1. r e v i s ta
direitos
humanos
NavaNEthEm Pillay
BoavENtura dE
SouSa SaNtoS
lEoNardo Sakamoto
marcuS BarBEriNo
Paulo Sérgio PiNhEiro
Silvia PimENtEl
Nilmário miraNda
JoSé gEraldo dE
SouSa JúNior
horácio coSta
João roBErto riPPEr
Paulo BEtti
02
junho 2009
2.
3. Apresentação
“A vida é procurar cada vez mais.
E se um dia alcançarmos o nosso sonho,
então temos que sonhar mais alto ainda!”.
C
om tal enunciado poético, Augusto Boal fechou sua antológica restrito a número limitado de brasileiros, segue envergonhando o País e
entrevista ao número 1 desta revista, pouco antes de morrer, le- nos convocando à construção de amplo consenso em torno da necessi-
gando a todos nós o desafio de prosseguir na busca. dade de erradicá-la imediatamente.
Aqui está o número 2 da revista, orgulhosa do sucesso da edição O reitor da Universidade de Brasília (UnB), José Geraldo de Sousa,
inaugural, com dez mil exemplares rapidamente distribuídos, e já deci- jurista conhecido pelas brilhantes conceituações a respeito do “Direito
dida a tornar-se quadrimestral. O plano é lançar o número 3 em setem- Achado na Rua”, analisa toda a temática da Educação em Direitos Hu-
bro e o número 4 em dezembro deste ano. manos no Brasil e o conteúdo mais central do Plano Nacional em curso
Nesta nova edição, a própria Alta Comissária de Direitos Humanos desde 2003, que ele próprio ajudou a formular e implementar.
da ONU, a sul-africana Navanethem Pillay, atendeu a nosso convite para O direito à diversidade sexual, como legítimo Direito Humano do
escrever sobre a real importância da Conferência de Revisão de Durban segmento LGBT, está também presente na revista, tanto no belo poema
contra o Racismo, ocorrida em Genebra, no final de maio. Seu relato po- do professor da Universidade de São Paulo (USP) Horácio Costa, quanto
sitivo corrige o festival de distorções patrocinado pela mídia de muitos na homenagem a nosso companheiro Paulo Biagi, que coordenou, até o
países, sob pretexto do lamentável discurso de Ahmadinejad colocando último domingo de Páscoa, o Programa Brasil sem Homofobia.
em dúvida o Holocausto. Neste número 2, a sessão permanente de entrevistas focaliza o ator
O conhecido professor e sociólogo de Coimbra, Boaventura de Sou- Paulo Betti, protagonista de filmes e novelas, mas também militante enga-
sa Santos, ofereceu à revista denso ensaio, aqui resumido, com refle- jado em diferentes causas dos Direitos Humanos, em especial nas ativida-
xão instigante sobre as perspectivas de universalização da agenda dos des da Casa da Gávea, no Rio de Janeiro, e do Quilombinho, em Sorocaba,
Direitos Humanos e seus condicionantes. Sem defender o relativismo direcionadas a crianças e adolescentes em situação de vulnerabilidade.
cultural, seu texto mostra que é imprescindível dialogar com tradições O ensaio fotográfico deste número estampa impressionantes ima-
afastadas do racionalismo ocidental – como o Hinduísmo e o Islamis- gens de João Roberto Ripper, sempre portadoras de aguda sensibilidade
mo – para que a pretendida universalidade não se limite a bordão tão social. Quanto às ilustrações, foram cedidas pelo artista plástico equa-
repetitivo quanto oco de sentidos. toriano Pavel Égüez.
A jurista Sílvia Pimentel, das mais respeitadas lideranças brasileiras na Ao final, a revista segue publicando os mais importantes instrumen-
luta das mulheres, reconstrói os avanços conquistados nessa temática an- tos internacionais sobre Direitos Humanos. Na edição anterior, tratou-se
gular dos Direitos Humanos, da Constituinte de 1986 à Lei Maria da Penha. de destacar a própria Declaração Universal, em seu aniversário de 60
Paulo Sérgio Pinheiro, com sua autoridade de relator da ONU em anos. Este número 2 traz a Convenção da ONU sobre os Direitos da
distintas questões (violência contra a criança no mundo, Mianmar, Bu- Criança, que completa 20 anos em 2009.
rundi etc.), e também membro da Comissão Interamericana de Direitos Com certeza, a leitura atenta deste número 2 da Revista Direitos
Humanos, desenha possibilidades otimistas nos Estados Unidos e no Humanos, bem como sua discussão com turmas de alunos e colegas
planeta, com a posse e com os primeiros cem dias de Barack Obama. em salas de aula, sua veiculação pela internet, seu debate em reuniões
O ex-ministro dos Direitos Humanos, Nilmário Miranda, reconstrói de sindicatos, associações, ONGs e movimentos populares, ajudarão a
o processo histórico da Anistia de 1979 – que em agosto completará reforçar mais um pouco a longa caminhada para concretizar e efetivar 3
30 anos –, deixando claro que ela não foi “ampla, geral e irrestrita”, esses direitos no cotidiano nacional brasileiro.
Revista Direitos Humanos
conforme desinformação muito reiterada nos últimos meses, seja pela
grande imprensa, seja pela voz de altíssimas autoridades da República. Brasília, junho de 2009
Leonardo Sakamoto e o juiz trabalhista Marcus Barberino partilham Paulo Vannuchi
artigo apontando o potencial e as dificuldades do combate ao trabalho Ministro da Secretaria Especial dos
escravo no Brasil, mancha histórica e ética que, não importando se Direitos Humanos da Presidência da República
4. Google imagens
sumário Wilson Dias/ABr
6 O início de uma história
de sucesso
NavaNEthEm Pillay
10 Direitos Humanos: o desafio
da interculturalidade
BoavENtura dE SouSa SaNtoS
Arquivo pessoal Arquivo pessoal
Combate ao trabalho
19 escravo: como plantar uma
floresta de Direitos Humanos
lEoNardo Sakamoto E
marcuS mENEzES BarBEriNo mENdES
Google imagens
23 Obama: uma comissão da
verdade para os torturadores?
Paulo Sérgio PiNhEiro
Fernanda Monteiro
A superação da cegueira
27 de gênero: mais do que um
desafio – um imperativo
Silvia PimENtEl
5. Expediente
Presidente da República
Luiz Inácio Lula da Silva
Ministro da Secretaria Especial dos Direitos
Foca Lisboa
Humanos da Presidência da República
Paulo Vannuchi
31 Aos 30 anos, anistia ainda é
um processo inconcluso
Secretário Adjunto
Rogério Sottili
Conselho editorial
Paulo Vannuchi (Presidente)
Nilmário miraNda Aída Monteiro
André Lázaro
Carmen Silveira de Oliveira
Dalmo Dallari
Darci Frigo
Egydio Salles Filho
Diógenis Santos Erasto Fortes Mendonça
José Geraldo de Sousa Júnior
José Gregori
35
Marcos Rolim
Educação em Direitos Humanos: Marília Muricy
Izabel de Loureiro Maior
desafio às universidades Maria Victoria Benevides
Matilde Ribeiro
JoSé gEraldo dE SouSa JúNior Nilmário Miranda
Oscar Vilhena
Paulo Carbonari
Paulo Sérgio Pinheiro
Perly Cipriano
Ricardo Brisolla Balestreri
Pedro Stephan
Samuel Pinheiro Guimarães
Coordenação editorial:
41
Erasto Fortes Mendonça
Mariana Carpanezzi
Poemas Paulo Vannuchi
Patrícia Cunegundes
horácio coSta Tradução:
Mariana Carpanezzi
Revisão:
Bárbara de Castro e Joíra Coelho
Colaboração:
Fátima Monteiro
Fernanda Reis Brito
Projeto gráfico:
42
Wagner Ulisses
Imagens Diagramação:
Erika Yoda, Fabrício Martins
e Maria Luísa Barsanelli
João roBErto riPPEr Capa e ilustrações:
Pavel Égüez
Produção editorial:
Jacumã Comunicação
Juliana Hallack Secretaria Especial dos Direitos Humanos
Esplanada dos Ministérios, Bloco T, Edifício
Sede, sala 424
50
70.064-900 Brasília – DF
direitoshumanos@sedh.gov.br
Entrevista www.direitoshumanos.gov.br
ISSN 1984-9613
Distribuição gratuita 5
Paulo BEtti Tiragem: 10.000 exemplares
Revista Direitos Humanos
Direitos Humanos é uma revista de distribuição gratuita,
publicada pela Secretaria Especial dos Direitos Humanos
da Presidência da República.
>>
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57
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6. artigo
O início de uma
história de sucesso
NavaNEthEm Pillay
A
NavaNEthEm Pillay é Conferência das Nações Unidas para por alhear-se ao processo a retomar seu lugar
alta-comissária das Nações Unidas a Revisão de Durban foi concluída em nos esforços internacionais de superação da
para os Direitos Humanos Genebra no dia 24 de abril de 2009 discriminação e da intolerância, apontados no
com amplo acordo enunciando medidas que documento final da conferência. Muitos entre
reafirmam a tolerância, o respeito à diversi- esses Estados haviam se engajado nos traba-
dade e a continuidade da luta para combater lhos de redação da versão preliminar do docu-
6
o racismo. A rápida e consensual adoção do mento e se colocado como parte do consenso
Revista Direitos Humanos
documento final da conferência prova a con- emergente até a véspera da Conferência de Re-
fiança que muitos países e inúmeras vítimas visão. Espero que reexaminem o documento fi-
depositaram no processo de revisão. nal, que o valorizem considerando o mérito que
Tradução para o português Tal resultado deveria convencer os Esta- detém, e que a partir deste olhar reconsiderem
Mariana Carpanezzi dos-membros das Nações Unidas que optaram sua posição de afastar-se das discussões.
7. "Racismo e discriminação racial atacam e
podem corromper as próprias fundações da
dignidade de um indivíduo”
Uma tal reavaliação seria simplesmente culturais ou de argumentos falaciosos apre- das formas mais comuns de violação dos
justa. Apesar das críticas apontadas por al- sentados como evidências científicas. A Direitos Humanos e tende a intensificar-se
guns analistas, a conferência fez jus ao que história insiste em nos provar que, uma vez em condições de ressurgência de precon-
se propunha realizar: uma celebração da enraizados, a discriminação, o racismo e a ceitos e medos, bem como em situações de
dignidade e da tolerância para todos. Con- intolerância despedaçam os próprios pilares competição por recursos e oportunidades de
cluímos aquele encontro com sentimento de que sustentam a sociedade e os corrompem trabalho. Ela é também, e de modo frequente,
realização que nos renovou e reenergizou a por gerações. Posso dizê-lo a partir de minha inerente às assimetrias de poder nas socieda-
determinação e o projeto de luta. Tal senti- própria experiência de ter crescido e vivido des. Ela explora e perverte o desejo humano
mento e consciência certamente nos ajuda- durante o regime do apartheid sul-africano. de pertencimento, assim como as legítimas
rão a levar em frente a tarefa que se coloca Conheço a força destrutiva que reside no ra- aspirações a um espaço cultural, históri-
para o futuro: o duro trabalho de honrar nos- cismo institucionalizado. co e psicológico que preserve e alimente a
sos compromissos; a urgente obrigação de Apesar da garantia de não discriminação identidade pessoal.
aportar efeitos concretos ao documento da inscrever-se em todo e qualquer instrumento Tudo isso explica a importância da con-
conferência; o imperativo de apagar essa an- de Direitos Humanos, as leis de alguns paí- ferência em Genebra. Ela representou uma
tiga vergonha que o racismo representa. ses e as práticas de muitos outros, em todas chance para que todas as nações pudessem
Não há dúvida de que o racismo, a into- as regiões do mundo, ainda autorizam e tole- reunir-se e acordar um só documento que
lerância e a discriminação subsistem entre ram a discriminação. O presidente Luiz Inácio inscrevesse aspiração comum – combater o
as questões mais urgentes de nosso tempo. Lula da Silva já se pronunciou de maneira racismo, em todas as suas manifestações, e
Não apenas a discriminação persiste, como eloquente sobre os desafios que enfrentou expressá-lo conjuntamente numa só voz. Foi
vai adquirindo novas formas e dando origem como garoto pobre de uma família do campo, uma oportunidade de dar ímpeto à imple-
a sinistras agendas baseadas no mito da exposto a arraigados preconceitos, vivendo mentação dos compromissos assumidos oito
supremacia de um grupo sobre outro. Ne- “na periferia do mundo o drama da estag- anos atrás em Durban, em 2001, no curso
nhuma sociedade, grande ou pequena, rica nação e da profunda desigualdade social”. da Conferência Mundial contra o Racismo,
ou pobre, é imune a ele. A carga do racismo Além disso, o presidente também já fez notar a Discriminação Racial, a Xenofobia e Outras
é pesada tanto para indivíduos quanto para que a maioria de seus predecessores, mesmo Formas de Intolerância.
comunidades inteiras. os reformistas, governou para poucos, preo- A Declaração e Programa de Ação de Dur-
Racismo e discriminação racial atacam e cupando-se com “um Brasil no qual apenas ban (DDPA), documento final daquela confe-
podem corromper as próprias fundações da um terço da população importava”. rência, foi adotada por consenso. Constitui a
dignidade de um indivíduo, uma vez que bus- Sem desconsiderar o conhecimento que mais completa plataforma internacional para a
cam dividir a família humana entre categorias acumulamos a respeito dos efeitos pernicio- luta contra o racismo, o preconceito, a xenofo-
7
de pessoas e atribuir-lhes valor diferenciado. sos que a intolerância, a opressão e a sub- bia e outras formas correlatas de intolerância.
Revista Direitos Humanos
Todos os aspectos da discriminação de- jugação vêm produzindo através dos séculos A esperança de milhões de vítimas está anco-
vem ser denunciados e forçosamente rejei- e dos continentes, temos de continuar em- rada na implementação do documento, mas
tados, sempre que se manifestem em suas preendendo esforços para que nos livremos essa nobre carta se reduzirá a retórica vazia
várias expressões de ódio, seja sob a forma da discriminação e da marginalização. A se os compromissos que ela enfeixa não ge-
de oportunismo político, de pressupostos discriminação racial, particularmente, é uma rarem efeitos práticos. Precisamos monitorar
8. artigo O início de uma história de sucesso
e avaliar quantas dessas solenes promessas sobre os Direitos das Populações Indígenas
enunciadas pelos Estados em 2001 foram são igualmente promissoras.
realizadas. Ao mesmo tempo, precisamos de Apesar dos ganhos obtidos, imensos
compreensão mais clara sobre as lacunas que desafios ainda se colocam à nossa frente.
ainda persistem na esfera da proteção das ví- Um breve olhar sobre o trabalho recente do
timas, assim como das negligências observa- Comitê para a Eliminação de Todas as For-
das com relação ao DDPA. mas de Discriminação Racial revela que as
A região latino-americana e caribenha já leis nacionais e as medidas para garantir a
deu início a tal processo de avaliação. Se- eliminação do racismo são tanto inadequadas
guindo a conferência de 2001 em Durban, a quanto ineficientes. É preocupante o limitado
região demonstrou forte compromisso com a número de Estados da região que detêm in-
implementação dos objetivos e recomenda- dicadores para aferir os progressos no tema
ções contidos no DDPA. No nível nacional, de combate ao racismo. A representação de
praticamente todas as Constituições da região grupos minoritários em cargos públicos é
garantem o princípio da igualdade. Muitos diminuta. Há ainda poucas campanhas edu-
países empreenderam reformas jurídicas para cacionais públicas voltadas à promoção da
eliminar leis discriminatórias. Alguns países igualdade, da diversidade e da tolerância.
passaram a adotar planos de ação nacionais Dado o legado histórico deixado pelo ra-
contra o racismo, tal como recomendado pelo cismo na região – exclusão social de popu-
DDPA. Embora nem todos os planos tenham lações indígenas e afrodescendentes –, mais
sido integralmente implementados, a adoção Estados deveriam adotar medidas para pro-
do plano, por si só, configura um passo na mover a participação e a representação dos
direção correta. grupos marginalizados e vulneráveis. Se a re-
Noto, com satisfação, que a maioria gião, por um lado, guarda bons registros com
dos países da região já ratificou os prin- respeito à ratificação de tratados internacio-
cipais tratados internacionais de Direitos nais sobre os Direitos Humanos, por outro é
Humanos das Nações Unidas e do sistema preciso notar que importantes instrumentos,
regional. Fortalecendo e expandindo esse tais como a Convenção para a Proteção dos
corpo de leis, a versão provisória da futura Direitos dos Trabalhadores Migrantes e Mem-
Convenção Interamericana contra o Racis- bros de suas Família, a Convenção nº 169 da
mo e Todas as Formas de Discriminação e Organização Internacional do Trabalho (sobre
Intolerância promete converter-se em agen- Populações Indígenas e Tribais) e a Conven-
te catalisador desse processo. Apesar de a ção sobre os Direitos das Pessoas com De-
convenção ainda não ter atingido sua ver- ficiência têm sido objeto de apoio modesto.
são final, ela constitui desde já instrumento Os problemas que a região enfrenta não
que contempla e enfrenta universo amplo são restritos ao Hemisfério Ocidental. Como
de diversas formas de discriminação, como repetidamente venho fazendo notar, a imple-
jamais outro o fez. A criação, em 2005, do mentação da Declaração e Programa de Ação
8 mandato de relator especial para os Direitos de Durban vem sendo dificultada em diferen-
Humanos das Populações de Origem Afri- tes localidades por toda sorte de obstáculos.
Revista Direitos Humanos
cana e para a Discriminação Racial consti- No seio das devastadoras consequências da
tui outra pedra fundamental no combate ao atual crise financeira e da recessão econô-
racismo. As atuais discussões relacionadas mica, a pobreza e a exclusão continuarão a
à adoção de uma Declaração Americana representar desafios centrais. A convergência
9. dessas crises com os efeitos da mudança cli- e espírito de compromisso sem precedentes.
mática certamente afetarão desproporcional- Todos foram agudamente sensíveis ao fato de
mente todos os grupos vulneráveis dentro de que o racismo, quer institucionalizado, quer
suas respectivas sociedades. manifesto como mero ódio contra pessoas,
A globalização sublinha o desafio de religião ou classes, constitui simples e pura
garantir respeito mútuo entre indivíduos negação dos Direitos Humanos.
que carregam consigo diferentes trajetó- No conjunto das várias histórias nacio-
rias de vida nas sociedades multiculturais. nais, já assistimos a casos de intolerância
Com a intensificação dos movimentos de que negam as identidades do “outro”, ou
pessoas através das fronteiras nacionais, que rejeitam os sofrimentos das minorias que
os migrantes passam a ser percebidos recusam dividir a chamada “história oficial”.
como competidores pelos escassos recur- Vimos emergi-los sob novas formas, como
sos disponíveis, bem como ameaça para os o tráfico de pessoas, cujas vítimas tendem
modos de vida de outros grupos. Por fim, a ser preferencialmente mulheres e crianças
a exploração da diferença – étnica, racial de situação socioeconômica desprivilegiada.
ou religiosa – continua a funcionar como Refugiados, asilados, trabalhadores migran-
combustível para os conflitos armados e tes e migrantes sem documentação vêm
para tensões dentro das comunidades. sendo cada vez mais estigmatizados, se não
O documento final da Conferência de perseguidos. Uma nova política de xenofobia
Revisão de Durban convoca os Estados a encontra-se em estágio de ascensão.
prevenir manifestações de racismo, de dis- A discriminação não desaparece por si
criminação racial e de xenofobia, especial- própria. Ela deve ser desafiada a todo mo-
mente com relação a migrantes, refugiados mento. Não devemos esperar. Cada nação
e asilados. Os Estados também são instados deve ser parceira nessa luta.
a promover maior grau de participação e de A magnitude da tarefa que se coloca dian-
oportunidades para as pessoas de descen- te de nós deve incentivar nossa união, para
dência africana ou asiática, populações indí- que façamos o melhor uso de nossas energias
genas e indivíduos pertencentes a minorias e recursos, com o propósito de criar um mun-
étnicas, religiosas ou linguísticas. A centrali- do de oportunidades e de tratamentos iguais
dade da liberdade de expressão é reafirmada para todos, independentemente de raça, gê-
lado a lado com a sua compatibilidade com nero, língua, religião, opinião, posição políti-
os instrumentos internacionais que proíbem a ca, origem social ou nacional, de propriedade,
incitação ao ódio, com vistas a harmonizar o de nascimento ou de qualquer outra condição.
conflito artificial que se estabeleceu entre os Tal como a vejo, a Conferência em Gene-
dois princípios. bra é o começo de um processo, muito mais
Estados ainda reconheceram as injusti- do que o seu fim. A longa marcha da huma-
ças e atrocidades do passado e compromete- nidade em sua campanha contra o racismo
ram-se a evitar sua repetição. Nesse sentido, nunca foi fácil. Como podemos pensar que
envidaram esforços para proibir atividades ficará mais fácil no futuro? Assim, faço ape- 9
violentas, racistas e xenófobas de grupos lo a todos os países para que se unam nesta
Revista Direitos Humanos
propagadores de ideologias extremistas. marcha à frente. Se a tolerância e o respeito
Demonstrando sensibilidade pelas de- pela diversidade constituem nosso horizonte
mandas de nossos tempos, os participantes futuro, o melhor é que comecemos a praticar
demonstraram flexibilidade, clareza de projeto essas mesmas qualidades aqui e agora.
10. Direitos Hum
o desafio
BoavENtura dE SouSa SaNtoS
A
forma como os Direitos Humanos
se transformaram, nas duas últimas
décadas, na linguagem da política
progressista, em quase sinônimo de eman-
cipação social causa alguma perplexidade.
De fato, durante muitos anos, após a Se-
gunda Guerra Mundial, os Direitos Humanos
foram parte integrante da política da guerra
fria, e como tal foram considerados pelas
forças políticas de esquerda. Duplos crité-
rios na avaliação das violações dos Direitos
Humanos, complacência para com ditadores
amigos do Ocidente, defesa do sacrifício dos
Direitos Humanos em nome dos objetivos
do desenvolvimento – tudo isso tornou os
Direitos Humanos suspeitos enquanto roteiro
emancipatório.
Quer nos países centrais, quer em todo
o mundo em desenvolvimento, as forças
progressistas preferiram a linguagem da re-
volução e do socialismo para formular uma
política emancipatória. E no entanto, perante
a crise aparentemente irreversível desses pro-
BoavENtura dE SouSa SaNtoS é professor
jetos de emancipação, são essas mesmas for-
catedrático da Faculdade de Economia da
ças que recorrem hoje aos Direitos Humanos
Universidade de Coimbra, distinguished legal
para reinventar a linguagem da emancipação.
scholar da Faculdade de Direito da Universidade
É como se os Direitos Humanos fossem in-
de Wisconsin-Madison e global legal scholar da
vocados para preencher o vazio deixado pelo
Universidade de Warwick. É diretor do Centro de
Socialismo ou, mais em geral, pelos projetos
10 Estudos Sociais da Universidade de Coimbra,
emancipatórios. Poderão realmente os Direi-
diretor do Centro de Documentação 25 de Abril da
Revista Direitos Humanos
tos Humanos preencher tal vazio? A minha
mesma universidade e coordenador científico do
resposta é um sim muito condicional.
Observatório Permanente da Justiça Portuguesa.
O meu objetivo neste trabalho é identifi-
Este artigo foi resumido de um ensaio maior por
car as condições em que os Direitos Huma-
Erasto Fortes Mendonça, com autorização do autor nos podem ser colocados a serviço de uma
11. manos:
o da interculturalidade
política progressista e emancipatória. Tal ta- forma de Estado e interesses e grupos so- pós-nacional. A efetividade dos Direitos
refa exige que sejam claramente entendidas ciais que se reproduzem melhor sob a forma Humanos tem sido conquistada em pro-
as três tensões dialéticas que informam a de sociedade civil, tornando o âmbito efe- cessos políticos de âmbito nacional, e por
modernidade ocidental. A primeira ocorre en- tivo dos Direitos Humanos inerentemente isso a fragilização do Estado Nação pode
tre regulação social e emancipação social. A problemático. Historicamente, nos países trazer consigo a fragilização dos Direitos
segunda ocorre entre o Estado e a sociedade do Atlântico Norte, a primeira geração dos Humanos. Por outro lado, os Direitos Hu-
civil. A terceira ocorre entre o Estado Nação e Direitos Humanos, dos direitos civis e polí- manos aspiram hoje a um reconhecimento
o que designamos por globalização. ticos, foi concebida como luta da sociedade mundial e podem mesmo ser considerados
A primeira tensão dialética entre regula- civil contra o Estado, considerado principal como um dos pilares fundamentais de uma
ção social – simbolizada pela crise do Estado violador potencial dos Direitos Humanos. emergente política pós-nacional. A ree-
intervencionista e do Estado-providência – e A segunda e terceira gerações, dos direi- mergência dos Direitos Humanos é hoje
emancipação social – simbolizada pela crise tos econômicos, sociais e culturais e da entendida como sinal do regresso do cultu-
da revolução social e do Socialismo como qualidade de vida foram concebidas como ral e até mesmo do religioso. Ora, falar de
transformação radical – deixou de ser, nes- atuações do Estado, considerado principal cultura e de religião é falar de diferença, de
te início de século, tensão criativa. As crises garantidor dos Direitos Humanos. fronteiras, de particularismos. Como pode-
de regulação e emancipação sociais são si- Por fim, a terceira tensão ocorre entre rão os Direitos Humanos ser uma política
multâneas e alimentam-se uma da outra. A o Estado Nação e o que designamos por simultaneamente cultural e global?
política de Direitos Humanos, que pode ser globalização. Hoje, a erosão seletiva do Es- Nessa ordem de ideias, o meu objetivo
simultaneamente uma política regulatória e tado Nação, imputável à intensificação da é desenvolver um quadro analítico capaz de
uma política emancipatória, está armadilhada globalização, coloca a questão de saber se, reforçar o potencial emancipatório da política
nessa dupla crise, ao mesmo tempo em que quer a regulação social, quer a emancipa- dos Direitos Humanos no duplo contexto da
é sinal do desejo de a ultrapassar. ção social, deverão ser deslocadas para o globalização, por um lado, e da fragmentação
A segunda tensão dialética que ocorre nível global. É nesse sentido que se come- cultural e da política de identidades, por ou-
entre o Estado e a sociedade civil, apesar ça a falar em sociedade civil global, gover- tro. Pretendo apontar as condições que per-
de considerado o dualismo fundador da nança global, equidade global e cidadania mitem conferir aos Direitos Humanos, tanto
modernidade ocidental, aponta como pro-
blemáticas e contraditórias a distinção e a
relação entre ambos.
Nas últimas décadas, tornou-se mais
“É como se os Direitos Humanos
claro que a distinção entre o Estado e a so- fossem invocados para preencher 11
Revista Direitos Humanos
ciedade civil, longe de ser um pressuposto
da luta política moderna, é o resultado dela.
o vazio deixado pelo Socialismo
A tensão deixa, assim, de ser entre Estado ou, mais em geral, pelos projetos
e sociedade civil para ser entre interesses
e grupos sociais que se reproduzem sob a emancipatórios”
12. artigo Direiros humanos: o Desafio da Interculturalidade
o escopo global como a legitimidade local, gua inglesa em língua franca, a globalização
para fundar uma política progressista de Di- do fast food americano ou da sua música
reitos Humanos – Direitos Humanos concebi- popular, ou seja a adoção mundial das leis
dos como a energia e a linguagem de esferas de propriedade intelectual ou de telecomu-
públicas locais, nacionais e transnacionais nicações dos EUA. “A globali
atuando em rede para garantir novas e mais
intensas formas de inclusão social.
À segunda forma de globalização chamo
globalismo localizado. Consiste no impacto
processo
específico de práticas e imperativos transna- determinad
acErca daS gloBalizaçõES cionais nas condições locais. Tais globalis-
Muitas definições de globalização cen- mos localizados incluem: desflorestamento ou entidade l
tram-se na economia. Privilegio, no entanto,
uma definição mais sensível às dimensões
e destruição maciça dos recursos naturais
para pagamento da dívida externa; tesouros
a sua infl
sociais, políticas e culturais. Não existe es- históricos, lugares ou cerimônias religio- todo o
tritamente uma entidade única chamada glo- sos, artesanato e vida selvagem postos à
balização, mas, em vez disso, globalizações, disposição da indústria global do turismo;
termo que, a rigor, só deveria ser usado no “compra” pelos países do Terceiro Mundo
plural e que, como feixes de relações sociais, de lixos tóxicos produzidos nos países capi-
envolvem conflitos, vencedores e vencidos. talistas centrais para gerar divisas externas;
Frequentemente, o discurso sobre globaliza- conversão da agricultura de subsistência
ção é a história dos vencedores. em agricultura para exportação como parte
Proponho, pois, a seguinte definição: a do “ajustamento estrutural”; alterações le-
globalização é o processo pelo qual deter- gislativas e políticas impostas pelos países
minada condição ou entidade local estende centrais ou pelas agências multilaterais que
a sua influência a todo o globo e, ao fazê-lo, eles controlam; uso de mão de obra local
desenvolve a capacidade de designar como por parte de empresas multinacionais sem
local outra condição social ou entidade rival. qualquer respeito por parâmetros mínimos
Aquilo que chamamos globalização é de trabalho (labor standards). A divisão in-
sempre a globalização bem-sucedida de ternacional da produção da globalização as-
determinado localismo. Em termos ana- sume o seguinte padrão: os países centrais
líticos, seria correta a utilização do termo especializam-se em localismos globaliza-
localização em vez de globalização para dos, enquanto aos países periféricos cabe
designar a presente situação. O motivo da tão só a escolha entre várias alternativas de
preferência para o último termo é basica- globalismos localizados. O sistema-mundo
mente porque o discurso científico hege- é uma trama de globalismos localizados e
mônico tende a privilegiar a história do localismos globalizados.
mundo na versão dos vencedores. À terceira forma de globalização de-
Distingo quatro modos de produção da signo por cosmopolitismo, conjunto muito
globalização, os quais, em meu entender, vasto e heterogêneo de iniciativas, movi-
12 dão origem a quatro formas de globalização. mentos e organizações que partilham a luta
A primeira forma de globalização é o localis- contra a exclusão e a discriminação sociais
Revista Direitos Humanos
mo globalizado. Consiste no processo pelo e a destruição ambiental produzidas pelos
qual determinado fenômeno local é globali- localismos globalizados e pelos globalis-
zado com sucesso, seja a atividade mundial mos localizados, recorrendo a articulações
das multinacionais, a transformação da lín- transnacionais tornadas possíveis pela
13. revolução das tecnologias de informação e nica. Localismos globalizados e globalismos
de comunicação. As atividades cosmopoli- localizados são a globalização de-cima-para-
tas incluem diálogos e articulações Sul-Sul; baixo, neoliberal ou hegemônica; cosmopo-
novas formas de intercâmbio operário; redes litismo e patrimônio comum da humanidade
ização é o transnacionais de lutas ecológicas, pelos são a globalização de-baixo-para-cima, soli-
pelo qual direitos da mulher, pelos direitos dos po-
vos indígenas, pelos Direitos Humanos em
dária ou contra-hegemônica.
da condição geral; solidariedade anticapitalista entre o oS dirEitoS humaNoS como
Norte e o Sul. O Fórum Social Mundial que rotEiro EmaNciPatório
local estende se reuniu em Porto Alegre a partir de 2001 é A complexidade dos Direitos Humanos
fluência a hoje a mais pujante afirmação de cosmopo-
litismo no sentido aqui adotado.
reside em que eles podem ser concebidos
e praticados, quer como forma de localis-
globo” Não uso cosmopolitismo no sentido mo- mo globalizado, quer como forma de cos-
derno convencional. Para mim, cosmopolitis- mopolitismo ou, por outras palavras, quer
mo é a solidariedade transnacional entre gru- como globalização hegemônica, quer como
pos explorados, oprimidos ou excluídos pela globalização contra-hegemônica. O meu
globalização hegemônica. O cosmopolitismo objetivo é especificar as condições culturais
que defendo é o cosmopolitismo do subalter- para que os Direitos Humanos constituam
no em luta contra a sua subalternização. forma de globalização contra-hegemônica.
A quarta forma de globalização refere- A minha tese é que, enquanto forem conce-
se à emergência de temas que, por sua bidos como direitos humanos universais, os
natureza, são tão globais como o próprio Direitos Humanos tenderão a operar como
planeta e aos quais eu chamaria, recorren- localismo globalizado e, portanto, como
do ao Direito internacional, o patrimônio forma de globalização hegemônica. Para
comum da humanidade. Trata-se de temas poder operar como forma de cosmopolitis-
como a sustentabilidade da vida humana na mo, como globalização contra-hegemônica,
Terra, por exemplo, ou temas ambientais os Direitos Humanos têm de ser reconcei-
como a proteção da camada de ozônio, a tualizados como multiculturais. Concebidos
preservação da Antártica, da biodiversida- como direitos universais, como tem sucedi-
de ou dos fundos marinhos. Incluo, ainda, do, os Direitos Humanos tenderão sempre
nessa categoria, a exploração do espaço, a ser instrumento do “choque de civiliza-
da Lua e de outros planetas, dadas as inte- ções”, tal como o concebe Samuel Hunting-
rações globais, físicas e simbólicas, entre ton (1993), ou seja, como arma do Ocidente
eles e o planeta Terra. A preocupação com contra o resto do mundo. É sabido que os
o cosmopolitismo e com o patrimônio co- Direitos Humanos não são universais na sua
mum da humanidade conheceu grande de- aplicação. Serão os direitos humanos uni-
senvolvimento nas últimas décadas, mas versais, enquanto artefato cultural, um tipo
também fez surgir poderosas resistências. de invariável cultural ou transcultural, parte
Em face da análise precedente, é fun- de uma cultura global? A minha resposta 13
damental distinguir entre globalização de- é não. Apenas a cultura ocidental tende a
Revista Direitos Humanos
cima-para-baixo e globalização de-baixo- formulá-los como universais. Por outras pa-
para-cima, entre globalização neoliberal e lavras, a questão da universalidade é uma
globalização solidária ou entre globalização questão particular, uma questão específica
hegemônica e globalização contra-hegemô- da cultura ocidental.
14. artigo Direiros humanos: o Desafio da Interculturalidade
O conceito de Direitos Humanos assenta A dualidade entre uma “política de invisi- reitos Humanos sobre universalismo e rela-
num bem-conhecido conjunto de pressupos- bilidade” e uma “política de supervisibilida- tivismo cultural. Todas as culturas são relati-
tos, todos claramente ocidentais e facilmente de” correlacionadas aos imperativos da polí- vas, mas o relativismo cultural, como posição
distinguíveis de outras concepções de digni- tica externa norte-americana foi denunciada filosófica, é incorreto. Por outro lado, todas
dade humana em outras culturas. por Richard Falk (1981), ao citar a ocultação as culturas aspiram a preocupações e valores
A marca ocidental liberal do discurso total pela mídia das notícias sobre o geno- válidos independentemente do contexto de
dominante dos Direitos Humanos pode cídio do povo maubere em Timor Leste ou a seu enunciado, mas o universalismo cultural,
ser facilmente identificada em muitos ou- situação dos cerca de duzentos milhões de como posição filosófica, é incorreto.
tros exemplos: na Declaração Universal “intocáveis” na Índia, bem como a exuberân- A segunda premissa da transformação
de 1948, elaborada sem a participação da cia com que os atropelos pós-revolucionários cosmopolita dos Direitos Humanos é que
maioria dos povos do mundo; no reconhe- dos Direitos Humanos no Irã e no Vietnã fo- todas as culturas possuem concepções de
cimento exclusivo de direitos individuais, ram relatados nos Estados Unidos. dignidade humana, mas nem todas elas a
com a única exceção do direito coletivo à Mas essa não é toda a história das políti- concebem em termos de Direitos Humanos.
autodeterminação; na prioridade concedida cas dos Direitos Humanos. Muitas pessoas e A terceira premissa é que todas as cultu-
aos direitos civis e políticos sobre os direi- organizações não governamentais têm luta- ras são incompletas e problemáticas nas suas
tos econômicos, sociais e culturais; e no do pelos Direitos Humanos, correndo riscos concepções de dignidade humana. Se cada
reconhecimento do direito de propriedade em defesa de grupos oprimidos vitimizados cultura fosse tão completa como se julga,
como o primeiro e, durante muitos anos, o por Estados autoritários, por práticas econô- existiria apenas uma só cultura. Aumentar a
único direito econômico. micas excludentes ou por políticas culturais consciência de incompletude cultural é uma
A história dos Direitos Humanos no pe- discriminatórias. Tais lutas emancipatórias das tarefas prévias à construção de uma con-
ríodo imediatamente posterior à Segunda são, por vezes, explícita ou implicitamente cepção multicultural de Direitos Humanos.
Guerra Mundial nos leva a concluir que as anticapitalistas. Creio que a tarefa central da A quarta premissa é que todas as culturas
políticas de Direitos Humanos estiveram em política emancipatória do nosso tempo con- têm versões diferentes de dignidade humana,
geral a serviço dos interesses econômicos e siste em transformar a conceitualização e a algumas mais amplas do que outras, algumas
14 geopolíticos dos Estados capitalistas hege- prática dos Direitos Humanos, de um loca- com um círculo de reciprocidade mais largo
mônicos. Um discurso generoso e sedutor lismo globalizado num projeto cosmopolita. do que outras, algumas mais abertas a outras
Revista Direitos Humanos
sobre os Direitos Humanos coexistiu com Identifico três premissas dessa transfor- culturas do que outras.
atrocidades indescritíveis, as quais foram mação. A primeira premissa é a superação Por último, a quinta premissa é que
avaliadas de acordo com revoltante duplici- do debate intrinsecamente falso e prejudicial todas as culturas tendem a distribuir as
dade de critérios. para uma concepção emancipatória dos Di- pessoas e os grupos sociais entre dois
15. “Um discurso generoso e
sedutor sobre os Direitos
Humanos coexistiu com
atrocidades indescritíveis”
princípios competitivos de pertença hierár- A hermenêutica diatópica baseia-se na reitos Humanos, o dharma também é incom-
quica. O princípio da igualdade e o princí- ideia de que os topoi de uma dada cultura, pleto, dado o seu enviesamento fortemente
pio da diferença. Embora na prática os dois por mais fortes que sejam, são tão incom- não dialético a favor da harmonia, ocultando,
princípios se sobreponham frequentemente, pletos quanto a própria cultura a que perten- assim, injustiças e negligenciando totalmen-
uma política emancipatória dos Direitos cem. Tal incompletude não é visível a partir te o valor do conflito como caminho para
Humanos deve saber distinguir entre a luta do interior dessa cultura, uma vez que a as- uma harmonia mais rica. Além disso, o dhar-
pela igualdade e a luta pelo reconhecimen- piração à totalidade induz a que se tome a ma não está preocupado com os princípios
to igualitário das diferenças, a fim de poder parte pelo todo. O objetivo da hermenêutica da ordem democrática, com a liberdade e a
travar ambas as lutas eficazmente. diatópica não é, porém, atingir a completude autonomia, e tende a esquecer que o sofri-
Essas são as premissas de um diálogo – objetivo inatingível – mas, pelo contrário, mento humano possui uma dimensão indi-
intercultural sobre a dignidade humana que ampliar ao máximo a consciência de incom- vidual irredutível: não são as sociedades que
pode levar, eventualmente, a uma concepção pletude mútua, por meio de um diálogo que sofrem, mas sim os indivíduos.
mestiça de Direitos Humanos, uma concep- se desenrola, por assim dizer, com um pé A mesma hermenêutica diatópica pode
ção que, em vez de recorrer a falsos univer- numa cultura e outro, noutra. Nisso reside o ser ensaiada entre o topos dos Direitos Huma-
salismos, se organiza como uma constelação seu caráter dia-tópico. nos e o topos da umma na cultura islâmica,
de sentidos locais, mutuamente inteligíveis, Um exemplo de hermenêutica diatópi- que se refere sempre à comunidade étnica,
e que se constitui em rede de referências nor- ca é a que pode ter lugar entre o topos dos linguística ou religiosa de pessoas que são
mativas capacitantes. Direitos Humanos na cultura ocidental, o to- o objeto do plano divino de salvação. Vista a
pos do dharma na cultura hindu e o topos partir do topos da umma, a incompletude dos
a hErmENêutica diatóPica da umma na cultura islâmica. Vistos a partir Direitos Humanos individuais reside no fato
Podemos compreender topoi como do topos do dharma, os Direitos Humanos de, com base neles, ser impossível fundar os
lugares comuns retóricos mais abrangen- são incompletos, na medida em que não laços e as solidariedades coletivas, sem as
tes de determinada cultura, que funcionam estabelecem a ligação entre a parte (o indi- quais nenhuma sociedade pode sobreviver,
como premissas de argumentação que, por víduo) e o todo (o cosmos). Vista a partir do e muito menos prosperar. A dificuldade da
sua evidência, não se discutem e tornam dharma, a concepção ocidental dos Direitos concepção ocidental de Direitos Humanos 15
possíveis a produção e a troca de argu- Humanos está contaminada por uma simetria em aceitar direitos coletivos de grupos so-
Revista Direitos Humanos
mentos. Compreender determinada cultura muito simplista e mecanicista entre direitos ciais ou povos é um exemplo específico de
a partir dos topoi de outra cultura é tarefa e deveres. Apenas garante direitos àqueles a uma dificuldade muito mais ampla: a dificul-
muito difícil, para a qual proponho uma her- quem pode exigir deveres. Por outro lado e dade em definir a comunidade como arena
menêutica diatópica. inversamente, visto a partir do topos dos Di- de solidariedades concretas, campo político
16. artigo Direiros humanos: o Desafio da Interculturalidade
dominado por uma obrigação política hori- fontes do Islamismo, que relativiza o con-
zontal. Esta ideia de comunidade, central para texto histórico específico em que a Sharia
Rousseau, foi varrida do pensamento liberal, foi criada pelos juristas dos séculos VIII e
que reduziu toda a complexidade societal à IX. No contexto atual, haveria todas as con-
dicotomia Estado/sociedade civil. dições para uma concepção mais alargada
Mas, por outro lado, a partir do to- da igualdade e da reciprocidade a partir das
“No contexto pos dos Direitos Humanos individuais, é fontes corânicas. Estaria inclinado a sugerir
fácil concluir que a umma sublinha de- que, no contexto muçulmano, a energia mo-
muçulmano, masiadamente os deveres em detrimen- bilizadora necessária para um projeto cos-
a energia to dos direitos e por isso tende a perdoar
desigualdades que seriam de outro modo
mopolita dos Direitos Humanos poderá ge-
rar-se mais facilmente num quadro religioso
mobilizadora inadmissíveis, como a desigualdade entre moderado. Se for esse o caso, a abordagem
homens e mulheres ou entre muçulmanos e de An-na’im é muito promissora.
necessária não muçulmanos. A hermenêutica diatópica Na Índia, uma via per mezzo semelhante
para um mostra-nos que a fraqueza fundamental da está a ser prosseguida por alguns grupos de
cultura ocidental consiste em estabelecer defesa dos Direitos Humanos, particularmen-
projeto dicotomias demasiadamente rígidas entre te por aqueles que centram a sua ação na de-
cosmopolita o indivíduo e a sociedade, tornando-se,
assim, vulnerável ao individualismo posses-
fesa dos intocáveis.
Por sua própria natureza, a hermenêuti-
de Direitos sivo, ao narcisismo, à alienação e à anomia. ca diatópica é um trabalho de colaboração
De igual modo, a fraqueza fundamental das intercultural e não pode ser levada a cabo
Humanos culturas hindu e islâmica deve-se ao fato de a partir de uma única cultura ou por uma
poderá nenhuma delas reconhecer que o sofrimen- só pessoa. Na minha perspectiva, An-na’im
to humano tem uma dimensão individual aceita demasiadamente fácil e acriticamen-
gerar-se mais irredutível, a qual só pode ser adequada- te a ideia de Direitos Humanos universais.
facilmente mente considerada numa sociedade não
hierarquicamente organizada.
Esse autor, ao mesmo tempo em que pro-
põe uma abordagem evolucionista crítica
num quadro O reconhecimento de incompletudes mú- e contextual da tradição islâmica, faz uma
tuas é condição sine qua non de um diálogo interpretação da Declaração Universal dos
religioso intercultural. Direitos Humanos surpreendentemente ana-
moderado” Um exemplo de hermenêutica diatópica crônica e ingenuamente universalista.
entre a cultura islâmica e a cultura ociden- A hermenêutica diatópica conduzida por
tal dos Direitos Humanos é a proposição de An-na’im, a partir da perspectiva da cultura
Abdullahi An-na’im (1990; 1992) de uma islâmica e as lutas pelos Direitos Humanos
via per mezzo identificando áreas de conflito organizadas pelos movimentos feministas
entre o sistema jurídico religioso do Islã, a islâmicos, seguindo as ideias da “Reforma
Sharia, e os critérios ocidentais dos Direitos islâmica” por ele propostas, têm de ser
Humanos e, sugerindo uma reconciliação complementadas por uma hermenêutica
16 ou relação positiva entre os dois sistemas. diatópica conduzida a partir da perspectiva
Compreendendo como problemática na de outras culturas e, nomeadamente, da
Revista Direitos Humanos
Sharia histórica a exclusão das mulheres e perspectiva da cultura ocidental dos Direi-
dos não muçulmanos do princípio da reci- tos Humanos. Este é provavelmente o úni-
procidade, propõe a “Reforma Islâmica”, co meio de integrar na cultura ocidental a
assentada numa revisão evolucionista das noção de direitos coletivos, os direitos da
17. natureza e das futuras gerações, bem como
a noção de deveres e responsabilidades para
com entidades coletivas, sejam elas a co-
munidade, o mundo ou mesmo o cosmos.
aS dificuldadES da
iNtErculturalidadE ProgrESSiSta
Que possibilidades existem para um di-
álogo intercultural quando uma das culturas
em presença foi moldada por massivas e
continuadas agressões à dignidade humana
perpetradas em nome da outra cultura? O
dilema cultural que se levanta é o seguinte:
dado que, no passado, a cultura dominante
tornou impronunciáveis algumas das as-
pirações à dignidade humana por parte da
cultura subordinada, será agora possível
pronunciá-las no diálogo intercultural sem,
ao fazê-lo, justificar e mesmo reforçar a
subordinação?
Um dos mais problemáticos pressupos-
tos da hermenêutica diatópica é a concepção
das culturas como entidades incompletas. como pressuposto da hermenêutica diatópi- coNdiçõES Para uma
Pode se argumentar que, pelo contrário, só ca, é um exercício macabro, por mais eman- iNtErculturalidadE ProgrESSiSta
culturas completas podem participar em di- cipatórias que sejam as suas intenções. As seguintes orientações e imperativos
álogos interculturais sem correr o risco de O dilema da completude cultural pode transculturais devem ser aceitos por todos
ser descaracterizadas ou mesmo absorvidas ser assim formulado: se uma cultura se os grupos sociais e culturais interessados no
por culturas mais poderosas. Uma variante considera inabalavelmente completa, então diálogo intercultural.
desse argumento reside na ideia de que so- não terá nenhum interesse em envolver-se 1. Da completude à incompletude. O
mente a uma cultura poderosa e historica- em diálogos interculturais; se, pelo contrá- verdadeiro ponto de partida do diálogo é
mente vencedora, como é o caso da cultura rio, admite, como hipótese, a incompletude o momento de frustração ou de desconten-
ocidental, pode atribuir-se o privilégio de que outras culturas lhe atribuem e aceita tamento com a cultura a que pertencemos.
se autodeclarar incompleta, sem, com isso, o diálogo, perde confiança cultural, torna- Esse sentimento suscita a curiosidade por
correr o risco de dissolução. Assim sendo, a se vulnerável e corre o risco de ser objeto outras culturas. A hermenêutica diatópi-
ideia de incompletude cultural será, afinal, o de conquista. Por definição não há saídas ca aprofunda, à medida que progride, a
instrumento perfeito de hegemonia cultural fáceis para esse dilema, mas também não incompletude cultural, transformando a
e, portanto, uma armadilha quando atribuída penso que ele seja insuperável. Tendo em consciência inicial de incompletude, em
a culturas subordinadas. mente que o fechamento cultural é uma es- grande medida difusa e pouco articulada,
As culturas dos povos indígenas das tratégia autodestrutiva, não vejo outra saída numa consciência autorreflexiva. 17
Américas, da Austrália, da Nova Zelândia, da senão elevar as exigências do diálogo inter- 2. Das versões culturais estreitas às ver-
Revista Direitos Humanos
Índia, dentre outras, foram tão agressivamen- cultural até um nível suficientemente alto sões amplas. As culturas têm grande varieda-
te amputadas e descaracterizadas pela cul- para minimizar a possibilidade de conquista de interna, e a consciência dessa diversidade
tura ocidental que, recomendar-lhes agora cultural, mas não tão alto que destrua a pró- aprofunda-se à medida que a hermenêutica
a adoção da ideia de incompletude cultural, pria possibilidade do diálogo. diatópica progride. Das diferentes versões de
18. artigo Direiros humanos: o Desafio da Interculturalidade
temas demasiadamente importantes para
“Temos o direito a ser iguais ser incluídos no diálogo com outras cultu-
quando a diferença nos ras. Ainda assim, o importante para a her-
menêutica diatópica é a direção, a noção e
inferioriza; temos o direito a ser o sentimento de incompletude da cultura.
diferentes quando a igualdade 5. Da igualdade ou diferença à igualdade
e diferença. O multiculturalismo progressista
nos descaracteriza.” pressupõe que o princípio da igualdade seja
prosseguido de par com o princípio do re-
conhecimento da diferença. A hermenêutica
uma dada cultura, deve ser escolhida para o ferente quando tomado por uma cultura do- diatópica pressupõe a aceitação do seguinte
diálogo intercultural a que representa o círculo minante ou por uma cultura subordinada. No imperativo transcultural: temos o direito a ser
de reciprocidade mais amplo, a versão que vai primeiro caso, frequentemente manifestam- iguais quando a diferença nos inferioriza; te-
mais longe no reconhecimento do outro. No se objetivos imperiais, como a “luta contra mos o direito a ser diferentes quando a igual-
que respeita às duas versões da cultura ociden- o terrorismo”, enquanto no caso de culturas dade nos descaracteriza.
tal dos Direitos Humanos, a liberal e a social- subordinadas trata-se, muitas vezes, de auto-
democrática, deve ser privilegiada a última, defesa ante a impossibilidade de controlar mi- coNcluSão
porque amplia para os domínios econômico e nimamente os termos do diálogo. A vigilância Na forma como têm sido predominante-
social a igualdade que a versão liberal apenas política, cultural e epistemológica da herme- mente concebidos, os Direitos Humanos são
considera legítima no domínio político. nêutica diatópica é, pois, uma condição do um localismo globalizado, uma espécie de
3. De tempos unilaterais a tempos parti- êxito desta. Cabe às forças, aos movimentos esperanto que dificilmente se poderá trans-
lhados. Pertence a cada comunidade cultural e às organizações cosmopolitas defender as formar na linguagem quotidiana da dignidade
decidir quando está pronta para o diálogo virtualidades emancipatórias da hermenêutica humana nas diferentes regiões culturais do
intercultural. A cultura ocidental, durante sé- diatópica dos desvios reacionários. globo. Compete à hermenêutica diatópica
culos, não teve qualquer disponibilidade para 4. De parceiros e temas unilateralmente aqui proposta transformá-los numa política
diálogos interculturais mutuamente acor- impostos a parceiros e temas escolhidos cosmopolita que ligue, em rede, línguas dife-
dados e agora, ao ser atravessada por uma por mútuo acordo. Talvez a condição mais rentes de emancipação pessoal e social e as
consciência difusa de incompletude, tende a exigente da hermenêutica diatópica seja a torne mutuamente inteligíveis e traduzíveis. É
crer que todas as outras culturas estão igual- ideia de que tanto os parceiros como os este o projeto de uma concepção multicultu-
mente disponíveis para reconhecer a sua temas do diálogo devem resultar de acor- ral dos Direitos Humanos. Nos tempos que
incompletude e, mais do que isso, ansiosas dos mútuos. No que respeita aos temas, a correm, esse projeto pode parecer mais do
para se envolver em diálogos interculturais convergência é muito difícil de alcançar, que nunca utópico. É-o, certamente, tão utó-
com o Ocidente. porque a possibilidade de tradução inter- pico quanto o respeito universal pela dignida-
O direito à pausa antes de avançar para cultural dos temas é inerentemente proble- de humana. E nem por isso este último deixa
uma nova fase, bem como a reversibilidade mática e porque em todas as culturas há de ser uma exigência ética séria.
do diálogo são cruciais para impedir que ele
se perverta e se transforme em conquista
cultural ou em fechamento cultural recípro-
RefeRênCiAs
18 co. A ausência ou a deficiente explicitação
AN-NA’IM, Abdullahi A. (1990), Toward an Islamic Reformation. Siracusa: Syracuse University Press.
de regras para o diálogo intercultural podem
Revista Direitos Humanos
transformá-lo na fachada benevolente sob a AN-NA’IM, Abdullahi A. (1992) (org.), Human Rights in Cross-Cultural Perspectives. A Quest for Consensus. Filadélfia:
qual se escondem trocas culturais muito desi- University of Pennsylvania Press.
guais. Da mesma maneira, o estabelecimento HUNTINGTON, Samuel (1993), The Clash of Civilizations?, Foreign Affairs, 72(3).
unilateral do fim do diálogo intercultural é di-
19. Combate ao
TRAbAlHO ESCRAvO:
como plantar uma floresta de Direitos Humanos
z
lEoNardo Sakamoto E é Pereira já foi alcunha de bloco de carnaval. Poderia ser
marcuS mENEzES BarBEriNo mENdES esta a lembrança perene e bem-humorada que o nome
evoca no imaginário popular. Mas Zé Pereira é também
o símbolo de uma chaga encravada no meio e não na ponta
do mercado de trabalho brasileiro. José Pereira Ferreira ganhou
lEoNardo Sakamoto é jornalista e doutor em Ciência notoriedade em novembro de 2003, quando foi aprovada pelo
Política e coordenador da organização não governamental Congresso Nacional uma indenização a ele no valor de R$ 52 19
Repórter Brasil. mil. Zé Pereira havia sido escravizado na fazenda Espírito San-
Revista Direitos Humanos
to, em Sapucaia, Sul do Pará. Em setembro de 1989, com 17
marcuS mENEzES BarBEriNo mENdES é juiz anos, fugiu dos maus-tratos e foi emboscado por funcionários
federal do Trabalho do Tribunal Regional da 15ª Região da propriedade, que atingiram seu rosto. O caso, esquecido pe-
e doutorando em Desenvolvimento Econômico pela las autoridades brasileiras, foi levado à Organização dos Esta-
Universidade Estadual de Campinas/SP . dos Americanos. Para evitar uma condenação, o Brasil acabou
20. artigo Combate ao trabalho escravo: como plantar uma floresta de Direitos Humanos
“É equivocado opor o combate Portanto, estão sob a influência direta da eco-
nomia de mercado e dela dependem.
ao trabalho escravo à atividade A análise das interações na cadeia pro-
econômica produtiva. Sua forma dutiva mostra o grau de interdependência
entre o padrão de consumo dos brasileiros
contemporânea é uma forma em cidades de qualquer dos estados e a
ocorrência de trabalho análogo à condição
monstruosa de dumping social” de escravo e degradante. Do fast-food aos
prosaicos churrascos de fim de semana, do
realizando uma solução amistosa com a OEA, pela libertação de trabalhadores. No mes- belo par de sapatos ao automóvel de última
em que assumia uma série de compromissos mo período, a Comissão Pastoral da Terra, geração, supostamente movido a combustí-
para o combate ao trabalho escravo. organização ligada à Conferência Nacional vel eficiente e fruto de atividade econômica
Como Zé Pereira, a cada ano milhares de dos Bispos do Brasil e principal referência ambientalmente sustentável, todo o nosso
trabalhadores rurais provenientes de regiões civil no combate a essa forma de explora- cotidiano está permeado pelo sofrimento de
pobres do Brasil são obrigados a trabalhar em ção, registrou denúncias envolvendo mais brasileiros que, ao sair de suas modestas ca-
fazendas e carvoarias, submetidos a condições de 50 mil trabalhadores. sas em busca de trabalho, dignidade e espe-
degradantes e impedidos de romper a relação A incidência do problema está con- rança, encontraram à sua frente a promessa
com o empregador. As vítimas mais agredidas centrada nas regiões de expansão agro- de um elemento tradicional no mercado de
permanecem presas até que terminem a tarefa pecuária da Amazônia (de Rondônia até trabalho brasileiro: o intermediador e o arre-
para a qual foram aliciadas, sob ameaças que o Maranhão, coincidindo com o Arco do gimentador de mão de obra, conhecido pela
podem ir de torturas psicológicas até espan- Desflorestamento, onde a floresta perde alcunha de “gato”.
camentos e assassinatos. No Brasil, essa for- espaço para a agropecuária) e do Cerra- É nesse momento que a prática mais do
ma de exploração é chamada de escravidão do (principalmente na Bahia, em Goiás, que secular da mercantilização do trabalho à
contemporânea, de nova escravidão ou ainda no Mato Grosso do Sul e em Tocantins). brasileira captura suas vítimas e esmaga seus
de trabalho análogo ao escravo. Sua natureza Contudo, há casos confirmados em São sonhos. Como autênticas veias abertas da
econômica a distingue da escravidão da anti- Paulo, Rio de Janeiro, Minas Gerais, Santa América Latina, esse elo da cadeia produtiva
guidade clássica, da escravidão moderna, da Catarina e Rio Grande do Sul, entre outras vai espalhar pelos estados da federação cen-
Colônia e do Império. Mas o tratamento desu- regiões, em que o capital e as instituições tenas de milhares de brasileiros no trabalho
mano, a restrição à liberdade e o processo de estatais já estão estabelecidos, o que de- rural estacional, nas mais diversas culturas
“coisificação” do ser humano são característi- monstra que a origem desse fenômeno não agrícolas, na pecuária e no extrativismo.
cas similares às das anteriores. está vinculada ao locus da fronteira agrí- A utilização de trabalho escravo contem-
O número de trabalhadores envolvidos cola, mas a outro elemento que perpassa porâneo no Brasil não é resquício de práticas
na forma mais tosca de trabalho escravo realidades sociais diferentes. arcaicas que sobreviveram provisoriamente
contemporâneo é relativamente pequeno, Os relatórios de fiscalização do Ministério ao capitalismo, mas sim instrumento utili-
mas não desprezível: de 1995, quando o do Trabalho mostram que os empregadores zado pelo próprio capitalismo para facilitar
sistema de combate ao trabalho escravo envolvidos nesse tipo de exploração não são a acumulação em seu processo de expan-
contemporâneo foi criado pelo governo fe- pequenos sitiantes isolados econômica e são ou modernização. Esse mecanismo ga-
deral, até dezembro de 2008, mais de 30 geograficamente do restante da sociedade, rante competitividade a produtores rurais de
20
mil pessoas foram encontradas nessa situ- mas, na maioria das vezes, grandes proprie- regiões e situações de expansão agrícola
Revista Direitos Humanos
ação, de acordo com dados do Ministério tários rurais, muitos deles produzindo com que optam por uma via ilegal. Dessa forma,
do Trabalho, que, junto com o Ministério tecnologia de ponta. Pesquisas da ONG Re- fazem concorrência desleal com os outros
Público do Trabalho e as Polícias Federal pórter Brasil apontam que esses produtores empregadores que agem dentro da lei. Por
e Rodoviária Federal, é o principal órgão fornecem commodities às grandes indús- isso é equivocado opor o combate ao traba-
responsável pela apuração de denúncias e trias e ao comércio nacional e internacional. lho escravo à atividade econômica produtiva.
21. Sua forma contemporânea é uma forma sustentáveis – e implantação, nos muni-
monstruosa de dumping social. cípios emissores de população, de infra-
O trabalho análogo à condição de estrutura pública que eleve as condições
escravo tem no Brasil conceito inscrito de bem-estar desses brasileiros, desesti-
no Direito Penal, e é esse conceito que mulando a migração por desalento.
baliza o comportamento dos agentes de Mas, como se trata de um fenômeno
Estado encarregados da sua repressão. inserido numa lógica amoral de concor-
Como o Direito Penal institui seus tipos rência no mercado de bens e serviços,
a partir do mínimo civilizatório admis- não podemos prescindir de políticas de
sível, é possível derivar do conceito repressão a esse comportamento econô-
adotado a gravidade das repercussões mico violador dos Direitos Humanos de
do trabalho análogo à condição de es- modo transversal. Em verdade, precisa-
cravo para o funcionamento do mercado mos ampliar a utilização dos instrumentos
de trabalho e para o exercício de direitos jurídicos de repressão a essa forma bár-
sociais dos trabalhadores. bara de exploração dos seres humanos.
As ações de fiscalização, repressão e O combate ao trabalho escravo, para
prevenção empreendidas no âmbito ad- ser efetivo, passa por um conjunto de
ministrativo e extrajudicial pelo Ministé- ações nacionais e multilaterais, como a
rio do Trabalho e pelo Ministério Público repressão aos ganhos econômicos ge-
do Trabalho permitiram levantamento de rados pela exploração dessa forma de
amplo banco de dados sobre origem e mão de obra, não só no Brasil, mas em
destino da população afetada, seu status todos os países. O Brasil já possui me-
de cidadania. Já sabemos de onde vêm e canismos para que os compradores de
para onde vão esses brasileiros. É pos- commodities não adquiram mercadorias
sível reconhecer os déficits de cidadania produzidas com trabalho escravo, como
nos municípios de origem. Mas é neces- a consulta ao cadastro de empregadores
sário saltar essa etapa do acúmulo de co- que utilizaram essa prática, que ficou
nhecimento decorrente das atividades de conhecido como a “lista suja”. Institui-
repressão e desenvolver estratégias que ções financeiras têm negado crédito a
atuem em dois vetores: promoção de tra- essas pessoas e as empresas signatá-
balho digno – seja por meio de um mer- rias do Pacto Nacional pela Erradica-
cado de trabalho que ofereça empregos ção do Trabalho Escravo têm cortado
estruturados e dotado dos mecanismos relações comerciais com elas. Dessa
de proteção da cidadania, seja por meio forma, é possível agir cirurgicamente,
de programas de promoção de atividades separando o joio do trigo, limpando
econômicas social e ambientalmente uma determinada cadeia produtiva e,
“Não podemos prescindir de 21
políticas de repressão a esse
Revista Direitos Humanos
comportamento econômico
violador dos Direitos Humanos”