1. EDUCAÇÃO A DISTÂNCIA: ENTRE MITOS E DESAFIOS
Andrea Cecilia Ramal1
Referência: RAMAL, Andrea Cecilia. “Educação a distância: entre mitos e desafios”.
Revista Pátio, ano V, n° 18, agosto/outubro de 2001, p. 12-16.
Os problemas de hoje vêm das “soluções” de ontem.
Peter Senge (1990)
Alguns entusiastas da Educação a distância (EAD) têm defendido que ela é a
solução para os problemas do ensino. Embora adepta da EAD - que, acredito,
enriquecerá muito os processos de construção do conhecimento -, vejo que esta nova
modalidade traz consigo também novas contradições e desafios. Neste artigo enumero
alguns dos mitos criados em torno da EAD, numa tentativa de distinguir as
contribuições positivas e os desafios lançados pelas novas mídias. Além disso, na
última parte, proponho uma definição para o instructional designer, profissional-chave
nos percursos educacionais que envolvem tecnologia.
A EAD é para todos? Com a EAD são vencidos muitos fatores da exclusão
educacional. Em vez de ser necessário construir edifícios e contratar professores para
os novos alunos, bastam alguns equipamentos em tele-postos para ampliar o acesso
ao conhecimento, e pessoas de qualquer ponto do país poderem ingressar nos cursos
que mais lhes interessarem.
No entanto, é inegável que, se são vencidas as distâncias que nos afastavam
do conhecimento, ainda existe o risco de se acirrar o abismo entre as classes mais
poderosas e os excluídos – os sem-modem -, pelo menos enquanto não se define uma
política mais eficaz de democratização do acesso às tecnologias da comunicação e da
informação no país2.
A EAD é sempre personalizada? A escola tradicional é o espaço da
homogeneização: tudo para todos, ao mesmo tempo: a mesma aula, a mesma data da
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- Doutora em Educação pela PUC-Rio, pesquisadora do Centro Pedagógico Pedro Arrupe e Diretora
Executiva da Instructional Design. aramal@uol.com.br
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- Governos da América Latina têm utilizado a EAD como argumento para comprovar uma suposta
democratização do ensino, hipoteticamente ocorrida em suas gestões. Ferreiro abordou este tema de
forma exemplar no número de março deste ano, nesta revista, e por isso não vou me estender nele.
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prova, o mesmo conteúdo cobrado. Os exercícios de caligrafia, os uniformes e o
monitoramento da disciplina marcam o cotidiano de uma instituição que se estruturou
sobre um modelo único, um padrão desejável legitimado socialmente. Os currículos
escolares têm margens bem definidas, com conteúdos escolhidos antes mesmo de se
conhecerem as turmas.
A EAD, em especial pela Internet, traz o currículo sem limites. Saberes até
então excluídos do ensino invadem a cabeça dos estudantes e, de forma
transgressora, os convidam a fazer links e a ousar abrir janelas que trazem luzes
inusitadas para os ambientes educativos. Em vez de grades, um currículo em rede,
marcado pela metamorfose, a hipertextualidade, o descentramento. Conteúdos que
fazem mais sentido, se relacionam com outras aprendizagens e são acessados
conforme a necessidade e o interesse de cada um.
O desconforto típico do estudo – ouvir professores ao longo de quatro horas
por dia – é substituído pela comodidade de aprender diante do computador, da tv, em
salas de vídeo, podendo acessar livros, jornais e imagens com um clicar do mouse,
em tempo real.
Não é mais necessário o conceito de turma como concebido na escola
tradicional, quase sempre em função da faixa etária dos alunos – ou, nos piores casos,
em função do gênero (meninos e meninas). Temos turmas flexíveis, grupos
autônomos com suas listas de discussão e chats; comunidades virtuais que
configuram o conceito de inteligência coletiva –uma inteligência distribuída por toda
parte, “incessantemente valorizada, coordenada em tempo real, que resulta em uma
mobilização efetiva das competências” (Lévy, 1998). Parcerias, pesquisas
cooperativas, groupwares que produzem conhecimento e trocam idéias são algumas
das múltiplas possibilidades desta modalidade educacional flexível, aberta e interativa.
Até o problema do tempo é superado: não é preciso parar de estudar logo
aquele conteúdo que estava agradando só porque “bateu o sinal”: a navegação
continua sempre que se desejar. Quando um assunto não interessa, é possível mudar
a direção, num percurso que é sempre pessoal. A EAD vem trazer a possibilidade de
respeito aos ritmos de cada um.
Mas há desafios: o baixo custo da EAD somente é alcançado se houver poucos
professores para muitos estudantes conectados. Ora, volta o problema da
massificação, e quem pode dizer que não teremos, de novo, o mesmo para todos, e
ainda por cima sem a relação interpessoal mediando a aprendizagem? Com a rede
que interliga cidades e países, caem as fronteiras, mas paradoxalmente afastam-se as
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pessoas: tanto o professor do aluno, como os próprios estudantes, que às vezes
sequer conhecem os colegas - o que faz com que se perca uma importante parcela de
afetividade, presente em qualquer processo formativo.
O currículo sem margens pode implicar a desorientação dos alunos, perdidos
em avalanches de informações, sem saber selecionar o que é pertinente, sem agir
criativamente sobre os dados. O currículo hipertextual traz links imprevisíveis, muitas
vezes carregados de conteúdos desaconselháveis para as faixas etárias dos
estudantes, ou eticamente questionáveis. O conforto da navegação com diversas
janelas abertas e a nova relação com o tempo trazem os riscos da dispersão. O
respeito aos ritmos individuais ameaça a seriedade do estudo - alguns temem o que
pode ocorrer com aqueles alunos que só estudam sob pressão (embora possamos
questionar se a pressão de assistir às aulas presenciais teria, nesse aspecto, alguma
eficácia).
Na Internet há liberdade de navegação; já na EAD, a camisa-de-força dos
planos de curso é substituída por ferramentas de ensino que, se não forem
customizadas de forma criativa, podem tornar-se novas grades, reproduzindo
esquemas e apresentando paisagens previsíveis.
O conceito mais aberto de turma traz também a impossibilidade de estabelecer
grupos duradouros. Mas a vinculação a uma comunidade institucional se relaciona
com a constituição da identidade dos sujeitos - haja vista os encontros anuais de ex-
alunos, tradicionais em algumas escolas -, o que desaparece nos grupos virtuais3.
Precisarão ser formados novos sentimentos de pertença, através de processos que
ainda não foram inventados.
A EAD traz necessariamente um novo conceito de professor? Na EAD, o
professor-transmissor de conteúdos é substituído (Ramal, 2000). O computador
saberá transformar as exposições maçantes em aulas multimídia interativas, em
hipertextos fascinantes, em telas coloridas e interfaces amigáveis. Então poderemos,
finalmente, ficar com a melhor parte. Está nas mãos dos professores a criação do
espaço para o diálogo amigo, a discussão coletiva, a partilha dos sentidos. Está em
3
- Apesar disso, saídas interessantes estão sendo encontradas na EAD. Participei de um curso em que
houve formatura virtual. Foram “ouvidos” os discursos do paraninfo, do orador da turma, os
agradecimentos... Como de costume numa conversa virtual, todos os falantes eram interrompidos pelos
ouvintes, numa espécie de interlocução inusitada e, inegavelmente, revolucionária e subversora dos
formalismos acadêmicos tradicionais.
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nossas mãos a escola mais feliz, feita por mestres e alunos que saibam, juntos, fazer
do aprender não uma tarefa penosa, mas sim uma aventura.
Mas há desafios: muitos cursos à distância, procurando minimizar os custos,
utilizam exclusivamente a figura dos tutores ou dinamizadores, que entram em cena
com o simples papel de animar a discussão dos estudantes ou atuar como
agendadores de tarefas. Isso retira a perspectiva formativa que existe na relação
professor-aluno. Como ensinou Vygotsky ao tratar da zona de desenvolvimento
proximal, são necessários auxiliares externos que façam a mediação adequada entre
alunos e conhecimentos. Sem um professor qualificado, como garantir os melhores
percursos cognitivos?
A EAD renova a educação tradicional? Na escola tradicional, o professor
trabalha isoladamente, e a compreensão de trabalho interdisciplinar se limita às
reuniões entre representantes das disciplinas escolares. A avaliação é restrita ao final
do processo; é massificadora, excludente, instrumento de pressão e controle para o
professor, motivo pelo qual se constitui como um momento de tensão e angústia para
os estudantes (Klein, 1998).
Na EAD, há alternativas: a avaliação se dá ao longo dos processos; é
diversificada, já que há muitos ambientes de interação; é mais centrada na pessoa, e a
prática da auto-avaliação é muitas vezes a melhor opção para estudantes
interessados em verificar o próprio rendimento.
Além disso, surge com a EAD a constituição de equipes multidisciplinares para
desenvolver processos educacionais. Programadores, webdesigners, comunicadores,
informatas passam a fazer parte da tarefa pedagógica, inaugurando novas
concepções de pesquisa e trazendo outras formas de olhar a realidade, o que pode
gerar férteis discussões epistemológicas.
Contudo, também aqui há riscos. Muitas equipes de EAD incluem apenas
informatas, sem uma orientação segura sobre o mecanismo da aprendizagem não-
presencial. Existe a tendência de que os profissionais de informática reproduzam, nos
aplicativos que criam, o estilo de educação que eles mesmos receberam, na sua
época de estudantes (fenômeno compreensível se estudado a partir da noção de
habitus, de Bourdieu - disposições que nos levam a sentir, fazer e pensar de uma
certa maneira, interiorizadas e incorporadas, em virtude de nossa trajetória social). Os
resultados se refletem em conteúdos pesados, difíceis de serem lidos e assimilados, e
num modelo transmissivo de educação, no qual a interatividade é reduzida ao clicar do
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mouse e o aluno assume, como no ensino tradicional, um papel passivo. Um ensino
que acaba reproduzindo, com imagens novas, um modelo escolar obsoleto.
A maior liberdade nos processos de avaliação também traz desafios. Na época
do ensino por correspondência, era difícil a credibilidade pública de cursos nos quais
as provas se realizavam em casa, sem a vigilância do professor. Agora o problema da
credibilidade, queiramos ou não, ainda se faz presente. A legitimidade da EAD terá
que ser conquistada através de estratégias inteligentes, que envolverão testes on line,
acompanhamento personalizado e novos conceitos de avaliação, na qual passem a
ser medidas, mais do que a memória e a assimilação de conteúdos, as competências
desenvolvidas ao longo do processo.
A EAD relega a segundo plano a leitura e escrita? Muitos alunos não
gostam de ler e escrever na escola, pois escrevem para um professor preocupado
apenas em detectar seus erros gramaticais, ou lêem textos cujo sentido se relaciona
pouco com suas vidas.
Já na Internet, vemos um renascimento das práticas de leitura e escrita:
crianças e jovens conectados lêem e escrevem todos os dias, e com prazer, porque
acessam informações que lhes interessam, despertam sua curiosidade, e porque
dialogam por escrito num monitor que, mais do que máquinas, anuncia pessoas do
outro lado da linha.
A tendência é a de que se formem leitores mais autônomos, mais protagonistas
dos próprios percursos, com maior capacidade para compreender os textos e
relacioná-los com intertextos. A leitura monológica dá lugar, na navegação
hipertextual, à polifonia – são muitas vozes, olhares diversos, espaço para todas as
leituras e interpretações possíveis.
Os novos desafios se ligam à produção e recepção dos sentidos. Que impactos
provocam os signos comunicacionais sobre os usuários? Como são veiculadas as
ideologias nesse discurso? Como se constrói a negociação das vozes num diálogo
que é plural e polifônico? Se assumimos, com Bakhtin, que o discurso é a mediação
privilegiada na constituição do sujeito, precisamos analisar os conflitos sociais,
políticos e interpessoais que se travam na nova arena virtual das contradições, que é o
discurso digital. Sem falar dos problemas implicados na introdução das línguas
estrangeiras, que acompanham as tecnologias, carregando consigo um conjunto de
valores e interesses que pertencem a outra cultura.
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É fácil fazer EAD? A EAD se processa num contexto de novos sujeitos,
resultado das mudanças nas relações entre trabalho, cidadania e aprendizagem.
Dominar as linguagens, compreender o entorno e atuar nele, ser um receptor crítico
dos meios de comunicação, localizar a informação e utilizá-la criativamente e
locomover-se bem em grupos de trabalho e produção de saber são saberes
estratégicos para a vida cidadã no contexto democrático.
Mas como se aprende hoje? Neste momento instaura-se um terceiro pólo
comunicacional, no qual se notam desestabilizações dos modos anteriores de gestão
do conhecimento. A informática transforma o conhecimento em algo não material,
flexível, fluido e indefinido, provocando rupturas: a interatividade, a manipulação de
dados, a correlação dos saberes através de nós de rede, a plurivocidade, o
apagamento das fronteiras rígidas entre texto-margens e autores-leitores. Os suportes
digitais, os hipertextos são, a partir de agora, as tecnologias intelectuais de que a
humanidade passará a se valer para aprender, interpretar a realidade e transformá-la.
Com toda a complexidade desse contexto, ainda há quem pense (e são
muitos!) que para se fazer um curso à distância basta escrever conteúdos que eram
transmitidos em palestras e cadastrá-los numa ferramenta visualmente interessante.
Não, não creio que seja tão fácil ensinar nem aprender à distância.
Nesse sentido, é crucial a figura que surge hoje de um novo profissional: o
instructional designer. Trata-se de uma profissão muito recente e não há grande
produção teórica sobre a mesma. Minha definição provisória é a de um profissional
que, nos processos de Educação a distância ou de acesso ao conhecimento através
de conexão em redes, é responsável por analisar as necessidades, projetar os
caminhos possíveis de navegação para que o usuário construa ativamente o
conhecimento, selecionando para isso os meios tecnológicos mais adequados,
concebendo atividades pedagógicas e avaliando permanentemente a sua utilização.
Trata-se de um estrategista do conhecimento: alguém que vai procurar retirar da EAD
suas potencialidades mais positivas, ao mesmo tempo em que evita os erros que
porventura possam ser cometidos, quando não se observa a outra face das novidades.
O instructional designer começa a estar cada vez mais presente nas equipes
multidisciplinares de construção de cursos à distância. Ele não é a solução de todos os
problemas, mas é uma figura-chave para que os melhores objetivos educacionais
sejam atingidos.
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Com a presença de profissionais qualificados da área educacional na equipes
de criação e aplicação de cursos, a EAD terá, seguramente, mais chances de se
constituir como um processo educativo realmente eficaz e proveitoso para o
estudante, superando de forma consistente os problemas que, muitas vezes, os mitos
consolidados não permitem detectar.
Referências
KLEIN, Luiz Fernando. "Alegria de aprender, alegria de avaliar" in OSOWSKI,
C. (org.). Provocações da Sala de Aula. São Paulo: Loyola, 1998.
LÉVY, Pierre. A Inteligência Coletiva. São Paulo: Loyola, 1998.
RAMAL, Andrea Cecilia. “O computador vai substituir o professor?” in Revista
Aulas e Cursos (UOL), em http://www.uol.com.br/aulasecursos, março de
2000.
SENGE, P. Fifth Discipline: The Art and Practice of the Learning
Organization. Londres: Century, 1990.