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Philippe Joutard e os desafios da História Oral
Entrevista e Edição: Marieta de Moraes Ferreira,
Vicente Saul M. dos Santos e Filipe Aprigliano.
O Professor Philippe Joutard foi um dos grandes nomes da X Conferência Internacional
de História Oral, sendo o responsável pela palestra de abertura sobre os desafios da
História Oral para o século XXI. Foi reitor da Academie de Toulouse durante oito anos e
publicou diversos livros, como : “Les Camisards”; “La Légion des Camisards” que é o
resultado da sua tese e foi publicado pela Bibliothèques des Histoires, uma coleção
dirigida por Pierre Nora; e “Essas vozes que nos vêm do passado?” que é um debate com
o livro de Paul Thompson “A Voz do Passado”.
H&M: Para começar, gostaria que o senhor nos falasse um pouco de sua infância e de sua
vida familiar?
Joutard: Nasci em Paris, mas o mais importante para mim é a minha origem, a de meus
pais, de meus avós, originários do sul da França, que é uma região é caracterizada por
conflitos entre católicos e protestantes. Ocorreu, em particular, uma guerra muito
conhecida na França, dos protestantes contra Luís XIV. No início do século XVIII, houve
a chamada guerra dos “camisards”, quando seu culto foi proibido, após 1685. Esta
história, que tem quase três séculos, marcou muito todas as famílias. E eu, tenho a
originalidade de ter nascido em uma família mista, ou seja, eu era católico, meus pais
eram católicos, mas eu tinha uma avó protestante. Ela se casou no início do século XX,
quando um casamento entre uma protestante e um católico ainda era considerado
proibido. A primeira entrevista oral que fiz foi com a minha avó, de tal forma que o mundo
de oposição entre católicos e protestantes sempre me impressionou desde muito cedo.
H&M: Para o sr., qual é a influência mais importante, a católica ou a protestante?
Joutard: Bem, se me interesso pelos problemas da miscigenação cultural, é porque eu sou,
do ponto de vista religioso, um produto da miscigenação. Mesmo sendo católico, no que
diz respeito à prática, à atitude moral, fui bem mais influenciado pelos protestantes, que
tendo sido perseguidos, têm um sentido da perseguição, da tensão da minoria, que é uma
coisa que me seduz muito. São pessoas muito sensíveis à defesa de grupos minoritários.
Durante a guerra, por exemplo, eles acolheram muitos judeus, de uma forma
absolutamente natural. Os protestantes dão também a cada um o sentido da
responsabilidade, todos são responsáveis. Eles se administram de uma forma muito
coletiva, muito mais democrática. Mas no que diz respeito à concepção de vida, com sua
idéia de predestinação, de que não existe purgatório, criam um mundo maniqueísta: os
bons, os maus, os redimidos, os condenados. Por outro lado, estudei durante alguns anos
em uma escola jesuíta e o que eles fizeram na América Latina, por exemplo; a idéia de
partir para outras civilizações, um pouco como no Brasil, tentando aceitar a adaptação da
religião às tradições e aos costumes de cada um dos países. Enfim, no que diz respeito à
prática, eu me sinto protestante, e à concepção de mundo, me sinto católico. Acho que os
católicos são muito mais indulgentes em relação às religiões populares, ao que chamamos
de superstição. Nesse sentido, os protestantes são muito duros.
H&M: Como se deu a sua formação intelectual?
Joutard: Desde muito muito cedo eu já quis ser historiador. Primeiro, após o exame do
fim do segundo grau, fui estudar com os jesuítas. Em seguida, fiz três anos de cursos para
as Grandes Escolas: no Louis le Grand, em Paris, e depois na Sorbonne. Devo ter entrado
na universidade em 1955. Neste momento, a Sorbonne inteira havia sido unificada.
Escrevi uma tese de graduação e em 1958, passei na “agrégation”, um concurso de
recrutamento de professores para o segundo grau. Logo após fui lecionar no Marrocos,
começando minha carreira fora da França. Em um determinado momento, tive vontade
de escrever um trabalho sobre o mundo muçulmano na Idade Média, e isso me dava
vontade de ver como ele era na realidade. É um mundo que está pertinho da Europa, mas
que, ao mesmo tempo, era complemente diferente. Gostei muito do País.
H&M: Quais as suas principais influências ?
Joutard: Inicialmente existem os professores que mais me marcaram. Em particular
Lucien Febvre e Marc Bloch, mas eu não os conheci. Então, fui influenciado por um de
seus alunos, que se chamava Robert Mandreau. Também pelo artífice da reviravolta, da
revolução historiográfica que é um homem que se chama Napoléon Pérat. Um intelectual
imerso na tradição oral e que escreveu o primeiro livro que reabilita os “camisards”. Pérat
foi, de uma certa forma, acompanhado por Michelet, o grande historiador francês, que
ficou tão entusiasmado pelo seu livro que difundiu a lenda positiva dos “camisards”. A
partir desse momento, oral e escrito coincidiram.
H&M: Como foi sua pós-graduação?
Joutard: A respeito do meu tema de mestrado, sobre católicos e protestantes, feito com
Ernest Labrousse, me propus a fazer um estudo do voto político quantitativo em um
cantão de Alès (cantão é uma pequena jurisdição eleitoral), porque lá existe um lado
católico e um lado protestante. Estes são em sua maioria agricultores e algumas vezes
gente relativamente rica, que votavam na esquerda. E os católicos que eram operários,
mineradores com uma situação muito mais modesta, votavam na direita. Então, em uma
época que nos explicavam, do ponto de vista marxista, que os operários votam na
esquerda e os burgueses votam na direita (...) achei isso muito engraçado. Quanto ao meu
doutorado, o fiz em Aix-en-Provence, com um professor chamado Tiral. Eu encontrei nas
Cévennes a idéia de estudar a maneira pela qual o conflito entre católicos e protestantes
tinha se mantido na memória. Mas essa tese ganhou maior importância, pois um dia,
participando de um seminário doutoral em 1967, um velho pastor me disse: “Saiba que
nas Cévennes, entre os protestantes, existe uma tradição oral.” Naquele momento não
acreditei, pois os historiadores, principalmente na década de 60, desconfiavam da
oralidade. Eu disse, de qualquer forma, que iria olhar. Assim que entrei na casa de um
camponês, perguntei sobre os “camisards”. Nesta hora, pensei que obteria apenas 10, 15
minutos de entrevista, mas fiquei três horas com ele, pois descobri imediatamente que
existia uma riqueza fabulosa de histórias, que eram vividas no presente e reinterpretadas.
A partir desse momento, me dei conta de que isso era uma dimensão extraordinária
adicional ao meu trabalho, que era essencialmente de memória escrita.
H&M: Como o sr. começou sua carreira de professor universitário?
Joutard: Durante muito tempo, eu tive uma experiência de professor no segundo grau e
mais tarde, fui até mesmo aquilo que é chamado na França de professor de aulas
preparatórias. Exerci, portanto, o magistério durante dez anos. O que eu lamento, é que
atualmente na França, pessoas estejam indo diretamente para a Universidade sem ter tido
essa experiência do ensino da história para jovens. Cheguei à universidade relativamente
tarde, com 34 anos. Fui inicialmente assistente em Aix-en-Provence, em 1969, e a minha
primeira experiência na faculdade foi dura - era a época em que os anfiteatros começavam
a ficar cada vez mais sobrecarregados, com 600, 700 e até mesmo 800 alunos, no início
da democratização - dei a aula magistral do primeiro ano, sobre as origens da Revolução
Francesa., que é normalmente uma aula de professor. Comecei portanto na faculdade, no
contexto após as manifestações estudantis de 68. Por sorte me ofereceram um cargo e
tornei-me muito rapidamente um professor assistente, de 69 a 74, quando passei
diretamente a professor em Aix.
H&M: O sr. poderia nos falar um pouco dos conflitos de sua geração? Suas
características, suas opiniões políticas e de sua relação com o marxismo.
Joutard: Minha geração veio justamente após aquela de Le Roy Ladurie, ou seja, éramos
ainda muito marcados pelos comunistas, mas começávamos a nos afastar um pouco.
Tínhamos 20 anos na década de 50. Foi quando começamos a ver as falhas e os defeitos
do sistema soviético, por exemplo, no caso da Hungria em 1956. Naquela época,
militávamos todos, ou seja, foi a descolonização e a guerra da Argélia, uma decepção.
Também 1956, houve eleições na França e as pessoas votaram pelo fim da guerra,
esperando por um governo que promovesse a paz. Este não somente não a promoveu,
como cedeu complemente. Portanto, houve também essa desilusão, de um governo de
esquerda que não fez a paz. É uma geração onde muitos são ainda comunistas, não
marxistas, mas não tanto quanto nos dez anos anteriores. Éramos muito jovens durante a
guerra, quando da entrada da França, tinha quatro anos. Então, a geração que tinha vinte
anos em 1945, é muito marcada pela União Soviética e por seu papel na libertação, na
luta contra o nazismo. Logo, quase todos os intelectuais eram comunistas. Mas, no que
me diz respeito, muito cedo decidi não sê-lo. Pois, quando ingressei no curso preparatório,
um dos meus amigos me disse: “Vem, é ótimo, você vai ver”. Era uma reunião um
pouquinho formal, chamada entre os comunistas de “entrega de carteiras”, ou seja, o
momento de adesão. Éramos três não-comunistas e após a cerimônia, dez deles - eram
cerca de quarenta - foram em direção aos não comunistas para lhes perguntar: “Escuta,
você é a favor da igualdade, você é a favor de que as coisas melhorem, você é contra a
exploração” - respondíamos que sim - e eles então diziam: “Porque você não adere?”.
Quer dizer, eles tinham um método de perguntas-respostas para se valer de seu peso
numérico, isso fez com que eu reagisse negativamente. Considerei que se alguém tenta
me influenciar, me negando a liberdade de refletir, é porque o sistema não funciona.
Quando os comunistas tentavam recrutar alguém, eles o faziam tentando empregar
métodos que lembram os tribunais. Então, nossa geração é marcada politicamente pelo
declínio do marxismo, ou melhor, do comunismo e também por um grupo, no qual me
incluo, que reagiu historicamente contra esse sistema, um pouco fácil demais, da relação
entre as classes e as ideologias. Minha tese no fim do mestrado, em que a grande
burguesia, os protestantes, votavam na esquerda e os operários católicos votavam na
direita, me mostrou que o sistema um pouco mecânico não funcionava.
H&M: E quando o sr. foi para Toulouse ?
Joutard: Depois de Aix, eu tive uma carreira tripla: de professor, pesquisador e
administrador. Como ocorre freqüentemente nas faculdades, logo que passei a dirigir o
departamento de história, recebi responsabilidades de gestão. Depois, em 82 ou 83, o
Ministério me convidou para a observação do desenvolvimento das ciências históricas e
das ciências humanas no conjunto da universidade, para a produção de relatórios e
avaliações. Já em 1989, assumi a reitoria, na França, isso não é de forma alguma um
Presidente de Universidade, como no Brasil ou na Espanha, é um responsável pelo
sistema de educação numa região. Por todo ele, pelo secundário e até mesmo pela
universidade, mas como as universidades são autônomas, o papel é apenas de controle e
não de gestão direta. E agora, depois de uma longa interrupção de oito anos, estou
voltando às tarefas de um pesquisador, mas com uma nova visão, com um olhar novo.
H&M: Na sua opinião, qual a relação entre história oral e memória?
Joutard: A entrevista é uma verdadeira construção, na qual não existe apenas a pessoa que
está sendo interrogada, mas também a pessoa que interroga e existe ainda o clima da
interrogação, existe a maneira como a pergunta é feita. Bom, a memória evolui, sendo um
pouco ingênuo acreditar que aquilo que se está coletando são os fatos. O que se está
coletando, na verdade, é a representação que se têm do passado, mas é ainda mais
complicado do que isso, porque é também a representação que se quer ou que se pode
dar, o que muitas vezes é diferente. Observou-se na França, que para certos fenômenos,
não é indiferente que a pessoa que interrogue seja uma mulher ou um homem. Não é a
mesma coisa tão pouco se vocês fazem parte da comunidade. Por exemplo interrogar um
militante de um partido político, ou eu, por exemplo, interrogando um protestante. Isto
não é, de modo algum, dizer que as pessoas têm dois discursos, mas sim, que a memória
está constantemente em evolução. Finalmente, eu creio que o mais interessante é a própria
memória, muito mais do que os fatos, e não estou dizendo que não encontramos fatos.
Mas, é também em nome da memória que atualmente as pessoas na Iugoslávia estão se
matando. E foi pelo histórico do conflito entre católicos e protestantes que eu nunca tive
uma visão demasiadamente otimista da memória, que é maniqueísta. Por isso, o papel do
historiador é fundamental, é de ter a coragem de tomar distância, de comparar, de ter um
olhar cruzado, de poder utilizar as diversidade das fontes.
H&M: O sr. poderia nos falar da variedade de tendências entre os pesquisadores de
história oral.
Joutard: Bem, existem aqueles que fazem uma história oral totalmente alternativa e
aqueles, que como eu, pensam que é uma metodologia. Temos também a visão da ciência
política e da antropologia. Creio que elas têm o máximo de interesse em colaborar
estreitamente entre si, porque é preciso antropologizar o político. Quer dizer, que não
podemos nos ater, por exemplo, àquilo que um político diz, mas sim ao seu duplo
discurso, ao ambiente, às diversas redes de clientela que não estão somente nos países
tradicionais. Não podemos somente ver aquilo que as pessoas afirmam, a sua clivagem
política, mas também, de alguma forma, os aspectos das redes locais, de alianças que não
dependem do político. Neste sentido, o clientelismo não está ligado a um estágio da
sociedade, existindo sempre, em todos os níveis e em todos os países. E depois, existe
uma outra distinção, entre a história que interroga as testemunhas que viveram o passado,
e a tradição oral. Isto é, o estudo daquilo que seus avós lhe contaram, tanto do ponto de
vista dos costumes como da história.
H&M: Na sua visão, qual a importância da X Conferência Internacional de História Oral
realizada no Brasil?
Joutard: Com toda a honestidade, creio que foi um sucesso. Foi uma conferência
marcante, também por ter sido realizada fora da Europa. Mas, primordialmente, quero
falar de meu sentimento de estrangeiro. Fiquei, antes de mais nada, impressionado com a
força da participação dos diversos grupos de trabalho brasileiros. Tenho o sentimento,
mas talvez eu esteja me gabando, que a palestra que fiz na segunda-feira suscitou um
excelente consenso; percebi isto. Não houve perguntas agressivas, e depois as pessoas
vieram me ver e discutiram comigo. Achei muito interessante a pergunta que me foi feita
por uma de suas colegas brasileiras; combate-se demais pela história oral dos excluídos e
não bastante pela das elites. E isso me parece uma reflexão bastante justa. A história oral
não é simplesmente para o povo, para os sem-terra, para os esquecidos, é também para as
camadas mais elevadas, para as ciências políticas, para as ciências administrativas.
Encontrei-me num outro mundo cultural, mas não em outro planeta do ponto de vista
historiográfico, não tive a impressão de estar a anos-luz, como se diz na França. Por outro
lado, é um país, nem que fosse por sua tradição oral, em que existe ainda um trabalho
apaixonante a fazer. Um último aspecto, por exemplo, foi a viabilização de um painel
sobre os campos de concentração na Alemanha nazista, que felizmente foi retomado aqui.
Não tenho tanta certeza, se esse debate poderia ser realizado na França ou na Alemanha,
porque isto iria suscitar uma série de questões. Aqui tínhamos o afastamento necessário.
Esta é uma iniciativa de alunos do Instituto de Filosofia e Ciências Sociais (IFCS) da
Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), e este é um espaço público onde todas
as colaborações políticas, acadêmicas e artísticas são bem vindas.

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  • 1. Philippe Joutard e os desafios da História Oral Entrevista e Edição: Marieta de Moraes Ferreira, Vicente Saul M. dos Santos e Filipe Aprigliano. O Professor Philippe Joutard foi um dos grandes nomes da X Conferência Internacional de História Oral, sendo o responsável pela palestra de abertura sobre os desafios da História Oral para o século XXI. Foi reitor da Academie de Toulouse durante oito anos e publicou diversos livros, como : “Les Camisards”; “La Légion des Camisards” que é o resultado da sua tese e foi publicado pela Bibliothèques des Histoires, uma coleção dirigida por Pierre Nora; e “Essas vozes que nos vêm do passado?” que é um debate com o livro de Paul Thompson “A Voz do Passado”. H&M: Para começar, gostaria que o senhor nos falasse um pouco de sua infância e de sua vida familiar? Joutard: Nasci em Paris, mas o mais importante para mim é a minha origem, a de meus pais, de meus avós, originários do sul da França, que é uma região é caracterizada por conflitos entre católicos e protestantes. Ocorreu, em particular, uma guerra muito conhecida na França, dos protestantes contra Luís XIV. No início do século XVIII, houve a chamada guerra dos “camisards”, quando seu culto foi proibido, após 1685. Esta história, que tem quase três séculos, marcou muito todas as famílias. E eu, tenho a originalidade de ter nascido em uma família mista, ou seja, eu era católico, meus pais eram católicos, mas eu tinha uma avó protestante. Ela se casou no início do século XX, quando um casamento entre uma protestante e um católico ainda era considerado proibido. A primeira entrevista oral que fiz foi com a minha avó, de tal forma que o mundo de oposição entre católicos e protestantes sempre me impressionou desde muito cedo. H&M: Para o sr., qual é a influência mais importante, a católica ou a protestante? Joutard: Bem, se me interesso pelos problemas da miscigenação cultural, é porque eu sou, do ponto de vista religioso, um produto da miscigenação. Mesmo sendo católico, no que diz respeito à prática, à atitude moral, fui bem mais influenciado pelos protestantes, que tendo sido perseguidos, têm um sentido da perseguição, da tensão da minoria, que é uma coisa que me seduz muito. São pessoas muito sensíveis à defesa de grupos minoritários. Durante a guerra, por exemplo, eles acolheram muitos judeus, de uma forma
  • 2. absolutamente natural. Os protestantes dão também a cada um o sentido da responsabilidade, todos são responsáveis. Eles se administram de uma forma muito coletiva, muito mais democrática. Mas no que diz respeito à concepção de vida, com sua idéia de predestinação, de que não existe purgatório, criam um mundo maniqueísta: os bons, os maus, os redimidos, os condenados. Por outro lado, estudei durante alguns anos em uma escola jesuíta e o que eles fizeram na América Latina, por exemplo; a idéia de partir para outras civilizações, um pouco como no Brasil, tentando aceitar a adaptação da religião às tradições e aos costumes de cada um dos países. Enfim, no que diz respeito à prática, eu me sinto protestante, e à concepção de mundo, me sinto católico. Acho que os católicos são muito mais indulgentes em relação às religiões populares, ao que chamamos de superstição. Nesse sentido, os protestantes são muito duros. H&M: Como se deu a sua formação intelectual? Joutard: Desde muito muito cedo eu já quis ser historiador. Primeiro, após o exame do fim do segundo grau, fui estudar com os jesuítas. Em seguida, fiz três anos de cursos para as Grandes Escolas: no Louis le Grand, em Paris, e depois na Sorbonne. Devo ter entrado na universidade em 1955. Neste momento, a Sorbonne inteira havia sido unificada. Escrevi uma tese de graduação e em 1958, passei na “agrégation”, um concurso de recrutamento de professores para o segundo grau. Logo após fui lecionar no Marrocos, começando minha carreira fora da França. Em um determinado momento, tive vontade de escrever um trabalho sobre o mundo muçulmano na Idade Média, e isso me dava vontade de ver como ele era na realidade. É um mundo que está pertinho da Europa, mas que, ao mesmo tempo, era complemente diferente. Gostei muito do País. H&M: Quais as suas principais influências ? Joutard: Inicialmente existem os professores que mais me marcaram. Em particular Lucien Febvre e Marc Bloch, mas eu não os conheci. Então, fui influenciado por um de seus alunos, que se chamava Robert Mandreau. Também pelo artífice da reviravolta, da revolução historiográfica que é um homem que se chama Napoléon Pérat. Um intelectual imerso na tradição oral e que escreveu o primeiro livro que reabilita os “camisards”. Pérat foi, de uma certa forma, acompanhado por Michelet, o grande historiador francês, que ficou tão entusiasmado pelo seu livro que difundiu a lenda positiva dos “camisards”. A partir desse momento, oral e escrito coincidiram.
  • 3. H&M: Como foi sua pós-graduação? Joutard: A respeito do meu tema de mestrado, sobre católicos e protestantes, feito com Ernest Labrousse, me propus a fazer um estudo do voto político quantitativo em um cantão de Alès (cantão é uma pequena jurisdição eleitoral), porque lá existe um lado católico e um lado protestante. Estes são em sua maioria agricultores e algumas vezes gente relativamente rica, que votavam na esquerda. E os católicos que eram operários, mineradores com uma situação muito mais modesta, votavam na direita. Então, em uma época que nos explicavam, do ponto de vista marxista, que os operários votam na esquerda e os burgueses votam na direita (...) achei isso muito engraçado. Quanto ao meu doutorado, o fiz em Aix-en-Provence, com um professor chamado Tiral. Eu encontrei nas Cévennes a idéia de estudar a maneira pela qual o conflito entre católicos e protestantes tinha se mantido na memória. Mas essa tese ganhou maior importância, pois um dia, participando de um seminário doutoral em 1967, um velho pastor me disse: “Saiba que nas Cévennes, entre os protestantes, existe uma tradição oral.” Naquele momento não acreditei, pois os historiadores, principalmente na década de 60, desconfiavam da oralidade. Eu disse, de qualquer forma, que iria olhar. Assim que entrei na casa de um camponês, perguntei sobre os “camisards”. Nesta hora, pensei que obteria apenas 10, 15 minutos de entrevista, mas fiquei três horas com ele, pois descobri imediatamente que existia uma riqueza fabulosa de histórias, que eram vividas no presente e reinterpretadas. A partir desse momento, me dei conta de que isso era uma dimensão extraordinária adicional ao meu trabalho, que era essencialmente de memória escrita. H&M: Como o sr. começou sua carreira de professor universitário? Joutard: Durante muito tempo, eu tive uma experiência de professor no segundo grau e mais tarde, fui até mesmo aquilo que é chamado na França de professor de aulas preparatórias. Exerci, portanto, o magistério durante dez anos. O que eu lamento, é que atualmente na França, pessoas estejam indo diretamente para a Universidade sem ter tido essa experiência do ensino da história para jovens. Cheguei à universidade relativamente tarde, com 34 anos. Fui inicialmente assistente em Aix-en-Provence, em 1969, e a minha primeira experiência na faculdade foi dura - era a época em que os anfiteatros começavam a ficar cada vez mais sobrecarregados, com 600, 700 e até mesmo 800 alunos, no início da democratização - dei a aula magistral do primeiro ano, sobre as origens da Revolução Francesa., que é normalmente uma aula de professor. Comecei portanto na faculdade, no contexto após as manifestações estudantis de 68. Por sorte me ofereceram um cargo e
  • 4. tornei-me muito rapidamente um professor assistente, de 69 a 74, quando passei diretamente a professor em Aix. H&M: O sr. poderia nos falar um pouco dos conflitos de sua geração? Suas características, suas opiniões políticas e de sua relação com o marxismo. Joutard: Minha geração veio justamente após aquela de Le Roy Ladurie, ou seja, éramos ainda muito marcados pelos comunistas, mas começávamos a nos afastar um pouco. Tínhamos 20 anos na década de 50. Foi quando começamos a ver as falhas e os defeitos do sistema soviético, por exemplo, no caso da Hungria em 1956. Naquela época, militávamos todos, ou seja, foi a descolonização e a guerra da Argélia, uma decepção. Também 1956, houve eleições na França e as pessoas votaram pelo fim da guerra, esperando por um governo que promovesse a paz. Este não somente não a promoveu, como cedeu complemente. Portanto, houve também essa desilusão, de um governo de esquerda que não fez a paz. É uma geração onde muitos são ainda comunistas, não marxistas, mas não tanto quanto nos dez anos anteriores. Éramos muito jovens durante a guerra, quando da entrada da França, tinha quatro anos. Então, a geração que tinha vinte anos em 1945, é muito marcada pela União Soviética e por seu papel na libertação, na luta contra o nazismo. Logo, quase todos os intelectuais eram comunistas. Mas, no que me diz respeito, muito cedo decidi não sê-lo. Pois, quando ingressei no curso preparatório, um dos meus amigos me disse: “Vem, é ótimo, você vai ver”. Era uma reunião um pouquinho formal, chamada entre os comunistas de “entrega de carteiras”, ou seja, o momento de adesão. Éramos três não-comunistas e após a cerimônia, dez deles - eram cerca de quarenta - foram em direção aos não comunistas para lhes perguntar: “Escuta, você é a favor da igualdade, você é a favor de que as coisas melhorem, você é contra a exploração” - respondíamos que sim - e eles então diziam: “Porque você não adere?”. Quer dizer, eles tinham um método de perguntas-respostas para se valer de seu peso numérico, isso fez com que eu reagisse negativamente. Considerei que se alguém tenta me influenciar, me negando a liberdade de refletir, é porque o sistema não funciona. Quando os comunistas tentavam recrutar alguém, eles o faziam tentando empregar métodos que lembram os tribunais. Então, nossa geração é marcada politicamente pelo declínio do marxismo, ou melhor, do comunismo e também por um grupo, no qual me incluo, que reagiu historicamente contra esse sistema, um pouco fácil demais, da relação entre as classes e as ideologias. Minha tese no fim do mestrado, em que a grande
  • 5. burguesia, os protestantes, votavam na esquerda e os operários católicos votavam na direita, me mostrou que o sistema um pouco mecânico não funcionava. H&M: E quando o sr. foi para Toulouse ? Joutard: Depois de Aix, eu tive uma carreira tripla: de professor, pesquisador e administrador. Como ocorre freqüentemente nas faculdades, logo que passei a dirigir o departamento de história, recebi responsabilidades de gestão. Depois, em 82 ou 83, o Ministério me convidou para a observação do desenvolvimento das ciências históricas e das ciências humanas no conjunto da universidade, para a produção de relatórios e avaliações. Já em 1989, assumi a reitoria, na França, isso não é de forma alguma um Presidente de Universidade, como no Brasil ou na Espanha, é um responsável pelo sistema de educação numa região. Por todo ele, pelo secundário e até mesmo pela universidade, mas como as universidades são autônomas, o papel é apenas de controle e não de gestão direta. E agora, depois de uma longa interrupção de oito anos, estou voltando às tarefas de um pesquisador, mas com uma nova visão, com um olhar novo. H&M: Na sua opinião, qual a relação entre história oral e memória? Joutard: A entrevista é uma verdadeira construção, na qual não existe apenas a pessoa que está sendo interrogada, mas também a pessoa que interroga e existe ainda o clima da interrogação, existe a maneira como a pergunta é feita. Bom, a memória evolui, sendo um pouco ingênuo acreditar que aquilo que se está coletando são os fatos. O que se está coletando, na verdade, é a representação que se têm do passado, mas é ainda mais complicado do que isso, porque é também a representação que se quer ou que se pode dar, o que muitas vezes é diferente. Observou-se na França, que para certos fenômenos, não é indiferente que a pessoa que interrogue seja uma mulher ou um homem. Não é a mesma coisa tão pouco se vocês fazem parte da comunidade. Por exemplo interrogar um militante de um partido político, ou eu, por exemplo, interrogando um protestante. Isto não é, de modo algum, dizer que as pessoas têm dois discursos, mas sim, que a memória está constantemente em evolução. Finalmente, eu creio que o mais interessante é a própria memória, muito mais do que os fatos, e não estou dizendo que não encontramos fatos. Mas, é também em nome da memória que atualmente as pessoas na Iugoslávia estão se matando. E foi pelo histórico do conflito entre católicos e protestantes que eu nunca tive uma visão demasiadamente otimista da memória, que é maniqueísta. Por isso, o papel do
  • 6. historiador é fundamental, é de ter a coragem de tomar distância, de comparar, de ter um olhar cruzado, de poder utilizar as diversidade das fontes. H&M: O sr. poderia nos falar da variedade de tendências entre os pesquisadores de história oral. Joutard: Bem, existem aqueles que fazem uma história oral totalmente alternativa e aqueles, que como eu, pensam que é uma metodologia. Temos também a visão da ciência política e da antropologia. Creio que elas têm o máximo de interesse em colaborar estreitamente entre si, porque é preciso antropologizar o político. Quer dizer, que não podemos nos ater, por exemplo, àquilo que um político diz, mas sim ao seu duplo discurso, ao ambiente, às diversas redes de clientela que não estão somente nos países tradicionais. Não podemos somente ver aquilo que as pessoas afirmam, a sua clivagem política, mas também, de alguma forma, os aspectos das redes locais, de alianças que não dependem do político. Neste sentido, o clientelismo não está ligado a um estágio da sociedade, existindo sempre, em todos os níveis e em todos os países. E depois, existe uma outra distinção, entre a história que interroga as testemunhas que viveram o passado, e a tradição oral. Isto é, o estudo daquilo que seus avós lhe contaram, tanto do ponto de vista dos costumes como da história. H&M: Na sua visão, qual a importância da X Conferência Internacional de História Oral realizada no Brasil? Joutard: Com toda a honestidade, creio que foi um sucesso. Foi uma conferência marcante, também por ter sido realizada fora da Europa. Mas, primordialmente, quero falar de meu sentimento de estrangeiro. Fiquei, antes de mais nada, impressionado com a força da participação dos diversos grupos de trabalho brasileiros. Tenho o sentimento, mas talvez eu esteja me gabando, que a palestra que fiz na segunda-feira suscitou um excelente consenso; percebi isto. Não houve perguntas agressivas, e depois as pessoas vieram me ver e discutiram comigo. Achei muito interessante a pergunta que me foi feita por uma de suas colegas brasileiras; combate-se demais pela história oral dos excluídos e não bastante pela das elites. E isso me parece uma reflexão bastante justa. A história oral não é simplesmente para o povo, para os sem-terra, para os esquecidos, é também para as camadas mais elevadas, para as ciências políticas, para as ciências administrativas. Encontrei-me num outro mundo cultural, mas não em outro planeta do ponto de vista
  • 7. historiográfico, não tive a impressão de estar a anos-luz, como se diz na França. Por outro lado, é um país, nem que fosse por sua tradição oral, em que existe ainda um trabalho apaixonante a fazer. Um último aspecto, por exemplo, foi a viabilização de um painel sobre os campos de concentração na Alemanha nazista, que felizmente foi retomado aqui. Não tenho tanta certeza, se esse debate poderia ser realizado na França ou na Alemanha, porque isto iria suscitar uma série de questões. Aqui tínhamos o afastamento necessário. Esta é uma iniciativa de alunos do Instituto de Filosofia e Ciências Sociais (IFCS) da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), e este é um espaço público onde todas as colaborações políticas, acadêmicas e artísticas são bem vindas.