Diáspora Africana no Ceará: experiências de inserção de estudantes imigrantes africanos no contexto universitário iv congresso de estudos culturais. ercilio langa
Este documento descreve a diáspora africana no estado do Ceará, Brasil, focando nas experiências de estudantes africanos em universidades. Milhares de estudantes de países africanos vieram para estudar no Ceará, enfrentando dificuldades de inserção social e discriminação racial, mas formando associações estudantis. O documento analisa suas vidas cotidianas, o preconceito que enfrentam e como as universidades lidam com sua presença.
Inclusao da historia cultura afro-brasileira e indigena nos currículos
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1. 881
Diáspora Africana no Ceará: experiências de inserção de estudantes
imigrantes africanos no contexto universitário
Ercílio Langa1 – UFC, Brasil
Resumo: Neste paper, abordo as experiências de inserção de estudantes africanos em universidades
públicas e privadas brasileiras. A partir da análise da situação desses sujeitos inseridos no contexto
universitário vivenciado em Fortaleza-CE, abordo o seu cotidiano, o encontro com a alteridade, o
preconceito e discriminação raciais, as dificuldades de inserção nas faculdades, assim como seus dramas
sociais ao final dos cursos, quanto à possibilidade de regresso ao seu país de origem ou, de permanência
em território brasileiro. De fato, as universidades brasileiras, muitas vezes desconhecem as realidades
desses estudantes e de seus países de origem, vistos apenas, como consumidores de conhecimento, cujas
experiências são subaproveitadas ou desperdiçadas. Essa migração estudantil tem gerados grupos,
movimentos e associações estudantis a congregar estudantes africanos baseados em distinções nacionais,
portanto, bastante estéreis e sem capacidade de negociação com as instituições de ensino superior
brasileiras. Colocados na posição de estrangeiros e negros, muitas vezes, os estudantes africanos vivenciam
um estado de anomia social, onde tem que “se virar” sozinhos, acabando por adotar uma identidade
capitalista, baseada no consumo.
Palavras-chave: Estudantes africanos; Brasil; universidades; experiências; inserção.
1 Doutorando e Mestre em Sociologia pela Universidade Federal do Ceará (UFC), bolsista CAPES. Foi
bolsista de produtividade do CNPq 2012-2013. Licenciado em Sociologia na Universidade Eduardo
Mondlane (Moçambique) e Bacharel em Ciências Sociais pela mesma universidade. E-mail:
ercílio.langa@gmail.com.
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Introdução: apresentando a diáspora africana no Ceará
Em suma, o metropolitano aceitaria o imigrante se
ele fosse invisível e mudo; ora, a partir de certa
densidade demográfica, o fantasma adquire uma
terrível consistência; ainda mais pelo fato de que,
mais seguro por causa do número, ousa, ao contrário,
falar alto, e em sua língua natal, a às vezes vestir-se
com seu traje tradicional. Albert Memmi.
A presença de estudantes africanos no estado do Ceará, na condição de
imigrantes, teve início na segunda metade da década de 1990, com o primeiro grupo
oriundo de Angola. Nesse período, vinham somente estudantes de países africanos que
falam a língua portuguesa para integrar-se na Universidade Federal do Ceará (UFC),
através do Programa de Estudantes Convênio - de Graduação (PEC-G).2 A partir de
1998, inicia-se a imigração de estudantes bissau-guineenses e cabo-verdianos e, dois
anos depois, estudantes são-tomenses, angolanos e moçambicanos. No início dos anos
2000, há um aumento significativo do número de estudantes africanos residentes no
Ceará, cuja maioria vem estudar em faculdades particulares, com contratos firmados
em seus países de origem, a partir de publicidade e vestibulares realizados em Guiné-
Bissau. O aumento da imigração de estudantes africanos para o Brasil, no início do
século XXI, também foi impulsionado pelo discurso governamental do presidente Luiz
Inácio “Lula da Silva” e sua política de cooperação e aproximação com a África.3
Tal política de cooperação, em curso, visa particularmente atingir o ensino
superior, através de criação de distintos mecanismos, como estágios profissionais,
bolsas de estudo e convênios, no sentido de viabilizar a vinda de africanos para estudar
no Brasil. No contexto de diferentes estratégias mobilizadoras, os estudantes saem de
seus respectivos países com expectativas acadêmicas em relação ao Brasil, devido ao
maior nível de desenvolvimento econômico, tecnológico e de produção acadêmica,
alimentando esperanças de facilidade de inserção por conta de uma língua e culturas
em comum – a língua portuguesa, a culinária, a religiosidade e a cultura negra trazida
pelos escravos a permear a vida brasileira.
De acordo com Mourão (2009), nos anos 2000, os estudantes africanos
2 Programa de Estudantes Convênio – de Graduação, fruto da cooperação na área da educação e formação
superior entre o Brasil e países em desenvolvimento, administrado de forma conjunta pelo Ministério das
Relações Exteriores e pelo Ministério da Educação brasileiros, fazendo parte dele 45 países, com 32 países
efetivos que enviam estudantes de África, da América Latina e de Timor-Leste. O continente africano
apresenta o maior contingente de alunos, com 20 países que enviam estudantes todos os anos. Em 2010,
haviam ingressado nas universidades federais e estaduais brasileiras, 383 estudantes africanos, em sua
maioria, oriundos de Guiné-Bissau, Cabo-Verde e Angola. No mesmo ano, estavam no Brasil, ao abrigo
desse programa e outros similares cerca de 18.917 estudantes oriundos dos Países Africanos de Língua
Oficial Portuguesa (PALOP).
3 Ao longo dos oito anos do governo Lula, de 2003 a 2010, o intercâmbio estudantil entre o Brasil e países
africanos foi intensificado. Em seus dois mandatos, o presidente Lula visitou 27 países africanos, enquanto
seu antecessor, Fernando Henrique Cardoso, visitou apenas três países.
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participantes do convênio com universidades públicas brasileiras se autodenominavam
“comunidade africana em Fortaleza”, incluindo, particularmente, jovens de
nacionalidades cabo-verdiana e bissau-guineense, então unidos e voltados para
questões comuns, como adaptação e resolução de problemas cotidianos. A autora
argumenta que, mesmo assim, essa união na diáspora não dissipou as diferenças
históricas de classe, renda, prestígio e grau de escolaridade entre os cidadãos oriundos
dos dois países. Ao longo dos anos, o número de estudantes africanos no Ceará cresceu,
constituindo um contingente de imigrantes a tornar-se complexo em sua diversidade.
Já Baessa (2005) constata que, devido ao número crescente de estudantes
guineenses e cabo-verdianos na cidade, esses sujeitos passam a estabelecer maiores
distinções entre si, demarcando suas nacionalidades específicas, contrapondo-se à
denominação anterior de “comunidade africana”. Atualmente, verifica-se um crescente
segmento de estudantes de países, classes sociais e credos religiosos distintos, oriundos
não apenas de países lusófonos, mas também de países de expressão inglesa e francesa,
como é o caso da Nigéria e da República Democrática do Congo.
Em 2011, a Polícia Federal do Ceará registrou mil, duzentos e sessenta
estudantes africanos no estado, dos quais mil cursavam diversas faculdades
particulares, cento e trinta estavam integrados na Universidade Federal do Ceará e
vinte na Universidade Estadual do Ceará (UECE), sendo a maioria proveniente dos
países africanos de língua oficial portuguesa (PALOP) (BRÁS, 2011). De fato, o número
de estudantes se apresenta muito maior do que o cadastrado pela Polícia Federal, pois
muitos estudantes se encontram em situação irregular. Uma parcela significativa de
estudantes, a maioria, vinculada às faculdades particulares, vivenciam condições
precárias de vida, em meio a preconceito e discriminação raciais.
Denomino diáspora africana4 ao crescente à presença de estudantes – oriundos
de Angola, Cabo-Verde, Guiné-Bissau, Moçambique, Nigéria, República Democrática
do Congo e São-Tomé e Príncipe, Senegal – no Estado do Ceará. Pertencentes a
diversos grupos etnolinguísticos, tais sujeitos apresentam identidades multiculturais e
distinções de várias ordens a marcar as suas vidas em território cearense. Tal diáspora é
constituída por estudantes de ambos os sexos, na sua maioria homens jovens entre os
18 e 35 anos de idade, negros, de diversas etnias, pertencentes à grande família
etnolinguística bantu. A diáspora africana tem gerado grupos e movimentos, a
congregar estudantes africanos em um processo de mobilização e organização em
diversas agremiações estudantis, cabendo destacar: a Associação de Estudantes
4 A noção de diáspora, que movimento nesta pesquisa, é inspirada nas ideias de Hall (2011) sobre as
identidades dos imigrantes oriundos da região do Caribe na Grã-Bretanha, seus mitos de origem, as
necessidades e perigos que enfrentam sob a globalização.
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Africanos no Estado do Ceará (AEAC), a Associação de Estudantes da Guiné-Bissau no
Estado do Ceará (AEGBECE), a Fundação de Estudantes Cabo-verdianos nas
Faculdades do Nordeste (FEAF), o Centro de Estudantes Estrangeiros da UFC
(CEEUFC) e, o Movimento Pastoral de Estudantes Africanos (MPEA). Normalmente,
tais associações estudantis africanas são baseadas em distinções nacionais, revelando-
se bastante estéreis e sem capacidade de negociação com as instituições de ensino
superior brasileiras, onde os estudantes estão inseridos.
Diante desse fenômeno de migração estudantil, caracterizado pela vinda e
presença massiva de estudantes oriundos de distintos países africanos para instituições
de ensino superior públicas e privadas do Brasil, assim pelo surgimento de agremiações
estudantis africanas em tais instituições, sinto-me interpelado a compreender este
fenômeno, problematizando acerca da presença e da inserção desses estudantes no
contexto universitário brasileiro. A minha análise circunscreve-se às experiência dos
estudantes africanos na UFC, a maior instituição pública de ensino superior do Estado
do Ceará, no nordeste brasileiro. Assim, analiso as experiências de estudantes africanos
nos campi da cidade de Fortaleza, onde resido há cerca de três anos, na condição de
estudante da UFC. Para problematizar tal fenômeno, avanços algumas perguntas que
norteiam este paper: quem são esses estudantes? Como vivem? Como são recebidos
pelas universidades? Como se dá a sua inserção no espaço acadêmico brasileiro?
O cotidiano dos estudantes africanos em Fortaleza e o encontro com a
alteridade
Chegados ao Brasil, os estudantes africanos enfrentam desafios cotidianos,
particularmente, dificuldades econômicas de sobrevivência considerando o elevado
custo de vida nesta metrópole, em relação às suas possibilidades financeiras. Parte
significativa do contingente de estudantes afirma sentir-se discriminada no cotidiano,
por conta da cor da pele e da própria origem africana, em graus e formas distintas das
discriminações encontradas nos países de origem. Gusmão (2006) abre vias de
reflexão, ao circunscrever a própria posição do Brasil, a receber a diáspora africana:
Um país multirracial e integrante dos chamados “países emergentes”,
mas que se diferencia dos países europeus, até muito recentemente
privilegiados na busca por qualificação de quadros por parte dos Palop.
Em questão, a posição de um país relativamente periférico na divisão
internacional do trabalho, com um passado igualmente de colonização
portuguesa e que, estruturalmente mestiço e negro, pensa-se branco e
europeu. Em debate, a existência de processos intensos de
discriminação e racismo na realidade brasileira e a percepção e vivência
do sujeito negro e africano nesse contexto. (GUSMÃO, 2006:16).
No cotidiano de Fortaleza, o preconceito e discriminação raciais contra os
estudantes africanos manifesta-se de diversas maneiras, muitas vezes sutis, que vão
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desde olhares desconfiados e incomodados nas filas e salas de espera no acesso a
serviços como hospitais, bancos, casas lotéricas, ônibus. Assim como a mudança de
calçada e de rua, troca de lado e de bolso onde fica a carteira, bolsas e celulares logo
que um indivíduo negro ou de ascendência africana se aproxima. Tais situações,
constituem formas daquilo que Bourdieu (2007) designa de violência simbólica.
Tal violência envolve gestos, sinais, símbolos e práticas culturais partilhados
pela sociedade, muitas vezes sutis e imperceptíveis pelos atores como forma de
opressão, senão pela repetição contínua. Os estudantes africanos integrados às
universidades federal e estadual, que constituem, de fato, a minoria, sobrevivem das
bolsas do PEC-G e de outros convênios firmados entre o Brasil e seus países de origem.
Já o segmento maior, que estuda em faculdades particulares, recebe dinheiro das
famílias para pagar mensalidades e manter-se na faculdade, complementando a sua
renda por meio de trabalhos clandestinos – em lojas e mercadinhos, salões de beleza,
oficinas, fábricas e construções, restaurantes ou mesmo, nos estacionamentos de
grandes shoppings centers e supermercados, ou, ainda, em “casas de família” como
babás – para assim, garantir a sobrevivência e a própria locomoção na cidade.
Dentro deste grupo de estudantes, inseridos nas faculdades particulares, existe
um segmento de jovens que, nos tempos livres, dedica-se ao comércio de roupas e
calçados entre o Brasil e seus países de origem. Por fim, um grupo seleto de estudantes
de faculdades particulares, com destaque para os cabo-verdianos, sobrevive e estuda de
forma tranquila, graças ao dinheiro enviado por familiares residentes em África e por
parentes imigrantes em países da Europa e América do Norte.
As faculdades particulares, – como mecanismo de atração – dizem garantir
estágios remunerados para estudantes ao final dos cursos de Administração,
Contabilidade, Marketing, Comunicação, Ciências e Gestão de Informação. Na
realidade, são oferecidos aos estudantes africanos, “estágios remunerados” que são
formas de trabalho precário como panfleteiros, vigias de lojas nos shoppings centers e
em estacionamentos ou como operadores de vigilância eletrônica, em um artifício
usado para contornar a norma que os proíbe de trabalhar.
No cotidiano, os estudantes africanos percebem a dificuldade dos brasileiros em
chamá-los pelos nomes próprios, substituindo-os pela categoria nativa brasileira
“negão” e facilmente esquecem as nacionalidades e os nomes dos países de origem,
diluindo tudo na categoria genérica de africano. Mendes (2010:27) enfatiza que “[...] os
estudantes africanos não estão inteirados dos limites sociais tradicionalmente
construídos pelos brancos para segregar os negros. Não estão informados desses
espaços de exclusão, eles rompem as fronteiras estabelecidas e transitam em espaços
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brancos”. Os estudantes africanos, nos percursos cotidianos em Fortaleza, percebem a
distância social dos brasileiros negros que, muitas vezes, acreditam que os africanos
são playboys, sujeitos ricos oriundos das elites políticas africanas, ou então são
indivíduos que vêm ao Brasil ocupar os lugares que, por direito, seriam seus.
Existe ainda entre os brasileiros negros a representação de que os africanos são
cotistas, isto é, estudantes beneficiários das cotas raciais no ensino superior no Brasil.
A rigor, as formas de interação dos estudantes africanos com a população cearense, no
cotidiano, tende a expressar mecanismos de discriminação, colocando-os na posição de
outsiders (BECKER, 2008); (ELIAS & SCOTSON, 2000). Percebe-se entre os
cearenses, a existência de múltiplas representações acerca da presença africana,
destacando-se visões estigmatizantes perpassadas de preconceito racial pela condição
de negro. Estudantes guineenses, em relatório elaborado, como estratégia organizativa
no âmbito do Movimento Pastoral do Estudante Africano, assim denunciam expressões
de racismo:
Temos enfrentado discriminação racial na cidade, inclusive dentro das
próprias faculdades, o que caracteriza racismo institucional, das/os
funcionários, professores/es e direção. A direção já chegou a impor
regras, para nós, como: tomar banho, usar perfume, creme de pele, não
chegar suado/a [...]. Essas exigências só são feitas aos estudantes
africanos (2012: 7).
De fato, muitos desses estudantes, deslocam-se ao Brasil com expectativas de
facilidade de inserção acadêmica e crescimento na vida pessoal e profissional, mas,
deparam-se com a estrutura social da sociedade brasileira, hierarquizada por meio da
raça, cor da pele e classe social. Sua posição de negros, africanos e pobres os coloca na
condição de subalternidade, impedindo-os de aceder a diversas oportunidades.
As dificuldades e distintas formas de discriminação enfrentadas pelas
imigrantes africanas, suas interpelações raciais e ressignificações identitárias
assemelham-se aquilo que Turner (2005) define como dramas sociais 5, dificuldades de
se recriar universos sociais e simbólicos no mundo contemporâneo, onde os indivíduos
se veem sozinhos e abandonados diante da responsabilidade de darem sentido à sua
vida. Nesse contexto, vários estudantes africanos encontram dificuldades para pagar
mensalidades e, outros são flagrados a trabalhar, sofrendo ameaças de deportação.
Mesmo assim, a migração estudantil para o Brasil apresenta-se como uma experiência
5 De acordo Turner (2005), o drama social apresenta-se como uma experiência vivida que remete à noção
de perigo, propiciando aos indivíduos acesso ao universo social e simbólico, opondo o cotidiano ao
extraordinário. Esta noção emerge como um modelo de leitura da realidade em sociedades tribais, pensado
em quatro momentos: ruptura, crise e intensificação da crise, ação reparadora e desfecho. O drama
apresenta-se como um momento importante de reparação da crise.
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vivida 6, uma experiência única e significativa sentida de forma intensa que, forma e
transforma a vida e trajetória desses jovens. Quase sempre, a experiência migratória é
ressignificada de forma positiva, vista como oportunidade de formação, aprendizado e
crescimento na carreira profissional. Mas, também é vista uma mudança no modo de
ser e estar na vida por conta das dificuldades econômicas, dificuldades em conseguir
trabalho e em pagar contas pessoais.
Experiências de estudantes africanos nas universidades brasileiras
Os estudantes africanos inseridos nas universidades brasileiras parecem viver
uma situação de anomia social (Merton, 1970). A anomia social entre os estudantes
africanos residentes em Fortaleza manifesta-se através de desorientação na vida
pessoal, assim como na vida estudantil. Ela se evidencia através da mudança constante
de curso e de faculdade, nas quais, muitos estudantes não se adaptam ao curso em que
estão inscritos, quando gostariam de fazer outros cursos de “seu coração” ou “da sua
vocação”. Outros ainda, acabam sabendo de outros cursos e faculdades que oferecem
mais oportunidades de inserção no mercado de trabalho e, com o tempo vão
“descobrindo” sua vocação para outra profissão. Tais desejos de mudança de curso
constante de curso criam embaraços aos próprios estudantes, assim como às direções
das faculdades e gestores dos programas onde estão inseridos, nos quais, esses sujeitos,
passam a ser vistos “um problema” como alunos “problemáticos”. A maioria dos
africanos está em cursos de graduação em faculdades privadas, poucos conseguem
“furar a peneira” e conseguir cursar pós-graduação.
A formação nas instituições de ensino superior brasileiras propicia novos
diálogos e novas sínteses identitárias possibilitadas por outras práticas culturais
apreendidas no contexto universitários brasileiro, porém, tais instituições – alunos,
professores, docentes e funcionários – ignoram a realidade vivenciada pelos estudantes
em seus países de origem (FONSECA, 2009). Os conflitos originados pelo estigma de
migrante temporário e pelo estereótipo refugiado de guerra são outras situações
apontadas por este autor. À rigor, a adaptação desses sujeitos acontece de forma lenta.
Numa atitude colonialista, as universidades e faculdades brasileiras produzem
ausências, nas quais, a experiência e conhecimentos trazidos pelos estudantes africanos
6 Turner (2005) define literalmente experiência como “tentar, aventurar-se, correr riscos”, onde
experiência e perigo derivam da mesma raiz. Turner distingue três tipos de experiências: a experiência
cotidiana que diz respeito à experiência simples, passiva, de aceitação dos eventos cotidianos; experiência
vivida, experiência única que acontece ao nível da percepção como a dor ou o prazer que podem ser
sentidos de forma mais intensa e; experiências formativas que se distinguem de eventos externos e
reações internas a elas, como a iniciação a novos modos de vida, aventuras amorosas, que podem ser
pessoais ou partilhadas.
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não são aproveitados ou tidos como válidos. Existe a percepção de que os estudantes
africanos não são produtores de conhecimento, são apenas consumidores que vem ao
Brasil apenas aprender e não trazer ou produzir conhecimentos. A ordem científica
hegemônica nas universidades não se interessa pela realidade desses estudantes, nem
da de seus países donde são oriundos, resultando naquilo que Sousa Santos (2011)
designa de desperdício da experiência.
[...] a compreensão do mundo é muito mais ampla que a ocidental. Os
colegas da África do Sul, da Índia, de Moçambique tem uma maneira de
ver a sociologia, a sociedade e o mundo distinta da que existe no Norte.
Então me pareceu que, provavelmente, o mais preocupante no mundo
de hoje é que tanta experiência social é desperdiçada, porque ocorre em
lugares remotos. Experiências muito locais, não muito conhecidas nem
legitimadas pelas ciências sociais hegemônicas, são hostilizadas pelos
meios de comunicação social, e por isso tem permanecido invisíveis,
desacreditadas (SOUSA SANTOS, 2011:23-24).
De fato, a maioria dos estudantes africanos não consegue se inserir em
atividades de extensão ou de pesquisa dentro e fora das universidades, sendo
subaproveitados no mercados de trabalho precário. Normalmente, as experiências e
conhecimentos oriundas do mundo não Ocidental são ignorados pelo “paradigma
dominante” no fazer científico, que não dialoga com outras lógicas de pensar o mundo
(SOUSA SANTOS, 2010). Nesse contexto, ignoram-se autores, fatos, histórias,
narrativas e experiências do mundo africano e do mundo não ocidental, tidas como não
científicas, locais e por isso menores.
A experiência de migração estudantil em território brasileiro influência e altera
os modos de ver e estar no mundo, dos estudantes africanos. Muitos passam a construir
uma “identidade capitalista” (Fonseca, 2009) e algumas vezes “empresarial”. Tais
identidades são baseadas no consumo de bens de um mercado capitalista, com
produtos variados à preços acessíveis, como vem acontecendo no Brasil dos últimos
anos. Nessas identidades predominam o consumo de roupas, calçados, aparelhos
celulares de marcas famosas, assim como o comercio de roupas e calçados entre o
Brasil e seus países de origem – roupas, túnicas, panos coloridos oriundos de países
africanos e chinelos havaianas, blusas, biquínis, calçados, bijuterias provenientes do
Brasil. Nesse cenário, parte dos estudantes é atraída para permanecer no Brasil ou
instalar-se definitivamente, quer devido a um conjunto de “facilidades” e uma maior
“qualidade de vida”, quer devido à incerteza de inserção social no regresso a seus países
de origem, por conta do sentimento de falta de lugar, mudanças de referenciais
identitários, de vínculos sociais, afetivos, etc. Gusmão (2008) bem descreve a condição
do estudante africano no Brasil:
9. 889
O que aprendem e o que esquecem ao permanecer longo tempo “fora do
lugar” é hoje o desafio para as autoridades dos países de origem. É
desafio, também, para familiares, parentes e amigos, que muitas vezes,
sacrificaram-se para dar-lhes apoio de ir em busca de seus estudos e
assim, quando formados retornarem aos seus e à nação de origem. Por
seus novos modos, pela forma de vestir-se, comportar-se, ele próprio já
não se reconhece plenamente no grupo de origem, ao mesmo tempo se
estranham naquele mundo. São, também, estranhados pelos que
ficaram naquele mundo. Veem-se a si mesmo, como sujeitos modernos,
globalizados e portadores de perspectivas, valores de outra ordem que
se contrapõem aos valores, costumes próprios dos contextos mais
tradicionais. O que percebem é que já não se é inteiramente dali, mas
também sabem que não das terras onde estão em busca de novos rumos
por meio dos estudos e de qualificação profissional. Nestas são,
sobretudo, estrangeiros e depois, “africanos e negros. Na África o que
são: angolanos, moçambicanos, cabo-verdianos, guineenses, são-
tomenses. São balantas, fulas, pepel, quimbundos, ovibundos, crioulos,
mestiços e sem referência étnica e, assim por diante. (GUSMÃO,
2008:8-9).
Entre os estudantes que permanecem em território brasileiro, uma minoria
casa-se com mulheres brasileiras ou constitui família, mas poucos conseguem
continuar na vida acadêmica e cursar pós-graduação. Outros são absorvidos pelo
mercado de trabalho em metrópoles maiores como São Paulo e Rio de Janeiro. Nesse
cenário e a partir das experiências dos estudantes africanos em território brasileiro,
várias questões se colocam: que relações históricas de poder foram se construindo entre
os países africanos e o Brasil? Qual a realidade educacional vivenciada pelos países
africanos e pelo Brasil a receber esses estudantes?
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