segunda
7. 7
fonte de especificidade de ativos humanos é aquela oriunda do
trabalho em equipe. Muitas vezes a chave do desempenho não
está apenas nos indivíduos isoladamente, mas em como eles
trabalham em equipe. Trata-se de uma fonte de especificidade
menos evidente no serviço de praticagem, mas também
relevante, pois a convivência de práticos de uma mesma ZP
permite a troca de experiências sobre problemas comuns à
realização do serviço e a aquisição dos conhecimentos
necessários à sua coordenação da forma mais eficiente.
Todas as especificidades acima citadas afetam os custos dos
serviços de praticagem. Entre as condições de custo que
tornam a prestação do serviço um ativo específico destaca-se o
conjunto de condições geográficas que afetam uma ZP. Tal
conjunto de condições geográficas obviamente é único e
específico para cada ZP, transformando-a assim em uma
entidade particular do ponto de vista dos investimentos
necessários em capital humano. Isto porque as condições de
relevo submarino ou fluvial, correntes, acidentes geográficos
etc. simplesmente não podem ser reproduzidas ou transferidas
de um local para outro. Elas são únicas em cada local, e os
práticos têm de conhece-las e saber lidar com elas. Dito de
forma um pouco mais técnica, o tempo investido em capital
humano adequado para a prestação de serviço em uma ZP é
absolutamente inútil em outra ZP.
Cada uma destas fontes de especificidade de ativos caracteriza
cada ZP no Brasil e no mundo como sendo absolutamente
individual e peculiar. Se as ZPs são únicas no Brasil, com
grandes diferenças entre si, o que dirá uma comparação com as
ZPs de outro país. Por conseguinte, não há nenhuma base
econômica para o procedimento adotado de se estabelecer a
remuneração dos práticos em cada ZP a partir de dados das
características médias do serviço nas ZPs dos Estados Unidos.
Veremos mais adiante que nada sequer semelhante a isso é
8. 8
tentado na experiência internacional.
Assim, a especificidade do serviço de praticagem é
determinada primordialmente pela especificidade da ZP.
Somente os práticos com experiência em uma dada ZP têm
condições de oferecer o serviço adequado. Isso torna os custos
em investimento em capital humano – obviamente a parte mais
importante dos custos totais de uma ZP, únicos para cada ZP.
Cumpre destacar que o investimento em capital humano
adequado a um ZP por parte do prático não se encerra com a
obtenção da autorização para a realização do serviço, mas
prossegue durante a vida útil do prático, em um processo de
learning by doing que responde a mudanças nas caraterísticas
físicas da ZP, nos tipos de navios que são recebidos, na
infraestrutura portuária etc. Esse processo de learning by doing
acentua ao longo do tempo a peculiaridade do investimento em
capital humano em uma ZP. Desta forma, comparações entre
diferentes ZPs ocultam investimentos em capital humano,
tanto quantitativa como qualitativamente muito diferentes.
Mas não é apenas pelo lado dos custos que cada ZP se
distinguem das demais. A demanda também atua
diferenciando cada ZP das demais. Os tipos de navios,
arqueação bruta, variação sazonal dos fluxos, volume total de
carga movimentada, todos estes fatores respondem de forma
diferente em cada ZP, não apenas em função do país em que
cada ZP está instalada (pois é reconhecido que o comércio
internacional se distribui de forma heterogênea), mas também
de acordo com a região do país em que a ZP está instalada
(assim como do tipo de carga que a ZP movimenta). Estes fatores
particularizam a demanda de cada ZP, tornando comparações
entre ZPs economicamente sem sentido.
Desta forma, cada ZP constitui um ativo específico com
9. 9
especificidades de custo (investimento quantitativo e
qualitativo em capital humano distinto de acordo com as
características geográficas de cada ZP) combinados com
especificidades de demanda (características do fluxo de
mercadorias e passageiros em cada ZP). Reduzir ZPs distintas a
um referencial comum não faz sentido algum do ponto de vista
econômico, independentemente da qualidade da regressão
obtida (o que também não pode ser avaliado, dada a ausência
de dados), pois não faz sentido econômico reduzir recursos
econômicos com especificidades de custos e de demanda a uma
referência comum.
Contudo, é exatamente o que é feito na metodologia proposta
na sua equação RRR, que estabelece a remuneração dos
práticos na forma que se segue (p. 31):
Após a elaboração de diversos testes e
procedimentos para selecionar um modelo
adequado, chegou-se à seguinte forma funcional
utilizada para extrapolar as determinantes da
remuneração líquida por hora de manobra na
amostra de portos americanos para a equivalente
em portos brasileiros:
RRR = (2.741,03 + 6,17 x N - 27,88 x Dm- 6,09 x
(M/N) -169,40 x Tm + 0,15 x Dm2 + 6,38 x Tm2) x
PPP/2
Onde: RRR = Remuneração Líquida por hora de
manobra por prático; N = número de práticos da
ZP; Tm = Tempo médio de manobra; Dm = Distância
média percorrida durante as manobras; M =
número de escalas realizadas na ZP (onde M =
número de manobras/2,2); PPP = Paridade do
Poder de Compra do Dólar para o Real.
A referida equação RRR pressupõe que os fatores listados
10. 10
(número de práticos da ZP, tempo médio de manobra, distância
média percorrida durante as manobras, número de manobras
realizadas na ZP) afetam a remuneração dos práticos
brasileiros da mesma forma que afetam a remuneração dos
práticos
norte-americanos.
Isto
é
economicamente
injustificável, em função das especificidades de custos e de
demanda em cada ZP, conforme vimos anteriormente. Deve-se,
portanto, indagar quais são os argumentos apresentados para
justificar esta extrapolação dos Estados Unidos para o Brasil.
Com efeito, lê-se à página 29 do documento da Consulta
Pública No 2 os argumentos para justificar esta surpreendente
extrapolação:
Na escolha do benchmarking internacional,
considerou-se os Estados Unidos como referência
ideal em função de apresentar um elevado PIB per
capita, ser o maior pais importador do mundo e o
segundo maior exportador (somente atrás da
China), possuir uma extensão territorial
comparável à brasileira, apresentar grande
diversidade de portos, e estar sujeito a um modelo
de praticagem similar ao que se deseja para o caso
brasileiro (monopólio privado regulado pelo setor
público).
Trata-se de argumentação cuja coerência econômica é escassa,
quando não inexistente. Vamos considerar cada argumento
apresentado para a escolha dos Estados Unidos para ser
extrapolado para o caso brasileiro:
1) ...“Considerou-se os Estados Unidos como referência ideal em
função de apresentar um elevado PIB per capita...” O fato de um
país ter PIB per capita elevado não justifica escolhê-lo para
“benchmark”, porque: (a) Não há nenhuma relação entre o
tamanho do PIB e as especificidades de custos das ZPs
brasileiras, que resultam em grande medida de suas
11. 11
características geográficas, as quais, obviamente, não estão
correlacionadas nem com o PIB norte-americano, nem com o
PIB de qualquer outro país; (b) Sendo o PIB norte-americano
não apenas “elevado”, como diz o trecho citado, mas
efetivamente muito superior ao brasileiro (o PIB per capita
nominal dos Estados Unidos supera os US$ 50 mil dólares,
cinco vezes maior do que o PIB per capita nominal brasileiro),
não apenas o volume de comércio nos Estados Unidos é superior,
como também mais diversificado quando comparado com o
brasileiro, resultando assim que o padrão de movimentação de
cargas e passageiros nas ZPs dos Estados Unidos é
substancialmente distinto daquele observado nas ZPs brasileiras.
Portanto, também não há relação entre as especificidades de
demanda das ZPs norte-americanas com as ZPs brasileiras. Isso
sem mencionar que as diferenças de PIB per capita geram
grandes diferenças em termos de investimentos e manutenção
da infraestrutura aquaviária nos Estados Unidos e no Brasil, e
que repercutem diferentemente nos preços dos serviços em
cada país.
2) “... ser o maior país importador do mundo e o segundo maior
exportador...” Obviamente, tal como no item (1) acima, não há
qualquer correlação entre as especificidades de custos das ZPs
brasileiras com as ZPs norte-americanas em função dos
Estados Unidos serem uma grande exportador e importador,
pois as especificidades de custos derivam em grande medida
das características geográficas das ZPs, que nenhuma relação
apresentam com a participação do país no comércio global. E
quanto às especificidades de demanda? Segundo dados da
Organização Mundial do Comércio, em 2012 a participação
brasileira nas exportações mundiais de mercadorias foi de
1,32%, enquanto que a participação nas importações mundiais
de mercadorias foi de 1,25%. No mesmo período a participação
norte-americana nas exportações globais de mercadorias foi de
12. 12
8,40% e nas importações globais de mercadorias foi de
12,56%. Ou seja, os Estados Unidos têm sete vezes a
participação brasileira nas exportações mundiais, e 10 vezes a
participação brasileira nas importações. Trata-se de um volume
muito maior, e como foi dito anteriormente, mais diversificado, o
que implica demandas com peculiaridades radicalmente
distintas da demanda brasileira. Mais uma vez, temos um
argumento que não faz sentido economicamente.
3) “... possuir uma extensão territorial comparável à
brasileira...”. Este argumento é surpreendente. Basta refletir
por um momento para perceber que não há qualquer relação
entre as especificidades de custos das ZPs brasileiras – que
derivam de suas condições geográficas – ou entre as
especificidades de demanda – que resultam do nível de
desenvolvimento econômico e diversificação da estrutura
produtiva do país – e fato de a área dos Estados Unidos ser
“comparável” ao tamanho do Brasil.
4) “... apresentar grande diversidade de portos...”. Dadas as
especificidades de localização e físicas, juntamente com as
especificidades de demanda que individualizam cada ZP, é fácil
perceber que o fato de os “portos” (sic, pois não se trata de
portos apenas, mas de Zonas de Praticagem) possuírem
“grande diversidade” não significa que suas especificidades de
custos e de demanda sejam comparáveis às brasileiras. Dada a
importância das características geográficas na determinação
das especificidades das ZPs seja aqui ou nos Estados Unidos, e
dado que estas características geográficas são obviamente
únicas para cada ZP, a grande diversidade de características de
ZPs nos Estados Unidos e no Brasil resulta em dois conjuntos
heterogêneos e totalmente díspares de ZPs (ou “portos”, como
prefere o autor do texto), e não em um único conjunto com
elementos semelhantes.
13. 13
5) “... estar sujeito a um modelo de praticagem similar ao que se
deseja para o caso brasileiro (monopólio privado regulado pelo
setor público)”. O fato de os dois países adotarem modelos
parecidos é condição necessária para qualquer comparação,
mas mais uma vez não faz com que as especificidades de
custos, que resultam em grande medida de especificidades
geográficas (que vale repetir são, por definição, únicas) e as
especificidades de demanda não comprometam o fundamento
econômico da correlação estatística obtida.
Em síntese: não foi oferecido nenhum argumento coerente para
que se acredite que as correlações estatísticas encontradas –
vale enfatizar, de forma não transparente – para o caso norteamericano possam ser transpostas para o caso brasileiro. Tratase de método sem base teórica para a sua aplicação aos serviços
de praticagem no Brasil.
Tenta-se argumentar adicionalmente afirmando-se ter obtido
bons resultados ao se realizar uma análise de cluster (p. 30):
A partir do levantamento das informações de Zonas
de Praticagem dos EUA, que possibilitaram o
conhecimento de variáveis como número de
manobras, número de práticos, tempos de
praticagem e remunerações por manobra, por hora
de manobra e por prático entre outras, buscou-se
verificar se as Zonas de Praticagem brasileiras
poderiam ser comparadas com as americanas em
relação a essas variáveis. Foi então elaborada uma
Análise de Clusters reunindo as Zonas de
Praticagem dos Estados Unidos e as do Brasil para
verificar se essas poderiam ser consideradas
semelhantes de acordo com as variáveis
mencionadas.
A partir dessa análise, pode-se concluir que, as
14. 14
Zonas de Praticagem americanas e brasileiras são
comparáveis, pois são semelhantes em relação às
variáveis analisadas. Assim sendo, concluiu-se que é
possível utilizar as informações das Zonas de
Praticagem americanas como referência para
projetar as remunerações dos práticos em portos
brasileiros
Uma análise de cluster ou análise de agrupamentos emprega
técnicas estatísticas para agrupar elementos de acordo com as
suas semelhanças, sendo “semelhança” entendida como
diferença entre valores de variáveis previamente selecionadas.
Obviamente, todo o problema está nas variáveis selecionadas, e
em que medida elas efetivamente captariam as especificidades
de custos e de demanda apontadas anteriormente. Como a
definição e a construção das variáveis está sujeita a inúmeras
manipulações, e como há diversos métodos de análise de
aglomerados que produzem resultados diferentes, a mera
afirmação de que “A partir dessa análise, pode-se concluir que,
as Zonas de Praticagem americanas e brasileiras são
comparáveis, pois são semelhantes em relação às variáveis
analisadas”, sem indicar quais variáveis foram empregadas,
como elas foram medidas, quais dados foram utilizados e que
método foi empregado não é suficiente para reduzir a
impressão de arbitrariedade e falta de transparência no
aspecto central da metodologia.
Não é por acaso, assim, que a experiência internacional de
regulação dos serviços de praticagem sempre optou mais por
arbitrar os preços do que regulá-los diretamente, utilizando
frequentemente como ponto de partida séries de preços
consolidadas pela experiência histórica. Quando muito a
regulação interfere na estrutura de preços, sem pretender
determinar diretamente os seus níveis. É o que pode ser visto
na Tabela 1.
15. 15
TABELA 1 – SÍNTESE DA REMUNERAÇÃO DOS PRÁTICOS EM ALGUNS DOS
PRINCIPAIS PAÍSES
PAÍS
ALEMANHA
REGIME DE
PRESTAÇÃO DE
SERVIÇO
(PÚBLICO, SE
OS PRÁTICOS
SÃO
FUNCIONÁRIOS
PÚBLICOS,
CASO
CONTRÁRIO
PRIVADO)
Privado (a
estação e a
lancha
pertencem ao
Estado, mas são
administradas
pelos práticos)
HÁ
REGULAÇÃO
DO PREÇO DO
SERVIÇO?
QUEM
REGULA?
REGULAÇÃO DOS PREÇOS
Sim
Ministério dos
Transportes,
Construção e
Des. Urbano
Não há metodologia. Proposta do
Budenlotskammer (o conselho nacional dos
práticos, ao qual todos os práticos alemães são
obrigatoriamente filiados) é submetida à
consulta das partes interessadas e depois os
preços são fixados anualmente pelo Ministério
dos Transportes.
ARGENTINA
Privado
Não
-
Não há metodologia. Preços estabelecidos por
livre negociação.
AUSTRÁLIA
Privado
Sim
Governo
Federal ou
Estadual
Não há metodologia. Cada estado tem livre
atuação na negociação dos preços, e fixa tabelas
levando em consideração fatores locais.
BÉLGICA
Misto (há
práticos que são
servidores
públicos, e
outros que
atuam por meio
de empresas
privadas).
Quando o serviço
é prestado por
empresas
privadas, é pelo
regime de
concessão.
Sim
Autoridade
Marítima
Não há metodologia, os preços são estabelecidos
em negociação sindical no caso dos funcionários
públicos e são fixados previamente no caso de
concessões públicas.
Não há metodologia. Quatro Pilotage Authorities
no país negociam com as associações de
praticagem.
O preço é aprovado pela autoridade marítima.
Não há metodologia
CANADÁ
Privado
Sim
Ministério do
Transporte e
Autoridades
Portuárias
DINAMARCA
Público
Sim
Autoridade
Marítima
16. 16
ESTADOS
UNIDOS
Privado
Sim
Comissões dos
Praticagens
(estaduais)
As comissões de praticagem, os órgãos dos
Governos Estaduais e os legislativos estaduais
(via leis estaduais) fixam os preços a serem
cobrados nos portos de cada Estado. O mais
comum é que a comissão de praticagem exerça
esse papel, até mesmo ao indicar os valores ao
legislativo. Os preços variam de um Estado a
outro, mas em geral levam em conta os custos
fixos, o tempo despendido nas manobras, a
tonelagem bruta, o calado e profundidade do
navio, a rota, a distância, eventuais custos extras,
o adicional noturno e as condições climáticas e
náuticas de cada área de praticagem. Quando as
taxas são revistas, leva-se em conta até mesmo o
preço que vem sendo praticado em outros
portos.
FINLÂNDIA
Público
Sim
Min. Tráfego e
Comunicações
Fixação de preços pelo Estado. Variam de acordo
com o nível de tráfego e características de cada
ZP.
Min. dos
Transportes
Não há metodologia. Proposta apresentada pelo
presidente do sindicato dos práticos é discutida
por assembleia composta de práticos, usuários
dos portos, armadores, autoridades portuárias e
pelo Diretor do Departamento de Competição e
Preços
Sim
Autoridade
para
Consumidores
e Mercados
(ACM)
O processo de fixação da tarifa se inicia com a
apresentação de proposta de nova tarifa por
parte da corporação dos práticos, acompanhada
da devida justificativa, ao final do primeiro
semestre. A ACM toma uma decisão até o final do
ano, que passa a valer no ano seguinte e é
passível de recurso. Recentemente a KPMG foi
contratada pela corporação dos práticos para
introduzir melhorias exclusivamente na
estrutura de tarifas. Estas melhorias foram
introduzidas após consultas com as partes
interessadas.
Os preços máximos são aprovados pelo
Ministério, porém sem empregar qualquer
metodologia: utiliza-se como referência os
preços históricos em cada ZP.
Não há metodologia, os preços são definidos em
livre negociação entre a autoridade portuária
(em geral uma empresa provada) e os práticos.
FRANÇA
HOLANDA
Privado
Privado
Sim
JAPÃO
Privado
Sim
Min. do
Transporte
REINO UNIDO
Privado
Não
-
17. 17
Na Tabela 1 são identificados: país; o regime de prestação de
serviço (com a indicação de público se os práticos são
funcionários públicos, caso contrário recebendo a indicação de
privado, ou ainda misto se houver os dois tipos); se há ou não
regulação do preço do serviço (no sentido de haver alguma
interferência de algum órgão estatal na fixação efetiva dos
preços dos serviços); quem é o responsável pela regulação dos
preços dos serviços e, finalmente, na última coluna vê-se como
ela acontece. Cabe destacar que apenas foi considerada na
Tabela 1 a regulação de preços, não sendo considerada a
regulação das condições em que os serviços são prestados. Da
mesma forma, apenas consideramos a regulação de preços que
efetivamente ocorre, o que excluiu, por exemplo, o caso da
Argentina, onde a tabela de preços apresentada pelo
Ministérios dos Transportes é pro forma, sendo ignorada nas
negociações entre as partes na contratação do serviço.
Temos assim que Reino Unido, Bélgica, Argentina e Canadá
adotam livre negociação nos preços dos serviços. Nenhum país
na Tabela 1 extrapola resultados obtidos em regressão
estatística com ZPs nos Estados Unidos, ou em qualquer outro
país do mundo, para determinar os preços dos serviços de
praticagem. Alemanha, França e Holanda partem de propostas
dos próprios práticos para estabelecerem os preços de seus
serviços. Nos demais países, os preços são fixados
considerando características locais. Em nenhum deles se busca
transportar as condições de outros países para definir os seus
preços para os serviços de praticagem.
Desta forma, conscientes dos riscos de externalidades
negativas e da perda de externalidades positivas necessárias à
competitividade internacional que a prestação inadequada dos
serviços de praticagem pode acarretar, cada país adotou
sistemas de fixação de preços flexíveis, que permitem ajustes
quando necessários – no limite, vários países adotam mesmo a
18. 18
livre negociação – e que levam em conta prioritariamente os
fatores locais na determinação de preços, frequentemente
partindo de preços estabelecidos historicamente e, portanto,
testados na prática quanto aos seus efeitos sobre a prestação dos
serviços de praticagem.
Neste sentido destaca-se o caráter inusitado da metodologia
ora proposta na Consulta Pública No. 2 com a inclusão da
equação de regressão RRR para extrapolar o caso dos Estados
Unidos para o Brasil. Além de surgir de forma pouco
transparente, a equação RRR (cujo exame é totalmente
prejudicado pela falta dos dados e de informações
indispensáveis, tais como os resultados que teriam sido
obtidos em outras regressões testadas) não possui base
econômica que a sustente (conforme foi visto ao longo deste
texto) e representa uma iniciativa sem qualquer paralelo na
experiência internacional de países com vasta experiência na
administração dos serviços de praticagem, conforme retratado
na Tabela 1.
A adoção da RRR representa, assim, uma atitude injustificável
tanto economicamente quanto do ponto de vista regulatório
para a administração do transporte aquaviário no Brasil,
devendo ser imediatamente abandonada.
Ronaldo Fiani