Este documento apresenta um estudo sobre cinco áreas de conflitos sócio-ambientais na Baixada Santista envolvendo comunidades de pescadores: Pouca Farinha, Conceiçãozinha, Ilha Diana, Monte Cabrão e Prainha Branca. Ele descreve a localização geográfica dessas áreas e as atividades econômicas, realizando uma análise histórica da ocupação territorial pelas populações caiçaras. O objetivo é caracterizar a origem dessas comunidades e debater o significado de ser caiçara at
O mar nao ta pra peixe. Conflitos sociais ambientais na Baixada Santista. Parte 1
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“ O MAR NÃO TA PRA PEIXE”.
1a. PARTE: A PESISTÊNCIA DA CULTURA CAIÇARA.1
Carlo Romani∗
RESUMO: O acompanhamento dos trabalhos do
Zoneamento Ecológico-Econômico, ZEE, realizado na
Baixada Santista entre os anos de 2000 e 2001,
mostrou a existência de dezenas de áreas de conflitos
sócio-ambientais em toda extensão deste trecho do
litoral. Foram analisadas à parte, cinco áreas onde ainda
residem comunidades de pescadores em disputa pela
posse de suas terras. As áreas conflituosas envolvem as
vilas de Pouca Farinha, Conceiçãozinha, Ilha Diana,
Monte Cabrão e Prainha Branca. Neste artigo
inicialmente apresentamos a localização geográfica
dessas áreas e a atividade econômica presente nelas. A
partir desse panorama, é realizada uma genealogia (nos
termos de Foucault) da ocupação territorial histórica,
buscando caracterizar a origem caiçara das populações
moradoras, ao mesmo tempo em que se problematiza o
significado de ser caiçara na atualidade.
Palavras chave: zoneamento ecológico-econômico,
conflito sócio-ambiental, pescadores tradicionais,
caiçaras, genealogia.
ABSTRACT: During the years 2000 and 2001 we have
followed the works developed by the ZEE (Ecological-
Economic Zoning) in Santos shore area. We have
observed a lot of areas where has been happening
social and environmental conflicts. So, we have
investigated and studied five different areas where are
1
Este artigo corresponde ao primeiro capítulo de “O mar não ta pra peixe. Conflitos sócio-ambientais na
Baixada Santista”, relatório de pesquisa elaborado para o Programa de Formação de Quadros Profissionais do
Centro Brasileiro de Análise e Planejamento, CEBRAP/SP, no biênio 2004-05, financiado pela CAPES com
bolsa de recém-doutor. Agradeço a todos os companheiros (pesquisadores e ativistas) que contribuíram com
informações, sugestões, contraditórios, e leituras críticas, fundamentais para a finalização deste trabalho.
∗
Carlo Romani é engenheiro civil pela E. E. Mauá – IMT e doutor em História Cultural pelo
IFCH/UNICAMP. Desde 1999, é professor titular da Faculdade do Guarujá, FAG, e membro do CAVE,
Coletivo Alternativa Verde. (e-mail para contato caromani@ig.com.br)
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living fishermen communities until now. That villages
are: Pouca Farinha, Conceiçãozinha, Ilha Diana, Monte
Cabrão, and Prainha Branca. This paper was divided in
two parts and the second one will be published later.
Here, we start the work showing the geographic
localization of the struggle areas and the economic
supports to the communities. Next, we have made a
genealogy (in Foucault concept) of the territorial
occupation belong the history. That genealogy tries to
show the caiçara origins of the population, while asks
about the mean to be caiçara nowadays.
Key words: ecological-economic-zoning, social-
environmental conflict, traditional fishermen, caiçaras,
genealogy.
Introdução. Um estudo do ZEE da Baixada Santista
Este trabalho originou-se de um estudo cujo objetivo
inicial era o de analisar a participação da sociedade, através de suas
entidades representativas, na elaboração das políticas de macro-
planejamento ambiental do Estado de São Paulo para suas áreas
litorâneas2. A região costeira do estado, exprimida entre o Oceano
Atlântico e a Serra do Mar, conserva mais de 80% de seu território
dentro de áreas de proteção ambiental3. Essa distribuição geográfica
2
A Resolução CONAMA 004/84 regulamentou o uso das florestas e outras formas de vegetação permanente
e a Resolução CONAMA 303/2002 trata ainda mais especificamente da vegetação em áreas costeiras. Na
Constituição de 1988, há um capítulo específico sobre o Meio Ambiente. No cap. V, artigo 225, parágrafo 4o,
lê-se: “A Floresta Amazônica brasileira, a Mata Atlântica, a Serra do Mar, o Pantanal Mato-grossense e a
Zona Costeira são patrimônio nacional, e sua utilização far-se-á, na forma da lei, dentro de condições que
assegurem a preservação do meio ambiente, inclusive quanto ao uso dos recursos naturais”. Com base nisto, a
Lei Federal n º. 7661/88 instituiu o Plano Nacional de Gerenciamento Costeiro. A Lei n º 10019/98 instituiu o
Plano Estadual de Gerenciamento Costeiro. Para desenvolver esse plano, o litoral do estado de São Paulo foi
dividido em quatro grandes setores: Complexo Estuarino-Lagunar de Iguape e Cananéia; Vale do Ribeira;
Região Metropolitana da Baixada Santista; Litoral Norte.
3
As áreas de proteção ambiental (APA) dentro do domínio da Mata Atlântica incluem áreas de preservação
permanente (além de manguezais e restingas, vegetação exclusiva da faixa litorânea, também aquelas áreas
cuja cobertura vegetal é remanescente de maciços florestais mantendo, em grande parte de sua extensão, uma
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peculiar potencializa o conflito existente pela apropriação dos recursos
naturais disponíveis entre os interesses distintos dos agentes de
desenvolvimento do mercado e os dos moradores das comunidades
litorâneas. A Secretaria de Estado do Meio Ambiente, responsável pela
coordenação dos trabalhos do planejamento, reconheceu que “esses
conflitos constituem desafios a serem enfrentados pelo Plano Estadual
de Gerenciamento Costeiro, que deverá buscar alternativas para
promover o desenvolvimento sócio-econômico com a manutenção e/ou
recuperação da qualidade dos ecossistemas costeiros” (SMA, 1998, p.
1).
O principal instrumento do planejamento ambiental é o
Zoneamento Ecológico-Econômico (ZEE)4 que, uma vez aprovado, induz
a um determinado modelo de desenvolvimento. Segundo a lei que
instituiu o Plano Estadual de Gerenciamento, para evitar-se a
centralização do processo decisório somente a cargo de poucos experts,
o plano de zoneamento deveria ser realizado por diferentes atores
sociais buscando-se, assim, superar a utopia tecnocrática dos anos
setenta. A Constituição Federal prevê a criação de mecanismos de
gestão participativa e democrática, como os conselhos consultivos e
vegetação em estado avançado de regeneração). Incide vasta legislação sobre o assunto: Decreto Federal
99.274/90 (sobre as APAs), Constituição Estadual artigo 197 (define áreas de preservação permanente), entre
outras leis. Um histórico detalhado sobre a legislação ambiental brasileira foi realizado por Lucila Vianna e
Cristina Adams (1995, p. 14-38). Na área do Direito Ambiental indico o trabalho de Varella & Borges (1998).
4
O Zoneamento Ecológico-Econômico estabelece as normas disciplinadoras para a ocupação do solo e o
manejo dos recursos naturais que compõem os ecossistemas costeiros, bem como aponta as atividades
econômicas mais adequadas para cada zona.
3
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deliberativos, através de um sistema colegiado de gestão tripartite
(governo estadual, municipal, e sociedade civil)5. Com a pluralidade do
colegiado, a Secretaria pretendia “tornar transparente o processo de
gestão e, ao mesmo tempo, aumentar qualitativamente a participação
comunitária na formulação das políticas públicas” (SMA, 1998, p. 1). No
entanto, como já alertava Antonio Carlos Diegues ao avaliar a
participação da sociedade no gerenciamento costeiro, “na mesa de
negociação, dada a fragilidade da sociedade civil, as chamadas
‘populações tradicionais’ não dispõem do mesmo nível de informações e
poder dos grupos econômicos preponderantes que investem no litoral”
(DIEGUES, 2001, p. 137)6. Essa afirmação pôde ser constatada durante
o acompanhamento dos trabalhos do ZEE7. Dentro do colegiado, as
posições dos representantes “conservacionistas8”, defendidas por uma
organização ambientalista e por uma associação comunitária caiçara,
pouca voz tiveram em relação ao conjunto de interesses majoritários
5
O colegiado do conselho consultivo para o Plano Estadual de Gerenciamento em 1998 foi constituído por 27
membros. Esse conjunto foi dividido em três grupos de conselheiros: nove representantes das secretarias de
Estado, nove representantes de cada uma das prefeituras que compõem o setor e 9 representantes da sociedade
civil dividida em segmentos sócio-econômicos (mercado, sindicatos, ensino e pesquisa, comunidades e
ambientalistas).
6
O uso da palavra tradicional neste trabalho refere-se às comunidades que ainda mantêm descendentes de
moradores vivendo no mesmo território desde pelo menos antes da década de 1950, época em que se inicia
um acentuado processo induzido de migração, fruto do surto de desenvolvimento urbano e industrial, que
trouxe a descaracterização das antigas relações econômicas e culturais caiçaras.
7
A forma de gestão proposta para a elaboração do ZEE inviabilizou a conclusão dos trabalhos do primeiro
Gerenciamento Costeiro e o texto final foi vetado pelo Governador do Estado em 2001. Uma análise desse
primeiro trabalho de gerenciamento foi publicada nos anais do 8 º. Congresso Internacional de Direito
Ambiental (ROMANI, 2004).
8
Adota-se aqui a divisão clássica entre “conservacionistas”, para quem as populações humanas fazem parte
do ecossistema a ser preservado, e “preservacionistas”, para quem as áreas naturais de proteção devem estar
alijadas de agrupamentos humanos vivendo em seu interior. A organização ambientalista era o MDV,
Movimento em Defesa da Vida. O delegado caiçara representava os moradores da Prainha Branca.
4
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representados pelas entidades ligadas ao mercado e pelas prefeituras
municipais. A existência dessa relação desequilibrada de forças faz com
que o instrumento de planejamento do ZEE conduza a um projeto de
desenvolvimento que, embora pautado por uma análise técnica, torna-
se, ao mesmo tempo, resultado de um embate político (SCHUBART, p.
1994).
O acompanhamento das atividades do gerenciamento
costeiro para efeito desta pesquisa centrou-se no setor da Baixada
Santista, justamente por ser aquele em que a degradação ambiental dos
ecossistemas costeiros encontra-se mais acentuada. Durante a fase de
acompanhamento do ZEE observou-se a grande quantidade de conflitos
sócio-ambientais9 existentes e que se tornaram explícitos no decorrer
dos trabalhos do gerenciamento costeiro. A prevalência da temática
desses conflitos nas audiências do ZEE fez com que eles fossem
tomados como objetos privilegiados desta pesquisa. Para efeito do
trabalho ora apresentado, o instrumento do ZEE prestou-se como “um
meio de caracterização de zonas equiproblemáticas para processos de
negociação e regulação jurídico-política” (ACSELRAD, 2000, p. 8). O
diagnóstico dessas problemáticas não pode restringir-se ao mero
aspecto técnico-ambiental, apontando para a necessidade de um
9
Por conflito sócio-ambiental entende-se a disputa envolvendo interesses conflitantes entre sujeitos e agentes
(VIANNA & ADAMS, 1994, p. 223). Neste trabalho, adota-se a perspectiva das comunidades locais serem os
sujeitos conflitantes confrontados pelo interesse desenvolvimentista do mercado e/ou do Estado.
5
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entendimento da legitimidade dos processos históricos de ocupação e,
portanto, deslocando o encaminhamento da solução dos conflitos para
uma arena que ultrapassa as instâncias normativas da lei, tornando-se,
assim, uma disputa eminentemente política.
Partindo-se dos conflitos sócio-ambientais debatidos no
âmbito do ZEE, esta pesquisa voltou-se para o estudo da genealogia da
ocupação histórica territorial tentando compreender como as
comunidades envolvidas atuaram em proveito de seus interesses
específicos. E dentro dessa dinâmica, principalmente a partir da década
de 1980, compreender a importância do discurso ambientalista que
passa a ser usado pelas populações tradicionais enquanto estratégia
política para a manutenção da posse da terra. A seguir, é apresentado o
primeiro capítulo deste trabalho, caracterizando as áreas de conflito
estudadas e o processo histórico de ocupação do território pelos seus
moradores.
Panorama geral da área de pesquisa
1. Levantamento dos conflitos sócio-ambientais.
6
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Com base nas atas das reuniões do grupo de trabalho10,
inicialmente foram levantados todos os casos de conflitos ambientais
correspondentes ao setor do gerenciamento costeiro da Baixada
Santista.
O grupo de trabalho do ZEE levantou, para a Baixada
Santista, 76 pontos de conflitos ambientais. Dessas 76 áreas de
conflitos existentes, 45 mantinham ocupação humana permanente para
usos habitacionais ou atividades econômicas de baixo impacto
ambiental, tanto em áreas urbanas como rurais, permitindo considerá-
los como conflitos sócio-ambientais. As outras 31 áreas existentes
caracterizavam conflitos cuja matriz principal não era a disputa para fins
de moradia ou de pequena atividade econômica. São áreas com
características diferentes entre si, mas, todas, praticamente sem
ocupação humana para efeito de moradia permanente. Esses locais
encontram-se destinados para o despejo de resíduos urbanos e
industriais, são áreas destinadas a atividades econômicas de forte
impacto ambiental como as zonas industriais e portuárias ou áreas de
reserva imobiliária com forte presença de vegetação nativa destinadas à
especulação futura e que, portanto, não interessam a esta pesquisa. Os
45 pontos de conflito considerados como sócio-ambientais também são
10
Atas das reuniões do grupo setorial da Baixada Santista para o Zoneamento Ecológico-Econômico.
Secretaria do Meio Ambiente do Estado de São Paulo. Fichas de conflito: abril a junho de 1999.
7
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caracterizados por diferentes processos de ocupação. Nesse bloco
incluem-se desde áreas com forte densidade urbana passando por áreas
de loteamentos regulares e irregulares com média e baixa densidade de
ocupação, até áreas ocupadas por antigas comunidades de pescadores e
camponeses, mantendo, ainda no presente, algumas características
tradicionais. Essas últimas áreas de ocupação somam ao todo 19 pontos
de conflito. Destes, cinco foram estudados à parte e compõem a base
empírica deste trabalho.
2. Localização geográfica e atividade econômica das
áreas.
Para este estudo foram selecionadas aquelas comunidades
que ainda mantêm a atividade econômica da pesca (não
exclusivamente) como a principal característica social do grupo de
moradores. A área do estudo foi geograficamente delimitada dentro de
um trecho que permitisse a realização do trabalho de campo. As
comunidades selecionadas são aquelas relativas às áreas de conflito 41
(Ilha Barnabé/Diana), 42 (Monte Cabrão), 64 (Conceiçãozinha), 65
(CING/ Pouca Farinha) e 76 (Prainha Branca), localizando-se nos
municípios de Santos e Guarujá, ambos sediados em ilhas. As vilas de
Ilha Diana, Conceiçãozinha e Santa Cruz dos Navegantes, popularmente
conhecida como Pouca Farinha, são ribeirinhas ao canal de Santos
enquanto as de Monte Cabrão e Prainha Branca (incluindo-se aqui o
8
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Sítio Cachoeira) situam-se às margens do canal de Bertioga. Em toda a
macro-área do estuário de Santos concentram-se diversos terminais
portuários, depósitos de combustíveis, áreas de armazenamentos de
produtos tóxicos usados pelas indústrias petroquímicas, siderúrgicas e
de fertilizantes situadas ao longo do canal e no distrito industrial de
Cubatão.11 Há suspeitas de que a capacidade de suporte à contaminação
química desse ecossistema continental-marinho já tenha ultrapassado o
limite de saturação desde a década passada12. O último relatório técnico
da CETESB, divulgado em 2001, traz um levantamento das principais
áreas já contaminadas e com alto risco de contaminação na região da
Baixada Santista, mostrando que vários pontos de observação
continuam mantendo índices de contaminação do solo e das águas
muito além dos limites permitidos de toxidade. Trata-se, portanto, de
uma região com um passivo ambiental enorme, ainda pouco recuperado
pelos agentes poluidores, e com grande potencial para o incremento dos
11
Nas margens do canal de Santos estão localizadas plantas portuárias, retroportuárias e industriais. Além do
tradicional porto de Santos sob controle da CODESP, localizam-se outros terminais portuários privados
pertencentes às empresas Dow Química, Cargill, Tecon, Tefer, Santos-Brasil, Carbocloro, Ultrafértil, Cosipa
e Petrobrás. Portanto, além de empresas especializadas em logística portuária, todas as principais companhias
instaladas no pólo industrial de Cubatão e nos municípios de Santos e Guarujá têm seus próprios terminais de
exportação e importação. As plantas industriais aí instaladas são fabricantes de produtos de alta toxidade
causando impacto negativo em toda a cadeia biológica produtiva e cujo passivo de resíduos industriais já
comprometeu significativamente o meio ambiente. Apesar de algumas companhias já terem compromissos
firmados com o Ministério Público (Termo de Ajustamento de Conduta, TAC), até o momento ainda não
houve real compensação dos danos causados ao ambiente, somente a tomada de medidas mitigadoras de
novos impactos. Uma rápida passagem no passivo existente aponta para o despejo de resíduos sólidos
comprometendo o solo (lançamento de organoclorados, dioxinas, calcário, enxofre, cobre, mercúrio,
chumbo); lançamento de elementos particulados aéreos (nitratos, ozônio, sulfatos, óxidos de carbonos);
efluentes líquidos lançados diretamente ao mar e nos rios que deságuam no estuário (benzo(a)pireno, dimetil-
benzeno, fenóis). Além dos relatórios da CETESB, indico (BRANCO, 1983) e (GUTBERLET, 1996).
12
Estudo reservado realizado a pedido da CODESP pela equipe técnica do IO/USP em 1992.
9
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graves problemas existentes devido à contínua expansão portuária e
industrial.
Nesse mesmo entorno geográfico ainda convivem
comunidades de pescadores herdeiras da antiga cultura caiçara da costa
paulista junto a outras comunidades urbanas de baixa renda. Essa
última urbanização ocupou áreas de preservação permanente
avançando sobre os manguezais e sobre as encostas de baixa cota da
Mata Atlântica, resultado de um processo de expansão desordenada
ocorrido nos últimos cinqüenta anos (MANTOVANI, 2000). No que tange
às populações de pescadores, além do tradicional liame existente com o
território, a manutenção das antigas atividades pesqueiras de
subsistência deve-se ao fato de que, “os sistemas estuarinos, recebendo
um aporte rico em matéria orgânica da drenagem continental e do
próprio mangue, e estando em comunicação com o oceano através do
movimento das marés, constituem viveiros naturais de inúmeras
espécies de pescado (crustáceos, moluscos e peixes)” (DIEGUES, 1983,
p. 114-16). A importância do manguezal não é somente ecológica, já
que apresenta as condições propícias para a alimentação, proteção e
reprodução de muitas espécies marinhas, mas também sócio-
econômica, beneficiando diretamente, através da produtividade
pesqueira (peixes, caranguejos, camarões e ostras), as populações que
dele dependem (SCHAEFFER-NOVELLI, 1992). Os peixes (principalmente
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o bagre, o parati e a pescada) junto à banana e à farinha de mandioca
constituem tradicionalmente a base da dieta das populações caiçaras
(HANAZAKI, 2001). Especificamente para as populações moradoras em
áreas de mangue, segundo o depoimento de pescadores locais, também
o siri e os mariscos de mangue complementam a dieta. Assim, a
manutenção de uma atividade pesqueira, em alguns casos ainda
familiar, além de fornecer a base diária de proteínas da dieta, gera
também receita com a venda externa a bares, restaurantes, ou
diretamente aos turistas, incrementando o escasso orçamento
doméstico.
Apesar da intensa urbanização da área do estuário
provocada pela atividade portuária e industrial e a crescente
urbanização da faixa costeira pela especulação imobiliária, ainda
persistem nessa região alguns enclaves formados por pequenas
comunidades pesqueiras. Do ponto de vista econômico, essas vilas
ainda mantêm áreas de pesca que podem ser consideradas como
pertencendo à pequena produção mercantil, com os pescadores
trabalhando em um regime que varia entre a pequena produção familiar
e a pequena produção artesanal, considerando-se a classificação
proposta por Diegues (1983, p. 148-56). O mesmo autor entende ser
essa uma forma de produção articulada a outras modalidades fazendo
com que algumas relações produtivas artesanais mantenham-se ainda
11
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compatíveis, mesmo que subordinadas, ao capitalismo (DIEGUES, 1983,
p. 204). Essa ocupação econômica não é exclusiva, pois em todos os
núcleos comunitários estudados encontra-se o emprego de
trabalhadores assalariados no regime da grande produção pesqueira e o
trabalho, também, fora das vilas, em empregos ligados à atividade
portuária de pequeno porte (marinas e estaleiros) e outras atividades de
serviços.
Comparando os dados de uma pesquisa publicada em
1989, envolvendo comunidades de moradores nos canais de Santos e de
Bertioga, foram encontrados vários pontos de semelhança com as
comunidades litorâneas aqui estudadas. Todas se localizam próximas ao
estuário; têm livre acesso aos recursos; membros da família
desenvolvem atividades complementares; habitam locais próximos a
serviços públicos complementares; sofrem a interferência direta do
turismo e sofrem bastante com a poluição das indústrias (RIBEIRO
NETO & OLIVEIRA, 1989, p. 47-8). Em todas as atuais vilas de
pescadores ainda se encontram esses mesmos elementos comuns, além
de também se manterem as formas de produção descritas por Diegues,
em maior ou menor grau, o que valida o estudo específico desses cinco
casos. A pesca artesanal continua sendo uma das principais atividades
econômicas exercidas pelos moradores em seus territórios, que ainda
são pouco utilizados como atrativo turístico. Entretanto, esta avaliação
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não desmerece a consideração de que a maior parte do sustento das
famílias moradoras nessas comunidades deva-se a trabalhos efetuados
em locais distantes de sua área de moradia e em atividades econômicas
distintas da pesca e ligadas ao porto, às marinas, ao turismo e em
ocupações diversas do setor de serviços.
3. A constituição histórica das comunidades
O forte impacto da migração interna, desenvolvida após a
década de 1950 e caracterizada pelo fluxo de pessoas de procedência
distante da área geográfica sob influência caiçara13, não descaracterizou
completamente a ocupação histórica havida em todas essas vilas de
pescadores. O povoamento remonta ao estabelecimento na região,
desde a segunda metade do século XIX, de antigas famílias “formadas
pela mescla da contribuição étnico-cultural dos indígenas, dos
colonizadores portugueses e, em menor grau, dos escravos africanos”
(DIEGUES, 2002, p. 40). No caso específico dessa região da costa de
Santos, a peculiaridade de uma herança étnica de origem africana
tornou-se bastante significativa nas populações tradicionais devido à
presença, desde o período colonial, de vários quilombos nas encostas da
Serra do Mar. Um trecho específico dessa conformação montanhosa,
inclusive, chama-se Serra do Quilombo. O rio Quilombo deságua no
13
Segundo Diegues e Arruda (2001) a cultura caiçara desenvolveu-se, principalmente, na região costeira que
vai de Florianópolis (Santa Catarina) à divisa dos estados do Rio de Janeiro com Espírito Santo.
13
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estuário de Santos e, junto aos rios Jurubatuba e Jaguareguava, são
cursos que mantiveram, durante os séculos XVIII e XIX, grandes
formações de quilombos com a presença de alguns milhares de escravos
fugidos assentados em suas áreas de vale (SANTOS, 1937). A herança
étnica européia, além da presença predominante da colonização
portuguesa ao longo de toda atual costa sul e sudeste brasileira,
provêm, mais especificamente, dos colonizadores açorianos,
principalmente entre os descendentes caiçaras de Santa Catarina, e,
ainda, de espanhóis estabelecidos no litoral norte de São Paulo
(particularmente em Ilhabela), portanto, uma herança de origem ibérica
(MUSSOLINI, 1980; MARCÍLIO, 1986). Quanto à influência indígena
citada, remonta ao início da conquista portuguesa (MADRE DE DEUS,
1975). Durante o período colonial, houve uma intensa domesticação dos
nativos através do aparato religioso-militar com o aldeamento dos índios
Tupiniquim, Guaianá e Carijó (PREZIA & HOORNAERT, 1944), antigos
habitantes dessa porção da costa, além do contato belicoso com os
Tupinambá, gentios bravios, habitantes do litoral norte paulista e da
costa sul fluminense, também chamados de tamoios, descritos nas
crônicas de viagem de Hans Staden (1975) e combatidos pelos
portugueses (MAESTRI, 1993). A esses grupos indígenas centenários
somou-se a circulação de outros índios do interior trazidos, inicialmente,
através da redução jesuítica e da escravidão imposta pelos bandeirantes
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nos séculos XVII e XVIII. Posteriormente, esse movimento continuou
com a incessante migração ocorrida a partir do final do século XVIII por
parte dos índios Guarani dos grupos Ñandeva e Mbyá (LADEIRA &
AZANHA, 1988) em sua busca profética pela terra sem males
(CLASTRES, 1978). Essa circulação indígena que adentrou o século XX
levou à constituição de aldeamentos Guarani ao longo de toda a Serra
do Mar paulista, sendo que três das aldeias levantadas nesta pesquisa
também se apresentam em situação de conflito sócio-ambiental.
4. Sucessivos fluxos migratórios
4.1. Os deslocamentos locais
Essa formação étnico-cultural não pode ser delimitada,
nem territorialmente, muito menos quanto à genealogia aqui
apresentada. Isso não permite estabelecer uma identificação dessas
populações como se elas fossem provindas exclusivamente dessa
mistura étnica. A começar porque a própria constituição histórica das
vilas de pescadores recebeu o aporte de sucessivos deslocamentos
locais. Um fluxo populacional motivado pela intensa pressão econômica
exercida pelo avanço da especulação imobiliária sobre as áreas costeiras
somado à crescente migração interna (regional e inter-regional)
decorrida durante todo o século XX. Os deslocamentos de caráter local,
em geral, foram fruto da peregrinação por novas áreas propícias para a
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pesca e agricultura tradicional, uma movimentação realizada desde o
século XIX pelas populações caiçaras da micro-região da Baixada
Santista (SCHMIDT, 1947). Uma movimentação em parte motivada por
uma dinâmica relativa à própria expansão familiar e, em outras
circunstâncias, na maioria das vezes, essas famílias foram forçadas a
deixarem seus espaços de origem em direção aos sertões, próximos às
beiradas do estuário e às áreas de mangue, devido ao aumento da
urbanização da costa e a conseqüente valorização e especulação
imobiliária das terras marítimas14.
Uma das poucas vilas cuja constituição inicial origina-se
de uma migração não forçada pela especulação imobiliária é a da
comunidade da Prainha Branca no município de Guarujá. Na área de
influencia da comunidade, adjacente à entrada da barra do canal de
Bertioga, ainda resistem, apesar de mal conservados, três patrimônios
históricos da América portuguesa: as ruínas do forte São Felipe, datando
de 1553 (KATINSKY, 1999); as ruínas da Ermida de Santo Antônio do
Guaibê e as fundações da Armação das Baleias, cujo início dos contratos
datam de 1748 expirando em 1836 (ELLIS, 1969). A extração do óleo
de baleia no período colonial foi uma atividade que se desenvolveu em
toda a costa brasileira, havendo dois centros dessa indústria na região
14
Segundo os censos do IBGE, o município de Guarujá contava com uma população de 13.203 habitantes em
1950; passou para 40.071 em 1960; 94.906 em 1970; 150.347 em 1980; 208.818 em 1990; 265.155 em 2000.
O número de domicílios fechados, que servem de base para o cálculo da população flutuante, passou de 10%
na década de 1950 para 50% na atual década (SILVA, 2000).
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17. Faculdade do Guarujá
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de Santos. Um deles encontrava-se nesta área hoje denominada Prainha
Branca causando, enquanto durou a contratação, um pequeno
povoamento na ponta extrema do canal. Essa ocupação anterior não
teve continuidade, nem se estendeu até a praia onde hoje se encontra
estabelecida a vila. Os primeiros povoadores definitivos desta
comunidade, caiçaras lavradores e pescadores, remontariam ao início do
século XX (TULIK, 1981). A tradição caiçara ainda se encontrava
fortemente visível durante o período de pesquisa de campo desta
autora, sobretudo na distribuição das habitações em meio à vegetação
espontânea e entre árvores frutíferas. A maior parte dos moradores
descende de caiçaras provenientes de localidades do litoral norte do
estado. Através das falas dos moradores mais antigos, desenvolveu-se a
memória histórica da comunidade com a crença de que as primeiras
famílias estabelecidas seriam naturais da ilha do Monte de Trigo, e
teriam migrado para esta praia no início do século XX influenciando
decisivamente o seu povoamento15. Ainda através da pesquisa de Olga
Tulik, é possível perceber que vários dos moradores aí estabelecidos
tiveram como razão da mudança a perda do terreno onde viviam, sendo
seis moradores provenientes da praia vizinha de Iporanga, cuja área foi
incorporada, durante os anos setenta, para a construção de um extenso
15
Ilha oceânica na altura da divisa entre os atuais municípios de Bertioga e São Sebastião.
17
18. Faculdade do Guarujá
Reflexões em Ciências Humanas – nº 8 – ISSN 1677-7743
condomínio com acesso privativo à praia, tornando-se pivô de um
conflito fundiário e ambiental ainda não resolvido até o presente.
Na mesma região da Serra do Guararu, denominação de
toda a extensão norte da ilha de Santo Amaro, na vertente voltada para
o canal de Bertioga encontra-se outra comunidade tradicional.
Denominada Sítio Cachoeira, seus primeiros moradores, pescadores e
plantadores de cana, banana e cacau, remontariam ao ano de 1874
(MIRANDA, 2004). O então proprietário da área, Gabriel Bento de
Oliveira, teria cedido a posse da terra em regime de comodato em troca
do trabalho nas referidas plantações16. Durante o século XX, a
comunidade foi ampliando-se com a migração de pescadores de outras
localidades, como, por exemplo, o caso da família de Sidney Bibiano,
atual presidente da SOMAC, Sociedade de Melhoramentos Amigos da
Cachoeira17. A família Bibiano, provinda de Ubatuba, reside no mesmo
local desde 1934, conforme o registro na carteira de pesca do pai de
Sidney. Várias das famílias mais antigas aí residentes são descendentes
de famílias de pescadores também vindas de outros municípios do litoral
norte. Entre as décadas de 1930 e 40, boa parte das famílias dedicou-se
à exploração de carvão para abastecimento do porto de Santos,
existindo ainda vestígios de carvoarias desativadas na região. Na década
16
Conforme 2 º. Cartório de Notas e Ofício de Justiça, Santos, Livro 21, Folha 27 (11/04/1976). “Cachoeira e
Buracão com novas escolas”, Diário de Santos, 10/03/1963.
17
Depoimento ao autor em 27/06/2005.
18
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Reflexões em Ciências Humanas – nº 8 – ISSN 1677-7743
de 1950, quatro indústrias de enlatamento de sardinha estabeleceram-
se nas margens do canal de Bertioga absorvendo parte da oferta de
mão-de-obra local, mas todas já se encontram desativadas há pelo
menos vinte anos. Após essa ocupação agressiva ao ambiente, houve
uma contínua recuperação da mata no entorno, que atualmente
encontra-se em estado adiantado de regeneração. Uma pesquisa
efetuada duas décadas atrás, mostrou que apenas alguns pescadores
mais velhos dedicavam-se à pesca do peixe e do camarão enquanto que
os mais novos faziam a coleta de ostras com equipamentos de mergulho
ao longo do canal (RIBEIRO NETO & OLIVEIRA, 1989). Atualmente a
atividade pesqueira diminuiu significativamente e encontramos apenas
poucos velhos moradores sobrevivendo da pesca e da coleta do marisco
de mangue, enquanto os novos descendentes trabalham como
empregados no setor de serviços18. Em ambas comunidades da Serra do
Guararu já se constata a existência de um deslocamento local de
residentes vindos de outros bairros de Guarujá e de Bertioga, fato que
vêm aumentando desde a década de 1990.
Longe de ser um movimento espontâneo de migração,
geralmente, essa transferência de moradia dá-se devido a elementos
exteriores às próprias famílias. Esses movimentos de circulação com
característica local multiplicaram-se durante todo o século XX e estão na
18
Com o oceanógrafo Fabrício Gandini do Instituto Maramar foram obtidas informações sobre a história de
ocupação da região e o uso atual dos recursos.
19
20. Faculdade do Guarujá
Reflexões em Ciências Humanas – nº 8 – ISSN 1677-7743
base, por exemplo, da origem da vila da Ilha Diana. Formado no final da
década de 1930, esse novo grupamento originou-se da transferência de
famílias de pescadores residentes na região conhecida como Bocaina,
em Vicente de Carvalho, e que foram desapropriadas para a implantação
da Base Área de Santos (VICENTE, 2004). Como indenização receberam
a concessão de moradia na área atual, encravada entre o mangue e a
restinga, na foz do rio Diana, onde encontraram na época de sua
chegada somente uma antiga família nativa19.
A pressão pela desocupação de áreas tomadas por
pescadores cuja posse perde-se na história é fato recorrente em toda a
costa brasileira. Nesta porção do litoral o processo de tomada das áreas
mais valorizadas por empreendedores imobiliários não foi diferente,
como veremos nos relatos que se seguem, transitando entre a memória
do difícil passado vivido e a tristeza em relação a esse mesmo passado
perdido.
“Naquele tempo tinha um cruzeiro no morro do Guaiuba. A gente
mesmo fazia as redes de pescar; as embarcações eram só a remo. [...] Depois
das pescarias, bem de madrugada, saíamos lá de casa, eu e os companheiros,
numa escuridão danada e pegávamos o trenzinho pra levar os peixes até
Itapema, e de lá pegar as canoas pra ir vender o peixe no mercado em Santos”.
A narrativa acima, relatada por Edegar à Baronesa Esther
Karwinsky no ano de 1971, revela um pouco do cotidiano caiçara da
época. Esse pescador é mais um personagem característico desse fluxo
19
Em seu depoimento, Antônia Bittencourt de Souza, a Dona Dina, atualmente com 77 anos, moradora na
ilha Diana há mais de 60 anos desde a referida transferência, lembra-se que lá se encontrava instalada a
família Viscardi da qual somente restou um pequeno ramo de descendentes.
20
21. Faculdade do Guarujá
Reflexões em Ciências Humanas – nº 8 – ISSN 1677-7743
migratório local. Tendo nascido em Boiçucanga (município de São
Sebastião), migrou com os pais para a Ilha de Santo Amaro e
estabeleceu-se na praia do Guaiuba, atualmente ocupada por casas de
veranistas. Em seu extenso trabalho de pesquisa sobre o folclore da ilha
de Santo Amaro, a Baronesa recolheu várias narrativas de pescadores
contadas quando ainda havia estreitos laços culturais entre os
moradores das cidades de Santos e Guarujá com as populações
herdeiras da antiga cultura caiçara da costa paulista. Karwinsky é uma
referência obrigatória para o estudo da memória dos pescadores locais.
No decorrer de sua vida, produziu um vasto trabalho de recuperação do
folclore e do artesanato caiçara de Guarujá, tornando-se uma
autoridade local nesses assuntos.
Nessas narrativas, relatando os contos populares da ilha,
surgem vários elementos confirmando a contínua desocupação dos
terrenos da costa por parte das famílias de pescadores, geralmente com
táticas ameaçadoras contestando a legitimidade da posse da terra ou,
no limite, usando o emprego da força física. A folclorista, ao traçar a
trajetória de um de seus narradores, comenta a dura transformação
urbana trazida pelo avanço implacável da especulação imobiliária sobre
a orla: “e assim, coagido a vender o terreno onde residia por quantia
irrisória Edegar foi para o bairro de Vila Zilda” (KARWINSKY, 1999, p.
10).
21
22. Faculdade do Guarujá
Reflexões em Ciências Humanas – nº 8 – ISSN 1677-7743
Em outro relato, Marlene Reis Rodrigues, viúva de um
pescador e dona de uma barraca de peixes e mariscos na vila de
Perequê, lembra-se:
“por volta de 1972, o prefeito da época mandou expulsar os
pescadores da Praia do Perequê, ameaçando derrubar com tratores as barracas
de quem não saísse. O Capitão dos Portos atendeu com gentileza, mas informou
não se tratar de medida sua, mas da prefeitura do Guarujá. No fim, nada
conseguimos e tive de arrumar a tralha e mudar para um terreninho na Vila
Zilda”.20
A gestão municipal de então procurava urbanizar a praia
do Perequê, transformando-a em um terminal turístico para visitantes,
assim precisava desalojar as famílias de baixa renda vivendo à beira-
mar. Por ironia do destino, essa mesma praia passou a receber, desde a
década de 1990, um fluxo migratório local inverso, com moradores
vindos dos bairros periféricos de Guarujá, constituindo-se, hoje, em uma
das maiores áreas de ocupação irregular do município.
Esses não são os únicos relatos sobre a saída de
pescadores instalados nessa parte da costa paulista, relatos com mais
de trinta anos de idade que nos remetem à época em que se consolidou
a expulsão dos velhos habitantes da costa de suas antigas moradias nas
atraentes praias de Santos e Guarujá. Uma saída forçada, às vezes tida
como voluntária, se bem que pareça muito difícil crer que alguém que
viva do mar possa sair voluntariamente de uma cabana na praia para
um barraco numa favela longe desse mesmo mar. Uma transformação
20
Depoimento dado em 07/02/1990 (KARWINSKY, 1999, p. 24). A narrativa original foi ligeiramente
modificada para permitir uma melhor compreensão.
22
23. Faculdade do Guarujá
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paisagística da orla marítima dando lugar a um tipo de desenvolvimento
econômico especulativo com a construção de arranha-céus cuja principal
inovação arquitetônica, talvez, tenha sido o fato de esconderem o sol
das praias já por volta das três horas da tarde, mesmo em pleno verão.
4.2. A migração inter-regional
Além dos deslocamentos locais que estão na base do
processo de transformação das antigas comunidades caiçaras, temos,
num segundo momento, uma migração inter-regional. O primeiro fluxo
migratório constante de caráter inter-regional remonta à virada do
século XIX para o XX, inicialmente ainda dentro da área de influência da
cultura caiçara, quando, “os sulinos, de origem portuguesa, oriundos do
Estado do Paraná, instalaram-se especialmente na Praia do Perequê,
Santa Cruz dos Navegantes, Conceiçãozinha, e Praia do Tombo”
(KARWINSKY, 1993). Conforme o depoimento de velhos moradores, os
primeiros caiçaras que se estabeleceram em Conceiçãozinha nesse
período, também não são, em sua maioria, nativos da região21. Na praia
de Santa Cruz, popularmente conhecida como Pouca Farinha, a partir da
década de 1950 houve um significativo aumento da presença de
pescadores provindos de Ubatuba que deixaram a atividade artesanal
para trabalharem na indústria pesqueira, principalmente no enlatamento
21
Depoimento de moradores publicado em A Tribuna, 14/07/2002. “Há indícios de ocupação da área desde
1898”, Newton, 52 anos, cujo pai nasceu em Conceiçãozinha em 1928. Sobre Conceiçãozinha ver o trabalho
de Carlos Eduardo Vicente (2002).
23
24. Faculdade do Guarujá
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da sardinha (MALLMANN, 2002, p. 31-34). Alguns depoimentos já
relatam a constância desse movimento migratório de pescadores de
outros municípios do litoral norte (São Sebastião e Ilhabela) como
22
ocorrendo desde fins do século XIX.
Num segundo momento, houve uma mudança da área de
procedência dessa migração costeira e o fluxo mais recente foi
protagonizado, principalmente, por levas de migrantes de diversos
estados do Nordeste brasileiro e de Minas Gerais atraídas pelo boom da
construção civil empreendida pela indústria do turismo doméstico.
Durante os anos sessenta, setenta e início dos anos oitenta foram os
migrantes provenientes do êxodo rural que começaram a ocupar a
região. Já, a partir de meados da década de 1980, há uma terceira
mudança no fluxo dos novos habitantes, sendo estes, em sua maioria,
pessoas já estabelecidas na região e que interromperam sua trajetória
errante pelo país fixando-se nas pequenas comunidades pesqueiras,
transformando-as e, em muitos casos, descaracterizando-as quase que
completamente. O pescador Newton Gonçalves, presidente da Unipesc,
nascido na vila de Conceiçãozinha em 1950 e que acompanhou todo
esse processo histórico de ocupação, faz uma breve análise sociológica
dessa transformação:
22
Essas informações foram recolhidas pela Baronesa “em 18.06.77, em visita à Praia de Santa Cruz dos
Navegantes, [...] esta versão nos foi confirmada por Maria Verônica de Jesus, senhora de 107 anos na época,
ainda muito lúcida”. (KARWINSKY, 1999, p. 14).
24
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“São pessoas desempregadas que vêm fugir do aluguel, são pessoas,
principalmente de Vicente de Carvalho, diferentemente de até a década de 70,
que eram pessoas do Nordeste, que fugiam pra cá, mas era uma mini-
ocupação. De 90 pra cá, já é uma ocupação do próprio município ocasionada
principalmente pela falta de dinheiro, e vão para as áreas de mata”.23
Até a chegada desse último fluxo migratório, antes dos
anos noventa, a existência e a permanência dessa migração continuada
não chegou a descaracterizar totalmente a atividade econômica dos
moradores mais tradicionais, mesmo porque a exploração dos recursos
naturais foi incorporada por boa parcela da população migrante
(RIBEIRO NETO & OLIVEIRA, 1989, p. 21-3). Contudo, mais
recentemente, a explosão demográfica em algumas vilas de pescadores,
causada por um intenso trânsito doméstico de pessoas, a maioria já
protagonista de uma migração anterior sem nenhuma vinculação com o
meio, provocou um estranhamento dos antigos moradores vinculados às
atividades marítimas em relação ao modo de vida dos mais novos sem
interação com o meio:
“E a maioria desse mangue aqui, é tudo nortista. Então é aquele
pessoal que não está nem preocupado com o lixo... Por exemplo; você não
deixa juntar lixo nem mato em frente a sua casa. Se você vê o matagal, você
vai dar um jeito de limpar. Pra eles não. Tanto, faz como fez. Tem um barraco,
que tem a caçamba de lixo aqui. Você tenho certeza que pegaria o lixo, e traria
aqui, e colocaria na caçamba. Eles não. Abrem a janela e jogam no rio. São
pessoas que não tem compromisso com nada daqui. Essa é que é a verdade.
Não tem vínculo nenhum. Simplesmente achou a moradia, onde não paga água,
onde não paga luz, onde não paga IPTU.” (Mo.)24
Para Andréia Estrella, essas opiniões, emitidas por alguns
caiçaras, não podem ser entendidas como um fenômeno generalizado de
23
Newton Gonçalves, depoimento dado a Carlos Eduardo Vicente.
24
Depoimento dado a Andréia Estrella na Vila do Perequê em Guarujá.
25
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etnocentrismo, pois os pescadores têm a compreensão de que a
migração por si só, não é a responsável pela descaracterização do meio,
mas apenas um dos efeitos provocados pelo avanço das relações
capitalistas sobre os elos mais fracos da sociedade (ESTRELLA, 2004, p.
60-4). A autora do estudo justifica seu argumento, ao mostrar que no
convívio cotidiano na vila do Perequê não só não existem divisões em
guetos, como também há uma miscigenação entre as famílias provindas
de diferentes regiões do país.
Assim, resumindo, poderíamos caracterizar três distintos
processos de migração, não exclusivos e, em alguns casos, ocorrendo
simultaneamente. O primeiro povoamento que levou à fundação dessas
vilas de pescadores foi resultado de uma migração de caráter local, às
vezes espontânea, perseguindo novos espaços para a realização da
atividade econômica, e outras vezes forçada, provocada pelo aumento
do interesse especulativo sobre os terrenos da zona costeira. Um
segundo movimento migratório, aqui denominado de regional e inter-
regional, foi caracterizado pela migração de pescadores e habitantes
dentro da área de influência da cultura caiçara, desde Santa Catarina
até o Rio de Janeiro. O último fluxo migratório, a partir da década de
1960, teve como principal motivo o aumento da especulação imobiliária
nas praias paulistas, insuflada pela indústria do turismo doméstico, e
que atraiu a vinda de migrantes de várias regiões do país,
26
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particularmente de estados do nordeste. Com o fim dessa atração
econômica, a partir da década de 1990, retornam os trânsitos locais,
agora protagonizados já não mais por famílias de pescadores, mas,
pelos descendentes das últimas gerações de migrantes provenientes dos
bairros mais pobres da região e que passam a ocupar terrenos em áreas
de mata e de mangue, alargando as áreas restritas ocupadas pelas
antigas vilas de pescadores aqui estudadas. Com toda esta mistura
étnica e cultural seria ainda possível falar em pescadores artesanais e,
ainda mais, em caiçaras?
5. Ainda existe a cultura caiçara?
Todo essa genealogia traçada, em parte relativa a uma
origem remota, que, além de tudo, muito dificilmente poderá ser
precisada, não é o meio pelo qual se procura caracterizar a permanência
no presente de elementos da antiga cultura caiçara no entendimento
das próprias populações locais. Para se compreender o que leva os
descendentes atuais dessas populações a se reconhecerem como
caiçaras é necessário ultrapassar os critérios étnicos da ancestralidade.
Entre os habitantes das vilas de pescadores o pertencimento a essa
cultura é dado, principalmente, por uma atualização e reinvenção dos
costumes e das tradições herdadas através da atividade produtiva
(DIEGUES & ARRUDA, 2001). O efetivo pertencimento a uma
comunidade caiçara não se explica pelo estudo da composição étnica de
27
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sua população, mesmo que ela ainda possa estar relacionada àqueles
traços étnicos historicamente determinados. O que faz com que as
comunidades de pescadores ainda reclamem para si o rótulo de caiçara
é a manutenção de alguns costumes produtivos, artísticos e alimentares
que somados a uma revitalização das festas mais tradicionais mantêm
nessas populações uma relação de dependência e o vínculo com o
espaço habitado. Durante o seu convívio com o mundo caiçara, Kilza
Setti teve a impressão de que havia uma consciência grupal garantindo
a preservação da herança cultural tradicional (SETTI, 1985, p. 37).
Porém, não basta somente ter nascido no litoral para que o morador
possa ser considerado um caiçara pela própria comunidade; é
necessário partilhar saberes e técnicas dessa cultura: “Por exemplo,
alguém lá da cidade fala ´Eu vou lá pra terra dos caiçara comer um azul
marinho´, chega aqui e pergunta pra uma pessoa que está morando,
que é um caiçara, fazer um azul marinho e ele não sabe aprontar, ela
praticamente não é um caiçara, assim dos legitimo.”25
O folclore caiçara é muito rico, particularmente as festas religiosas
(DIEGUES, 1983, p. 225-7), que, apesar da intensa urbanização por que
passou a região da Baixada Santista, ainda persistem em todas as vilas
de pescadores. Todo ano em agosto a festa religiosa em homenagem a
25
Depoimento dado por um morador da praia de Cambhury, em Ubatuba, a Candice Mansano (1997). O azul-
marinho é o prato mais tradicional da culinária caiçara. Prepara-se o peixe cozido junto à banana que solta
uma tinta azulada durante o cozimento, cuja coloração dá nome ao prato.
28
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Bom Jesus é a grande celebração realizada na ilha Diana, cuja
preparação da procissão marítima e a apresentação da Congada que se
segue é mantida com enorme expectativa pela comunidade local.
Folguedos de origem religiosa como a Folia de Reis continuam sendo
praticados pelos moradores da Prainha Branca com a tradicional
distribuição de doces. Na praia do Tombo e do Guaiuba, a procissão de
São Pedro, padroeiro dos pescadores, ainda realizava-se até meados da
década de 1980, seguida de uma procissão de barcos e canoas.
Recentemente, essa festa do padroeiro voltou a ser comemorada pela
colônia de pescadores da praia de Perequê numa tentativa de retomar
esse elemento do folclore caiçara regional. Em Santa Cruz (Pouca
Farinha) persiste a tradição em louvor de Nossa Senhora dos
Navegantes, com a procissão marítima anual. O fandango, moda de
origem portuguesa ao ritmo da viola, da caixa e da rabeca, após ter
quase desaparecido do cenário cultural, foi sendo retomado por grupos
de jovens moradores tanto da Pouca Farinha como de Vicente de
Carvalho (distrito industrial e portuário de Guarujá) e reincorporado ao
repertório musical local. A tradição do pasquim, um tipo de cordel
caiçara, foi recuperada sob a influência maior da literatura de cordel
trazida pela forte migração de populações do Nordeste, berço brasileiro
dessa atividade literária.
29
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A utilização do violino, a rabeca, e sua fabricação pelos
músicos caiçaras, remonta a uma tradição influenciada pelos
colonizadores portugueses e até bem pouco tempo ainda muito usual
em toda a faixa litorânea paulista. Da mesma forma o fandango, a
dança do cateretê, deriva dessa mesma influência, também encontrada,
se bem que de forma um pouco distinta, na antiga cultura caipira
(CANDIDO, 2001). A Folia de Reis é tradicionalmente realizada com
esses elementos musicais através da passagem dos músicos guiados
pela bandeira do Divino, perfazendo um percurso pelos sítios durante
toda a madrugada até o raiar do novo dia (SETTI, 1985). Ao contrário
da procissão marítima de Navegantes, aquela em louvor de São Pedro,
segundo a mesma autora, não faria parte do imaginário marítimo da
antiga tradição caiçara e teria sido incorporada durante o século
passado como influência do “catolicismo oficial”, o que denotaria, para a
autora, uma circulação dos elementos culturais pertencentes aos grupos
dominantes.
Retomando a questão título do capítulo, o que se percebe
desde a década de 1990 é uma revitalização dos elementos
pertencentes à antiga cultura caiçara e que se encontravam em fase de
acentuada descaracterização. Particularmente na Baixada Santista, essa
seria uma expressão cultural já tida por muitos como absolutamente
perdida. Entre estes, Mauro Cherobin, em cuja pesquisa efetuada nos
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anos de 1979/80 afirmou que os mais jovens perderam todo e qualquer
compromisso com o contexto cultural anterior (CHEROBIN, 1986, p. 56).
Estamos muito longe de haver uma opinião consensual sobre o assunto.
Apoiado em seu estudo sobre os pescadores de Conceiçãozinha, Vicente
critica essa opinião hermética quanto à manifestação de uma cultura
tradicional. Para o autor, a sobrevivência de uma comunidade, ou pelo
menos daqueles que herdaram a cultura caiçara, pode continuar
ocorrendo, por exemplo, através do resgate do artesanato, da história,
da produção manual de suas ferramentas de pesca, e da prática de
limpeza do manguezal (VICENTE, 2002, p. 59-60).
Um dos fatores, talvez o principal, que levou a essa
retomada da tradição cultural local, vincula-se diretamente à luta
política desenvolvida pelas associações de moradores pela manutenção
e regularização da posse de suas moradias, ameaçados de expulsão pelo
crescimento das duas grandes atividades econômicas regionais: a
indústria do turismo e a expansão portuária. Em todas as vilas de
pescadores visitadas há, por parte dos mais jovens, uma preocupação
em apreender e reproduzir as antigas tradições artesanais como a
produção de cestos, frasqueiras e outros apetrechos em palha, e o
entalhamento de pequenas peças e móveis, atividades praticamente
abandonadas pelas duas gerações anteriores. Da mesma forma, isso
ocorre com a culinária local, cujos pratos tradicionais de pescados como
31
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tainha na folha da bananeira, azul-marinho, siri ensopado e marisco
lambe-lambe, passaram a ser oferecidos nos bares e restaurantes de
alguns vilarejos, motivados pelo crescente interesse turístico existente
em relação aos “últimos redutos caiçaras”. Tratou-se, portanto, de
adequar aquela herança cultural existente e que se encontrava um tanto
quanto adormecida, como se fosse uma qualidade que definisse
pejorativamente o grupo, reinventa-la e explora-la economicamente
para atender às novas demandas turísticas criadas em busca do passado
perdido.
No tocante à atividade produtiva, a contínua expropriação
das terras dos caiçaras tomadas pela especulação imobiliária promovida
pelo avanço do turismo levou a maior parte da população costeira a
abandonar o antigo modo de vida baseado na pesca artesanal e na
lavoura tradicional. Essa transformação da relação econômica mantida
com o espaço fez com que a maioria desses antigos moradores e seus
descendentes se tornassem pescadores exclusivos, muitos deles
empregando-se na indústria pesqueira ou, até, abandonando
completamente as antigas atividades econômicas (SILVA, 1993).
Apoiada na tese de Milton Santos (1987), para quem as relações entre
cultura e territorialidade são inseparáveis, Maria Calvente procurou
mostrar que a cultura caiçara ainda subsiste, apesar de todo o processo
de transformação do espaço onde ela está situada (CALVENTE, 1993). A
32
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cultura, sendo uma manifestação dinâmica, não poderia ser encontrada
congelada com as mesmas características de 20 ou 30 anos atrás,
exatamente por coexistirem, ambiguamente, elementos de resistência
associados a traços de conformismo. Da mesma forma, analisando o
contato entre nativos e estrangeiros26, Maria Teresa Luchiari entende
haver uma convivência entre o que seria ainda “tradicional”, relativo aos
descendentes dos caiçaras, e o “moderno”, trazido pelos turistas e pelos
migrantes (LUCHIARI, 1992).
Assim, esse pequeno “resgate” da cultura caiçara que vem sendo
promovido, não se trata de um retorno a um modo de vida que, tanto
pela herança étnica, quanto do ponto de vista da antiga atividade
econômica, efetivamente desapareceu. A retomada das antigas
tradições dá-se num contexto político desfavorável, em que a
descaracterização cultural ocorrida colocou em risco a própria
sobrevivência das famílias em seu espaço de origem. Acusados de
ocuparem irregularmente os terrenos em que residem, os novos
caiçaras resistem à remoção, adequando-se ao novo contexto
econômico e incorporando, definitivamente, o atendimento ao turista
como uma atividade profissional. Veremos adiante como essa
revitalização do sentimento de pertencimento a uma cultura caiçara
influenciou positivamente na construção de uma agenda política pelas
26
A sociologia do turismo diferencia o nativo, habitante local, do estrangeiro, tanto o turista como aquele que
migrou em função da atividade turística.
33
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comunidades. Estabelece-se, a partir desse momento, uma relação
estratégica com o novo discurso ambientalista em voga desde a década
de 1990.
Comentários preliminares
A elaboração deste relatório aqui apresentado somente foi
possível devido à participação, mesmo que minoritária, de
representantes diretos de diferentes associações da sociedade no Plano
de Gestão Costeira. Talvez, essa participação social tenha sido o
principal mérito das atividades desenvolvidas durante a primeira etapa
do ZEE. Isto permitiu que os conflitos sócio-ambientais existentes
envolvendo antigas comunidades de pescadores fossem amplamente
debatidos, mostrando as posições divergentes dos diversos atores de
modo muito mais explícito. O acompanhamento da etapa de definição
do zoneamento e dos debates que se seguiram fez com que
percebêssemos que a solução dos conflitos existentes não poderia se
restringir somente aos aspectos técnicos do Meio Ambiente, ou
normativos do Direito. A busca por uma solução socialmente mais justa
deverá necessariamente levar em conta o processo histórico de
ocupação dessas áreas, chamadas por Acselrad de equiproblemáticas.
O estudo da ocupação desse território nos remete a movimentos
contínuos de migração que, no passado, tiveram várias dimensões. Foi
34
35. Faculdade do Guarujá
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através desse processo histórico continuado que se constituíram as
comunidades de pescadores e a cultura caiçara do litoral paulista e,
também, mais recentemente, sua profunda transformação. A
descaracterização dessa forma cultural ocorreu no decorrer da segunda
metade do século XX movida por um surto de desenvolvimento da
Baixada Santista que atendeu duas grandes demandas econômicas: a
portuária e a turística.
Contudo, apesar do desenvolvimento econômico ter praticamente
destruído os antigos hábitos caiçaras, restaram algumas áreas onde
ainda persiste uma significativa herança cultural. Nas últimas três
décadas, estabeleceu-se nessas áreas remanescentes um conflito pela
posse ou propriedade da terra e, conseqüentemente, por sua ocupação
territorial. Essas áreas de que falamos caracterizam-se por terem tido,
até pouco tempo atrás, escasso valor econômico, e assim
permanecerem como uma espécie de sertões, quase que fundos
territoriais na expressão usada por Robert Moraes, tanto em terras da
União como nos registros cartoriais de particulares, áreas de reserva
visando futuros empreendimentos econômicos.
A manutenção de fundos territoriais ou áreas de reserva, mais do
que uma característica localizada, constituiu-se na estratégia política por
excelência utilizada por todos os mandantes da nação e, desde antes, na
América portuguesa. Uma estratégia baseada na conquista territorial
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dos sertões, no exercício guloso da extensão da soberania, mesmo que,
na prática, fosse impossível a efetiva colonização ou exploração
econômica da imensidão dessas terras. A política de integração nacional
se fez com uma estratégica reserva do território para apropriação
futura, bem como com a manutenção de um desejável excedente
populacional para a exploração laboriosa. Ambos, terra e gente,
entendidos como recursos de reserva a serem apropriados na medida
em que a expansão do mercado os demandasse.
Também na Baixada Santista, embora em menor escala, tivemos
a reprodução dessa política de reserva de espaços para
empreendimentos futuros. As terras públicas da União foram concedidas
aos empreendedores particulares para a expansão portuária, implicando
na remoção dos antigos posseiros, em sua maioria pescadores
artesanais. Os outros fundos territoriais aqui descritos, como vastas
áreas da Serra do Guararu ou o Sítio Sândi foram abandonadas pelos
proprietários particulares de documentos cartoriais sem interesse
econômico em sua exploração. Em algumas áreas, esse abandono
resultou na ocupação centenária desses territórios por habitantes
tradicionais da costa que aí constituíram sua vida e cujos costumes
consolidaram-se em uma cultura denominada caiçara.
As áreas de conflito aqui expostas, definidas como de conflito
sócio-ambiental, repito, foram áreas abandonadas pelos interesses do
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mercado que agora, tidas de alguma forma como rentáveis pelos seus
“proprietários”, buscam ser retomadas. A questão central implícita,
portanto, é a posse da terra e, conseqüentemente, quem fará uso dos
recursos naturais. Os conflitos ambientais existentes são, antes de tudo,
conflitos fundiários. Só recentemente, nos últimos vinte anos, a disputa
sobre a posse efetiva dessas terras incorporou nos discursos, seja de
proprietários como de posseiros, o tema do meio ambiente.
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